Encontrei-me com Rubem Braga duas vezes, e foi assim: Marisa Lajolo coordenava com Samira Campedelli uma coleção da Abril Cultural. Chamava-se “Literatura comentada” e apresentava, em livrinhos vendidos em banca de jornal, os principais autores das literaturas brasileira e portuguesa. Alcir e eu ainda fazíamos o mestrado, o que de alguma maneira combinava, pois a forma do assunto talvez aspirasse ao cânone como nós dois à formação acadêmica. Era nosso primeiro livro, e o fizemos da forma que foi a nossa sempre, desde a tradução até a composição de poesia de nonsense ou obscena: a quatro mãos.
A primeira vez que o vi foi logo que recebemos o convite. Eu estava no Rio, acompanhado do meu pai, em busca de material para a minha dissertação sobre poesia concreta. Eram tempos difíceis aqueles, sem internet nem máquinas digitais ou celulares. A Biblioteca Nacional era um caos. Por falta de pessoal ou competência, abriam andares ímpares e pares alternadamente. De modo que se por acaso o que você quisesse num dia ímpar estivesse num andar par, a consulta ficava para o dia seguinte, mas sem garantias, porque de repente a sequência podia ser quebrada por algum motivo. Além disso, não havia serviço disponível de microfilmes. E era aí que entrava o meu pai: fotógrafo amador, foi autorizado a fotografar com sua Pentax as páginas que me interessassem dos jornais dos anos de 1950.
Meu pai sempre foi um bom leitor, além de músico, poeta e cronista nos jornais do interior onde vivemos. Por isso, era grande fã de Rubem Braga. Bastava-lhe saber que o cronista estava num periódico para assiná-lo ou comprar na banca.
Não desperdicei a oportunidade, portanto. Telefonei ao velho Braga e lá fomos visitá-lo numa bela tarde ensolarada, após o trabalho na Biblioteca. Não me lembro nada do que falamos. Apenas me recordo claramente da expressão do meu pai, quando apertou a mão do escritor. Depois, ficamos ali conversando. Eu na verdade não tinha assunto, senão lhe dizer que eu e um amigo escreveríamos sobre ele.
Quando voltei a Campinas, organizamos as jornadas de trabalho. Lemos a obra de Braga de uma ponta a outra, selecionando cada um as crônicas que mais impressionavam. Em voz alta as relemos e depois as fotocopiamos, recortando os xerox para montar o conjunto.
Em seguida, redigimos uma apresentação crítica – ainda muito colada à bibliografia, vi agora –, o esboço biográfico e as notas. E então veio a notícia terrível: Rubem Braga não queria ser explorado pela Abril (não foi bem isso o que disseram, mas o que entendemos, e ele depois confirmou) e exigia que no livrinho houvesse tanto texto dele quanto sobre ele.
Foi então que fui pela segunda vez à sua casa, saindo de Campinas numa madrugada fria, de moto, para apanhar o avião da ponte-aérea e voltar no final do mesmo dia.
Isso explica que eu calçasse uma bota quase até o joelho e carregasse uma grande mochila, onde meti depois o casaco e as luvas, mas não as botas. E portanto em poucas horas lá estava eu, com aquelas botas e aquela mochila, andando pela praia de Ipanema, sob um sol de assar batata na rua.
É que Rubem Braga tinha ido a um enterro no horário matinal combinado. E só me receberia quando voltasse. Por isso nem me afastei muito do apartamento dele, nem fiquei muito por lá, com tal aparência suspeita.
Quando me recebeu, pude ver melhor o famoso apartamento de cobertura, com jardim de Burle Marx e um pequeno aquário rodeando a casa.
Vejo agora que não descrevi o escritor. Não era baixo nem alto, se me lembro bem. Nem gordo nem magro. Tinha cabelos brancos e um bigode esbranquiçado. Seu traço mais marcante eram os olhos. Bovinos, disse dele alguém. E não encontrei melhor palavra. Como o boi do poema de Drummond, talvez. Eram olhos ao mesmo tempo acolhedores e investigativos, nos quais também julguei perceber algum tédio, derivado da experiência. Assim devia ser o jeito de Aires, lembro-me que pensei.
Perguntei-lhe o que achara do nosso texto. Ele me disse algo vago, que não assegurava que tinha lido. Eu lhe disse que nossa ideia para cumprir a exigência era desenvolver a apresentação e acrescentar uma pequena fortuna crítica. E acrescentei que a sua biografia tinha saído tão breve porque havia muita inconsistência no que estava disponível. Por fim, que pretendia fazer com ele uma entrevista e acrescentá-la ao livro, para cumprir o necessário.
Ele mandou vir uma grande caixa. Abriu-a sobre a mesa e vi que nela havia de tudo: cartão de repórter de guerra, passaportes, salvo-condutos, muitas fotografias, cartas, recortes, registro de nascimento, carteira profissional. Juntos separamos a papelada e reconstruímos a vida dele, corrigindo os dados que eu trazia anotados a partir das leituras. Selecionei por fim os documentos mais relevantes, que a editora trataria de fotografar. E fiz a entrevista. Um dos trechos vem junto desta postagem.
Na saída, deu-me um exemplar do seu único volume de poesia, que tinha acabado de ser publicado em Recife, pelas Edições Pirata, mas com a condição de que os versos não seriam incluídos no livro que fazíamos.
Na volta, com base na conversa do Rio e atendendo à necessidade de espichar o texto, reforçamos as notas de rodapé, aumentamos a biografia e inventamos um diálogo. Essa foi a parte melhor, na verdade, a mais divertida e produtiva: submetemos o nosso texto primeiro à crítica, desdobrando-nos em duas figuras – o Mestre questionador e o Discípulo aplicado – e pudemos assim ser mais ousados, autoirônicos e agudos. Por fim, convocamos para a conversa o próprio Rubem Braga, atribuindo-lhe as palavras que me disseram no Rio.
Ele me dissera que uma prova da decadência da crônica era que a revista Manchete tivera outrora quatro bons cronistas, mas que agora só tinha o Adolfo Bloch, que só escrevia para um leitor, ele mesmo. Como ele me disse, publicamos.
Algum tempo depois, ele se referiu numa crônica aos rapazes de Campinas que colocaram aquelas palavras na sua boca. Disse que não se lembrava de tê-las dito, mas que, já que dissemos que ele disse, então estava dito.
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