quarta-feira, 30 de outubro de 2024

T. S. Eliot, Fernando Pessoa e a inteligência artificial


 

A IA pode escrever boa poesia? Essa é uma questão candente. Boa parte das respostas negativas se baseia na falta de sensibilidade da máquina. Ela faria apenas pastiches de coisas já ditas. À IA faltariam duas coisas: capacidade de produzir o novo, isto é, originalidade; e experiência humana. Não há por trás do texto produzido por IA, isso é claro (por enquanto), um ser consciente, não há mente, apenas algoritmos, grades de programas, regras de pesquisa e combinação e adaptação do já escrito. Entretanto, valeria a pena mediar as reações pela leitura de um texto muito conhecido e influente, “A tradição e o talento individual”. Por exemplo: “A poesia não é uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade.“ Também há um outro texto de Eliot que podia ser convocado aqui nesta provocação. Um sobre Hamlet, no qual ele fala do “correlato objetivo”. Isto: “A única maneira de expressar a emoção em forma de arte é encontrar um correlato objetivo, em outras palavras, um grupo de objetos, uma situação, uma cadeia de eventos que serão a fórmula dessa emoção particular, de modo que quando os fatos externos, que devem terminar em experiência sensorial, são fornecidos, ele evoca imediatamente a emoção.” Eu creio que o “correlato objetivo” tem muito a ver com o haicai. Houve, inclusive, quem aventasse a hipótese de Eliot ter formulado a ideia a partir do contato com a poesia oriental. Não duvido, nem acredito, e essa não é a questão. O que eu queria sugerir é que a IA talvez possa ser uma máquina eliotiana de compor poemas. Assim como ele fez em “The Waste Land”, pastichando e incorporando outros poetas; ou como fez em Prufrock, no que toca ao correlatos objetivos; ou ainda nos Quartetos, quando a paráfrase de textos bem conhecidos gera um tom que para alguns parece até muito sentencioso. O que quero dizer é que não penso que um poeta como Eliot fique desmerecido se o descrevermos como uma máquina muito sofisticada de seleção e agenciamento e incorporação dos textos do passado, isto é, da tradição. Se for assim, não creio que seja impossível que um supercomputador (uma máquina neural) não seja capaz de produzir poemas do mesmo nível, se considerado apenas o aspecto técnico. Mas o que mais há que possa ser avaliado objetivamente em arte além da realização técnica? O que nos leva a outra questão: a perplexidade quanto ao que o leitor tem à sua frente (isto foi produzido por IA ou por humano?) pode, a longo prazo, fortalecer uma tendência já sensível, que é a de valorizar o texto diretamente vinculado a uma experiência. Temos visto já a grande ascensão de um tipo de texto, e do interesse acadêmico nele: o texto de testemunho. De modo que aqui vai uma última provocação: se o interesse for pelo vivido, pelo testemunhado, e se a desconfiança quanto ao texto “impessoal” aumentar, pode-se dar uma curiosa inversão, que é a de preferir os textos menos claramente literários, menos realizados literariamente, desde que mais testemunhais. O que teria um ar de família com o teste que se faz hoje para saber se um artigo foi produzido por humanos ou por IA: se não houver erro, a chance de ser IA é grande. Por isso mesmo, alguns vendedores de facilidades já anunciam textos de IA em que a própria IA introduz pequenos deslizes, de modo a emular o humano. Mas há ainda um outro exemplo que eu queria trazer aqui. Fernando Pessoa escreveu em vários estilos. A poesia de Caeiro pouco tem a ver com a de Álvaro de Campos, por exemplo. Pessoa criou as personalidades e até fez delas horóscopos, que é uma forma de conseguir parâmetros “pessoais”, que seriam juntados a parâmetros estilísticos. Qual a experiência real do poeta? A que aparece em Caeiro ou nos poemas iniciáticos de Pessoa ele-mesmo? Onde ele está sentindo, onde ele está inteiramente como pessoa? Ora, se a beleza dos poemas dos heterônimos é produzida com base em uma espécie de matriz que inclui desde o horóscopo até a suposta formação filosófica, passando pela imaginada experiência de vida e pelo diagnóstico do tempo de modo a inserir cada um dos heterônimos no debate contemporâneo, por que uma IA sofisticada não poderia fazer o mesmo? Nós nos emocionamos com os poemas desses seres fingidos por um humano, por que não nos emocionaríamos com os que viessem de um ser fingido por uma máquina?