sábado, 30 de setembro de 2023

Tradução?

 Gosto de ler as postagens de Thomaz Albornoz Neves e de debater com ele. É que ele é inteligente, culto e não-acadêmico, cousas que juntas (como diria Camões) se encontram raramente. Acabo de ler uma delas. Diz o seguinte: “Esta edição de Renée propõe um exercício conceitual. No lugar do autor traduzindo seus próprios poemas, os oferece em cinco idiomas sem determinar um original. / Discorrer pelo sentido dos versos com um vocabulário multilíngue, mas fiel a uma única voz, refrata a leitura, logo a amplia. Sugere que a poesia é a mesma em qualquer idioma. Em si o poeta não muda, o poema é que varia conforme a época e a cultura.” Bom, Renée é o nome de um livro do autor. Que foi publicado (e aposto que escrito) em português. Então, há um original. O autor é o original? Sem dúvida, mas há um original textual, ou melhor: uma forma primeira em que se cristalizou alguma experiência ou expectativa. Ou seja, é difícil concordar que não há aí um autor a traduzir os seus poemas. A não ser que se afirme que um poeta recriar em alguma língua os poemas que escreveu em outra não seja tradução. (Nem vamos aqui mergulhar nas águas confusas da emoção recolhida na tranquilidade, ou no vapor úmido da inspiração. Basta pensar que algo teve uma realização num dado sistema de sons e sentidos e depois teve outras realizações, para as quais era impossível obliterar a primeira, que ao menos estará lá como baliza, pauta, desenho interior.) Mas o que me chamou a atenção nesse caso foi menos esse espinho conceitual do que a carnadura prática do resultado. Por exemplo, o primeiro verso do poema VIII desse moderno guardador de rebanhos (sendo o rebanho, no caso, o dos seus versos em prisma poliglótico): Oscurece y volvemos de la ensenada /  Tramonta e torniamo dalla cala / The sun fades and we return from the cove / Le jour tombe et nous revenons de la baie / Entardece e voltamos da enseada. Se fosse uma tradução (e não é, mesmo?) eu logo me perguntaria o que foi traduzido. Seriam os conceitos? Apenas eles? Em português, ouve-se um eco tradicional forte: o ritmo heroico do decassílabo se impõe desde logo à leitura, dando à abertura um acento que falta (me parece) completamente à versão inglesa. Também esse harmônico, por assim dizer, falta ao francês, onde poderia haver se viesse forma ou ritmo alexandrino. A aliteração do italiano produz outro efeito, diverso, ainda que forcemos bastante (a meu ver) a escansão para emular o decassílabo de Dante. Já em espanhol não percebo equilíbrio, nem eco ou alusão formal. Então, mais uma vez: se fosse uma tradução, o que estaria sendo traduzido exatamente? O autor, porém, nos informa de que não é tradução. O poeta nos oferece os poemas em várias línguas. Que quer dizer isso? Reescreve? Recria-os? É difícil escapar do sentido amplo ou restrito da palavra tradução. Seja qual for o prisma – me pergunto –  esses versos se equivalem? Não. É certo que deveria talvez julgar o conjunto de cada poema e não o incipit apenas. Mas o começo é decisivo, porque dá a tônica. Seria o poema uma operação de perde-ganha? Isso ainda seria tradução. Seria livre-composição a partir da reconstrução e vivência nova do impulso, da configuração vida-linguagem do momento em que cada um foi escrito em português? Mas então por que não seriam novos poemas, com novo título, novas palavras, em um novo livro? E seria verdade que, em várias línguas, seria sempre a mesma voz? É o mesmo o que fala assim, ou refala, em vários idiomas, com vária tradição e diversos sentidos acomodados em cada cadência ou número? A poesia é a mesma, por graça dessa identidade suposta de origem? Seria a poesia algo transcendente ao idioma? Em que sentido? Seria capaz de o atravessar incólume? Ou mesmo de permanecer idêntica a si mesma além ou aquém dos sentidos implicados nas formas? Fiquei pensando nisso, sem concluir nada porque nada queria concluir. Apenas fui anotando, em traços rápidos, as impressões. Como numa conversa, aqui, olhando a noite e a lua cheia, com um copo e um palheiro, enquanto a noite segue.

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