domingo, 17 de março de 2024

Leo Vaz

 Quando terminava a dissertação sobre a Poesia Concreta, mergulhei no estudo do haikai, do budismo e da língua japonesa. Quando me lembrei de que precisava prosseguir no rumo acadêmico, com um doutoramento, percebi que a paixão do momento não era suficiente. Seriam precisos muitos anos de estudo de língua e cultura para produzir algo aproveitável como tese. 

Voltei os olhos então para uma afeição de juventude, reli os livros e a partir desse autor organizei um projeto de leitura a contrapelo da tradição teleológica que punha o Modernismo ao mesmo tempo como destino e ponto inicial do que importava na literatura brasileira. Esse autor era Leo Vaz. 

É provável que hoje pouca gente saiba quem foi e o que escreveu, mas nem sempre foi assim.

Imagino que alguém já deva ter escrito sobre a formação das bibliotecas da classe média brasileira ao longo do século XX. Se houver tal estudo, certamente um lugar de destaque é dado (além das publicações de Monteiro Lobato) a coleções notáveis, que chegavam a qualquer rincão onde houvesse correio ou banca de revistas: a Coleção Saraiva e a coleção do Clube do Livro. 

Na casa dos meus pais, ambas estavam presentes, junto com duas ou três enciclopédias, as obras de Machado e de Alencar, os indefectíveis livros de Lobato, quatro volumes que reuniam grandes poetas românticos, uma coleção russa denominada “Ciência para todos”, os livros de Conan Doyle e um grande exemplar da “Divina Comédia”. Havia certamente outros livros a que me afeiçoei bastante, como o “Tesouro da Juventude”, mas as coleções de romances eram o núcleo principal, seja pela quantidade, seja pela variedade.

Na primeira delas, a da Saraiva, encontrei “O professor Jeremias” e “O burrico Lúcio”; na segunda, “O misterioso caso de Ritinha e outros sem nada disso”. Só muito mais tarde, justamente quando pensava o projeto de doutoramento, li as “Páginas vadias”. 

Leo Vaz foi autor de sucesso. “O professor Jeremias”, por exemplo, teve uma dezena de edições. A primeira, por Monteiro Lobato, saiu com 1000 exemplares. O livro foi ganhando leitores e avaliações positivas da crítica, até que em 1949 integrou a Coleção Saraiva, numa tiragem de 40.000 exemplares! Nessa coleção ainda teve duas outras edições. Foi numa delas que encontrei o autor e o seu livro. 

40.000 exemplares duma só vez! Somando tudo, é crível que o “Jeremias” atinja a casa da centena de milhar. É muito para um autor e um livro praticamente ignorado pela história literária.

“O burrico Lúcio”, que é uma adaptação de Luciano, também teve tiragens expressivas. Veio na mesma coleção e depois virou paradidático, na Coleção Jabuti.

Mas há outro sucesso absoluto de público, da autoria de Leo Vaz, menos conhecido, porque num domínio curioso.

Quem quer que tenha lido romances sobre a vida nas pequenas cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX sabe da importância das farmácias como lugar de reunião. Eram, na verdade, um tipo de equivalente diminuído e acanhado dos salões aristocráticos ou das docerias cariocas. Não, claro, por conta da boemia, mas por permitirem a agremiação de pessoas com interesses culturais. Na minha cidade de Matão, há um testemunho eloquente: a Farmácia Caibar Schutel, tocada pelo apóstolo do Kardecismo no Brasil, ao lado da qual funcionaria uma gráfica que imprimia livros espíritas e o célebre jornal “O Clarim”.

Um dos atrativos das farmácias eram os livros de variedades e conhecimentos úteis, os almanaques. Leo Vaz, durante os anos em que viveu em Itápolis, sentiu na carne a importância cultural da farmácia e dos seus almanaques, que comparecem em “O professor Jeremias”. Por isso deve ter exultado quando foi convidado por Candido Fontoura para fazer um. E fez: o arquifamoso e onipresente “Almanaque do Biotônico Fontoura”.

Dia desses, arrumando os livros, deparei com um exemplar de um livro de Leo Vaz que me foi oferecido por Alexandre Eulálio, talvez o único dos meus colegas de Unicamp que conhecia a obra e a apreciava na medida que eu considerava justa.

O doutoramento não prosseguiu o rumo inicial. Deixei de lado a leitura das dezenas de romances publicados por Lobato e pelas duas coleções.

Quando ainda pensava nisso, numa visita a Antonio Candido comentei sobre um autor de Piracicaba, cujos livros me pareciam de interesse na linha de pesquisa que tentava desenvolver. “Ah, disse ele, esse é um chato. Me mandava todos os livros dele.” Prudentemente, eu não mencionei o autor do “Burrico Lúcio”, e voltamos a falar sobre Bilac.

Não deve ter tido importância essa conversa, mas a verdade é que decidi escapar um pouco das questões nacionais e da opressão canônica, terminando por ir a Portugal e a Macau, em busca dos rastros e dos textos de Camilo Pessanha.

Não estou, entretanto, seguro de que não teria sido melhor eu ter me dedicado com a mesma energia ao que estava perto, nas redondezas caipiras. Quem poderia saber? 

 

 

- A quem se interessar, recomendo a consulta ao livro de Virginia Bastos de Mattos. "Léo Vaz: o cético e sorridente caipira de Capivari". Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2009.

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