sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contributo à biografia de Plínio Martins Filho*

Entrevista a Ulisses Cappozoli


1)    Como e quando vocês se conheceram e que interação tiveram?

Conheci o Plínio por intermédio do Ivan Teixeira. Ivan dirigia uma coleção na Ateliê. Uma coleção que publica clássicos em língua portuguesa, em edições cuidadas, cheias de notas de apoio à leitura. Convidou-me para redigir uma apresentação do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Isso deve ter sido na segunda metade da década de 1990. Talvez tenha estado com o Plínio antes, em alguma outra ocasião. Mas minha lembrança mais forte data desse momento. 
Ivan era uma pessoa muito absorvente, um intelectual notável, cheio de planos. Plínio tinha nele o parceiro ideal. Plínio é um homem tranquilo, que gosta de ouvir, que aprecia o conhecimento. Ivan e ele formavam um par fantástico e creio que as qualidades de ambos deram o tom da parte acadêmica da Ateliê: seriedade, firmeza, comprometimento, entusiasmo.
Do que me lembro, apreciei de imediato o ar modesto e gentil do Plínio, e seu real interesse nos livros e nas questões editoriais implicadas por uma coleção desse tipo, destinada a formar um fundo de catálogo dirigido à formação de leitores.


2)    Que contribuição mais específica ele deu para a editora da Unicamp. Em que estágio ela estava, quando começou a colaboração a que você se refere?

Quando assumi a direção da Editora em 2002, não havia praticamente nenhuma estrutura. Praticamente falida, com um catálogo problemático e funcionários sem treinamento, aquilo era um caos. Desde meu primeiro encontro com o Plínio, fui-me aproximando dele, por admiração e também porque comecei a me envolver com a coleção da Ateliê. Na sequência, por intermédio do Ivan, me aproximei da Edusp, tendo inclusive, por sua indicação, publicado lá minha tese de livre-docência.
Minha primeira ação, quando fui convidado para dirigir a Editora da Unicamp, foi, portanto, ligar para o Plínio e perguntar-lhe o que achava. Como ele me entusiasmasse, perguntei-lhe se poderia contar com ele. Essa era a condição para eu assumir.
E assim foi: fui a São Paulo várias vezes e especulei tudo o que podia. Depois, a cada passo, ligava para o Plínio, com ele discutia as estratégias. E pude apreciar uma qualidade do seu caráter: Plínio nunca é impositivo. Embora seja um dos maiores editores brasileiros, nunca disse algo como “faça assim...”, ou “o certo é...”. Sempre partia da sua experiência, sugeria, ouvia.
Além disso, pude contar com ele para qualificar o quadro funcional da Editora. Revisores, preparadores e administradores foram assistir aulas na ECA, estagiar na Edusp e puderam sempre recorrer à nossa irmã mais velha no sistema público paulista, para estabelecer rotinas e procedimentos.
Quando finalmente encontrei uma pessoa capaz de gerenciar todo o processo de produção, foi ainda o Plínio de grande valia para orientar os primeiros passos que fazíamos para ter uma estrutura técnica independente da direção acadêmica – o que, por sinal, valeu a sobrevivência da Editora da Unicamp, no período posterior, quando ela quase foi outra vez desmantelada.


3)    Que papel ele teve em termos de contribuição para o desenvolvimento de outras editoras universitárias?

Plínio nunca foi político nem fez proselitismo. Assim, sua contribuição se deu basicamente pelo exemplo e pelo acolhimento. O acolhimento sempre foi notável: qualquer professor levado pelas circunstâncias a assumir uma editora sempre teve nele um mestre disponível e um amigo para os desabafos. Foi assim comigo, como foi com o diretor da editora da UFPR e a diretora da UEL, entre vários outros.
No que toca ao exemplo, é público e notório que o trabalho do Plínio na Edusp estabeleceu um novo patamar para a edição universitária. Além da qualidade editorial propriamente dita, que é a mais alta possível, Plínio nos mostrou que construir uma identidade visual era necessário. Todos reconhecíamos de longe os livros da Edusp. E aquilo sempre foi uma inspiração para muitos: livros sóbrios, bem feitos, bem planejados, miolo e capa em harmonia, uso racional de logotipo, distribuição dos títulos em coleções consequentes. Sobretudo, mostrou que uma editora universitária não precisava ficar a dever, em qualidade e apresentação, a nenhuma editora privada. Pelo contrário, podia disputar, com as melhores, os prêmios todos, do conteúdo específico ao projeto gráfico.



4)    Plinio chegou à USP num contexto comparativamente incomum (não tinha mestrado nem doutorado). Como você interpreta essa condição. De alguma maneira ele rompeu um certo paradigma, no sentido de não ser um, digamos, “iniciado” do ponto de vista acadêmico?

Há dois Plínios, e só a cegueira institucional da USP é que não permite que sejam um só. Quero dizer: há o funcionário Plínio, lotado na Edusp; e há o professor Plínio, lotado na ECA, no curso de editoração. Ambos são um só, evidentemente, e se a USP fosse uma universidade menos engessada, teria ali um profissional raro em qualquer parte do mundo: um professor de notório saber, capaz de formar gerações e gerações de editores, e de gerir a maior e melhor editora universitária do Brasil.
Lembro-me sempre, quando penso nisso, no caso de Alexandre Eulálio. Foi meu colega no IEL. Um homem de saber incomum na área da literatura e da cultura, de modo geral. 
Alexandre não tinha título universitário. Por isso a Unicamp lhe conferiu um título de doutor por notório saber e o contratou como professor em tempo integral.
Já na USP, o que ocorreu? Exigiram do Plínio uma tese de doutoramento, que ele fez tardiamente, pois esse não era o seu perfil. A tese é um livro maravilhoso, o “Manual de Editoração”. Mas não é uma tese acadêmica. Ainda bem, porque é um trabalho diferenciado, que só um grande editor poderia ter feito.
O problema da USP é não compreender a grandeza de uma pessoa como ele. Por isso, relega-o a tempo parcial. De modo que sua atividade termina por ser restrita, seu enorme potencial termina por ser subaproveitado pela universidade.
E, por fim, há a mesquinharia dos jogos políticos: um dos maiores editores do Brasil foi afastado da direção da Editora que construiu, e substituído por pessoas que podem ter boa vontade, mas não formação ou experiência no mundo editorial. Pior: pessoas que, por conta da circunstância interna das mesquinharias político-acadêmicas, sequer se socorreram do saber do antecessor, nem trataram de se esforçar para corrigir o erro que foi a universidade tê-lo afastado da função que ele pode desempenhar como ninguém.
Quando ao fato de ele ter chegado sem doutoramento, só posso louvar a amplitude de visão de João Alexandre Barbosa. Este, sabendo-se sem condição de gerir uma editora (como eu também tinha consciência disso, e qualquer professor subitamente designado para tal função deve ter...), aceitou com a condição de ter ao seu lado o Plínio, que ele conhecia da Perspectiva. Foi graças ao João Alexandre que o Plínio veio para a USP. E graças a essa decisão, a Edusp se tornou o que ainda é hoje, apesar de serem já sensíveis os sinais de seu declínio como editora de ponta. O resto da história todos conhecem: num momento em que o país mergulha num crescente obscurantismo caipira e ressentido, Plínio é retirado da direção da Edusp e fica restrito a atividades de segunda importância. A rigor, fica confinado num espaço de todo indigno da sua formação e competência.

  
5)    As universidades brasileiras não têm certa resistência em aceitar o conhecimento, digamos vivido, prático, sem que esteja acompanhado de certa formalidade acadêmica?

Nós somos o país dos bacharéis. Como respondi acima, poucas vezes se vê um gesto como o da Unicamp, ao atribuir a um dos maiores intelectuais brasileiros um título de notório saber, que lhe permita trabalhar e orientar estudantes.
No geral, o carreirismo impera entre nós. Muitos gostam da formalidade vazia a ponto de inserirem em seus currículos o absurdo título de “pós-doutor em...”
Mas sobre isso falei na resposta anterior.
  

6)    Como você avalia uma experiência dessa natureza? Plinio teve algumas resistências (por exemplo, recusa em que monografia de mestrado pudesse ser transferida para doutorado, algo relativamente comum no meio acadêmico). Como interpretar esse ambiente?

Plínio foi um outsider numa universidade extremamente conservadora, engessada, que ainda vive das glórias do passado. Creio que muitos setores da USP nunca puderam assimilar a ideia de que a competência acadêmica pode ser adquirida na prática, no exercício consequente de uma atividade.
Sobretudo, o que julgo fundamental para entender o porquê de a USP ter aproveitado pouco o Plínio no trabalho acadêmico é que essa universidade, desde a publicação da famosa “lista dos improdutivos”, passou a considerar como produção (e a enfatizar desmesuradamente como produção) os papers acadêmicos. O lado formativo, que sempre foi a alma e razão de ser da universidade, ficou em segundo plano. O professor termina por ser inferior, do ponto de vista prático e de avaliação, ao “pesquisador” (seja lá o que isso queria dizer na área das humanidades). Plínio é, essencialmente, um formador, um professor. Não é um homem que publica artigos acadêmicos. Aliás, na sua área, no seu domínio específico que é a editoração, isso nem sequer é possível. De fato, pode-se falar muito sobre história do livro, circulação do livro, aspectos materiais da leitura etc. Mas sobre concepção e produção de livros, administração de editora, política de vendas, equilíbrio entre o Estado e o mercado na produção e venda de livros, que interesse têm artigos acadêmicos?
Ao restringir a avaliação do desempenho ao paper, a universidade dá provas de grande cegueira, e sacrifica o que sempre foi sua razão de ser: formar pessoas. Não é à toa que cada vez mais “dar aulas” é visto como perda de tempo pelas novas gerações de docentes que se entendem como pesquisadores em busca do próximo artigo a publicar em inglês...


7)    Em termos qualitativos e mesmo quantitativos, como você avalia a produção dele na Edusp?

Já falei sobre isso. Plínio foi a alma da Edusp. E por conta de seu trabalho e dedicação ela se tornou o que é. Ou foi.


8)    Qual ou quais as contribuições dele foram mais promissoras tanto para a Edusp quanto na parceria que tiveram em relação à Editora da Unicamp?

Também já falei sobre isso. A competência técnica, apoiada num grande amor ao livro e à leitura, foi sua contribuição principal. Nas parcerias com a Unicamp e outras, creio que sua contribuição principal foi sua vontade de ensinar e ajudar.


9)    Qual a situação, de modo geral, das editoras universitárias no Brasil e que perspectiva você enxerga para elas?

Sobre isso posso lhe enviar um artigo específico sobre editoras universitárias, que sairá em breve em volume. Mas, de modo geral, creio que atravessam um momento difícil. Não vejo possibilidade de que se repita o momento de esplendor, que se localiza mais exatamente entre a posse de João Alexandre e a substituição quase simultânea dos três diretores das mais atuantes editoras universitárias do Brasil: a da UFMG, a da UNESP e a da USP. O fato de todos, com longo tempo de direção, terem sido alijados num curto espaço de tempo, é um marco cronológico importante – e um sinal do fim de uma etapa.

10) Uma editora como a da Unicamp tem que diferenças, se comparada à Edusp ou outras editoras universitárias no Brasil?

Sobre a Editora da Unicamp tenho pouco a dizer. Assim como sobre as demais. Deixei a direção há 6 anos. Então o que eu pudesse dizer agora dependeria de me debruçar sobre o catálogo atual de cada uma, o que não fiz.


11) Plínio recusa a ver-se como um “intelectual”, ainda que faça um trabalho intelectual e tenha relacionamento estreito com uma comunidade intelectualizada. Como você entende essa recusa da parte dele?

Plínio não é um “intelectual” no sentido que essa palavra tem no estrito contexto universitário. Não é um homem de teorias, não é um produtor de artigos acadêmicos, não passa a vida a correr atrás de mais linhas para o seu Lattes, não fica exibindo indiretamente o currículo o tempo todo em conversas sociais. 
É um intelectual, porém, como muitas pessoas dentro e fora da universidade: é um grande leitor, um melômano, um apaixonado pela história do livro e da edição, que conhece como poucos. Mas eu entendo completamente que não queria se ver como “intelectual”. Eu mesmo não gosto dessa palavra se for aplicada a mim. Prefiro ser identificado como professor. Ele, como editor.

12) O que significa editar perto de 1.600 títulos em uma editora universitária?

Significa ter a competência de administrar o caos. E também a humildade de saber que em algum ponto se vai falhar, atrasar, escolher mal. Mas, sobretudo, significa que, depois de uma experiência como essa, e do sucesso comprovado, você é tudo menos uma peça dispensável. Significa – não me canso de repetir – que deixar uma pessoa com tal cabedal afastada do centro produtivo da universidade é uma demonstração de cegueira ou de mesquinharia indignas de uma grande universidade como a USP.
  

13) Qual o contexto, neste momento, das editoras universitárias em relação às comerciais?

As editoras universitárias estão enfrentando um grande desafio. Como as teses agora são todas públicas, na forma eletrônica, ou as editoras se tornam verdadeiramente editoras, no sentido de obrigar que uma tese seja submetida a uma radical edição para virar livro, ou então se resignam a produzir material de apoio: traduções, livros didáticos, manuais. Ou, pior ainda: a editora pode ceder à tentação de publicar apenas trabalhos de seus docentes e estudantes que não passaram pelo crivo de uma banca – e, dentre eles, justamente aqueles que outras editoras não têm interesse em publicar.
O caminho da concorrência com as editoras comerciais, pela abertura do catálogo a títulos não acadêmicos, por outro lado, parece-me perigoso. Não só porque aí não se justificaria manter uma editora universitária, mas principalmente porque as verbas públicas tendem a encolher, caso em que não há justificativa para empregá-las num lugar onde a iniciativa privada pode atuar. 
  

14) Qual sua visão em relação à perspectiva do livro impresso, em comparação à versão eletrônica?

As edições eletrônicas tendem a substituir grande parte das impressas. E aqui entra o papel do editor. Um bom editor é aquele que sabe explorar as potencialidades gráficas a tal ponto que o livro em papel tenha um diferencial notável em relação ao eletrônico. Cito como um exemplo: os dois volumes idealizados pelo Plínio e publicados pela Edusp, sob o título “A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX”. Esse, que conheci em manuscrito, era uma tese de livre-docência. Entre essa primeira versão e o que foi publicado, tudo mudou: o editor fez a diferença, e o que hoje temos é uma obra-prima editorial. Outro exemplo é a edição da “Divina Comédia”, com desenhos de Botticelli, publicada em conjunto pela Ateliê e Editora da Unicamp: um livro que é outra obra de arte, e que nunca seria possível em forma eletrônica, inclusive porque exige do leitor uma inversão do sentido da leitura, quando a narrativa atravessa o Inferno e começa a subir em direção ao Purgatório.
Mas mesmo quando a intervenção do editor não é tão decisiva, eu creio que, por enquanto, o livro em papel persiste. Porque ele ainda representa um filtro de qualidade: tudo pode ser publicado caseira ou industrialmente na forma eletrônica a custo relativamente baixo; mas se algo é publicado em papel, com custo alto, supõe-se que seja algo que tenha merecido o investimento. Esse é um papel fundamental das editoras: filtrar. Mas no caso das editoras universitárias, esse papel é ainda mais importante, porque para elas não é tão importante o filtro (digamos assim) constituído pela análise do investimento e da previsão de retorno, quanto o da qualidade. Isto é: uma editora acadêmica, ao publicar um livro, direta ou indiretamente chancela a sua qualidade e a sua relevância para um dado campo do saber. Mesmo que ele não dê retorno financeiro.
Entretanto, a longo prazo, creio que o livro digital irá substituindo gradativamente a maior parte dos livros impressos, especialmente os de caráter mais técnico, numa ponta, e os de pura diversão, na outra.

  
15) Como é editar livros numa editora universitária, num ambiente claramente competitivo, mas diferente do que ocorre com editoras comerciais?

Não creio que o ambiente das editoras universitárias seja claramente competitivo. Há muita emulação. Nesse sentido, a Edusp era o padrão: a barra sobre qual todos queriam poder saltar. Mas a ABEU, por exemplo, é um órgão destinado a promover a cooperação e parceria, inclusive no que toca à comercialização dos livros. Nem sempre conseguiu, porém, fugir às questões de instrumentalização política. Por isso mesmo, a Edusp, a editora da UEL, a da UFMG e a da Unicamp tentaram, em tempos, criar a Liga de Editoras Universitárias – destinada exclusivamente a promover a parceria, cooperação e comercialização dos livros acadêmicos. De modo geral, porém, o ambiente me pareceu sempre muito mais cooperativo do que competitivo.
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*Ulisses Cappozoli está redigindo uma biografia de Plínio Martins Filho, ex-diretor da Edusp e editor da Ateliê Editorial. Pediu-me, como subsídio ao seu trabalho, que contasse um pouco da história comum: que lhe falasse do período em que trabalhamos juntos como autor e editor, e do tempo em que trabalhamos lado a lado como editores - ele na Edusp e eu na Editora da Unicamp. Para isso, enviou-me uma série de questões, que respondi rapidamente, porque o trabalho está em andamento. Entretanto, a entrevista não será publicada: foi solicitada apenas como material de base, que o autor incluirá da forma que couber melhor na sequência narrativa, combinado a outras entrevistas e depoimentos. Sendo assim, pensei que valeria talvez a pena publicá-la na íntegra. Principalmente porque, imagino, aquela parte mais propriamente pessoal - que não se evita ao escrever de impulso - não tem como ser aproveitada: digo, o tom, a afetividade na confissão da dívida.


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