domingo, 27 de novembro de 2022

Perfis 5 - Modesto Carone

Modesto Carone tinha algumas citações que funcionavam como leitmotiv. Talvez três, talvez quatro. Tinha um jeito particular de enunciá-las. Estivesse andando pela sala ou de frente para o quadro negro, bastava vê-lo girar de modo constante, nem rápido nem lento, sobre as botinas de zíper bem engraxadas para saber que alguma delas logo se encaixaria a contento na ocasião. Dizia-as sério, como se fosse a primeira vez que as enunciasse, mas depois um traço de alegria, como o que atesta no artesão a consciência do trabalho bem feito, iluminava o seu rosto. Lembro-me de duas, que reproduzo como me traz a memória, que não erra.
A primeira era de Brecht, aquela famosa – também porque referida por Benjamin – sobre fotografar fábricas da Krupp. A segunda, esfregada contra a condenação existente nesse texto de Brecht à expressão da vivência, era a conferência sobre lírica e sociedade, de Adorno. A terceira também era deste: aquela frase sobre escrever poesia depois de Auschwitz. Já vi que me lembrei de três, e agora me vem uma quarta: a de Paul Celan, sobre a língua materna dele ser a dos assassinos de sua mãe. Mas essa ocorria bem menos, embora contraposta hábil e produtivamente às duas já evocadas do filósofo de Frankfurt.
Mas além ou aquém (no sentido físico e geográfico) dessas estrelas-guia havia outra, mais efetiva porque encarnada: Roberto Schwarz. Formavam uma boa dupla. Modesto, tradutor notável do alemão, vinha da USP, dessa área. Aqui defrontou-se com um verdadeiro austríaco. E rendeu-se.
Lembro-me de uma demonstração do fato. Foi durante a intervenção que o malfadado Paulo Maluf fez na Unicamp. Um interventor rodara a pé, aparentemente perdido, pelo campus. Nós o acompanhamos aos gritos de “rato” e outros termos do mesmo nível. Fazíamos menção de o agredir, mas não tocávamos nele. Era o tempo sombrio da ditadura e tudo podia acontecer. O rato, por fim, enfiou-se num buraco administrativo, e sumiu.
Na cantina do IEL, depois, comemorávamos e interpretávamos o sucedido. Vendo a agitação jovem, Modesto se aproximou. Tinha essa simpatia generosa pela juventude impulsiva, pelos estudantes. Um de nós tinha uma tese, que foi logo exposta quase em coro, mas ele não concordou. Deu uma interpretação diversa, e a defendeu com grande autoridade de silêncios e ponderações. Quando quase nos dávamos por convencidos, aproximou-se o Roberto. Um de nós lhe pediu opinião e ele disse mais ou menos o que dizíamos. A reação do Modesto ficou famosa. Olhou para nós todos, olhou para o recém-chegado, concordando e assentindo com a cabeça. Inclusive, na sequência, desenvolveu com boa lógica o novo ponto de vista, que já tinha passado a ser o seu.
Fisicamente, Modesto não era nem baixo nem alto, embora mais para baixo do que para alto. E nem era gordo nem magro, talvez puxando um pouquinho mais (quase nada) para a primeira opção. Era compacto. Principalmente no inverno, quando uma persistente gola olímpica vinha juntar-se a um casaco de couro de corte clássico. Tinha o rosto mais para o redondo em certa época, e algum maldoso quis apelidá-lo de Batatinha, em homenagem a um gato célebre dos desenhos animados. Mas o apelido não pegou e nem sei por que me lembrei disso agora.
Intelectualmente, era também robusto e bem composto. Tinha uma grande qualidade como professor: a paciência. Na verdade, tinha duas: a aplicação didática. De novo começo pela redução, pois tinha três: a simpatia generosa com que recebia os alunos, conversava com eles, indicava livros.
Aliás, um dos testemunhos ou sequela da sua seriedade era a fixação nas referências, que ia até o extremo de dar o devido ou suposto crédito, quando possível, a declarações orais. Esse traço, pelo excesso e às vezes pela impertinência do registro, deu inclusive origem a um poema coletivo, em clave alegre. Não tenho a versão da época, porém. Soube depois que foi musicado, mas não sei se no todo ou em parte, se do jeito que nasceu ou acrescido. Começava assim: “Bonjour, comme dirait Charles Aznavour”. Do resto não me lembrava, mas busquei a canção do Zé Miguel, e nela deparei com esta estrofe, que me recorda algumas das afeições da época em que fazia o curso: Il fait chaud, comme dirait Arthur Rimbaud / Merci, comme dirait Claude Debussy / Il fait beau, comme dirait Jean-Jacques Rousseau / Je suis désolé, comme dirait Mallarmé.
O mais admirável desse conjunto de qualidades mobilizadas em sala de aula é que todos sabiam que para ele a docência não era uma vocação, mas um trabalho. Era um escritor talentoso, como depois se viu, no período da aposentadoria. E um tradutor muito notável e reconhecido. Mas mais de uma vez, como era seu costume, repetiu algo que me pareceu divertido, embora eu não o tivesse imitado nisso quando chegou a minha hora. Dizia que, se estivesse dando aula e escrevendo na lousa uma palavra e alguém chegasse à porta e gritasse: “Modesto, saiu sua aposentadoria!”, ele deixaria cair o giz, sem sequer terminar a grafia do vocábulo. O que talvez fosse o caso, se na hora ele estivesse grafando uma daquelas intermináveis palavras alemãs. O que sei é que ele cumpriu seu tempo com dignidade. É certo que depois, como prometido, desapareceu do IEL e, imagino, de qualquer outra sala de aula. O que apenas confirma uma vez mais o mérito: um marcante professor, mesmo se, como ele julgava, lhe faltasse a vocação como já lhe faltava, nos últimos tempos, a vontade.

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