Na pequena faculdade de Araraquara havia um só professor de Literatura Brasileira e somente um professor de Literatura Portuguesa. Creio que não estou em erro quanto à primeira; mas quanto à segunda, estou seguro.
O regente desta última cadeira, quando o vi pela primeira vez, pareceu-me vagamente familiar. Talvez fosse o bigode, talvez o formato das maxilas, ou o jeito desconfiado com que olhava meio de baixo para cima, talvez mesmo o jeito de caminhar. O certo é que de imediato o associei à infância ainda próxima, às matinés no Cine Theatro Polytheama, onde nos fazia rir o grande Amácio Mazzaropi.
Conhecendo-o depois, como aluno, apreciei e imitei o seu humor meio matuto, cortante e nem sempre contido. Nas tardes modorrentas, a classe enlanguescia. Jorge, sentado à mesa, apertava os olhos ao passá-los sobre nós. No novo campus, havia incômodas nuvens de minúsculos mosquitos. Voejavam junto dos olhos e da boca. Jorge então batia palmas na frente do nariz, para espantá-los. Aproveitava as palmas para dizer com o olhar irônico ou com a voz meio esganiçada que não era pra dormir. E muitas vezes emendava com aquela frase que hoje talvez lhe custasse o emprego.
Eu achava divertido. Eram outros tempos. Mesmo que houvesse ali verdade, confesso logo que ele estava errado em dizer e eu mais ainda em rir, cúmplice. Não, não era um curso de espera-marido, o de Letras. Estou certo de que não. Mesmo que não estivesse convencido disso na época, hoje sem dúvida devo estar. Por isso, não devia rir mais alto quando Jorge completava que, enquanto o marido não aparecia, todo mundo tinha de estudar.
Talvez devesse dizer que era acima de tudo um rabugento. Mas quanto a mim era um adorável rabugento. Porque não creio que houvesse, apesar da máscara protetora de azedume, professor mais dedicado a nós, mais atento, mais solícito.
Durante muitos anos, e talvez até hoje, a sua vida – ou o que eu imaginava que ela fosse – foi um ideal. Jorge vivia em frente a uma escola grande da cidade. Sua casa tinha uma garagem que dava para a rua. Mas não era usada como tal. Era uma biblioteca.
Habitava-a, além do Jorge em carne e osso, o Jorge em papel e tinta. Digo: um enorme fichário, onde ele guardava inúmeras fichas, minuciosamente preenchidas, arrumadas e catalogadas. Suas leituras todas, desde um tempo que me parecia imemorial, se prontificavam ali, ao alcance da mão!
Durante muitos anos, meu sonho foi voltar a Araraquara como professor, comprar uma casa com garagem, fazer uma biblioteca na garagem e ser um novo Jorge Cury. Só me faltaria o fichário, por isso ainda no segundo ano comecei a preencher uma ficha para cada leitura escolar ou relevante. E se parei com as fichas pautadas de papelão foi porque continuei a fazê-las em formato digital, nos primeiros e precários computadores de 8 bits.
Devo dizer, entretanto, que não foi pacífica nossa convivência. Jorge era muito cristão. Demasiadamente cristão para o meu gosto. Certa ocasião, em vez de me dizer coisas interessantes, começou a louvar o casamento. As virtudes cristãs do casamento. Estávamos na sua biblioteca. Eu tinha 18 anos e lhe garanti, como alguém que tem mentalmente muitos anos a menos do que 18, que não me casaria nunca. Foi uma conversa, um debate meio sem sentido, mas terminou com uma aposta bizarra. Como eu tinha acabado de ganhar um Karman-Ghia vermelho, que era meu xodó, e sabendo o Jorge que eu invejava a sua biblioteca, apostamos uma contra o outro: ou seja, se eu um dia me casasse, lhe daria o carro; se não, ele me daria a biblioteca. Jorge ria muito, quando selamos o trato. Mas quando finalmente me casei, apenas uns cinco anos depois, não voltei para vê-lo. Muito menos para lhe levar o carro, que eu já não tinha.
Outra nossa desavença foi pública. Ele ensinava o Camões. Tínhamos de ler o Jorge de Sena. E lá estava o nosso Jorge escrevendo na lousa o número das estrofes de cada canto, do menor para o maior. Em certo ponto, havia dois cantos com o mesmo número de estrofes. Então ele os escreveu na mesma linha. Por fim, quando terminou, virou-se para nós e disse que ali estava uma revelação. Não sei se usou essa palavra, mas o jeito como falou sugeria que se tratava de uma revelação. E a revelação era que aquele arranjo de números na lousa formava a Cruz.
Eu tinha visto que o encontro dos tempos narrativos, em “Os Lusíadas”, se dava na estrofe 551. Como o poema tinha 1102 estrofes, ok: Camões tinha feito cálculos, segundo o outro Jorge, o de Sena, para que isso acontecesse assim mesmo. Mas a história da cruz me parecia uma grande bobagem!
Quando ouviu essa palavra, ainda piorada pelo qualificativo, Jorge ficou transtornado. Foi um desacato pessoal. Sua voz se alterou. Quando se irritava, parecia taquara rachada. Disse-me, indignado, que eu era uma formiguinha perto do Sena. Passou-me uma lição de moral, uma descompostura em regra. Mas então, em certo momento, disse a frase que nunca me saiu da memória. Por algum motivo, para aumentar a glória do Sena, resolveu se meter na comparação. Disse que, perto da grande árvore que era o xará português, ele, o Cury, era “um humilde pilriteiro”! Aquilo me abalou. Um pilriteiro! Jorge era um pilriteiro e eu era uma formiga! Eu não fazia ideia do que fosse um pilriteiro, mas concluí que provavelmente havia ali um recado para mim, e que eu era a formiga no pilriteiro que ficava embaixo da árvore do Sena. Eu mais não disse. Nem ele retrucou, satisfeito com a constatação da minha derrota embaraçada e encolhida.
Houve ainda outros embates, mas a verdade é que eu o adorava e ele me tolerava bem.
Quando me decidi a fazer a livre-docência, Jorge foi um dos primeiros nomes que me ocorreu submeter ao departamento. No memorial, já registrara a dívida imensa, então era de justiça.
Naquele tempo, a gente começava a ser dispensado de apresentar tese. Podia ser uma reunião de ensaios. Eu já tinha feito a tese, sobre Pessanha. Mas na incerteza também tinha preparado o livro de ensaios. Então apresentei os dois. No dia da defesa, reencontrei o riso sardônico do Jorge, quando ele se queixou do meu exagero, que o obrigava ainda agora a trabalhar tanto. Ele ria ainda do mesmo jeito, meio entrecortadamente, alternando o sorriso com a careta e mastigando, sob o bigode já branco, as palavras que vinham embaladas em veneno leve. Depois, na titularidade, convoquei-o outra vez. Era parte de tudo aquilo, de um jeito ou de outro, desde que debutei em escrita acadêmica, na revista dos alunos e no jornal do diretório, com dois textos nascidos das suas aulas.
Vi-o por fim numa reunião da turma. Foi a última vez, eu creio, que conversamos de viva voz. Em silêncio, entretanto, durante leituras, planejamento de cursos e redação, o diálogo algo conflituoso de Araraquara nunca se apagou. Pelo contrário, quando o assunto era português, foi se mantendo e, aqui e ali, frutificando, em boa emulação e melhor cumplicidade, risonha e admirativa.