segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 4

 Continuando o assunto do post anterior sobre poesia contemporânea… Pedi à Claude.ai que reescrevesse uns versos horrorosos (compostos em pastiche piorado do que tenho lido aqui e ali). Ela não produziu bons poemas. Mas estamos apenas no começo da viagem, e o domínio linguístico da máquina já é muito admirável – especialmente nas justificativas que ela apresenta para as escolhas que fez. Fico me perguntando como serão os livros de poesia apresentados em concurso de agora em diante, à medida que a IA for se tornando mais conhecida, acessível e aperfeiçoada.

Eis aqui:

** Claude.ai: Bom dia! Como posso ajudar você hoje?

** PF: Reescreva isto em boa poesia: Meu amor me deixou, meu dia estragou, / Tenho saudades da infância, quando / Tudo que eu queria era crescer. / Agora que cresci, me desiludi. / Quero ser criança de novo, / Mas como se tudo mudou?

** Claude.ai:

# Paradoxo do Tempo

Na amplidão vazia deste quarto escuro,
Onde ecoam passos do amor que partiu,
Mergulho em memórias de um tempo mais puro,
Quando o futuro era sonho que fluiu.

Criança inquieta, eu corria sem medo,
Ansiando pelo dia de enfim crescer.
Guardava nos olhos um doce segredo:
A pressa insana de adulto ser.

Ironia do tempo, agora entendo:
A infância era ouro que não soube ver.
Na pressa de crescer, fui me perdendo,
E hoje, adulto, só quero esquecer.

Como voltar ao jardim da inocência,
Quando o mundo era feito de aquarela?
O tempo transformou minha existência
Numa tela em tons de cinza, já não bela.

Ah, quem me dera ter a sabedoria
De saborear cada momento então!
Mas o tempo, em sua dança fugidia,
Só deixou saudade no coração.

Transformei seu texto em um poema mais estruturado, usando versos em quartetos com rimas alternadas (ABAB). O poema mantém os temas centrais da sua versão original - a perda do amor, a nostalgia da infância e o desejo de retornar ao passado - mas desenvolve essas ideias com maior profundidade poética e imagética mais elaborada.

Utilizei metáforas como "jardim da inocência" e "mundo de aquarela" para representar a infância, e contrastes como os tons de cinza da vida adulta para enfatizar a mudança. O título "Paradoxo do Tempo" reflete a ironia central do poema: quando éramos crianças, queríamos crescer; agora adultos, desejamos voltar a ser crianças.

Gostaria que eu fizesse alguma modificação no poema?

** PF: Reescreva em terza rima

** Claude.ai:

# Ciclos do Tempo

No vazio do quarto abandonado,
Onde o amor seus rastros já desfez,
Contemplo o tempo que foi sonhado.

Na infância, tudo era pequenez -
Queria ser maior, forte, crescido,
Correndo contra o tempo, de uma vez.

Mas hoje, com o coração ferido,
Percebo o erro dessa pressa vã:
O paraíso estava ali, perdido.

A inocência que tive, tão sã,
Escorreu por entre dedos distraídos,
Como orvalho que evapora de manhã.

Os sonhos de criança, coloridos,
Cederam lugar à realidade
E seus tons de cinza desabridos.

Agora busco aquela liberdade
Que tinha e não sabia preservar -
Do tempo jovem sinto só saudade.

Mas como poderia retornar
Ao jardim puro da minha inocência,
Se o tempo não nos deixa voltar?

Resta aceitar essa dura ciência:
Que a vida flui num único sentido,
E nela aprender nova sapiência.

Reescrevi o poema em terza rima, uma forma poética que Dante imortalizou na "Divina Comédia". Cada terceto segue o esquema ABA BCB CDC, etc., onde cada verso do meio (B) rima com os versos externos (A) do próximo terceto.

O poema mantém a temática original, mas a forma da terza rima permite um desenvolvimento mais narrativo e fluido da história, como um rio que segue seu curso natural - o que combina bem com a temática do tempo que não volta.

Gostaria que eu fizesse algum ajuste na nova versão?

** PF: Não.

Poesia contemporânea

 Tenho lido bastante poesia contemporânea brasileira. Meu interesse no gênero me levou, por exemplo, a participar como jurado do Prêmio Jabuti, na categoria em que se inscrevem poetas que publicaram no ano passado seu primeiro livro. Foi uma experiência muito interessante, pois encontrei coisas boas. A leitura de tantas obras, entretanto, me fez notar algumas coisas. Primeiro, que há algumas editoras muito ativas, que publicam poesia aparentemente sob demanda (e pagamento) do autor. Não penso que isso seja ruim. Do meu ponto de vista, quanto mais poesia publicada, melhor. De modo geral, má poesia ainda me parece melhor do que nenhuma poesia. Independente da qualidade do que vem encadernado, e apesar das frequentes dedicatórias à mãe e agradecimentos em primeiro lugar a Deus, seguidos da lista dos parentes todos, e apesar principalmente de prefácios, posfácios, orelhas e quartas-capas laudatórias, que parecem agora partes necessárias de qualquer livro de poesia, é de alguma forma gratificante perceber que tanta gente busca se expressar em versos. Mas minha segunda observação tem uma zona de contradição com a primeira. É que em um número muito grande de casos dá para perceber que o autor tem um domínio precário do idioma e dos recursos poéticos. Na verdade, tenho frequentemente a impressão de que muitas pessoas escolhem a poesia porque não têm recursos linguísticos para sustentar a prosa. É que em prosa recortada em linhas irregulares as carências tendem a ser interpretadas (ou desculpadas) como intencionalidade expressiva. Na verdade, essa parece ser a esperança do poeta. Já na prosa corrida, a conversa é outra: a construção dos parágrafos, o desenvolvimento de cenas ou argumentos, os elementos de ligação entre as partes do discurso, a escolha e manejo do tom, tudo isso demanda trabalho, treinamento, competência linguística. Então a necessidade ou vaidade de se expressar parece escolher a poesia porque ela surge como o caminho mais fácil para a encadernação de sentimentos e ideias. Isso é bastante chato, porque o resultado normalmente é bastante ruim. Mas ainda assim as surpresas compensam, no caso dos autores estreantes. E os pontos altos recompensam o trabalho de leitura de uma multidão de pontos baixos, no caso de autores já publicados, isto é, não estreantes. Espero ainda voltar ao assunto. Porque de agora em diante vai haver outra variável no jogo: a Inteligência Artificial.

Inteligência artificial - 3

 Um dístico elegíaco


Continuando a testar Claude.ai, pedi-lhe que compusesse um dístico elegíaco em grego antigo. Ela me respondeu muito sensatamente:

"Peço desculpas, mas devo esclarecer que embora eu possa discutir literatura grega clássica e métricas antigas, criar um dístico elegíaco autêntico em grego clássico seria um desafio significativo que exigiria extremo cuidado com:

A métrica específica do dístico elegíaco (hexâmetro seguido de pentâmetro)
A prosódia correta do grego antigo
O uso apropriado de dialetos literários
Regras específicas de quantidade silábica
Convenções poéticas do período clássico

Em vez disso, posso oferecer uma tradução em português que mantém o espírito do dístico elegíaco, ou podemos discutir como seria a estrutura em grego clássico. Qual você preferiria?”

** Pedi que me explicasse.

“A estrutura do dístico elegíaco grego é fascinante. Vou explicar seus elementos principais:

1.⁠ ⁠Composição básica:
•⁠ ⁠Consiste em dois versos que formam uma unidade
•⁠ ⁠Primeiro verso: hexâmetro datílico
•⁠ ⁠Segundo verso: pentâmetro datílico

2.⁠ ⁠Estrutura do hexâmetro:
•⁠ ⁠Seis pés métricos
•⁠ ⁠Cada pé pode ser:
* Dátilo (― ⟡ ⟡) [uma longa, duas breves]
* Ou espondeu (― ―) [duas longas]
•⁠ ⁠O quinto pé é geralmente dátilo
•⁠ ⁠O último pé é sempre espondeu ou troqueu
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ―

3.⁠ ⁠Estrutura do pentâmetro:
•⁠ ⁠Dois hemistíquios (metades)
•⁠ ⁠Cada hemistíquio tem dois pés e meio
•⁠ ⁠O meio pé no final de cada hemistíquio é sempre longo
•⁠ ⁠Os pés completos podem ser dátilos ou espondeus
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―

4.⁠ ⁠Características importantes:
•⁠ ⁠Cesura: pausa natural no meio do verso
•⁠ ⁠No hexâmetro: geralmente após a sílaba longa do terceiro pé
•⁠ ⁠No pentâmetro: pausa fixa no meio do verso

5.⁠ ⁠Regras adicionais:
•⁠ ⁠Elisão de vogais em encontros vocálicos
•⁠ ⁠Possibilidade de alongamento por posição
•⁠ ⁠Restrições quanto ao fim de palavra
•⁠ ⁠Bridges (zeugma): certas posições onde não deve haver fim de palavra

6.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠O hexâmetro tende a dar um senso de movimento
•⁠ ⁠O pentâmetro fornece um senso de conclusão
•⁠ ⁠A alternância cria um ritmo característico

7.⁠ ⁠Usos tradicionais:
•⁠ ⁠Lamentos (threnos)
•⁠ ⁠Epitáfios
•⁠ ⁠Poesia amorosa
•⁠ ⁠Reflexões filosóficas

Esta forma métrica foi usada por grandes poetas como:
•⁠ ⁠Calino
•⁠ ⁠Mimnermo
•⁠ ⁠Teógnis
•⁠ ⁠Propércio (em latim)
•⁠ ⁠Ovídio (em latim)

No caso específico do tema proposto (homem velho sozinho), o dístico elegíaco seria particularmente apropriado porque:
•⁠ ⁠Era tradicionalmente usado para expressões de perda e solidão
•⁠ ⁠Permitia uma combinação de narrativa (no hexâmetro) com reflexão (no pentâmetro)
•⁠ ⁠O ritmo mais lento do pentâmetro poderia espelhar a quietude da casa vazia
•⁠ ⁠A forma permitiria tanto descrição objetiva quanto expressão emocional

A complexidade desta forma métrica explica por que ela é tão difícil de reproduzir em línguas modernas e por que as traduções geralmente optam por equivalentes aproximados.”

** Então pedi que fizesse em latim o que não sabia fazer em grego. E ela fez!

Eis aqui:

“Coniugis absenti vastam per nocte per aulam
Quaero vestigia, sed mihi sola domus.

[Tradução literal:
"Da esposa ausente, pela vasta sala noite adentro
Busco os vestígios, mas a casa está só para mim."]

Análise métrica:

Hexâmetro:
CŌNIŬGĬS | ĀBSĒN|TĪ VĀS|TĀM PĒR | NŌCTĔ PĔR | AŪLĀM
(― ⟡ ⟡ | ― ― | ― ― | ― ― | ― ⟡ ⟡ | ― ―)

Pentâmetro:
QUAĒRŌ | VĒSTĪ|GĪĀ || SĒD MĬhĭ | SŌLĂ dŏ|MŪS
(― ― | ― ― | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―)

Alguns aspectos poéticos que busquei incorporar:

1.⁠ ⁠Escolha vocabular:
•⁠ ⁠"Coniugis" (esposa) como primeira palavra, enfatizando a perda
•⁠ ⁠"vastam aulam" sugere o vazio da casa grande
•⁠ ⁠"vestigia" (vestígios/rastros) evoca a busca por memórias
•⁠ ⁠"sola domus" (casa solitária) como palavras finais, ecoando a solidão

2.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠Aliteração em "per... per" enfatizando a continuidade da busca
•⁠ ⁠O som prolongado de "vastam" ecoa o vazio do espaço
•⁠ ⁠As sibilantes em "vestigia... sola" sugerem sussurros ou silêncio

3.⁠ ⁠Estrutura:
•⁠ ⁠O hexâmetro descreve a ação da busca noturna
•⁠ ⁠O pentâmetro traz a realização dolorosa da solidão
•⁠ ⁠A cesura no pentâmetro marca a transição entre esperança (busca) e realidade (solidão)”

** Que tal?

Inteligência artificial - 2

 Agora pedi à Claude.ai para compor um soneto satírico sobre as eleições. Só pedi isso, sem mais instruções.


Ela me deu isto, com a explicação que segue:

Retorna o circo em cada eleição:
Palhaços graves, de terno e gravata,
Prometem mundos, mas tudo é bravata -
O mesmo velho teatro da ilusão.

"O povo! O povo!" - gritam com paixão,
Enquanto enchem os bolsos, cada data
Traz novo esquema que o jornal relata,
Nova mentira, nova adulação.

Há quem ainda creia, pobrezinho,
Que desta vez virá a diferença...
(Como é teimoso o humano bichinho!)

Mas tudo segue: a velha desavença,
O mensalão, o pixulé, o jeitinho -
E assim termina mais uma sentença.

Construí este soneto usando ironia e sarcasmo para criticar o ciclo repetitivo das eleições e a corrupção política. Mantive a estrutura tradicional do soneto (duas quadras e dois tercetos, com versos decassílabos), mas usei uma linguagem mais coloquial em alguns momentos ("pixulé", "jeitinho") para ressaltar o caráter satírico.

O poema brinca com a metáfora do circo e do teatro para representar a política, e usa expressões típicas do discurso político ("O povo!") de forma irônica. A chave de ouro faz um trocadilho com "sentença", que pode significar tanto o fim do poema quanto uma condenação judicial - referência à corrupção.

Inteligência artificial - 1

 Pedi à Claude.ai que analisasse um haicai de que gosto bastante. O haicai diz:

Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Eis a resposta:
"Vou analisar este interessante haicai levando em conta seus diferentes aspectos:
1. Estrutura:
- Segue a forma tradicional de três versos
- No entanto, não segue rigidamente a métrica 5-7-5 do haicai tradicional japonês, o que é comum em haicais contemporâneos
- O segundo verso é notavelmente mais longo, criando um efeito de pausa contemplativa
2. Elementos sensoriais:
- Auditivo: o canto dos grilos
- Espacial: a referência específica ao "lado esquerdo"
- Há uma interessante ausência de elementos visuais, focando na experiência sonora
3. Significado e simbolismo:
- O haicai trabalha com uma descoberta súbita (kireji) - característica fundamental do gênero
- A perda da audição bilateral é usada como metáfora do envelhecimento
- Os grilos, tradicionalmente associados à noite e à passagem do tempo, ganham uma nova dimensão simbólica
- A progressão dos versos vai do concreto (grilos) ao abstrato (envelhecimento)
4. Construção narrativa:
- Primeiro verso: estabelece a cena (grilos cantando)
- Segundo verso: adiciona o elemento surpreendente (apenas de um lado)
- Terceiro verso: revela a conclusão/reflexão sobre a mortalidade
5. Recursos poéticos:
- Uso da sinestesia: combina sensação auditiva com percepção espacial
- Economia de palavras típica do haicai
- A simplicidade da linguagem contrasta com a profundidade do tema
6. Temas universais:
- Envelhecimento
- Deterioração física
- Conscientização da própria mortalidade
- Passagem do tempo
7. Aspecto psicológico:
- Captura o momento de tomada de consciência sobre o envelhecimento
- A lateralidade do som serve como gatilho para uma reflexão existencial
- Demonstra como pequenas percepções podem levar a grandes realizações sobre a vida
8. Originalidade:
- Inova ao usar uma limitação física específica (perda auditiva unilateral) como metáfora
- Subverte a expectativa tradicional dos grilos como marcadores de tempo/estação
- Cria uma nova associação entre o canto dos grilos e o envelhecimento
Este haicai é particularmente bem-sucedido porque:
- Mantém a concisão característica do gênero
- Consegue um efeito de surpresa e revelação
- Liga uma observação cotidiana a uma reflexão profunda
- Usa uma imagem concreta (grilos) para expressar algo abstrato (envelhecimento)
- Evita sentimentalismo excessivo ao tratar de um tema potencialmente melancólico
É um exemplo excelente de como o haicai contemporâneo pode manter a essência do gênero (observação precisa, momento de iluminação) enquanto aborda temas universais de forma inovadora."

domingo, 17 de março de 2024

Leo Vaz

 Quando terminava a dissertação sobre a Poesia Concreta, mergulhei no estudo do haikai, do budismo e da língua japonesa. Quando me lembrei de que precisava prosseguir no rumo acadêmico, com um doutoramento, percebi que a paixão do momento não era suficiente. Seriam precisos muitos anos de estudo de língua e cultura para produzir algo aproveitável como tese. 

Voltei os olhos então para uma afeição de juventude, reli os livros e a partir desse autor organizei um projeto de leitura a contrapelo da tradição teleológica que punha o Modernismo ao mesmo tempo como destino e ponto inicial do que importava na literatura brasileira. Esse autor era Leo Vaz. 

É provável que hoje pouca gente saiba quem foi e o que escreveu, mas nem sempre foi assim.

Imagino que alguém já deva ter escrito sobre a formação das bibliotecas da classe média brasileira ao longo do século XX. Se houver tal estudo, certamente um lugar de destaque é dado (além das publicações de Monteiro Lobato) a coleções notáveis, que chegavam a qualquer rincão onde houvesse correio ou banca de revistas: a Coleção Saraiva e a coleção do Clube do Livro. 

Na casa dos meus pais, ambas estavam presentes, junto com duas ou três enciclopédias, as obras de Machado e de Alencar, os indefectíveis livros de Lobato, quatro volumes que reuniam grandes poetas românticos, uma coleção russa denominada “Ciência para todos”, os livros de Conan Doyle e um grande exemplar da “Divina Comédia”. Havia certamente outros livros a que me afeiçoei bastante, como o “Tesouro da Juventude”, mas as coleções de romances eram o núcleo principal, seja pela quantidade, seja pela variedade.

Na primeira delas, a da Saraiva, encontrei “O professor Jeremias” e “O burrico Lúcio”; na segunda, “O misterioso caso de Ritinha e outros sem nada disso”. Só muito mais tarde, justamente quando pensava o projeto de doutoramento, li as “Páginas vadias”. 

Leo Vaz foi autor de sucesso. “O professor Jeremias”, por exemplo, teve uma dezena de edições. A primeira, por Monteiro Lobato, saiu com 1000 exemplares. O livro foi ganhando leitores e avaliações positivas da crítica, até que em 1949 integrou a Coleção Saraiva, numa tiragem de 40.000 exemplares! Nessa coleção ainda teve duas outras edições. Foi numa delas que encontrei o autor e o seu livro. 

40.000 exemplares duma só vez! Somando tudo, é crível que o “Jeremias” atinja a casa da centena de milhar. É muito para um autor e um livro praticamente ignorado pela história literária.

“O burrico Lúcio”, que é uma adaptação de Luciano, também teve tiragens expressivas. Veio na mesma coleção e depois virou paradidático, na Coleção Jabuti.

Mas há outro sucesso absoluto de público, da autoria de Leo Vaz, menos conhecido, porque num domínio curioso.

Quem quer que tenha lido romances sobre a vida nas pequenas cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX sabe da importância das farmácias como lugar de reunião. Eram, na verdade, um tipo de equivalente diminuído e acanhado dos salões aristocráticos ou das docerias cariocas. Não, claro, por conta da boemia, mas por permitirem a agremiação de pessoas com interesses culturais. Na minha cidade de Matão, há um testemunho eloquente: a Farmácia Caibar Schutel, tocada pelo apóstolo do Kardecismo no Brasil, ao lado da qual funcionaria uma gráfica que imprimia livros espíritas e o célebre jornal “O Clarim”.

Um dos atrativos das farmácias eram os livros de variedades e conhecimentos úteis, os almanaques. Leo Vaz, durante os anos em que viveu em Itápolis, sentiu na carne a importância cultural da farmácia e dos seus almanaques, que comparecem em “O professor Jeremias”. Por isso deve ter exultado quando foi convidado por Candido Fontoura para fazer um. E fez: o arquifamoso e onipresente “Almanaque do Biotônico Fontoura”.

Dia desses, arrumando os livros, deparei com um exemplar de um livro de Leo Vaz que me foi oferecido por Alexandre Eulálio, talvez o único dos meus colegas de Unicamp que conhecia a obra e a apreciava na medida que eu considerava justa.

O doutoramento não prosseguiu o rumo inicial. Deixei de lado a leitura das dezenas de romances publicados por Lobato e pelas duas coleções.

Quando ainda pensava nisso, numa visita a Antonio Candido comentei sobre um autor de Piracicaba, cujos livros me pareciam de interesse na linha de pesquisa que tentava desenvolver. “Ah, disse ele, esse é um chato. Me mandava todos os livros dele.” Prudentemente, eu não mencionei o autor do “Burrico Lúcio”, e voltamos a falar sobre Bilac.

Não deve ter tido importância essa conversa, mas a verdade é que decidi escapar um pouco das questões nacionais e da opressão canônica, terminando por ir a Portugal e a Macau, em busca dos rastros e dos textos de Camilo Pessanha.

Não estou, entretanto, seguro de que não teria sido melhor eu ter me dedicado com a mesma energia ao que estava perto, nas redondezas caipiras. Quem poderia saber? 

 

 

- A quem se interessar, recomendo a consulta ao livro de Virginia Bastos de Mattos. "Léo Vaz: o cético e sorridente caipira de Capivari". Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2009.

domingo, 21 de janeiro de 2024

O que é poesia?

 Uma amiga me diz que gostaria de ler a minha definição de poesia. Adoraria atender a esse pedido, mas a verdade é que não tenho uma. Ou melhor, tenho algumas, mas nenhuma me parece razoável ou pacífica, e por isso em nenhuma me sinto confiante. Mesmo para definir literatura creio que esbarro em alguma dificuldade. Mas não preciso fugir para tão longe, ou para ainda mais longe, começando pela definição de arte – se cedesse ao impulso de dizer utilizar esse conceito na montagem do outro. Em várias das definições que o ChatGPT transcreveu, alterou ou inventou o pendor idealista me incomoda. E penso que em outras tantas o que temos é apenas eleição de um tipo de poesia. Um protesto ou um princípio. Por exemplo, naquela primeira, em que a poesia de um texto seria atestada pela impressão de que a tampa da cabeça foi arrancada, de que se trataria? Quero dizer: uma pessoa lê/escreve alguns versos e depois (ou antes, ou mesmo durante) observa a sensação que aquilo que lê/faz ou está fazendo produz. Se foi essa de arrancar a tampa da cabeça temos poesia e se ela não existiu não temos. Mas digamos que a pessoa tenha lido/escrito e a tampa da sua cabeça agarrou-se firmemente no seu lugar e não pareceu querer ser arrancada. Nesse caso não houve poesia? Só meras palavras num papel ou na memória? Ou existiu apenas poesia ruim, considerando que essa sensação de cocuruto arrancado pode existir ou não existir ao longo de um livro de um mesmo poeta, despertada por coisas que objetivamente se parecem muito entre si? Nesse caso “poesia” parece querer apenas dizer “boa poesia”, ou o que é mais grave: não haveria má poesia, pois má poesia simplesmente não seria poesia. Talvez isso esteja implícito em várias outras definições. E não só na definição de “poesia”, mas também na de “poeta”, porque eu me lembro de ter visto, há alguns anos, dois poetas sexa ou septuagenários, que em tempos participaram inclusive do mesmo movimento poético, negarem-se pelos jornais respectivamente o título de “poeta”. Do que eu teria de concluir que, sendo ambos indiscutivelmente praticantes da mesma modalidade de arte (com palavras apenas ou com palavras e algo mais), se um deles não merece a denominação é porque poesia = boa poesia, assim como poeta = bom poeta. Ou, se quisermos variar: poesia = poesia significativa, poesia inovadora, assim como poeta = poeta significativo, bom poeta. Bom, mas eu não posso me dar a esse luxo. E não me dou a esse luxo. Como leitor amador ou como leitor profissional de poesia (por assim dizer) não creio que tenha o direito de sair por aí dizendo “este não é poeta”, “este livro de poesia não é de poesia” e assim por diante. Para mim, se é verso, a coisa pertence à denominação “poesia”; ou ainda: se o autor escreve na capa de um livro que o conteúdo dele (com ou sem versos) é poesia, então não sou eu quem vai dizer que não é. Resta-me pensar o que ele quer dizer seja com a inserção daquilo no gênero, seja com aquilo mesmo. Posso não apreciar, não entender, detestar ou até rir daquilo, mas não me atreveria a dizer “isto não é poesia”. O mesmo se dá com revistas de poesia: se dizem que é poesia o que vem ali, não nego. Apenas observo, tento entender o que vem ali, assim como o porquê de vir ali ou de ser assim como é. E logo trato de ver se gosto – o que é diferente de apenas entender ou de apenas me comprazer. Porque o gosto (tal como eu o entendo) inclui uma aposta na verdade, por assim dizer. Eu penso ou sinto que algo vale a pena tanto pelo que é quanto pelo que percebo de projeto, e quando digo que gosto estou apostando em algo que me parece bom e justo. Sinto ainda que tal gosto é uma aposta no futuro, ou – se vou escrever algo sobre – um parâmetro para uma tentativa de ação sobre o futuro. Esta é uma linguagem pesada, talvez, mas é mais ou menos o que percebo quando reflito nessas coisas. Pensando nesses termos, talvez eu até pudesse dizer, nesse sentido específico, o que eu penso que seja *poesia*, isto é, se com essa palavra eu quisesse designar apenas o que eu considero que seja *boa poesia*. Em tal nível de generalidade, seria algo como revelar as escoras do meu gosto pessoal, do meu prazer com a leitura e da minha aposta no futuro. Aí se incluiria, sem dúvida, a perícia, o domínio do material (por assim dizer). Não apenas no sentido de domínio da tradição ou da linguagem. Mas num nível mais básico: o domínio daquilo que a pessoa tem em mãos para fazer o que quer fazer. E isso leva a um ponto importante: é preciso que eu sinta que de fato o poeta quer fazer alguma coisa, tem um objetivo interessante, perceptível, significativo. Dizendo de modo um pouco bruto, é como se eu me perguntasse: por que essa pessoa decidiu dizer o que diz em versos, ou ainda da forma como disse? E ainda: “o que essa pessoa tem a dizer, para o dizer assim? Por fim, já que minha costela romântica não me deixa em paz, acabo sempre por me perguntar: “É algo importante o que ela diz ou tem para dizer? É algo que valha a pena ler/ouvir?” Se as respostas a essas perguntas não forem convincentes, tendo a não gostar ou a não me deter sobre o objeto. De modo que me encontro aqui, por vias tortas com a definição de Emily Dickinson: se eu sinto que minha cabeça se abriu lendo algo identificado como “poesia”, então eu concluo que é boa poesia, que é algo que vale a pena reler, preservar, tentar incorporar. Mas se eu leio algo e fico indiferente ou francamente entediado, largando logo ou me arrastando até o final por dever de ofício ou obrigação de amigo, então não vou dizer que não é poesia. É apenas algo que não me interessa preservar, muito menos tentar incorporar. Mas vejo que depois de tantas voltas termino no ponto de partida, isto é, confessando a dificuldade (ou a falta de ânimo) de definir poesia.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Livros para o vestibular – o retorno .

Disse que não ia mais tratar da lista da Fuvest e não vou. Entretanto, creio que no assunto “lista de leituras obrigatórias para o vestibular” talvez valesse a pena ressaltar um ou dois pontos, independentemente do recorte canônico, identitário, idiossincrático, aleatório e o que mais puder ser imaginado como (des)qualificador. Penso principalmente nas implicações de indicar, em listas desse tipo, obras de autores vivos ou sob vigência dos direitos de autor. A argumentação da Fuvest reconhecia indiretamente o ponto que me incomoda, ao dizer que a escolha de um título poderia conferir prestígio a uma casa editorial. Porque essa situação só poderia ocorrer se um dado livro estivesse vinculado a uma dada editora por reserva de direitos, porque a indicação de um Machado ou de um Alencar nunca faria supor uma ou outra editora em particular. Está claro, entretanto, que nem tanto ao céu, nem tanto à terra – porque excluir liminarmente livros de autores que morreram há menos de 70 anos pode não ser a melhor escolha cultural ou pedagógica. Entretanto, há autores e autores, entre os que ainda detêm direitos. Graciliano Ramos, por exemplo, vai entrar só agora em domínio público, mas sua obra tem sido há anos relevante para a abordagem e estudo de questões literárias e sociais de primeira grandeza. Muitos outros autores cujos direitos estão reservados, vivos ou mortos, também importam literária ou socialmente, por certo. A antiguidade não é valor, como sabemos. Mas eu creio que é diferente o caso de um autor que publicou um livro há quatro ou cinco anos e o de um Graciliano ou José Lins do Rego ou Rachel de Queirós ou Clarice Lispector. Em primeiro lugar por conta de algo que é muito importante em literatura: a intertextualidade. Muitas obras literárias contemporâneas têm, no seu horizonte, os romances de um Graciliano ou Lins do Rego ou Jorge Amado – para não falar de Machado e Alencar ou Aluísio. Assim também as descrições históricas da cultura e da literatura brasileira. O que recobrimos com o adjetivo “literário” tem a ver, em medida variável mas nunca nula, com apropriação do passado, com apropriação ou subversão de uma ou várias obras, de uma tradição – com tradução, se quisermos pensar assim. Em segundo lugar porque obras com alguma duração (com um lugar canônico, vá lá...) tiveram várias edições e estão disponíveis em sebos e em bibliotecas públicas, escolares ou não. Já obras com reserva de direitos de duração curta ou de publicação recente, não. A indicação de obras estrangeiras, sem edição no Brasil, durante a vigência dos direitos autorais, é outro complicador. Lembro-me, a propósito, de quando a Unicamp inseriu na sua lista “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes. O livro não havia no Brasil, e foi um sufoco: eu mesmo liguei da Editora da Unicamp ao autor, tentando obter dele um acordo para a produção imediata do livro. Para sorte da Unicamp e mais ainda de quem tinha acordo com a editora portuguesa, a obra conseguiu ser impressa a tempo no Brasil. Tudo isso para dizer que há evidentes implicações econômicas na escolha de autores vivos ou de obras sobre as quais ainda há direitos autorais, e que essas implicações deveriam ser levadas em conta. Principalmente se quem as vai eleger o faz por delegação de uma universidade pública. É que também do ponto de vista pedagógico há riscos, porque se não há exemplares em bibliotecas, se não os há em sebos e nem em quantidade suficiente no mercado ou com preço acessível, os maiores beneficiários serão os vendedores de resumos – sejam eles individuais, sejam institucionais (os cursinhos). Além disso, é claro que essa escolha processaria também, em alguma medida, uma seleção econômica: os que podem comprar livros teriam (caso os livros precisassem mesmo ser lidos para bom desempenho na prova) uma vantagem substancial sobre os que não os podem comprar. A mim causa espécie que pessoas imbuídas de boa intenção e de crença no poder formador das listas passem batido sobre essa questão básica: a disponibilidade de exemplares em bibliotecas e em sebos, ou a bom preço em livrarias. Já nem digo sobre o que pode haver de favorecimento voluntário ou involuntário a editoras ou mesmo a autores, na indicação de obras sob reserva de direitos, pois creio que o principal problema, do ponto de vista do ensino e da aprendizagem, é o que veio antes.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Sobre a lista feminina da Fuvest

 Acabo de ler, entre divertido e perplexo, um artigo assinado por Maria Arminda do Nascimento Arruda, Aluísio Cotrim Segurado e Gustavo Ferraz de Campos Monaco. São três autoridades da USP. A primeira é vice-reitora, o segundo é pró-reitor de Graduação e o terceiro é diretor-executivo da Fuvest. O tópico é a lista de autoras de leitura obrigatória para o vestibular. Leio ali, por exemplo, que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. É difícil imaginar o que os autores quiseram dizer. Tradição, cânone e consagração comparecem ali numa lapalissada ridícula. Podemos fazer variações com esses termos. A tradição valoriza autores consagrados, a tradição é a consagração de autores, autores consagrados são a tradição; o cânone valoriza a tradição, o cânone é a tradição, o cânone é a consagração. Podíamos pensar pelo lado contrário: o cânone tem valorizado autores não consagrados, o cânone tem valorizado obras não tradicionais, a tradição é constituída de autores não consagrados ou não canônicos. Fico imaginando que conceitos de tradição, de cânone e de consagração foram mobilizados nessa afirmação. Mas confesso que não consigo... A leitura, porém, de outras passagens do artigo permitem entender. É que ali se encontra a empáfia em corpo inteiro. É verdade que parece ter havido um tempo em que a Universidade de São Paulo tinha, a partir das suas cátedras, o poder ou a ilusão de criar ou orientar o cânone. Mas creio que já vai longe o tempo em que se poderia dizer com propriedade que a marginalidade de autores/as no ensino médio decorre de eles/as “não fazerem parte do rol de exigências da Fuvest”. Também se lê ali que o compromisso da Fuvest é “acompanhar o avanço do conhecimento e induzir a que o ensino médio possa absorver as pesquisas mais avançadas”.  Ora, além do que já destaquei, basta contrapor essa afirmação aos nomes que integram o abaixo-assinado a que esse texto responde. De fato, ali encontramos um rol de críticos e professores (a maior parte da própria USP) que sem dúvida desenvolve o que quer que se entenda por “pesquisas mais avançadas” na área dos estudos literários. Por fim, é tão pueril dizer que a lista feminina surgiu como remédio ao fato de que os estudantes leem resumos e não as obras (pois se for assim é claro que vão ler agora resumos dos livros das autoras indicadas), quanto que a escolha não tem um caráter ostensivamente militante – o que só é verdadeiro se admitirmos que demagogia e populismo são opostos a militância ostensiva. O que, pensando bem, combina com essa descoberta genial de que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. O nível da argumentação das três autoridades uspianas não só corrobora o que já estava óbvio nas entrevistas do diretor-executivo da Fuvest, isto é, o despreparo e a falta de domínio do campo literário, mas também a autonomização da burocracia (as bancas são um dos segredos mais bem guardados!), em prejuízo do debate aberto e da valorização da competência científica nessa que foi, em tempos, um modelo da universidade brasileira. 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Ainda a lei carioca

 Postei aqui ontem ou anteontem uma nota sobre uma lei promulgada, no último dia 28/11, pelo município do Rio de Janeiro.


Uma lei de autoria de pessoas de esquerda: nasceu do Chico Alencar e frutificou com ele e Monica Benicio. Integrantes do PSOL.

A justificativa do projeto, assinada apenas por Chico Alencar, trazia uma bandeira justa:

“A definição das personalidades presentes em monumentos, estátuas e bustos é de primeira importância para a cultura de uma cidade. Ao dar visibilidade para determinada pessoa, o poder público avaliza os seus feitos e enaltece o seu legado. A história brasileira traz inúmeros momentos condenáveis, entre os quais pode-se destacar o genocídio dos povos nativos e a escravidão de africanos sequestrados. Considerando os ideais de liberdade, justiça e democracia é inconcebível vangloriar figuras que tenham se locupletado em tais episódios. Por isso é imperativo que essa Casa de Leis aprove a presente proposição.”

Ou seja: quem quer que se tenha “locupletado em tais episódios” (acho que por “episódios” o preclaro autor entende o genocídio e a escravidão, que no meu ver nunca foram episódicos no Brasil) não pode ser celebrado pelo poder público. Justo. E se fosse em São Paulo, quem sabe obrigaria a demolição ou retirada daquele horrendo monumento das Bandeiras, confinando-o num espaço museológico, fora da vista. Ou daquele outro horror, a estátua do Borba Gato.

Mas na redação da lei o que vem? Um item, de número III, que dispõe sobre a proibição de erguer monumento ou *fazer menções elogiosas* (isso é uma novidade) a “pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”
Aí, sim, cabe tudo, a começar pelo pobre Padre Vieira, sempre lembrado, aqui e em Portugal quando o tópico vem à baila – e terminando Deus sabe onde, porque se se esmiuçar, quanto mais recuado no tempo, mais se pode encontrar motivos para acusar alguém de ter perpetrado algum ato lesivo a tais bandeiras.
No meu post, tentei destacar, pela redução ao absurdo, a cegueira cultural de tal dispositivo legal e seus efeitos de longo prazo sobre a memória histórica. Sobretudo, critiquei a base de tal iniciativa: o identitarismo feroz, que promove a redução das personalidades a uma única faceta. No caso, aquela condenável pelos pressupostos e nas condições históricas atuais.

Curiosamente, não houve divergência, não houve nenhum debate. Fiquei em dúvida sobre como entender isso. Seria a lei tão absurda e de bitola tão estreita que se torna desnecessária a discussão? Ou será que não deve ser criticada por ser uma iniciativa da esquerda e sermos, neste meu rol de amizades, quase todos membros naturais do campo progressista – já que “antidemocraticamente” fui bloqueando o direito de vista e de fala, neste espaço, a todos os bozistas e apoiadores do fascismo? Infelizmente, temo que esta última hipótese seja mais realista.

Detesto convocar ditados, mas aqui vale uma exceção: de boas intenções o Inferno está cheio. Porque não é difícil imaginar que, redigida e aprovada como está, se a direita for esperta, poderá banir de agora em diante qualquer menção elogiosa oficial, bem como de qualquer monumento carioca, a quem quer que em algum momento se tenha manifestado publicamente como apoiador de Stálin, Mao ou Fidel – ou mesmo ao Marechal Tito, que eu pessoalmente admiro, e que recebeu uma justa homenagem da cidade de Campinas! –, porque quem é que vai definir o que é um ato lesivo aos valores democráticos? Se por isso se entender “valores da democracia representativa burguesa”, podemos vir a assistir a uma festa da direita no uso da guilhotina pública!

Vejo agora que, ao elogiar o ditador Tito, posso perder a esperança de ter uma estátua ou receber alguma menção elogiosa da cidade do Rio de Janeiro. Por isso mesmo não digo que, como Drummond, vibro por Stalingrado ter resistido (com o devido crédito ao homem que dava o nome à cidade) e que entendi perfeita e solidariamente como ele pode ter se sentido frustrado por não ter podido, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan. Poema que, se devidamente lembrado por algum vereador fascista e pró-USA, poderá levar a câmara do Rio a identificá-lo como precursor do 11 de Setembro e assim forçar a retirada daquela sua melancólica estátua acomodada num banco na orla. Mas me preocupa mais, pensando na minha aldeia, que uma lei semelhante retire daquela praça triangular no caminho da Unicamp, o monumento ao Tito, que contemplei do carro todos os dias a caminho do trabalho, e que já visitei sozinho e vou de novo em breve visitar, em homenagem, com o meu genro croata.

De modo que só tenho a desejar que a progressista iniciativa do agora deputado Chico Alencar (ou ao menos o seu parágrafo terceiro) só continue a dar frutos no seu estado natal, sem ramificar-se pelo resto do país.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Abaixo o padre Vieira! Abaixo o Camões!

 A cidade do Rio de Janeiro aprovou uma lei que me parece complicada (eu tinha escrito que me parecia supinamente idiota, mas em seguida decidi ser mais polido e menos radical: complicada, é melhor). O princípio pode parecer bom, pois afinado com os tempos. Leio a notícia: a lei “veda, no município do Rio de Janeiro, manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”

Ora, o que me parece absurdo é a concepção monolítica da pessoa. O Padre Vieira, ao que parece, é a primeira vítima. Porque, segundo os fiscais da correção, ele não seria homenageado por ser um dos maiores prosadores da língua. Qualquer estátua sua homenagearia apenas ou principalmente o defensor da escravidão dos negros. Por isso precisa ser banida, e junto com a estátua do Vieira escravocrata, vai para fora da vista pública, além do orador, o defensor dos índios contra a sanha dos colonos. O mesmo se aplicará, sem dúvida, a Alencar, que não foi o criador de uma obra-prima como “Iracema”, mas apenas mais um reles defensor da escravatura. Monteiro Lobato nem pensar: está já riscado do mapa e vai continuar apenas racista, sem perdão, a despeito do que tenha feito pela difusão do livro no Brasil. Seguindo essa linha, será preciso retirar desde logo as estátuas e placas que homenageiam Camões, aquele detestável islamofóbico, que escrevia coisas como “cão sarraceno” para qualificar uma parte significativa da humanidade e ainda instigava o rei português a matar quantos infiéis se colocassem no caminho da propagação da fé cristã. Nesse sentido, poderia incorrer também na intolerância religiosa, que será outra vassoura poderosa. Nisso, poucos excederão o Dante, que deveria ser escondido dos incautos por não suportar qualquer diversidade religiosa. De quebra, era ainda islamofóbico, homofóbico, vizinhofóbico, antisemita, monarquista etc. Os “valores democráticos” varrerão uma grande parte da Antiguidade, e um monte de tiranos, por certo, mas não deverão poupar Platão, Aristóteles (esse preceptor de tirano) e tantos outros. E que dizer de Júlio Cesar, que não foi o autor do livro sobre a guerra da Gália, e sim apenas um homem que atentou contra a república– ou seja, mutatis mutandis, os valores democráticos – e por isso já foi devidamente assassinado. Se a moda pega na Europa, eu acho que logo deveriam ser retirados da vista do público, entre milhares de monumentos, a coluna de Trajano e o Arco do Triunfo. Já o Coliseu poderia salvar-se, decretando-se que era um museu, com as devidas placas protetoras da moral e do civismo. Aliás, esse é o lugar adequado a monumentos banidos, segundo a lei carioca: o espaço museológico, no qual estejam devidamente enquadrados, com um aviso reluzente que, no fundo, diria algo como: “cuidado, racista!” ou “cuidado, ditador!”, “cuidado, fanático!”, “cuidado, fascista!”. E, em nome dos valores democráticos, sobre qualquer defensor da “ditadura do proletariado”: “cuidado, comunista!”

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Aporias

 Uma questão curiosa me ocorreu durante a leitura do livro do Tom. Mas minha intuição foi não a incluir naquela nota do Facebook, porque as redes sociais são terreno para todo tipo de leitura transviada, sem pé na realidade dos argumentos. Conversando a propósito com o Alcir, disse-me ele outra das suas frases antológicas: "uma intuição é uma operação lógica em velocidade muito alta". Eu lhe respondi que aquela era uma bela maneira de recuperar para o XVII uma das peças-chaves do fim do XVIII, um dos carros-chefes do Romantismo. Com essa observação meu amigo, que nada sabe de redes sociais, embora reconhecesse a pertinência da questão, argumentava que provavelmente eu não a devesse postar. Talvez ele estivesse certo, mas creio que vale a pena a discussão, justamente por ser um assunto anguloso. E dos vários ângulos o que me pareceu merecer maior atenção é este: tenho a impressão de que, nestes tempos delicados, a expressão do desejo masculino, com aquilo que ele pode implicar de violência real ou imaginária, anseio de conspurcação da beleza ou de busca de domínio/entrega do/ao outro – temas tradicionais da literatura erótica ou pornográfica – vai ficando cada vez mais complicada em chave heterossexual. Na outra ponta, também a confissão ou revelação do amor em situações públicas tem um efeito normalmente kitsch ou excessivamente piegas, em regime discursivo hétero. Mas não em regime homo – por assim dizer –, porque aí é ação afirmativa, reivindicação de direito, cujo alcance ultrapassa o individual, recobrindo-se de sentido político. Mas voltando ao erotismo: a linguagem crua, o impulso de dominação ou de submissão e todas as formas do desejo naquilo que ele tem de “desrespeitoso” a uma das partes, é cada vez mais difícil de passar pela peneira do bom gosto e das reivindicações do lugar de fala ou do politicamente correto, quando o emissor é um homem e o assunto ou destinatário é uma mulher. Já quando emissor e assunto/destinatário são do mesmo sexo, por algum motivo a questão do exercício do poder parece afundar no horizonte. A discussão fica ainda mais ardida se pensamos em um tipo de expectativa cada vez mais difundida de conformidade e interdição, de fechamento do campo do possível. Por exemplo, alguém poderia arguir aquela postagem nos seguintes termos: das duas uma, ou você não pode sentir e falar com propriedade, sendo presumivelmente hétero, da voltagem estética da poesia homoerótica; ou pode, desde que ocupe, de alguma forma, ostensiva ou secretamente, o devido e apropriado lugar de fala. Vai sem dizer também que me seria interdito, nesse caso, com a devida exceção condicional, compor poemas homoeróticos. Carreguei um pouco nas tintas ao pintar o problema, talvez. Mas é um argumento cada vez mais presente, que não apenas busca delimitar a verdade da crítica, como também a da produção poética ou ficcional. Uma amiga com quem conversei sobre isso fez uma observação interessante: “Essas questões de lugar de fala, literatura homoerótica, literatura de autoria feminina e outras tais me dão uma preguiça infinita. Independentemente da chave erótica ou pornográfica. As causas são justas, mas o modo de lidar com essas questões em literatura me parece bem pouco produtivo do ponto de vista literário. Em tempos em que a leitura de textos literários deixou de ter importância para a formação humana parece que a academia busca justificar o estudo da literatura em um lugar fora dela.” Essa última frase do desabafo daria margem a outras conversas. Quanto ao essencial, a mim também parece que é notável, em alguns discursos identitários, uma desconfiança no poder da ficção e na capacidade de alguém capaz de escrever boa prosa ou bons versos colocar-se na pele de outro alguém, diferente, de outra origem ou condição; ou seja, uma desconfiança na capacidade de alguém retratar adequadamente o diverso, como se a qualidade ou legitimidade do retrato se escorasse na possibilidade de ele ser também autorretrato, ou testemunho partilhado; ou, por fim, voltando ao ponto: a desconfiança na capacidade de um leitor ou crítico compreender e, mais do que compreender, apreciar e avaliar o que provier de fonte diversa ou distante em termos de alguma identidade.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Isto não é uma crítica

 Recebi do autor este “piano B.”. Um livro paradoxal, ou melhor, que busca o paradoxo num nível leve, talvez pudesse dizer de modo mais preciso. A assinatura na capa é o nome do Tom. Logo abaixo, depois da ilustração, vem o título, seguido da classificação genérica “poemas”. Continuando, por ordem de chegada na leitura, já que a quarta-capa é branca, vem a orelha, que qualifica o gênero: são poemas homoeróticos. A precisão é extrema: alguns, alerta, são mais precisamente homopornográficos. A que se segue uma primeira estratégia que poderia denominar de barreira, ou mesmo defensiva: “na melhor tradição da poesia fescenina”. Logo adiante, o foco se fecha do tradicional para o pessoal, com a surpreendente afirmação de que “a acreditar nas várias notas que abrem o livro, é verídica a experiência relatada.” Por fim, declara-se que há, na profusão de notas prévias, alguma charada, que cumpre ao leitor decifrar. Prosseguindo, nos deparamos com a primeira, a do autor – que tudo indica seja mesmo o que assina o livro e que é descrito, na segunda orelha, como o Prof. Antonio Donizeti Pires, nascido em São Joaquim da Barra, e vinculado à cadeira de literatura brasileira na Unesp de Araraquara. A identidade se reforça porque o Autor data sua Nota justamente dessa cidade, em fevereiro de 2013. Mas o que nos diz o Autor? Garante que é um melancólico. E agora, sim: que o livro que tenho em mãos foi “milimetricamente concebido como catarse e exorcismo”, e que a sua origem é paixão doentia por um rapaz muito mais jovem. É o registro mais pessoal, mas ao mesmo tempo ecoa o tema muito tradicional da paixão do homem velho ou maduro pelo efebo. Portanto, qual seria a charada? Antes de tentar responder, o leitor verá que se estabelece a seguir um pequeno baile de máscaras: comparecem depois do Autor, um Editor e o Professor. Todos de Araraquara, pois assinam seus textos em fevereiro abril e maio do mesmo ano em que o Autor redigiu a primeira nota. Vêm a seguir uma série de epígrafes, e então começa o corpo livresco. Ah, mas não devo prosseguir sem dizer que o Professor censura no livro – com alguma razão, eu diria – o excesso de maiúsculas simbolizantes. Mas digo também que divergimos, o suposto professor e eu, na condenação do livro, porque ele poderia afrontar “a própria família [do autor] e seu status social”. Estamos no reino do desdobramento irônico, como se vê. Esse espelhamento de eus, com notas caricatas, logo reivindica a herança evidente, mas explicitada em rodapé, de Fernando Pessoa. Mas e depois? Quando lemos os poemas, o que vemos? Que o Autor de fato produz uma poesia erótica de alta voltagem, declaradamente pessoal, ou melhor, de tom confessional. Ou seja, que o jogo de espelhos, o calidoscópio das notas e epígrafes acaba por fazer parte daquele mecanismo de sentido que é convocar, como frágil barreira protetora, a tradição, as referências, as puxadas dos cordéis do mundo “alto”. E por fim em propor que essa barreira não resiste ao que vem de baixo, à explosão em palavras do desejo ou da amargura. Pelos vãos da frágil armadura que é também roupa de clown, expõe-se então a carne do tesão masculino em forma nua e crua. Uma estratégia de obter um efeito de sinceridade. Quando a mim, o que me agradou no livro foi exatamente esse negaceio todo para a expressão direta, dando nome aos bois – como se diz. O contraste entre o baixo, o mais baixo, e o mais alto, assim, funcionou melhor. A naturalidade sintática e vocabular desse desejo versejado espelha a pulsão erótica, esse ideal, esse desejado retorno ao estado de natureza. Isso foi o que mais me interessou e impressionou nesse livrinho que promete ser o primeiro de vários, a julgar pela orelha. O Editor afirmou que o livro é “lírico até à medula, até o talo” e nisso radicou a sua singularidade. Não sei se lírico é exatamente a palavra, nem saberia dizer se é até o talo. Mas a sua singularidade para mim, para a minha experiência de leitura, por certo, não repousa nem no talo nem no lirismo. Em que então? Qual a solução da charada? - poderia perguntar-me. Mas não me pergunto, pois não vejo charada alguma que valesse encontrar-lhe a chave. Mas vejo algo mais relevante e notável, nesta tarde chuvosa em que passei uma hora folheando: diferentemente do tédio que quase sempre me domina, quando leio poesia contemporânea – porque os salamaleques às modas e aos paredros cansam, e algumas perguntas fatais terminam por não ter resposta (“o que esta pessoa tem para me dizer?”, “por que pretendeu falar desta maneira?”, “era mesmo preciso me falar em verso?”) – este livro se foi desdobrando em duradouro interesse, satisfação e diversão. A dose de autoironia, aliás, não é pequena. “Suplico-te / [...] que de todo te entregues à voracidade / deste lobo de presépio”. E ela me agrada na medida em que também contribui para o efeito, resultado e conclusão da leitura, que para mim mesmo resumo nesta formulação singela: esse autor, esse ponto de convergência de todo o calidoscópio, sentia que tinha algo relevante a dizer, que havia algo que lhe era importante dizer, e usou de todos os artifícios ao seu alcance para o dizer de modo interessante. E assim, com esta nota arrevezada, que vem, desde fora, juntar-se às demais que integram o livro, e não almeja a ser mais do que um brinde, agradeço ao Tom o presente inesperado.


Nota: Antonio Donizeti Pires. piano B.. São Paulo: Terra Redonda, 2021.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Lista de livros para o vestibular II - ou: Abaixo a lista de livros!

 Numa resposta a um comentário de uma amiga, na postagem anterior, escrevi que não acho interessante ter uma lista de livros para o vestibular. Essa é a questão subjacente ao meu post. E não acho por vários motivos. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que possa parecer, é uma desvalorização da formação literária como elemento de cidadania. Em vez de um programa amplo, que de fato pudesse orientar os docentes do ensino médio e dos cursinhos preparatórios, receita-se uma simples lista de livros. Daí sucede o óbvio: cria-se uma forma de preparar os estudantes que, no limite, visa a dispensar a leitura das obras. Se se sabe quais serão elas, o treinamento tende a recair sobre como responder às questões, e não sobre como entender o texto literário nas suas determinações e relações mais amplas com a sociedade e a cultura. Eu também fiz a experiência de perguntar aos estudantes (do curso de Letras!) se tinham lido as obras indicadas para o vestibular. A resposta, em geral, ao longo dos anos, foi decepcionante... Um segundo problema da lista de livros é o seu arco temporal. Por conta de um paternalismo disfarçado de interesse pedagógico, os textos indicados tendem a ser cada vez mais contemporâneos, mais “interessantes”, mais “atuais” – mais “fáceis de entender”, para dizer de forma bruta. Mas o contemporâneo não é um campo de domínio público, por isso a escolha de autores vivos ou dentro da vigência do direito autoral tem evidentes e incontornáveis implicações econômicas, nem sempre claras ou nem sempre levadas em conta. Poderia listar outros motivos, mas o post ficaria muito longo.

Os argumentos a favor de uma lista acabam por recair sobre um ponto: ao eleger como matéria de aferição aquela dúzia ou dezena de livros, a universidade influiria sobre o ensino de nível médio. É a ideia que sustenta a lista feminina: criar um cânone alternativo, implodir (mesmo que apenas por três anos...) o cânone macho-branco – ou apenas macho, já que Lima Barreto e Machado, por exemplo, são mestiços, assim como Gonçalves Dias, entre outros. Ora, isso também poderia ser feito por meio de um programa de concurso – e lembremos: o vestibular é um concurso –, no qual se apresentariam os pontos e problemas literários que a universidade julga relevantes para a cidadania. A lista de livros, em vez do programa ou em substituição tácita a ele, atesta sobretudo a desconfiança na formação secundária. Em vez de delegar aos professores do ensino médio o recorte das obras e das questões implicadas num programa amplo, a universidade lhes dá mastigada essa versão econômica da apostila: a lista de livros. Mas faz sentido pensar que, se os professores do ensino médio não têm preparo ou tempo ou capacidade para fazer um bom trabalho formativo a partir de um programa amplo, eles vão ter no trabalho com os livros da lista? Creio que não. Daí que eu não veja nessa ideia de uma lista de livros um triunfo ou um gesto de resistência, mas sim uma resignada cedência, uma disfarçada capitulação.

Lista de livros para o vestibular - I

 Acabo de ler que a lista de livros para o vestibular da USP será composta apenas de obras escritas por mulheres. Machado de Assis, diz a chamada sensacionalista, foi expulso. Voltará só daqui a três anos. E mais dois homens com ele. Até lá, nem o de Assis, nem Drummond, nem Bandeira, nem Guimarães Rosa, nem Oswald ou qualquer outro macho.


O divertido da matéria é a expertise do diretor da Fuvest, um professor de direito. Talvez sem as suas justificativas, a decisão instigasse. Com elas, o ridículo puxa a franja da toga, exibindo ao público a roupa de baixo em mau estado.

Entretanto, não me surpreendeu. Tenho observado os exames, tomado o pulso do que se pede em matéria literária. E é quase nada. Ou tudo se resume à interpretação de texto, com algum verniz de terminologia, ou acaba por ser um retorno confesso ou envergonhado à velha história da literatura. Assim, a rigor tanto faz o que se eleja, pois o gesto da eleição o mais das vezes é puro movimento inercial. E fugir à inércia, em princípio, desperta simpatia.

Mas a inércia não é adversário desprezível. Tanto é assim que o professor de direito, falando pela USP, nos tenha vindo garantir que as obras escolhidas permitirão que sejam estudadas as características das escolas literárias.

Então é isso: a vetusta USP quer indicar aos professores e estudantes do ensino médio que o importante em literatura é conhecer as escolas? Se for, então está certo, pois tanto faz que sejam homens ou mulheres os autores. Como também é despicienda a questão da qualidade, bem como a da recepção da obra ao longo do tempo. É tudo razoável, desse ponto de vista. E se é razoável, por que não tocar a melodia do tempo?

Mas o jurista vai além, nos garante que as obras escolhidas têm qualidades literárias grandes e explica: se ficaram preteridas em relação a um Machado, por exemplo, foi apenas porque foram produzidas por mulheres.

Nesse tipo de declaração, reconheçamos, não há nada de novo. Por isso me pareceu, num primeiro momento, exagerada a reivindicação uspiana de que se trata de um gesto de vanguarda radical.

Se bem que, pensando não no curto prazo da notícia, mas no tempo dilatado do ensino, talvez haja alguma verdade aí também.

É que a USP tem peso. E se bem entendi o regozijo do núncio do vestibular com a novidade, ele realmente espera que, pelo estado de São Paulo afora (se não mesmo pelo Brasil), o ensino das escolas literárias, possa ser feito, de agora em diante, depois da decisão libertadora da USP, em clave variada. Afinal, a identidade é um deus de muitas faces e há várias maneiras de servi-lo.

Ao mesmo tempo, a notícia traz um testemunho torto. O de que o lugar do literário é ainda um podium de prestígio ou de autoridade. Por isso mesmo é zona de combate. Terra em disputa. Inserir ali, esta ou aquela obra, esta ou aquela identidade, é ainda um gesto pleno de sentido, de reivindicação. Mas não é algo como dar uma cotovelada e encontrar um lugar entre tantos. É no limite combater o próprio lugar.

Por isso, o testemunho não é favorável. No prazo mais longo, acho que tenderá a se esvaziar ou diminuir o lugar literário, fazendo com que seja um desperdício o esforço ou mesmo o simples gesto de ali inserir ou de lá retirar algum autor ou obra ou filtro de identidade.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Jorge Cury

 

Na pequena faculdade de Araraquara havia um só professor de Literatura Brasileira e somente um professor de Literatura Portuguesa. Creio que não estou em erro quanto à primeira; mas quanto à segunda, estou seguro.
O regente desta última cadeira, quando o vi pela primeira vez, pareceu-me vagamente familiar. Talvez fosse o bigode, talvez o formato das maxilas, ou o jeito desconfiado com que olhava meio de baixo para cima, talvez mesmo o jeito de caminhar. O certo é que de imediato o associei à infância ainda próxima, às matinés no Cine Theatro Polytheama, onde nos fazia rir o grande Amácio Mazzaropi.
Conhecendo-o depois, como aluno, apreciei e imitei o seu humor meio matuto, cortante e nem sempre contido. Nas tardes modorrentas, a classe enlanguescia. Jorge, sentado à mesa, apertava os olhos ao passá-los sobre nós. No novo campus, havia incômodas nuvens de minúsculos mosquitos. Voejavam junto dos olhos e da boca. Jorge então batia palmas na frente do nariz, para espantá-los. Aproveitava as palmas para dizer com o olhar irônico ou com a voz meio esganiçada que não era pra dormir. E muitas vezes emendava com aquela frase que hoje talvez lhe custasse o emprego.
Eu achava divertido. Eram outros tempos. Mesmo que houvesse ali verdade, confesso logo que ele estava errado em dizer e eu mais ainda em rir, cúmplice. Não, não era um curso de espera-marido, o de Letras. Estou certo de que não. Mesmo que não estivesse convencido disso na época, hoje sem dúvida devo estar. Por isso, não devia rir mais alto quando Jorge completava que, enquanto o marido não aparecia, todo mundo tinha de estudar.
Talvez devesse dizer que era acima de tudo um rabugento. Mas quanto a mim era um adorável rabugento. Porque não creio que houvesse, apesar da máscara protetora de azedume, professor mais dedicado a nós, mais atento, mais solícito.
Durante muitos anos, e talvez até hoje, a sua vida – ou o que eu imaginava que ela fosse – foi um ideal. Jorge vivia em frente a uma escola grande da cidade. Sua casa tinha uma garagem que dava para a rua. Mas não era usada como tal. Era uma biblioteca.
Habitava-a, além do Jorge em carne e osso, o Jorge em papel e tinta. Digo: um enorme fichário, onde ele guardava inúmeras fichas, minuciosamente preenchidas, arrumadas e catalogadas. Suas leituras todas, desde um tempo que me parecia imemorial, se prontificavam ali, ao alcance da mão!
Durante muitos anos, meu sonho foi voltar a Araraquara como professor, comprar uma casa com garagem, fazer uma biblioteca na garagem e ser um novo Jorge Cury. Só me faltaria o fichário, por isso ainda no segundo ano comecei a preencher uma ficha para cada leitura escolar ou relevante. E se parei com as fichas pautadas de papelão foi porque continuei a fazê-las em formato digital, nos primeiros e precários computadores de 8 bits.
Devo dizer, entretanto, que não foi pacífica nossa convivência. Jorge era muito cristão. Demasiadamente cristão para o meu gosto. Certa ocasião, em vez de me dizer coisas interessantes, começou a louvar o casamento. As virtudes cristãs do casamento. Estávamos na sua biblioteca. Eu tinha 18 anos e lhe garanti, como alguém que tem mentalmente muitos anos a menos do que 18, que não me casaria nunca. Foi uma conversa, um debate meio sem sentido, mas terminou com uma aposta bizarra. Como eu tinha acabado de ganhar um Karman-Ghia vermelho, que era meu xodó, e sabendo o Jorge que eu invejava a sua biblioteca, apostamos uma contra o outro: ou seja, se eu um dia me casasse, lhe daria o carro; se não, ele me daria a biblioteca. Jorge ria muito, quando selamos o trato. Mas quando finalmente me casei, apenas uns cinco anos depois, não voltei para vê-lo. Muito menos para lhe levar o carro, que eu já não tinha.
Outra nossa desavença foi pública. Ele ensinava o Camões. Tínhamos de ler o Jorge de Sena. E lá estava o nosso Jorge escrevendo na lousa o número das estrofes de cada canto, do menor para o maior. Em certo ponto, havia dois cantos com o mesmo número de estrofes. Então ele os escreveu na mesma linha. Por fim, quando terminou, virou-se para nós e disse que ali estava uma revelação. Não sei se usou essa palavra, mas o jeito como falou sugeria que se tratava de uma revelação. E a revelação era que aquele arranjo de números na lousa formava a Cruz.
Eu tinha visto que o encontro dos tempos narrativos, em “Os Lusíadas”, se dava na estrofe 551. Como o poema tinha 1102 estrofes, ok: Camões tinha feito cálculos, segundo o outro Jorge, o de Sena, para que isso acontecesse assim mesmo. Mas a história da cruz me parecia uma grande bobagem!
Quando ouviu essa palavra, ainda piorada pelo qualificativo, Jorge ficou transtornado. Foi um desacato pessoal. Sua voz se alterou. Quando se irritava, parecia taquara rachada. Disse-me, indignado, que eu era uma formiguinha perto do Sena. Passou-me uma lição de moral, uma descompostura em regra. Mas então, em certo momento, disse a frase que nunca me saiu da memória. Por algum motivo, para aumentar a glória do Sena, resolveu se meter na comparação. Disse que, perto da grande árvore que era o xará português, ele, o Cury, era “um humilde pilriteiro”! Aquilo me abalou. Um pilriteiro! Jorge era um pilriteiro e eu era uma formiga! Eu não fazia ideia do que fosse um pilriteiro, mas concluí que provavelmente havia ali um recado para mim, e que eu era a formiga no pilriteiro que ficava embaixo da árvore do Sena. Eu mais não disse. Nem ele retrucou, satisfeito com a constatação da minha derrota embaraçada e encolhida.
Houve ainda outros embates, mas a verdade é que eu o adorava e ele me tolerava bem.
Quando me decidi a fazer a livre-docência, Jorge foi um dos primeiros nomes que me ocorreu submeter ao departamento. No memorial, já registrara a dívida imensa, então era de justiça.
Naquele tempo, a gente começava a ser dispensado de apresentar tese. Podia ser uma reunião de ensaios. Eu já tinha feito a tese, sobre Pessanha. Mas na incerteza também tinha preparado o livro de ensaios. Então apresentei os dois. No dia da defesa, reencontrei o riso sardônico do Jorge, quando ele se queixou do meu exagero, que o obrigava ainda agora a trabalhar tanto. Ele ria ainda do mesmo jeito, meio entrecortadamente, alternando o sorriso com a careta e mastigando, sob o bigode já branco, as palavras que vinham embaladas em veneno leve. Depois, na titularidade, convoquei-o outra vez. Era parte de tudo aquilo, de um jeito ou de outro, desde que debutei em escrita acadêmica, na revista dos alunos e no jornal do diretório, com dois textos nascidos das suas aulas.
Vi-o por fim numa reunião da turma. Foi a última vez, eu creio, que conversamos de viva voz. Em silêncio, entretanto, durante leituras, planejamento de cursos e redação, o diálogo algo conflituoso de Araraquara nunca se apagou. Pelo contrário, quando o assunto era português, foi se mantendo e, aqui e ali, frutificando, em boa emulação e melhor cumplicidade, risonha e admirativa.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Um soneto de Pessanha - "o mais perfeito da sua Obra"

 Estou preparando uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, a sair pela Dilúvio Editora, em Portugal.

Revisitar os documentos que utilizei para fazer a edição crítica e as subsequentes é sempre uma aventura. Por exemplo, estive consultando as decisões que tomei quanto ao texto do soneto que começa “Foi um dia de inúteis agonias”. Não é um soneto qualquer. Pessanha o considerava “o mais perfeito” dos seus poemas, segundo anota seu melhor amigo em Portugal, Carlos Amaro.
Ora, quando esteve em Portugal, em 1916, na sua última visita à terra natal, Pessanha anotou “de memória” alguns poemas, que depois foram utilizados para sua amiga Ana de Castro Osório compor a “Clepsydra”, de 1920. Esse soneto não está na caligrafia de Pessanha, mas de João de Castro Osório. Pessanha apenas corrigiu a palavra “impressível”, que João entendeu e anotou como “imperecível” e alguns pormenores.
Esse autógrafo deve ter servido para Luís de Montalvor publicar esse soneto na revista “Centauro”, em 1916. Publicação essa que foi revista por Pessanha, pois Pessanha teve de novo de corrigir “imperecível” para “impressível”.
Até aqui, tudo bem. Sucede que no autógrafo de Carlos Amaro há algo que torna o poema melhor, do meu ponto de vista. Algo que não há nem no apógrafo corrigido do seu espólio, nem na revista “Centauro”.
Nunca pude reproduzir essa versão, porque os critérios que escolhi exigiam que eu reproduzisse apenas a última versão, a última vontade do poeta.
Mas aqui, que é o Facebook e o meu blog, posso reproduzir o soneto da forma que me parece melhor, mesmo que seja contra a vontade do poeta – por assim dizer.
A diferença mais significativa está nos versos 6 e 8. No autógrafo que reproduzo aqui, lê-se “teu mole sorriso”. Nas outras versões “seu mole sorriso”.
Não creio que o autógrafo que pertenceu a Carlos Amaro tenha sido algum dia reproduzido. Aqui está ele, juntamente com a página corrigida da revista “Centauro”. A anotação diz: "Disse-me o Camilo Pessanha que era *Isto* o mais perfeito da sua Obra".

Para maior facilidade de leitura, eis o texto do manuscrito, já me ortografia brasileira.


Foi um dia de inúteis agonias,
-- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias. 
-- Dia de sol, inundado de sol. 
Foi um dia de falsas alegrias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Passavam, das feiras e romarias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido! 
Difuso de teoremas, de teorias... 
O dia fútil, mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!