sábado, 2 de setembro de 2023

Perfis - 10 – Carlos Vogt



Uma certeza me guia nesta tarefa, que desobedece a um preceito. O preceito era não redigir perfil de pessoas vivas. A certeza é que se há alguém que suportaria contemplar-se num desses perfis, ignorando ou fruindo a eventual carga de ironia, é ele. Aliás, creio que, sendo um perfil dele, já lhe bastaria, acostumado que está ao sim e ao não, desde que subordinados à presença. Conheci-o primeiro no restrito redil acadêmico. Fomos colegas de Instituto e quase de Departamento. Mas quando pleiteou a transferência já era muito político. Seu patrono argumentava que, nesse aspecto, o candidato mudara, estava desistindo da vida pública, queria um cantinho para trabalhar em paz com literatura, e ser, como nós, apenas mais um acadêmico relativamente anônimo e às vezes dedicado. Alexandre Eulálio, porém, brandiu o argumento de peso universal: ninguém muda! E fez bem, porque, se aceito, Vogt não seria só mais um, provavelmente apenas estaria ali nominalmente, sendo seus horários e tarefas divididos entre nós. Ou seja, não seria bom para ninguém. Já da forma como foi, ganharam todos: ele, a universidade e o Estado. E nós. Ninguém muda. E graças a isso a universidade foi regida pelos oito anos que muitos, eu incluído, consideram as quadras douradas da instituição. Estou afastado da Unicamp há vários anos, mas sou dos que se acostumaram a ver o vulto do homem em toda parte. Talvez, no meu caso, por ter sido quase atropelado por uma sua criatura, o Projeto Qualidade. In illo tempore a gente não tinha pressa em se titular. Bastava estudar e lecionar. O doutoramento não era uma necessidade nem um objetivo, e assim ia sempre ficando para as calendas. Enfin Vogt vint... foi o nosso Malherbe: regrou tudo, baniu o que achava banível, exigiu o que achava exigível. Doutoramento em três anos ou rua. Por isso fui parte do rebanho que pastou bibliografia, roeu canetas e rasgou a alma nas madrugadas ruminando páginas. Chegando mais perto, diria que o mais marcante nesse homem era a capa de blandícia. Por debaixo podia haver um tigre ou um como nós. Mas ela era suficientemente opaca para não deixar ver, e por isso incongruente com a fama gerada, o que a tornava quase ameaçadora. Em certo sentido era a essência de seu poder: uma meia frase, um sorriso de canto de boca, um olhar que é como uma pergunta aliciante, um risinho controlado, temperado com um endurecimento dos lábios, uma oscilação da narina e algum movimento súbito do olho. Dali podia vir um favor ou uma punição. Ou nenhum dos dois – o que me parece ter sido quase sempre a regra. Embora eu ainda acredite que, sendo essa a regra, as exceções pudessem ser doloridas. Sempre me admirei desse poder em pura potência, que não dependia de nada para se sustentar na altura da cara do interlocutor, como um balão de ar que poderia se tornar uma granada ou uma flor, mas que na ordem das coisas era e continuava sendo apenas um balão. Talvez venha dessa manipulação do balão de ar o magnífico poder de atração, que fazia com que sempre a roda à sua volta, seja num baile, numa tese ou num comício, fosse maior do que a roda dos demais. O quilate do homem, sua têmpera, se revelava no graúdo, mas também no miúdo. Certa vez sentou-se à mesa ao meu lado, deixando vaga a cabeceira. Observei que il Cappo di Tutti Cappi deveria se ter sentado à cabeceira, ao que me respondeu, com ironia na dose certa para ser afirmação segura, que tanto fazia onde se sentasse, porque o lugar passaria a ser a cabeceira. Eustáquio Gomes, num livro memorável, narrou com precisão um momento simbólico. Era o final da reitoria. Nosso herói passa os olhos lentamente pelos retratos, quadros e objetos da sala – pessoas, lugares e símbolos do poder, que ele soube exercer com as doses eficazes em tudo o que fosse preciso. Eustáquio percebeu a melancolia tensa do momento, que narrou como terminal. Mas deve ter visto, embora não registrasse, que era apenas um capítulo mais dramático, não o fim do romance. Porque a propósito poderia requentar aqui um dito popular: Vogt saiu da Unicamp, mas a Unicamp nunca saiu dele. O que é verdadeiro, mas não suficiente, porque a realidade exigiria um quiasmo: a Unicamp saiu do Vogt, mas o Vogt nunca saiu da Unicamp. Este, aliás, mais justo, porque se ela lhe saiu das garras diretas, ele não desgrudou dela, nem quando ocupou outros cargos relevantes. Nesse esforço de domínio, a unha até hoje enfiada na carne acadêmica é o Labjor. Mas outras unhas se juntam à primeira, a mais recente das quais atendia pelo nome de IdEA. A cordialidade costumeira, que é talvez a unha do mindinho, faz escala na sua poesia: a cada ano, pelo encerramento, um breve poema pelo correio ou pelo escaninho. Era um cumprimento e um lembrete. Não era, porém, poeta bissexto ou de data fixa. Alcir Pécora, num texto de perfeita descrição, mapeou a corrente dos anos de 1960. Uma nota ali permite juntar o poeta ao professor e este ao estudioso e ao político. Não sei se a traduzo bem, mas seria algo como a consciência vigilante. Alcir a surpreendeu nos títulos, assinalando o seu poder modalizador, controlador da leitura, basicamente pelo recurso à ironia. O obsceno, o mordente, o cínico, o confessional ou o pungente são, por meio deles, conduzidos a um registro mais pacífico. Talvez por isso de menos potência. Algo como um pé no freio, de busca de uma faixa neutra, fora da zona de guerra, do perigo. O crítico, ao final do prefácio, diz que iria reler o conjunto, torcendo secretamente por surpreender algo que desbordasse os limites do controle. Penso agora que o sentimento é do mesmo tipo, com sinal trocado, do que descrevi como presidindo à constatação da blandícia, que na crítica ou na atuação se resolvia, no confronto ou aliança pessoal, como mero temor e sobressalto, que o mecanismo, a estratégia e objetivo final eram, em essência, os de sempre. Tinha este texto pronto, quando Vogt veio, com Alcir, visitar-me. Trazia o homem um belo chapéu. Sentou-se na varanda, de frente para a praça. Conversamos longamente os três. Ainda a vivacidade, e o mesmo jeito de falar com o pé no freio e com o sorriso que indicava um subentendido. Que às vezes eu entendia, às vezes buscava em vão. Era sempre o mesmo homem. Ninguém muda. Estava certo o perspicaz e veemente Eulálio. E era bom.

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