Não sei ao certo quando conheci Eric Sabinson. Mas estou seguro de que antes de o ter conhecido já o tinha ouvido. A altura da sua voz era inversamente proporcional à física, embora igualmente encorpados ambos, corpo e voz, maciços.
Depois que o conheci melhor, percebi que, seja sobre um evento trivial, seja sobre um poema ou peça de música, seu comentário nunca era exposto de modo explícito, analítico. Quanto maior fosse o empenho, mais as palavras saíam da sua boca como se lhe custasse muito. À primeira vista eram um esforço propriamente físico: vinham subindo devagar pela garganta, enroscavam-se, exigiam alguma torção inesperada da língua e das bochechas, até por fim surgirem à tona. Estavam, diríamos, a ponto de explodir, não viesse algum súbito e salvador controle segurar, domar e abater a desmesurada emoção. Muitas vezes desconfiei de que o controle era de fato maior do que parecia, que a arte residia em esconder o andaime. Ou melhor, torná-lo invisível enquanto tal, por apresentá-lo como parte do edifício ou escultura. Uma performance, enfim, mas tão entranhada que se transformara no próprio modo de ser, uma forma física de pensar ou expor o pensamento.
Um elemento importante da arte era o sotaque, mantido (se não cultivado) por décadas. Não era uma fatalidade, era um objetivo, por assim dizer, um elemento central do que poderíamos descrever como a sua poética, que era a do deslocamento. Por exemplo: Eric gostava de traduzir, mas insistiu o tempo todo no que poderia ser descrito como a direção errada, porque nunca o fazia daqui para lá, o que seria mais natural e mais fácil para ele, mas sim de lá para cá. Como muitos de nós, José Paulo Paes parecia preferir que se desse o contrário, já que registrou num prefácio que Eric tinha do português um conhecimento (acho que foi essa a palavra que usou) instrumental. Mas isso seria ignorar a razão, o motivo: Eric queria era desnaturalizar a língua de chegada, violentá-la – o que sempre conseguia. Não por meio de alguma cerebrina teoria tradutória, mas por meio de algo mais impactante e pé-no-chão, uma forma muito particular de conceber e tentar reproduzir corporalmente (por assim dizer) o fôlego, com especial atenção à ordem de aparição das palavras, às sucessões de imagens determinadas pela sintaxe ou pela forma do verso. Dessa perspectiva, um resultado canhestro resultava parecer fruto da intenção, ou era redimido como tal. Era o sotaque, o deslocamento e o indefinível em ação plena.
De modo complementar e coerente com a proposta geral, não só sobre literatura, mas sobre qualquer assunto, dos mais comezinhos do departamento aos mais transcendentes, além da forma importava o por onde agarrava o assunto ou entrava nele. Nem sempre era pelo corpo do problema. Às vezes era pelo rabo, outras por uma pata, outras pelo focinho. A questão era agitada de súbito na frente do nosso nariz, e quando a gente pensava que viria algo como uma vivissecção ou ao menos morte por asfixia, Eric de súbito abandonava a presa, terminando por uma expressão enigmática: “É aquela coisa...”. Revirava os olhos ou mirava o interlocutor de esguelha, deixando-o à espreita, à espera de algo que não se concluía. Creio que não só por isso, digo, pela sua capacidade de agarrar pelo ângulo menos esperado, mas mais pessoal, o assunto – tudo terminava por falar para ele ou dele, como o torso de Apolo de Rilke –, mas ainda por estar sempre muito empenhado em atingir ou iluminar o interlocutor, acabou, para as novas gerações, por se configurar como uma espécie de mestre zen, ou melhor, cavaleiro Jedi – no caso, o Yoda.
Tinha o hábito de se referir a si próprio em terceira pessoa. Dizia “o Eric”. E fazia bem: a expressão designava uma persona, mais do que o emitente. Uma persona maior, autoconsciente, que dominava o antigo artífice e senhor, regendo-o. Além disso, tal persona, sem os pruridos ou o senso de ocasião que talvez tivesse tido seu autor, terminava com frequência por configurar ou ocupar de modo abusivo, e por isso mesmo nem sempre agradável, o ambiente.
Sua erudição musical, principalmente num aspecto, impressionava. Parecia saber tudo de ópera, e devia saber muito mesmo. Não se limitava ao gênero, porém. Filho de um produtor da Broadway, conhecia muito mais do que mostrava usualmente, e quando mostrava era de fato notável.
Nos últimos tempos, lembro-me de ele se dedicar a duas artes que pouco ou nada tinham em comum: o halterofilismo e o clarinete. Ouvi-o muitas vezes amaldiçoar uma palheta, ou discorrer sobre o zen do manejo do instrumento, sobre o esforço de controlar a vontade própria durante os treinamentos, da luta para se esquecer e deixar o corpo interagir. O que, no caso dele, era de fato uma tarefa hercúlea. No outro lado do disco, acompanhei as proezas e as queixas de dores dos esforços desmesurados e irracionais, além de ter visto muitos vídeos e lido ou ouvido inúmeras descrições de suas proezas musculares.
Foi, aliás, o grande empenho de superação nos halteres, eu creio, que terminou por levá-lo ao hospital. A uma desastrada operação da coluna cujas consequências foram fatais.
Eu estava em Portugal, quando chegou a notícia. Alcir me disse depois, com revolta, que lhe parecia erro médico.
Durante um bom tempo da sua vida, sentiu-se deslocado no departamento que o contratou quando veio dos Estados Unidos. Por sorte e por graça de amigos dedicados, finalmente veio para o seu lugar correto, que era a literatura. Lembro-me do singular argumento que um de nós apresentou ao departamento, quando da sua transferência. Os mais sintonizados com os novos tempos produtivistas não eram simpáticos à transferência. Achavam que ele não publicava com a frequência desejável. O que era verdade, pois ele conseguia passar longos períodos em abstinência. Mas se era certo o julgamento sobre o passado, esse julgamento não se aplicava necessariamente ao futuro – disse o advogado de defesa. Desvencilhado de um lugar a que era pouco afeito, quem poderia garantir que não seria diferente? E foi assim, com a absolvição futura, que ele veio.
É verdade que, no tocante às provas de condenação pregressa, nada mudou. Mas isso não foi grave. Como outras figuras notáveis com quem convivemos na Unicamp, Eric não se importava com papéis pintados com tinta. Dedicava-se de corpo (e creio que também de alma) às aulas-performance, e punha particular empenho na orientação de trabalhos. Mais do que isso, aplicava-se muito à tarefa de abrir horizontes, forçar estudantes a pensar “fora da casinha”. O que sabia fazer como ninguém, sendo um parceiro dos neófitos e um aplicado perturbador de certezas ao longo do processo formativo. Por fim, contribuía em algo essencial: atrapalhava, fazia desandar as discussões muito burocratizadas, atrasando assim o destino inevitável do departamento rumo à perda do foco no que importa, em nome de ceder gostosa e, em certo sentido, preguiçosamente aos critérios avaliatórios das agências de avaliação e financiamento. Essas ondas encontravamm nele, que nos momentos acalorados se erguia com a energia do costume, um pequeno, porém inabalável e teimosíssimo rochedo.
Quando me lembro dele, termino por ver claramente na memória seu curioso modo de caminhar, quase aos saltos nas pontas dos pés. Era singular e lhe valeu entre estudantes o apelido de Grilo. Do que ele talvez gostasse, se tivesse sabido, pois para os Pinocchios que abundavam entre os estratos acadêmicos ele, de um jeito ou de outro, era quem fazia o papel de consciência. Quando me casei, Eric foi convidado de honra, já não me lembro se padrinho. No caminho para o cartório, minha mãe, impressionada com o gingado peculiar, inesperadamente começou a imitá-lo. Estávamos todos muito felizes. Penso agora que aquele seu jeito de caminhar mimetizava seu jeito de pensar e de falar. Ou vice-versa. Por impulsos, sempre tentando e quase sempre conseguindo uma altura e um alcance maior, mesmo que isso parecesse estranho, descabido ou inapropriado a quem o visse ou ouvisse.
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