Leitura de um poema de Camilo Pessanha [1]
Ó cores
virtuais que jazeis subterrâneas,
-
Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados
clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo
onde esperais a luz que vos batize,
As
pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos
que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão
graves de cismar, nos bocais dos museus,
E
escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente
sorris, resignados e ateus,
Cessai de
cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo
arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda
a noite errais, doces almas penando,
E as asas
lacerais na aresta dos telhados,
E no
vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
Clepsidra é o nome que tem
sido dado às coleções possíveis de versos de Camilo Pessanha. Uma ordenação
significativa autorizada pelo poeta parece ser algo irremediavelmente perdido,
se é que alguma vez existiu. E se existiu, dificilmente terá sido integrada por
todos os poemas que até hoje os vários editores foram reunindo sob o título
emblemático do lugar de escoamento da água, imagem e medida do transcurso
ininterrupto do tempo.
Entretanto, do que talvez tivesse
sido um desenho de conjunto, um projeto do livro dos versos de Pessanha, restam
duas balizas: uma quadra em que um “eu” afirma o desejo de “no chão sumir-se,
como faz um verme” e esta invocação dos estranhos interlocutores que só a voz
do poeta constitui em existência. Quanto ao lugar inaugural da quadra
denominada, por alguns, “Inscrição”, não há prova documental, apenas a tradição
das várias edições e a coerência de lugar e de sentido. Já o presente poema foi
identificado pelo próprio poeta, numa versão preliminar, como a “última página
de um livro em tempos delineado”.
Ganham, pois, os poemas com a
leitura conjunta, que ressalta o desejo de trânsito entre superfície e
profundeza, entre o interior e o exterior da terra. Na quadra, a languidez da
alma produz o desejo de “deslizar sem ruído”, de desaparecer por meio de um
mergulho regressivo, que supõe a perda das defesas e das características
humanas. Neste, o movimento começa com o anseio das cores subterrâneas pelo
batismo da luz que lhes dê existência – portanto, com o desejo de emergir da
terra que as recobre – e prossegue com a apresentação/invocação de outros seres
que ainda não chegaram a existir e que aparecem situados em graus crescentes de
afastamento do solo: primeiro, os abortos nas prateleiras ou nas mesas dos
museus; depois, os sonhos, à beira dos telhados.
Ressalta também, da leitura
conjunta, o lugar em que se situa a voz lírica, que é o lugar da consciência do
desejo. Lugar analítico por excelência. No primeiro caso, o da quadra, o desejo
é do próprio sujeito que o expressa: desejo de inconsciência, de alívio de uma
situação que é sentida como destino, como efeito de uma circunstância de ordem
mais ampla: “eu vi a luz em um país perdido”. No caso do poema final, o desejo
é atribuído ao interlocutor. A voz lírica é o lugar da experiência que
aconselha justamente a cessação do desejo. Este, por sua vez, tem um lugar
aporético: é o desejo de existir, postulado como origem da frustração e da dor
de seres ainda inexistentes, ou já não existentes.
Na primeira estrofe, as cores
virtuais, ao jazerem enterradas, forçam a percepção de que a base metafórica
são os fenômenos da decomposição orgânica: a loucura produtora de alucinações
coloridas, a expectoração dos tuberculosos e o fogo-fátuo. O procedimento
lembra a morbidez irônica de outros versos. Aqueles nos quais as várias
substâncias geradas pela putrefação dos cadáveres são objeto de contemplação,
como produtoras de formas e de cores: “putrescina! – flor de lilás! /
cadaverina! – branca flor do espinheiro!”. A possibilidade da leitura é
reforçada pelo verso 4, que traz as imagens complementares do limbo e do
batismo, em relação inversa. A decepção da esperança de fuga do lugar de
inércia, por meio do ritual que se destina justamente a evitá-lo, contribui
para o adensamento agônico da materialidade corporal das imagens, além de
preparar a menção aos natimortos que comparecerão logo adiante no poema. O
verso 5, destacado espacialmente dos anteriores, dos quais é entretanto a
seqüência sintática, nos põe de súbito em face dos olhos dos enterrados, aos
quais se aconselha que se fechem finalmente, sem esperança de término da
vigília dolorosamente empreendida.
Na estrofe seguinte, a apóstrofe
se dirige aos que não nasceram, mas cujos corpos se preservam incompletos,
intactos, modificados apenas na coloração. Habitantes de outro limbo, o
asséptico dos museus, são explicitamente afastados, pela negação, de Deus. Seu
mundo não é o da expansão das cores, mas o da concentração sonora. Não é o da
terra, a que deve retornar o pó; mas o da água. E a força da estrofe provém em
grande parte do contraste entre as duas imagens da água, uma explícita e outra
implícita. Explícita é a água que corre na clepsidra: o tempo que flui. Implícita
é a água parada, o líquido em que flutuam os corpos metidos nos frascos, na
paralisação do fluxo vital interrompido. Embora sejam também figurações da
impossibilidade de uma consciência sem vida, contrastam os abortos com as cores
virtuais: sem ansiedade, sem esperança de redenção, ouvem resignados e talvez
irônicos a passagem do tempo, a que já estão imunes. Ecoam, com o seu vago
sorriso confinado nos invólucros de vidro, um outro poema de Pessanha, que
também é estruturado sobre a imagem paradoxal do cadáver consciente e
reflexivo: o morto que se ri do fato de que nada do que passa sobre a sua
sepultura lhe dói minimamente. A esses a voz lírica aconselha a cessação da
atenção e da busca de respostas.
Neste momento do poema, as duas
pontas do ser orgânico foram interpeladas: aquela em que a vida ainda não se
realizou plenamente, imagem de um momento congelado, de promessa sem
realização; e aquela em que o ser, já passado o momento da morte (no qual um
outro seu texto via o surgimento de um aspecto de “imortal serenidade”), se
desfaz na escuridão da tumba, esporadicamente cortada de clarões e cores sem
esperança de redenção. Entre elas se deve situar logicamente o espaço da vida.
Se assim for, ela aqui é identificada ao sonho, e seu grau de irrealidade e indefinição
acaba por parecer maior do que o dos momentos terminais.
No terceiro bloco, interpelam-se
os “sonhos não sonhados”. Do ponto de vista da construção metafórica,
completa-se o quadro lúgubre do poema, juntando a imagem das almas penadas à
das aves noturnas que se ferem de morte contra os limites da casa, e encarnam
mais explicitamente o anseio, já marcado de dor, pela existência. Noturna, não
há nessa estrofe nenhuma menção de cor. Em compensação, é o mais sonoro dos
três blocos em que se divide o poema. Não apenas porque refere o arrulhar, a
expiração e os queixumes dos sonhos, ou bater das suas asas nas arestas dos
telhados. Mas principalmente porque a estrofe toda se eriça de aliterações e
assonâncias e, principalmente, porque uma mesma rima de grande sonoridade
retoma e sistematiza o procedimento (inaugurado na primeira estrofe) de
explorar a cesura do alexandrino: virtuais, esperais, (cerrai), errais,
lacerais, expirais. Essas três últimas palavras, ecoando os seus “ais” na sexta
sílaba de três versos seguidos, martelam a gradação das ações atribuídas aos
sonhos, mostrando que mesmo aquilo que não chegou a existir (os sonhos que não
foram sequer sonhados), aquilo que poderia ser descrito, portanto, como pura
potência sem ato, tem um périplo de sofrimento e morte. Nesse sentido, o poema
vai num crescendo: a relação desejo/dor vai sendo vazada em imagens de
materialidade crescente. À medida que prossegue a leitura, mais intensa se
torna a presença do desejo de vida e mais intensa parece a dor que surge
associada a ele.
Para essa percepção de
intensidade contribui a leitura do verso final, que, diferentemente do padrão
estabelecido nos blocos estróficos anteriores, não é sintaticamente bipartido,
mas tripartido. Como os anteriores, abre-se com um imperativo afirmativo, a que
se segue um negativo. A diferença é que há agora duas frases de ordem negativa,
e que a sua forma de construção coloca em destaque – pela repetição do mesmo
padrão métrico (o péon quarto), da estrutura sintática e da pontuação – a palavra
de negação.
A tripartição do verso final
também encerra uma gradação de intensidade: o sono, a ausência de reação à dor,
a parada da respiração. É a morte absoluta, afinal, o conselho que aqui se
cristaliza, após ter sido preparado pelos versos isolados após cada quarteto. E
o que a morte absoluta significa, neste quadro particular, em que os
interlocutores não estão vivos, é a cessação do paradoxal desejo de existir.
Os seres interpelados nos três
blocos do poema ocupam espaços simbólicos diferentes e bem delimitados. Os
primeiros se situam num espaço de exterioridade inominada, apenas referida
metaforicamente como “limbo”, cujo elemento é a terra. Confinados, seu desejo
de redenção se manifesta também como desejo de exteriorização, de subida em direção
ao ar e à luz. Os terceiros, ao que parece, localizam-se no espaço privado da
casa, do lar. Associados aos pombos que habitam os beirais, o limiar da
exterioridade, seu desejo de serem sonhados é também o desejo de passarem à
interioridade do espaço íntimo, e sua permanência na virtualidade é também a
sua condenação à morte no espaço da exterioridade da noite e do vento.
Já os segundos se situam no
espaço social, público e controlado do museu. O elemento predominante na
estrofe que os apresenta é a água. Mas neles mesmos não há movimento, nem
anseio por movimento. Imagens da quietude desesperançada, os abortos comparecem
como o momento do equilíbrio possível. Oferecendo-se quietamente como
espetáculo visual, dotados da materialidade que falta aos outros interlocutores
da voz lírica, os não-nascidos parecem imunes à esperança e à dor do anseio
pela existência. Nesse sentido, são o equilíbrio possível no quadro do poema.
Por uma carta juvenil, sabe-se
que, em algum momento, Pessanha pensou em organizar o conjunto dos seus poemas
segundo um desenho temático centrado no tema do desejo e do prazer (realização
possível e destruição do desejo). A leitura seqüencial conduziria à constatação
de que lutar pelo prazer é o mesmo que lutar pela extinção do desejo e pela
morte. A vida, portanto, era identificada ao momento tenso, cheio de energia e
de dor, no qual a carência move em direção a um objeto, cuja posse dissipa a
tensão e é sempre deceptiva em si mesma. Talvez por isso a vontade de fixar,
preservar ou celebrar o momento anterior à realização do desejo seja um dos
motores da lírica de Pessanha, responsável por alguns dos seus poemas mais
célebres. Uma das suas melhores concretizações é o soneto que começa “Depois da
luta e depois da conquista”. Mas já neste poema final, escrito para encerrar o
conjunto dos seus versos, o desejo em busca de realização é objeto apenas de
piedade. Não se fixa heroicamente, como idealidade solar fadada ao
obscurecimento e à decomposição; nem se celebra como furor, como febre que
produz imagens irreais de integração, como no díptico iniciado pelo soneto
“Desce em folhedos tenros a colina”. Pelo contrário, num poema em que o
elemento ‘fogo’ é o grande ausente, o momento da luz possível entre as duas
cenas noturnas de sofrimento desejante é o momento em que repousam,
indiferentes ao correr do tempo, os abortos desprovidos de transcendência.
Pessanha escreveu certa vez que,
apesar do progresso da ciência, permanecerá intocado um espaço incognoscível,
“da beira de cujo abismo as almas meditativas continuarão, por todo o sempre, a
debruçar-se terrificadas e ansiosas”. Era uma frase que situava o espaço da
poesia, indicando a condição da sua continuidade num mundo dominado pelo
conhecimento positivo.
Nesse quadro, se este poema foi escrito para encerrar o livro que reuniria os
poemas de Camilo Pessanha, ressalta agora que a imagem da estrofe central pode
ser lida como uma figuração irônica da própria condição do pensamento
filosófico ou poético. Irônica não apenas porque todo o poema ecoa e enfeixa os
fios principais da lírica de Pessanha e porque nessa estrofe particular
comparece, pela única vez, a palavra que denominaria o conjunto dos seus
versos, mas também porque reúne, no espaço da curiosidade científica e do
didatismo, os temas constantes ao longo de alguns dos seus melhores versos: a
construção da imagem do desejo congelado antes da realização, a cisma sobre o
abismo do incognoscível e a descrença na transcendência, que permitiria fugir à
fragmentação e redimir o desejo, apontando-lhe um fim que não fosse a própria e
estéril extinção
[1]
Este texto foi publicado no volume Século
de Ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organizado
por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e lançado pelas editoras Angelus
Novus e Cotovia, em 2002.
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