terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Clara Pinto Correia - 2

 Ainda sob o impacto da notícia da morte de Clara Pinto Correia, e da última entrevista que deu, na qual conta que dois homens se postaram sob a janela da casa dela, em Estremoz, debatendo para saber se ela era uma artista ou uma puta; e lendo ainda o depoimento sobre o estupro que sofreu em outra ocasião, lembrei-me de como era o Portugal que conheci entre 1989, quando visitei o país pela primeira vez, e 1996, quando escrevi o prefácio do seu livro Mais Marés que Marinheiros.


As muitas lembranças, combinadas, mostram-me o quanto teve ela de coragem de se expor como intelectual de peso - escritora e cientista - e ao mesmo tempo bandeirilhar o meio – como se faz aos touros, na arena –, exibindo-se como mulher linda e provocante.

O primeiro episódio se deu logo na minha segunda estadia prolongada, em 1991. Naquela época, eu namorava uma moça americana, com quem vivia. Meus pais foram visitar-nos, e os levei a conhecer o Bairro Alto. Em certo ponto do passeio, minha namorada e eu nos beijamos na calçada. Um beijo apenas, não tão longo, mas o suficiente para que uma das muitas velhas de preto que pareciam patrulhar as ruas e os costumes viesse sobre nós com uma sombrinha igualmente preta, gritando impropérios contra as indecências e a sem-vergonhice. Meu bom pai, armado de um recém-comprado e longo guarda-chuva inglês, aparou o golpe, impávido e tranquilo como Bruce Lee. Ela se afastou ante a barreira paterna, vociferando sempre, para se juntar a duas outras que a acompanhavam nos insultos.

Haveria ainda mais depoimentos para atestar o quão tacanho era o país, antes de ser beneficiado pelo dinheiro e pelas autoestradas europeias. Mas, num salto, chego a 1996.

Eu confesso que nunca tinha ouvido falar em Clara Pinto Correia. Não havia internet na época, e eu estava no Brasil desde 1991, e tinha passado o ano de 1994 a rever as provas da edição crítica da poesia de Camilo Pessanha, que sairia finalmente em 1995, pela Relógio d’Água, de Lisboa.

Pois foi Francisco Vale, editor da Relógio, quem me escreveu. Disse que ia publicar um livro de uma escritora de que gostava bastante e que ela lhe tinha dito que parecia haver algo de próximo do haicai na sua composição. Ele então se lembrou de mim, consultou-a, e ela gostou da ideia. Recebido o livro, li-o com muito prazer. Gostei bastante, na verdade, e enviei o prefácio. Ela agradeceu, eu respondi, e não mais nos falamos.
Quando o livro saiu, ocorreu outro choque: um colega português, professor universitário não desconhecido, com quem eu mantinha relações muito cordiais, enviou-me um e-mail violento e desrespeitoso. Dizia que eu tinha descido muitos graus no seu conceito, por ter-me vendido assim. E terminava a grosseria insinuando que eu ou teria comido ou queria comer a escritora!

Aquilo me fez pensar, e, quando voltei a Portugal, tratei de saber de quem se tratava. Quem poderia inspirar tal agressividade. Foi então que vi um programa seu de TV, ao lado do marido. Se não me engano, ele era gringo e ficava mudo e quedo, de chapéu (eu acho), enquanto ela exibia a mente esfuziante, o rosto brejeiro e irônico, e as belas pernas que depois vi, numa revista de moda ou decoração, pendendo de uma rede em sua casa – que era o motivo presumido da matéria.

Na verdade, creio que então não a quis conhecer por intermédio do editor, porque fui tomado de algum temor. De me apaixonar? Acho que não. De desmontar a idealização da contestadora alegre do conservadorismo e da modorra portuguesa? Muito provavelmente.

Alguns anos depois, soube do escândalo que se formou em volta do seu nome, porque num artigo de divulgação científica para jornal, incorporou parágrafos de um artigo americando. Em seguida, tomei conhecimento da condenação pública ao retrato do orgasmo feminino ensaiado nas fotografias do seu rosto, que compuseram a exposição “Sexpressions”, e em seguida foram publicadas num grande jornal português, fora do contexto original. Nas duas ocasiões, senti logo que era a Vingança, a sórdida vingança dos antes humilhados, acovardados e impotentes.

E a Vingança obteve triunfo completo, a aliança dos recalcados e ofendidos cobrou o preço total: o apagamento da cientista, da escritora e, inclusive, da pessoa, que muitos julgaram morta por cerca de dez anos. Ela foi despejada da casa em que morava, da universidade e, como ela mesma revelou, ninguém lhe ofereceu mais nenhum emprego, de modo que teve de terminar na fila do equivalente português do nosso INSS.

A lembrança poderia ser melancólica, e combinar com a tarde abafada, chuvosa e de céu cinzento. Mas foi, na verdade, luminosa! De uma personagem trágica, inspiradora, que pagou muito caro por ultrapassar os limites dum meio mesquinho e machista, sendo livre, competente, desabusada e inteligente.

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