Homenagem a Camilo Pessanha
Acabo de receber e de ler o livro Ladrão de tempo, de Carlos Morais José, que será lançado amanhã, dia 29/12, em Macau, juntamente com um volume de ensaios dedicados à obra do poeta, coordenado por Catarina Nunes de Almeida. Ambos prestam uma bela homenagem aos 100 anos de publicação da primeira recolha de versos de Pessanha em livro, a Clepsydra.
Ainda no calor da leitura, mesmo correndo o risco de não perceber o que uma segunda visita talvez permitisse ver, não quis deixar sem registro as impressões que me deixou esse livro bem editado e bem ilustrado.
Li com muito interesse, pois há tempos acompanho o trabalho do autor, a quem se deve o achamento das correções que Pessanha fez no exemplar da revista Centauro que lhe pertenceu. Eu mesmo, quando estive em Macau, busquei ansioso esse exemplar, do qual dispunha de apenas uma página fotocopiada, que me fora cedida por Daniel Pires. Com base nela, anotei, na edição de 1995, a variante preferencial. Mas havia muito mais, dissera-me Daniel Pires. Algum tempo depois, soube que eu não encontrara a Centauro porque tinha ido para restauração – num trabalho que teria consistido em apagar com corretor branco as intervenções do poeta. Felizmente (se é que a história é verdadeira), des-restauraram-se as páginas. E mais felizmente ainda, Carlos Morais José as encontrou e generosamente as estampou na edição da Clepsydra, que fez com Rui Cascais e publicou em 2004.
Mas a relevância do trabalho do autor vai além dessa importante descoberta e da edição em que vieram as reproduções. Vivendo em Macau desde 1990, em vários momentos organizou eventos comemorativos da memória do poeta, redigiu textos, fez discursos e palestras, escreveu ensaios interpretativos.
Uma parte desse material vem agora coligida no volume que acabo de ler.
Compõe-se o livro de 5 textos de caráter diverso. Do primeiro deles, intitulado “O exilado”, gostaria de destacar um ponto muito positivo, que é a crítica ao automatismo biografista, que toma pelo valor de face as esquisitices do poeta. Por exemplo, a organização da sua casa e as fotografias em que se faz retratar por um fotógrafo profissional em trajes e situações estudadas com vistas à produção de um efeito. É certo que, nesse primeiro ensaio, Morais José dá muito facilmente voz a duas figuras cujo depoimento é suspeito, pela carga de ódio e ressentimento que transpiram. Refiro-me aos irmãos Francisco Penajóia (nome literário de Francisco de Carvalho e Rego) e José de Carvalho e Rego. De fato, se há algo de crível nos “testemunhos” da dupla é a dose de fantasia que acrescentam aos fragmentos de realidade sobre os quais teceram sua fábula maledicente. É verdade que Morais José coloca sob leve dúvida o relato que faz este último Rego de uma visita que o escritor Blasco Ibañez teria feito a Pessanha. Mas transcreve a fantasia. Ora, Ibañez esteve em Macau cerca de doze horas, se tanto. Visitou nesse intervalo as ruínas de São Paulo, o castelo, a Gruta de Camões, o centro comercial e, antes do banquete oficial, foi visitar um típico prostíbulo chinês. Do banquete partiu diretamente para o navio que o levaria a Hong Kong. Dessa visita, redigiu Ibañez um minucioso relato, que inclusive menciona um escritor português, “Sebastián Da Costa”. Nem uma palavra sobre Pessanha, que, segundo Carvalho e Rego teria sido um dos motivos para sua ida a Macau...
Mas mesmo com essas concessões aos “testemunhos” fraternos, o que ressalta do ensaio, no que toca à biografia de Pessanha, são dois pontos: o primeiro é a convicta apresentação do caráter poseur de Pessanha, que desenvolve como elemento de um esforço concreto de distanciamento da Europa, analisando o seu caso no quadro mais amplo do exotismo finissecular; o segundo é, ainda dentro dessas balizas, a reflexão sobre a casa de Pessanha, tanto a casa paterna, lugar da infâmia, quanto a casa macaense, lugar da preparação para a morte e para o desaparecimento.
No segundo artigo, intitulado “A dor que deveras sente”, continua a crítica ao biografismo vulgar que ocupou boa parte dos textos dedicados ao poeta, e toma a sua poesia num sentido, digamos, filosófico: de exploração do estar no mundo. O resultado é ainda, talvez, biográfico. Mas num sentido mais alto: uma biografia propriamente filosófica, na qual a análise dos textos se processa em função da cosmovisão que identifica no conjunto dos poemas de Pessanha.
No terceiro ensaio, intitulado “Marginalidade e utopia: o poeta no seu santuário”, Morais José reflete sobre a relação conturbada e complexa do poeta com Macau. Ainda aqui, combate o mau biografismo, especialmente a tão propalada abulia do poeta e o seu suposto desconhecimento do idioma chinês. Falando com propriedade da cidade que conhece tão bem e do poeta a quem dedicou muito estudo, é um ponto alto do livro.
Por fim, na quarta e penúltima posição temos o discurso proferido quando do aniversário de 80 anos da morte do poeta. Intitulado “Não deitem fogo, não é para arder”, é um belo testemunho da dedicação do autor ao poeta e à sua poesia.
Ao final do volume, como uma coda e assim apresentado, pois o texto vem após uma larga cronologia da vida e obra de Pessanha, encontramo-nos, em “Ladrão de tempo”, não mais apenas com o estudioso da obra, mas sobretudo com o poeta Carlos Morais José, que ali comparece costurando, em voz própria, frases, versos, imagens do autor da Clepsydra.
No prefácio do livro, o seu autor nos informa que “é, pois, tempo de encerrar e de exorcizar. Neste livro reúno alguns dos textos que sobre Pessanha escrevi, numa homenagem final ao poeta, ao homem e à cidade que temos em comum.” Pouco mais adiante, ainda no mesmo prefácio, faz uma promessa solene a Camilo Pessanha: a de que não vai mais ocupar-se de sua vida e de sua obra.
Cumpre-nos torcer para que não a cumpra.
*
Carlos Morais José. Ladrão de tempo. Macau: COD, 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário