DEPOIMENTO
(HAICAI)
(HAICAI)
O interesse do conhecimento de outras culturas me parece ser a ampliação das
nossas formas de sensibilidade, nosso jeito de estar no mundo. Creio que essa é
uma das razões por tanto nos interessarmos pelos eventos e costumes externos ao
círculo da nossa cultura, distanciados no tempo ou no espaço do que definimos
como o nosso presente.
No que diz respeito à arte, a aprendizagem das formas
de significação, dos princípios e das expectativas da recepção, o choque com
outras convenções, revela mais claramente as estruturas da nossa maneira
habitual de ver, de expressar e de construir. Confronta-nos com a historicidade
de nosso próprio modo de ser e permite ver mais claramente os limites
convencionais do que, por inércia, termina por ser naturalizado e
universalizado.
Para mim, o haicai constituiu uma espécie de revelação.
Acostumado a pensar a poesia como obra de arte literária, isto é, como objeto
dotado de autonomia estética e valor “universal”, confrontei-me com algo frente
ao qual meus conceitos de avaliação estética, bem como as técnicas
interpretativas pareciam girar em falso.
É certo que é possível reduzir o haicai à nossa
própria dimensão. Podemos lê-lo, por exemplo, com as nossas ferramentas:
investigar a sua estrutura (ainda que sendo ele extremamente breve) em busca de
correspondências fônicas, de acoplamentos sintáticos, de figuras de linguagem.
Talvez possamos ainda procurar nele um caráter documental sobre as formas de
vida em cada época da sua produção. Mas é uma tarefa, além de difícil,
inglória. O método de leitura seleciona o objeto, criando uma tabela de valores
que normalmente tem como ponto mais alto os objetos nos quais o método pode
exercer-se em plenitude. Ora, a primeira constatação que faz um estrangeiro é
que o cânone que ele compõe a partir da aplicação de formas ocidentais de
leitura difere profundamente dos cânones autóctones, ainda que estes também
variem de acordo com a escola ou o momento histórico.
De fato, é difícil compreender em que consiste o
haicai mais famoso do mundo, aquele que todos os ocidentais que já ouviram
falar dessa forma de poesia identificam como o mais típico do gênero: o de
Bashô, que apresenta uma rã pulando para dentro da água de um velho tanque. O
que diz esse haicai? Qual seria a paráfrase possível, nos termos em que fazemos
paráfrases de poemas? E porque, entre tantos, seria este exemplar? Sua
estrutura fônica diz pouco: furuikeya kawasutobikomu mizunooto. Para alguns, o
interesse do poema residiria no verbo tobikomu, formado por dois outros: saltar
e cair.
Mas quando lemos a literatura crítica produzida no
Japão, por críticos literários ou por outros mestres de haicai (como é o caso
de Masaoka Shiki, o restaurador do haicai no século XIX, que comentou
longamente esse poema), não encontramos ênfase na qualidade do verso, na sua
forma ou no emprego do verbo. Segundo Shiki, o poema nunca foi apresentado como
o melhor de Bashô, mas apenas como o que inaugura sua maneira – e que o seu
valor está justamente na sua simplicidade e na recusa à figuração ou
antropomorfização da rã, bem como às alusões ou referências a poemas clássicos.
Para ele, nesse poema a rã (ou as rãs, pois em japonês não há marcas
morfológicas de plural) faz apenas o que as rãs fazem – isto é, saltar para a
água – e a sua grande relevância histórica é a redução ao registro objetivo.
Uma análise que quase poderia ser tomada como uma afirmação da poesia pela
recusa aos procedimentos poéticos.
Pequeno rendimento teria também, uma vez lido esse
artigo de Shiki, valorizar o haicai de Bashô considerando-o uma violência
contra a tradição. A sua escola persistirá para além do seu próprio século,
atravessando o XVIII, o XIX e o XX – e até hoje é a base da prática
internacional. Ou seja, não é (nem foi) a novidade da maneira de Bashô a base da
sua eficácia e persistência.
Uma tentativa de compreender o haicai “por dentro”
(por assim dizer) confronta o interessado com questões que ele não poderia
imaginar apenas lendo os textos e escolhendo, entre os haicais disponíveis, os
que considerasse os melhores, segundo a sua forma usual de avaliar poesia.
Por exemplo, se lesse os documentos da escola de
Bashô, reunidos nos livros dos seus primeiros discípulos, logo perceberia que o
ensinamento do mestre era pautado não apenas pela rígida disciplina para obter
o domínio da técnica do corte e equilíbrio interno dos segmentos de fala (digo
“fala”, pois o haicai-renga era um texto oral, recolhido a seguir por um
escriba), bem como pela técnica das palavras indiciadoras da estação do ano,
mas também por regras de conduta e de busca de aprimoramento espiritual que não
eram acessórias ou externas, mas tendiam a transformar-se em padrões de
avaliação. O haicai era um caminho, um “dô”. E por isso um dos principais
obstáculos à prática correta era a atitude espiritual errada. Um mesmo poema
podia ser considerado “bom” pelo mestre se tivesse sido escrito por um dos discípulos,
mas “ruim” se fosse escrito por outro – dependendo de o que ele dissesse ser
sincero e espontâneo ou afetado e artificioso. Por isso mesmo, o principal
obstáculo à prática do haicai era a “visão própria”, sendo a objetividade e a
despersonalização um objetivo não apenas da realização textual, mas da atitude
frente ao mundo.
Daí decorrem os repetidos conselhos para fugir ao
desejo de fazer um bom poema, para evitar ter em mente as qualidades que se
gostaria que o poema tivesse. Diz Bashô: “Os versos de alguns, porque eles querem atribuir‑lhes brilho, carecem
precisamente de brilho. O brilho não consiste em dizer as coisas de modo
brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza. É porque eles
querem atribuir‑lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de
outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras
produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de
palavras não são dignas de respeito.”
Já o bom haicai é aquele no qual “o sentimento interior se funde com as coisas
exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido
tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência”.
Já o mau haicai é produto
do artificialismo e do puro trabalho com as palavras: “Se o espírito, pelo
contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a
buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a
vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.”
O que está na base do objetivismo do haicai é,
portanto, algo muito sutil: a postulação de que os objetos devam ser apreendidos
pela observação não intencional, e que só assim conseguem compor uma unidade
com o estado de espírito do observador. E aí também está a origem da recusa a
que o sentimento organize ou se junte ao dado recolhido desse tipo de
observação: o sentimento enlameia o haicai, diz a escola de Bashô.
Outras novidades aguardam o leitor que se aventurar
pelo universo do haicai tradicional: o seu caráter de arte ensinada e prática
coletiva, a valorização extrema da modéstia, da simplicidade e da “magreza” do
poema.
De modo que, após o mergulho no haicai, o olhar que
retorna sobre a poesia da sua própria tradição vem marcado pela experiência da
alteridade, da experiência (ainda que limitada) do que está fora do círculo
usual de referências: não se apenas valorizam mais algumas características
comuns, que antes passavam despercebidas ou ficavam sem relevo, mas também se
incorporam alguns dos conceitos e valores à prática usual, ampliando o leque
das possibilidades de construção e de leitura. A consideração da história da
poesia moderna e contemporânea permite ver facilmente as formas aparentes desse
intercâmbio, especialmente nos países de língua inglesa. Bastaria referir a
obra de Pound, a ideia do correlato objetivo de Eliot, bem como muitos poemas
de Cummings ou de William Carlos Williams. E ainda da Poesia Concreta.
Quando meu interesse pelo haicai aumentou – na exata
medida da minha dificuldade de dar conta dele –, dediquei-me a três tarefas
simultâneas: estudar a língua japonesa, ler os tratados japoneses disponíveis
em tradução, bem como os textos religiosos principais da tradição budista, além
de outros clássicos orientais como o Tao
Te King e as obras de Confúcio, e, finalmente, praticar o haicai em
português, nos moldes tradicionais japoneses.
Creio que em tudo o que tenho feito a partir desse
momento se refletem os efeitos dessa convivência. Na minha própria poesia, e
não só na de haicai, aquilo que construí a partir da leitura dos autores
japoneses constitui provavelmente o que possa haver nela de interesse. E,
claro, minhas escolhas de objetos poéticos no exercício da atividade crítica e
docente também trazem as marcas dessa iniciação.
Muitas vezes, quando falo de haicai a auditórios
acadêmicos, percebo no ar a suspeita de que talvez nós, seus cultores
ocidentais, apenas estejamos utilizando o espaço e a cultura distantes como
terreno de projeção de nossos desejos. É possível que seja assim e não vejo mal
em que fosse assim, pois do que não tenho dúvida é de que se trata de uma
prática produtiva – literária e criticamente –, além de consistir num gesto de
recusa a outra idealização, essa sim perniciosa: a de que é possível eliminar,
por meio do controle da distância crítica, a projeção dos desejos e a ação das
crenças na escolha e no trato dos objetos culturais.
[Publicado em
Textos e Pretextos, n. 15. Lisboa: Universidade de Lisboa, outono/inverno 2011]
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