sábado, 26 de abril de 2025

Crítica de haicai 2

 Nasci em Matão, simpática cidadezinha italiana no interior do estado. Lá me dediquei às duas atividades culturais disponíveis, que ocupavam o mesmo lugar: o xadrez e a leitura.


Trazendo assim esta marca de origem, como poderia deixar de atender a um conterrâneo que me pede opinião sobre suas incursões no estranho território do haicai?

Do primeiro comentário resultou que o conterrâneo abdicou da métrica, achando por bem privilegiar a impressão. E me enviou outro haicai.

Como achei que este último comentário pontual poderia ser de interesse de mais pessoas, consultei-o sobre se queria a resposta inbox ou por aqui. Era indiferente, mas ele também achava que podia ser melhor por aqui. Então segue.

pelo mato alto,
as gotas deslizam:
é tempo de chuvas

Meu caro Márcio , do ponto de vista formal este é um tipo de haicai que tem sido muito praticado no Brasil. Tem uma estrutura lógica.

Nesse ponto, eu procuro seguir Shiki, que escreveu: “Haikus não são proposições lógicas, e nenhum processo de raciocínio deve aparecer na superfície.”

Aqui, neste seu haicai, o poeta observa algo: as gotas deslizam pelo mato alto. É uma observação “de perto”, como a de uma lente macro. Em seguida, ele conclui, sem carga afetiva ou novidade, que isso se deu porque é tempo de chuva.

A simples inversão já eliminaria o processo do raciocínio na superfície:

É tempo de chuvas –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Aqui, em vez de uma explicação “raciocinante”, o que temos é um constatar da ordem das coisas.

Entre tantas observações que o poeta poderia fazer no tempo de chuva, ele escolheu falar do miúdo. O tempo de chuva não é explicação de nada. É a condição geral, o quadro em que se dá um fenômeno.

Nos dois casos “tempo de chuvas” é kigo. Mas neste segundo faz melhor o papel de kigo, fornecendo o clima, o "mood".

A interpretação fica por conta do leitor, mas poderia ser algo como: o poeta não pode sair de casa, ou está abrigado da chuva, não tem muito o que fazer e observa a água escorrendo pelo mato alto.

Se tivesse usado um outro kigo, o sentido seria diferente. Por exemplo:

Chuva de verão –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Alguém poderia dizer que há aí dois kigos: mato alto e verão. Mas isso só importa aos puristas. Principalmente porque no Brasil deve ser possível encontrar mato alto seja no verão, seja no outono, seja no inverno.

Se isso é ou não possível, é uma coisa. Outra coisa é o efeito diferente que produziria cada caso: chuva de verão, chuva de outono, chuva de inverno. Pode testar para ver.

Mas isso já é outro assunto, o que queria mostrar aqui é que, eliminando o mecanismo explicativo evidente, tudo fica mais “haicaístico”.

Crítica de haicai

 Minha última postagem deu motivo a muitos comentários, sugestões e críticas.


Isso é o melhor do Facebook - esta plataforma tão detestável sob outros aspectos.

De minha parte, acho que palpitar no haicai e nas questões envolvidas nas postagens é ótimo e penso que as pessoas deviam fazê-lo sem pensar que eu poderia me aborrecer com críticas ou ressalvas. Eu posto justamente para ter diálogo.

Com relação à postagem sobre o cachorro morto, um ponto que me parece interessante é a proposição do haicai como anotação direta e "imexível".

Penso que, como exercício espiritual, como caminho, o haicai almeja a notação direta já acabada.

Também como caminho, como aprendizagem, é importante a notação sem retoques, que permite avaliar o grau de desenvolvimento - numa situação tradicional em que há um professor, um mestre.

Por outro lado, como disse num comentário, mexer num haicai, alterar a primeira notação, pode ser um esforço de recuperar a percepção inicial, levar o escrito para mais perto da experiência.

Não é verdade que, quando escrevemos, o amor-próprio nos leva às vezes a tentar "melhorar"o que íamos escrever? Nos leva a querer antecipar a reação do leitor e nos adequar a ela?

Nesse caso, alterar o haicai pode ser justamente eliminar essas intervenções do amor-próprio. Significa depuração das palavras em direção à experiência.

Quando se trata de notação imediata como valor do haicai, sempre me lembro desta formulação de Tohô, um dos discípulos de Bashô:

"Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência. Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade."