Os fundos da sua casa davam para o Horto, mas disse-me a Maria Eugenia que ele nunca foi até lá. Acredito. Era totalmente citadino e cartesiano, de onde lhe vinha o cordial horror ao desalinho e irracionalidade da natura bruta. Entretanto, lembro-me de ele me dizer que apreciava deixar comida aos macaquinhos, do que concluo que, embora não se aventurasse na desordem natural, não se opunha a que ela viesse até ele, enquadrada em horários e locais combinados. Não obstante, mandou construir uma casa em Vinhedo, que visitei, num condomínio em formação, que me parecia mais selvagem do que o domesticado Horto. Talvez por isso tenha lá deixado em exílio alguns livros bons, e voltado para a primeira. Afinal, lá estava acondicionada a mina de ouro – uma vasta biblioteca, onde brilhavam as lombadas de obras raras – e a parte que mais me impressionou: uma edícula que crescia numa espécie de torre ou alpendre fechado, sem mobília alguma. A acústica! – exclamou ele, de dedo erguido, assim que entramos. E calou-se. Depois fez vocalizações, que comprovaram o anúncio. E abriu um sorriso indagador. Ivan tinha um dos olhos levemente mais caído. Nessas horas, ele se fechava um bocado mais do que o outro, o que simulava uma piscadela ansiosa por concordância ou cumplicidade. Junto com o olhar fixo atravessando as lentes, era quase uma intimação. Admirável acústica! – eu repeti baixinho, como que a esquivar-me dela. E creio que era mesmo. Contou-me então Ivan para que a utilizava. Ele não acreditava inteiramente na escrita, ou melhor, na leitura silenciosa que um autor fazia da própria produção. Para ele, um texto só podia ser considerado razoável quando lido em voz alta. Aí, sim, os cacófatos mostravam as fuças, as palavras gêmeas se ferroavam mutuamente, uma frase em forma de centopeia indicava onde devia cair o machado, e a língua bífida, sedutora, das conclusões acomodatícias, era logo desmascarada pela outra língua, a dele, enquanto fazia rolar na boca as frases e parágrafos, em escrutínio. Já se vê que não me disse nada dessa forma. Eu que traduzi assim em homenagem ao Horto ignorado do outro lado do quintal. Talvez porque ali eu visse que ele compusera, fronteiro ao outro, o seu verdadeiro jardim, o seu paraíso terrestre, a sua vinha inesgotável. Nas estantes da ampla sala, altas a perder de vista, e naquela saleta despida, onde executava os textos. Pedi-lhe que me demonstrasse. Foi um pedido que mal teve a chance de afirmar-se nas pernas. Ivan me dispôs num lugar um pouco alijado, junto à porta, apanhou um maço de papéis e começou a rodear, com passos pausados e medidos, o aposento. Era como aquela contagem que as bandas fazem, antes da música. E ela logo veio: a leitura. Quem quer que o tenha visto ler um texto recomporá facilmente a cena: segurava o papel com uma das mãos e com a outra regia o discurso. Nenhuma ideia vinha nua. Cada uma com vestimenta própria: roupa de guerra, traje de baile, mero terno azul e até um jeans bem composto. Mas nunca de pijamas ou de camiseta. Vestia-as a voz, com o tecido da entonação, as botas do volume e o chapéu do timbre. O ensaísta, o buscador de raridades, o pesquisador, toda essa coorte se subordinava ali, na leitura, ao professor – que, no entanto, pela solenidade garbosa, tinha um pouco de padre. Na sala de aula ou num auditório, ao padre se juntava o showman, e muitas vezes o sobrepujava. Da mesma forma como um arqueólogo desenterra um pedaço de osso e dali logo deduz um lagartão inteiro, com barriga, rabo e focinho cheio de dentes, assim eu vi o Ivan deduzir por uma aba anônima do livro o seu autor. Com tal arte perante a classe foi lendo e relendo e deduzindo, como um detetive, mostrando aqui o nariz, ali as bochechas, mais além o lombo, até que o homem – creio que o Rosa – saltasse inteirinho e pronto para fora da orelha, como Minerva das coxas de Júpiter. Era também dublê de editor. Idealizava e levava adiante projetos, tanto na ECA quanto na Ateliê. Aliás, foi por seu intermédio que conheci Plínio Martins. Nos tempos em que eu dirigia a Editora da Unicamp, fizemos muitos projetos e viagens juntos. Na última delas, para a Feira de Guadalajara, Ivan começou a se queixar da comida mexicana. Tudo lhe fazia mal. De volta ao Brasil, foi ao médico. Em poucos meses, a doença o levou. Está fazendo agora, em 2023, dez anos.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Perfis 6: Ivan Teixeira
quinta-feira, 5 de janeiro de 2023
História literária - narratividade e cânone
Tenho aproveitado estes dias de impedimento de um trabalho mais longo e aturado para pôr em ordem os papéis. Modo de dizer. São arquivos de computador. Por isso mesmo, voláteis, às vezes lacunares, ou longos desenvolvimentos argumentativos no meio de um fichamento, e de vez em quando anotações menos extensas e erráticas, nas quais um pensamento ensaia o voo para logo dar lugar a outro.
Na verdade, a desordem do material me faz ter de recorrer a buscas na internet, quando alguma coisa me parece de interesse: teria publicado isto em algum periódico? Em alguma revista eletrônica? No meu blog? Teria publicado apenas a ideia ou também a forma? Vale a pena um dia retomar e tentar desenvolver?
Todo cuidado é pouco, apesar de eu já estar aposentado: se eu republicasse o já publicado estaria incorrendo no moderno crime acadêmico denominado autoplágio. Crime derivado mais do sistema legal da universidade-empresa, do que dos contratos editoriais, e no qual devo ter incorrido várias vezes. É o que acredito, já que um crime involuntário nem por isso deixa de ser crime, e porque desde a época da faculdade retomo temas, problemas, conceitos. Se os retomo, por que não retomaria as mesmas palavras e frases com que os debati tanto tempo comigo mesmo?
Pensando bem, estou convicto de que devo ter incorrido inúmeras vezes nesse delito, quem sabe até mesmo dentro de um único volume.
É que na verdade não vejo mal em que retomemos o nosso pensamento, inclusive com as formulações de que gostamos mais e nos esforçamos muito para obter, adequando-os ao novo auditório ou situação. Isso, creio, não deveria ser considerado um delito. Fosse, e no limite quem sabe até as aulas pudessem incorrer na prática condenável da autocópia.
É verdade que há situações e situações. A expressão de nosso pensamento numa dada sequência de palavras pode muitas vezes virar mercadoria. Nesse caso, se o produto é vendido, o vendedor (no caso, o editor) pode entender que foi fraudado, se encontrar o mesmo texto no produto posto na praça por outro fornecedor. E mesmo um comprador pode se sentir lesado, se tiver a infelicidade de comprar dois livros em que um mesmo autor ocupa parte do papel impresso em cada um com a mesma sequência de palavras. Mas para isso há a lei, representada por naquele símbolo do copyright. Mesmo assim, a lei permite exceções, e faz sentido que um autor reúna em livro textos já publicados em revistas, jornais e mesmo coletâneas e outros livros (com autorização do primeiro comprador do seu produto, se for o caso, é claro), porque além da coerência que lhes dá o conjunto, o caráter disperso dos primeiros aumenta o risco da perda da memória do conjunto e da construção do pensamento.
Mas estas divagações já se afastam muito do ponto ou do pretexto.
O ponto é que eu encontrei uns parágrafos datados ainda de 2004, que vinham precedidos da anotação de que eram sequência à crítica da historiografia literária herdada do século XIX, isto é, a história narrativa. E também à ideia, que eu dizia estar em outra anotação, sobre o caráter espectral da mesma historiografia oitocentista que ainda orientava, na surdina, os julgamentos críticos dos objetos do presente.
O trecho era este, e espero que ele não decepcione, pelo seu caráter lacunar, a expectativa criada por tão desarrazoada apresentação.
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Com a historicização do cânone e com a forma diferente de organização do campo intelectual, que privilegia a análise especializada em vez das sínteses grandiosas, diminui muito ou mesmo desaparece a confiança na autoridade do autor único que escreve sobre objetos variados, espalhados ao longo de uma vasta cronologia. Hoje, uma história da literatura nacional escrita por uma só pessoa não apenas nos parece pouco provável, como ainda nos pareceria desde logo suspeita de se tratar, em grande parte, de compilação de leituras de fontes secundárias ou de outras narrativas históricas que a precederam.
A forma privilegiada do conhecimento histórico da literatura já não é a síntese, mas a consideração minuciosa de objetos concretos, situados adequadamente no seu tempo e no seu espaço cultural. Ou seja, a forma mais valorizada hoje não é a história literária (tal como a entenderam o século XIX e a primeira metade do XX), mas o ensaio histórico, que o novo historicismo faz às vezes confinar com a filologia na tentativa de estabelecer o quadro de emergência e atuação de uma obra ou questão, ou ainda com a história quantitativa ou com a sociologia.
Disso, e também da valorização geral dos estudos especializados, decorreram as primeiras soluções de compromisso no gênero história literária, que foram as tentativas de elaborar trabalhos coletivos, em que cada estudioso tratava de apresentar – respeitando a cronologia e uma orientação geral vaga – do tipo contextualista ou formalista, por exemplo – os autores ou períodos ou questões de sua especialidade. Entre nós, o modelo é a série A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho. E sua consideração, ainda que rápida, permite ver suas vantagens e desvantagens. A vantagem é poder contar com estudos especializados, dispostos em ordem cronológica e pautados por uma visada de apresentação narrativa. A desvantagem é que o conjunto não forma uma história, pois faltam-lhe os mecanismos narrativos e a coerência das causalidades que definem o discurso histórico. Isso porque cada um dos autores aborda o seu objeto a partir de uma perspectiva diferente. Por exemplo, o capítulo sobre o Parnasianismo recebe um enfoque técnico e formal que um capítulo como o do Romantismo não recebe. A personagem coletiva “literatura”, assim, se desdobra em várias e a costura precisa ser feita fora do âmbito dos artigos especializados. Daí o caráter algo esquizofrênico desse livro, que se materializou na publicação separada da Introdução à literatura no Brasil, de cuja leitura emerge um objeto muito diferente daquele resultante da leitura do livro completo. Isso porque a síntese histórica de largo fôlego, empreendida pelo organizador, é contrariada em vária medida, ou simplesmente ignorada, nos capítulos escritos pelos especialistas.
Seus últimos desenvolvimentos constituem aquilo que David Perkins denominou enciclopédia pós-moderna, na qual as aporias percebidas no livro de Coutinho são levadas ao extremo.
Considere-se, por exemplo, um livro como O Século de Oiro, organizado por Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, que se compõe de estudos isolados de poemas, cuja única fronteira temporal é o século XX. A concepção do livro traz para o centro da atenção a crise da história literária como gênero. Não apenas o volume abdica de qualquer texto que dê sentido sequencial ao conjunto de ensaios, mas ainda abdica de qualquer desejo de representatividade, pois os autores não são incluídos pela repercussão que tiveram em seu tempo, nem como representantes de alguma região ou tendência literária, nem mesmo pela importância que adquiriram em algum momento que não o da elaboração do livro. Cada um dos 73 autores indicou 3 poemas de sua preferência, sobre os quais gostaria de falar. Os organizadores selecionaram, dessas três indicações, usando critérios vários e combinados, o autor e o poema que cada autor teria de tratar. A partir daí fez-se o livro, que constitui um exemplo radical de história sincrônica: traz apenas aqueles poetas que 73 críticos e professores de diversos países consideravam interessantes naquele momento de produção do livro.
O caráter lacunar do livro causou escândalo, pois autores canônicos, representados em todas as histórias da literatura ou da poesia portuguesa do século XX, simplesmente desapareceram. Enquanto autores muito contemporâneos, como Daniel Faria, por exemplo, compareciam com destaque. Reside aqui, porém, independente do valor das análises que comporta, o principal interesse do livro, que constitui um exemplo radical do que seria uma história sincrônica, centrada na eleição e na apresentação de um paideuma.
Outro tipo de texto situado na mesma linha é a apresentação remissiva de um período histórico, por meio de verbetes redigidos por especialistas. É o caso, por exemplo, do Dicionário do Romantismo Literário Português, coordenado por Helena Carvalhão Buescu. Neste modelo, a escolha dos verbetes constitui a operação decisiva e é nela que se mantém a base histórica da organização, pois os ensaios monográficos são de caráter muito variado, têm premissas e métodos de reflexão muito distintos e abordam seu objeto segundo modos de compreender sua inserção na história muito diferentes entre si. O que um livro como esse recusa, pela sua própria forma de apresentação, é a distribuição cronológica, a narratividade, bem como o peso e a coerência da explicação causal da mudança histórica, agora múltipla (ou mesmo ausente), segundo o perfil dos autores dos verbetes.
Um modo de manter o recorte histórico é o que encontramos na História crítica da literatura portuguesa, dirigida por Carlos Reis, na qual a matéria histórica se organiza cronologicamente, de acordo com as grandes divisões tradicionais, mas se apresenta por meio da seleção de textos críticos e históricos que o organizador de cada volume considera relevantes para a abordagem do problema em questão. O interessante desse projeto é que os excertos de estudos que compõem o livro não estão delimitados pelo presente do organizador. Pelo contrário, o que ali encontramos são cortes verticais apresentando a história da recepção dos textos e temas, embora esse escopo (de apresentar a recepção dos textos ao longo do tempo) não seja sistemático e a escolha dos textos penda decididamente para a fortuna crítica da modernidade. A história crítica é, na verdade, uma antologia de textos organizados segundo linhas cronológicas, mas desprovidos de nexo narrativo. Um leitor que dela se aproximasse em busca de uma narrativa típica da história literária sairia certamente decepcionado.
O que me parece digno de nota, nestes três modelos, e especialmente nos dois primeiros, não é a reação à forma narrativa e causal da história literária, à síntese histórica. O que me chama a atenção é que o abandono da forma narrativa como organização do livro não consegue (e talvez nem tente) abolir a permanência subjacente dos grandes discursos narrativos ordenadores, produzidos ao longo dos séculos XIX e XX. Pelo contrário, eles estão todo o tempo presentes, seja na constituição do exemplário inicial, seja na articulação interna dos textos – ou ainda na forma de atribuição de valor literário ou representativo, bem como na distribuição hierárquica das obras dentro de cada texto ou verbete.
Na contramão da dissolução das formas narrativas nas obras dedicadas ao âmago do cânone, as tentativas de afirmação paracanônicas ou de construção de outros cânones investem na apresentação narrativa, retomando o velho modelo do romance de formação em que um personagem suprapessoal se vai desenvolvendo e amadurecendo ao longo de um eixo temporal. É o que sucede no domínio do estudo de minorias. De modo que, enquanto a história dos campos canônicos tenta fugir à narratividade, tenta escapar à condenação teórica e crítica da história literária como gênero, à contestação de parcialidade das construções históricas, bem como de reais ou supostos pressupostos classistas, falocêntricos, eurocêntricos ou esteticistas embutidos nas avaliações, os campos para- ou não-canônicos se empenham na direção contrária, em construir genealogias.
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Referência bibliográfica:
As demais obras mencionadas são bem conhecidas no Brasil. Indico apenas as duas que talvez ainda não sejam:
Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra (coord.). Século de ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Coimbra; Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002.
Helena Carvalhão Buescu (coord.). Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Caminho, 1997.
O Convite à Viagem - Notas sobre o exótico nas Flores do Mal
segunda-feira, 2 de janeiro de 2023
Oriente, de Thomaz Albornoz Neves
Passei os últimos dias navegando erraticamente pelo volume "Oriente", de Thomaz Albornoz Neves. São 771 páginas, encadernadas em capa dura, em edição rigorosamente do autor. Quero dizer: o trabalho de seleção dos textos, a tradução, as anotações, a chancela editorial, o projeto gráfico e a diagramação, tudo.
Não vou longe nestes comentários. Esse mar de poesia é amplo, a gente tem de passar entre Cila e Caríbdis várias vezes, tem de interpretar, sem ouvir, as reações desse Ulisses ao contínuo canto das sereias orientais e, por fim, não poucas vezes, na companhia imaginária dos leitores presentes e futuros, regalar-se no banquete, nos termos em que Carlos Alberto Nunes traduziu o momento da confraternização sagrada: “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas”.Não li de enfiada, confesso. Um livro como esse é um companheiro de muitos anos. A gente mergulha, sai, respira, sente saudade e volta para nova imersão, exercício ou banho rápido. Outras vezes apenas para buscar frescor de alívio. Ou ainda sal que conserve, pela revisita, a divagação, e que tempere, tornando menos angustiante o engolir diário de palavras toscas.
Li um pedaço aqui, outro ali, conhecendo o que ignorava e reconhecendo o já visto. Às vezes, ainda, não reconhecendo ou mesmo desconhecendo o que já conhecia.
São muitos os efeitos especulares nesse caso, as miragens, as refrações.
A gente se afeiçoa a uma versão e depois, mesmo que se depare com outra, que pode até ser melhor, a primeira não se apaga. Foi assim com o Tao Te King. Li pela primeira vez esse texto ainda na primeira juventude, num dos dois volumes de “A sabedoria da China e da Índia”, de Lin Yu Tang. Ele o traduziu do chinês para o inglês. E dessa língua foi traduzido para o português. Mas não foi essa a versão que se imprimiu no meu espírito, mas uma que li num período em que visava não diretamente a poesia, mas buscava um caminho correto, ou um caminho de libertação. A versão do Thomaz é mais fluida, mais bonita. Mas a cada passo, como um véu que distorce, o que eu tinha fixado na memória impedia a completa fruição do novo.
Outra coisa sucedeu com os haikais. Conheço vários que estão reunidos no volume. Thomaz não os recolheu da fonte mais generosa, que são os livros do Blyth. Como confessa, propositalmente manteve-se fora do alcance desse autor, cujas traduções e interpretações moldaram em grande parte o que foi o haikai no mundo de língua inglesa. Recorreu a outras fontes.
Confesso que em vários momentos suspeitei de que um dado haikai era outro, digamos assim. Por exemplo: um haikai que eu mesmo traduzi me aparecia sob uma vestimenta que exigia que o despisse para ver-lhe a matéria íntima e o reconhecesse. Noutros casos, devo ter passado rente a algum velho conhecido sem sequer o cumprimentar. Por outro lado, havia vários convivas nessa festa que eu nunca tinha encontrado (eu creio) e me foram ali apresentados.
Esse efeito deriva do princípio esposado pelo tradutor. E de alguma coisa mais, que logo direi.
Quanto ao princípio, vejamos o que ele escreve no posfácio:
“O autor desconhece os originais, nunca esteve nos lugares em que foram escritos nem manteve contato com especialistas para aprofundar seu entendimento. Preferiu conservar suas dúvidas e seguir a intuição, selo de seu diletantismo, no lugar de maquiar um domínio da matéria que não possui. Por serem baseadas em traduções, as versões não possuem valor filológico. São ecos do eco anterior distantes da voz que os causou.”
Não seria talvez despropositado aproximar essa última frase de um bem conhecido verso das correspondências de Baudelaire. Porque na floresta de ideogramas em que o poeta gaúcho se move, são os ecos que importam. E não necessariamente ou não apenas os ecos da voz original, digo, do chinês ou do japonês que escreveu o texto a traduzir. Mas os ecos de uma voz anterior, que ressoa sob a forma de intuição. O diletantismo se configura, eu penso, como estratégia de preservação dessa busca.
Logo adiante, seu trabalho de tradutor é descrito como “prática de falsário”, o que não é uma boa definição. Com essa modéstia irônica, o que se aponta é o conjunto de atividades que permite a refratada aproximação (e ao mesmo tempo reafirma o distanciamento) do tradutor em relação ao original intangível e, ainda mais, talvez, ao original daquele original – por assim dizer.
O posfácio, aliás, se intitula “A tradução no escuro”, o que não é um título exato, uma vez que essas traduções se fazem a uma luz particular, difícil, mas intensa. É, porém, no escuro, no sentido em que a iluminação oferecida pela filologia (e mesmo pelo estudo básico da língua) é cuidadosamente desprezada.
É que seu interesse está mais além, como se vê por aqui: “de tudo, em cada caso, ao tradutor resta o contato direto com o que é intraduzível”. Estaria em erro, entretanto, quem lesse a frase como resignação ao fracasso da tradução. Pelo contrário, o que aí está é uma celebração, o desvelamento do fim da atividade e da origem desse livro, como dos outros do autor. Também da poesia se poderia dizer isso, com modalizações; mas seria arriscado e não viria aqui ao caso. A menos que eu enveredasse pelos demais livros do Thomaz. Da tradução, sim, como ele mesmo disse: o contato direto com o que não pode ser vertido em palavras. No universo abarcado pelo título do livro não é também isso o que se denomina iluminação?
terça-feira, 27 de dezembro de 2022
Ainda a tradução de poesia
Numa conversa com Thomaz Albornoz Neves, ele escreveu: “Por meu temperamento, quando a versão não me convence poeticamente a descarto. Creio que o meu sarrafo é esse. A literalidade sem poesia não justifica uma tradução, mas a poesia que se afasta do contexto do original tampouco.”
Para começo de conversa, devo dizer que concordo com ele. Não só nesse ponto, mas – até agora pelo menos 🙂 - em quase tudo sobre o que conversamos. Mas é claro que há matizes na concordância. Às vezes, mais que matizes: alteração de algumas cores, sem prejudicar muito o conjunto do quadro. Afinal, sou sobretudo um acadêmico e ele é sobretudo um poeta.
Vejamos. O critério para inclusão de haikais no livro “Haikai – antologia e história” foi mais ou menos este: encontrar o ponto mais próximo entre a sustentação poética dos três versos e o chão oriental em que eles se enraízam. Como as traduções foram o resultado do trabalho das aulas de japonês que tive com a Elsa, ao longo dos meses se acumularam e terminaram por ser centenas. Mas apenas 107 foram acolhidas no livro. Quando, para que o haikai se sustentasse em pé, eu precisasse ou me afastar demais do original ou sobrecarregar o texto de notas, descartei e passei adiante.
Mas agora vem um matiz importante, que deriva da finalidade talvez, mas não só. Como no livro demos a tradução palavra por palavra, eu poderia ter mais liberdade e fazer uma tradução mais criativa. Não fiz isso, porém. Optei pela mais literal possível, acrescentando o mínimo: sintaxe e nexos subentendidos, a maior parte das vezes. E deixei para notas aquelas informações que eu não poderia incluir na tradução em dois ou três versos breves. Quanto à finalidade e à situação é evidente: por um lado, era um livro algo erudito, embora se destinasse também à divulgação; por outro, a tradução em sintaxe portuguesa não foi pensada para funcionar autonomamente, mas sim em conjunto com a tradução mais literal possível, quase palavra por palavra, com a qual dialogaria.
A literalidade radical tem, ela mesma, poesia, no sentido que provoca o estranhamento e exige a imaginação tradutória. Por exemplo, no haikai mais famoso de Bashô, em japonês a gente entende que ali, na verdade, há dois segmentos e não três. Um terminado pela partícula expletiva -ya, que é uma “palavra de corte” bem comum; e outro que recobre o resto do haikai. Não se trata, pois, de uma frase nominal, que diz “velho tanque”, seguida de outra frase que diz “rã(s) mergulha(m)”, à qual se seguiria uma derradeira frase nominal, “barulho de água”. A primeira coisa que a vem aos olhos do leitor atento, ao ver a tradução palavra por palavra é o final: oto – literalmente, som. O haikai termina, portanto, com a palavra som, o produto, por assim dizer, de tudo que veio antes. Tudo bem que em inglês se poderia obter algo parecido nesse aspecto. Mas o que a tradução mais literal permite ver é que a “kawazu tobikomu mizu no oto” forma um só bloco, algo como, grosseiramente por conta do uso das preposições: o barulho da água do mergulho da rã. Mas ainda assim, ao inverso, com a rã que pula vindo primeiro, a água onde mergulha no meio e o som no final. Assim, em certo sentido eu diria que a declaração “a literalidade sem poesia não justifica uma tradução” é verdadeira, mas não porque ela seja sem poesia necessariamente, mas sim porque (em uma língua como o japonês ou o chinês, mas talvez em nenhuma outra) eu não consigo completa literalidade em tradução. É uma questão de graus, eu sei, mas queria marcar esse ponto, com algum exagero...
Por outro lado, é verdade que não me dediquei muito à tradução. Sempre fui mais um leitor de traduções. E confesso que o meu modelo de livro, como leitor, é algo como aqueles volumes publicados pela Sabiá (e antes, eu creio, pela Editora do Autor). Foi ali que li, entre outros, Pablo Neruda. Na página, o texto original. No rodapé, com os versos divididos por /, a tradução “literal”. Adorava aquilo: ler o original e depois o literal ou vice-versa e tentar perceber a poesia, sabendo que a minha percepção e mesmo a minha avaliação de um dependia da do outro. Os que trabalham com tradução devem achar isso odioso. É relegar a tradução a um estatuto ancilar. Pois é mesmo como eu penso a tradução, no limite. Ao menos como leitor (e como tradutor, a julgar pelo Haikai – Antologia e História). Agora eu poderia, se fosse imprudente, passar a dizer a minha impressão de algum tipo de intervenção e produtos de alguns tradutores recriadores. Mas paro a tempo, lembrando-me da temperança, da prudência que não tive na juventude e talvez devesse começar a ter na velhice.
O dilema do tradutor
Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:
Se eu a tomasse nas mãos
derreteria em lágrimas
Geada outonal
A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.
***
Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:
“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.
Nas mãos derreteria
Sob as lágrimas quentes –
Geada de outono.”
***
No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:
Se a tomasse nas mãos
Derreteria sob as lágrimas quentes:
Geada de outono.
Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.
E então, que dilema é esse?
É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.
Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.
O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.
sábado, 24 de dezembro de 2022
IA e o autor como diferencial
Postei uma série de pequenos experimentos com Inteligência Artificial na minha página do Facebook. Este breve texto decorrente das conversas pode ter algum interesse além delas.
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Quando postei as respostas da IA a questões literárias, Ricardo Vasconcelos comentou: "Teremos que trazer a vida do escritor para a sala de aula novamente?" É uma pergunta relevante. Principalmente porque a vida dos autores nunca saiu da sala de aula, nem dos estudos literários. O único ponto em aberto é em que medida permaneceu. Na verdade, são dois pontos, porque também se pode perguntar que vida, ou melhor, que biografia. Começando pelo segundo, há pelo menos dois tipos de biografia: a biografia privada e a biografia pública. Isso tudo de modo bem simplificado, claro. A biografia privada pode não ter grande presença na crítica, mesmo considerando o sucesso, em certo tempo, da abordagem de orientação psicológica ou psicanalítica. Já a biografia pública, tem muita. Lemos com muita atenção, por exemplo, a correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. E do primeiro com muitos outros. Construímos aí uma biografia intelectual, que é muito difícil deixar de lado ao tratar da obra de Mário, e talvez um pouco menos difícil ao tratar da obra dos seus interlocutores. E também lemos biografias de autores, literários ou não. É que a biografia, mesmo a mais enxuta, importa muito. Datas de nascimento e morte, bem como de elaboração e publicação de obras, bem como dados sobre a história editorial e política de um autor contam muito. A ideia de que seria possível compor uma história da literatura como pura história de formas em evolução só se sustentou como ilusão no período que vai do apogeu do New Criticism ao progressivo abandono do Estruturalismo como chave a permitir simultaneamente a abertura de todas as portas das ciências humanas. Mas nem isso excluiu a biografia ao menos num sentido: a data de publicação, bem como a língua e o lugar em que um poema ou romance foi publicado. Porque uma obra literária é, no limite, como um gesto. Seu sentido mais completo – e às vezes, o único mais consistente – só se revela quando se sabe em que contexto foi feito. Um livro de sonetos publicado no Brasil em 1890 e um livro de sonetos publicado em 2022 sinalizam coisas diferentes, independente do que os sonetos sejam, além de sonetos. A forma mais rica de trazer a biografia para a sala de aula é a história literária. Por ser narrativa, cada autor (e mesmo cada obra) é uma personagem, e como tal tem uma biografia, o que quer dizer: nascimento, vida finita, vida eterna (isto é, reencarnações) e eventualmente morte. Uma obra, por sua vez, é como um gesto: o pôr a mão junto à testa tem um sentido num desfile militar e numa arquibancada posicionada contra o sol. Se alguém não souber a data de publicação, nem o lugar, nem o que eram as tendências dominantes, a prática do tempo, dificilmente poderá compreender, ou melhor, avaliar a relevância de um texto adequadamente. A valoração literária lida constantemente com conceitos como inovação, repetição, epigonismo, influência, vanguarda, revolucionário etc. que não subsistem sem um mínimo arcabouço biográfico.
Um dos trechos que mais me chamaram a atenção, ao ler um dos livros da escola de Bashô, foi aquele no qual o mestre pergunta, antes de dizer se um haikai é bom ou ruim, quem foi o autor. E, ao saber, diz que era bom. Mas que se fosse de qualquer outra pessoa, não seria. Na época, isso me pareceu muito estranho. Bizarro, talvez. Mas logo percebi que entre nós também é assim, mas não de forma tão direta. E o “quem fez? quem foi o autor?” não é uma pergunta facilmente descartável, porque não é meramente busca de um apoio de autoridade. No geral é uma pergunta pelo sentido do texto no contexto em que foi produzido.
Por exemplo, todos conhecemos os poemas de Oswald de Andrade. Aquele, por exemplo, que diz que o netinho jogou os óculos do vovô na privada. Se não soubermos em que contexto foi escrito e publicado, nem quem foi o seu autor, faríamos a interpretação que fazemos? Consideraríamos sequer que se trata de poesia? E o amor/humor? E mesmo a “Meditação sobre o Tietê”, teria sido lida como foi, e nós a leríamos como a lemos se não trouxesse o nome do autor que traz?
Outro ponto que o haikai tornou mais claro para mim: o valor de um texto, num ambiente fechado de referências e convenções como era o do haikai clássico, também era aquilatado em função do que as pessoas tenderiam a dizer em similar contexto. A novidade do haikai, em grande parte, era essa: dizer algo diferente do automático, ou negar-se a dizer qualquer coisa numa situação em que todos tenderiam a dizer o mesmo, o previsível automático. Isso é, pensei na época, um dos vetores da nossa história literária. Que, no sentido amplo, traz no seu interior uma sucessão de biografias (públicas, objetivas, mas ainda assim biografias).
Essas divagações me ocorreram quando li a pergunta que referi no começo deste texto. E a resposta, além do abstrato destas ponderações, num sentido prático e concreto é: talvez sim. Talvez trazer o autor para a sala de aula, de um modo mais decidido, seja a forma de evitar a sua morte, agora num sentido específico: o de ser confundido com a IA. Ou confundido com ela. Nesse caso, mesmo que a IA evolua (como deve evoluir sem parar) e consiga detectar o contexto e produzir inovação ou conformação, conforme a necessidade ou o gosto do freguês, sempre será possível identificar o autor humano. O que não sei se seria realmente uma vantagem, pois o problema é que, já agora, muitos autores humanos fazem exatamente o que faz a IA hoje: produzem mais do mesmo ou forçam muito o lado subjetivo para tentar inovar a qualquer custo. Ora, quem já corrigiu redações de vestibular sabe como é: quando todo mundo quer ser original na mesma direção, ninguém fica original, todo mundo fica igual, apenas num nível diferente.
Mas sim, trazer o autor para a sala de aula pode ser uma defesa, por enquanto, para o professor. E para o autor.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
Uma aluna de Camilo Pessanha
Quando recortava, para publicar, o texto sobre Danilo Barreiros, lembrei-me da conversa que tive com D. Henriqueta, sua mulher, que fora aluna de Camilo Pessanha em Macau.
Eu queria confirmar uma percepção.
É que, por obra dos vários inimigos que o poeta granjeou naquele mundinho abafado, que era o da comunidade portuguesa de Macau, difundiu-se a legenda do poeta maltrapilho, sujo, opiômano, incapaz de qualquer esforço, mau professor etc.
Até hoje muita gente engole isso tudo como verdade, mesmo com os dados disponíveis – alguns dos quais eu mesmo trouxe a público tanto no livrinho sobre Pessanha publicado pela Imprensa Nacional de Portugal, quanto na edição brasileira da Clepsydra, pela Ateliê.
Sem dizer nada, pedi a D. Henriqueta que me descrevesse o poeta no dia a dia, pois eu sabia que ele almoçava uma vez por semana em casa de seu pai.
O que ela me descreveu confirmou minha hipótese e desacreditou de vez o que eu já adivinhava ser exagero, e mais que exagero, falsidade. Sempre elegante, me disse ela. Excelente professor, que encantava os alunos. (Que era competente e dedicado eu já sabia, pois tinha visto as extensas e anotadas folhas em que escrevia a matéria das aulas.)
Perguntei-lhe, então, de repente, se era verdade que ele não era asseado. Ao que ela me respondeu com certa dose de indignação. De forma alguma, era um home elegante – repetiu – e trazia sempre um lencinho no bolso do paletó. Mencionou cabelo e barba cuidados. E acrescentou que se sentava sempre na primeira fila, na classe (o que, entendi, garantia o que dizia). Por fim, disse que gostava do sentir o perfume usado por ele. Sempre perfumado, repetiu. Da mesma forma que na escola, à mesa de almoço em sua casa era o mesmo homem bem vestido e elegante – repito a palavra porque era recorrente na conversa.
Dois anos depois, quando voltei a Portugal, conheci Daniel Pires. Dele ganhei um conjunto notável de fotografias de Pessanha. E ainda, em seguida, a fantástica fotobiografia do poeta. Ali se veem muitas coisas. Inclusive as fotografias em que Pessanha posa de mendigo, acompanhado de dois cãezinhos e de uma bengala de castão de prata, sobre um rochedo. Ele ri, contidamente. Faz ali o papel de um eremita ou poeta vagante. Anos depois, propositadamente se ignorou que naquele tempo não havia ainda kodaks portáteis. Para o registro, o poeta teve de fazer ir até lá um fotógrafo com seu equipamento. Depois, mandou fazer várias cóppias, emoldurou-as, autografou-as e enviou para amigos. Durante muitos anos, passaram por provas do seu desleixo e achinesamento (essa palavra que valia um insulto). Como se ele inadvertidamente tivesse sido fotografado, surpreendido em decadência. Para dizer como ele disse num verso célebre, em que desvios a razão se perde!
Haicai no Brasil?
Evando Nascimento escreveu, num comentário ao post anterior:
“posso estar equivocado, mas é essa sensação que tenho ao ler haicais à brasileira - algo muito fake e por vezes anódino. Mas pode ser só impressão... É como se alguém quisesse fazer gravura japonesa com ideogramas e o Pão de Açúcar ao fundo...”
Depois, como eu prometesse comentar o comentário num novo post, acrescentou:
“Sou totalmente a favor das migrações e adaptações culturais, mas algumas são extremamente difíceis. Ainda não me deparei com nenhum haicai brasileiro que realmente me agradasse como os japoneses, mas, repito, pode ser ignorância minha e haja excelentes haicais por aí...”
Posso começar pelo fim.
No geral, o que se pratica sob o nome de haicai no Brasil é um terceto com duas características: 1) métrica de 5-7-5 sílabas, contadas entre nós à maneira definida por A. F. de Castilho. (Sobre isso, em vários posts e artigos, escrevi que é o que há de menos interessante a importar: além de ser uma correspondência falsa, porque em japonês não se contam sílabas, mas moras, não nos diz nada ritmicamente...); 2) uma palavra indicativa de estação, o “kigo”.
O haicai assim definido tem vantagem e desvantagens.
A vantagem é a facilidade com que se podem fazer, da qual decorre a grande quantidade de praticantes solitários ou reunidos em grêmios. Isso não me parece desprezível, do ponto de vista cultural, digo logo. O haicai tem esse caráter de prática coletiva, de atividade grupal, que me parece ter relevância social. Quando essa prática tem, como líder ou guia, um bom poeta ou um bom conhecedor da tradição, os resultados podem ser notáveis.
As desvantagens são o tom muitas vezes “fake” do uso prescritivo dos kigos, bem como o caráter anódino da maior parte da produção.
Mas esse último ponto é característica apenas do haicai? Não creio. Isso sucede também com a despropositada maioria dos livros de poesia contemporânea brasileira que tenho recebido ou comprado. O mesmo para páginas da internet ou de jornais ou de revistas impressas que vez por outra visito.
Da mesma forma como há alguns bons poetas em meio à multidão dos que se limitam a recortar as linhas de textos que, em prosa, seriam banais – e que em linhas recortadas continuam banais, apesar de o procedimento do corte postular uma leitura diferenciada –, assim também em meio à profusão de livros sem interesse há aqueles nos quais o haicai se justifica como forma e, principalmente, como atitude, disposição, jeito de se situar na linguagem. Um exemplo: o livro “Furusato no uta/Canção da terra natal”, de Teruko Oda – a poeta que, do meu ponto de vista, faz o mais significativo haicai em português.
Sem dúvida que há, no geral, no Brasil, um número muito maior de poetas interessantes do que no pequeno mundo do haicai. Mas isso não é puramente um defeito do haicai, senão no sentido de que seu universo é habitado por muito menos gente do que o outro.
Quanto à migração e adaptação cultural, concordo: a do haicai é muito difícil. Mas não por conta do ideograma, como muitos acreditam. Creio que o uso da letra chinesa no hokku ou no haiku tem sido sistematicamente superestimado no Ocidente. Basta ver os exemplos de haiga (hokku + desenho) que postei aqui mesmo.
O que é difícil é superar a tentação de reduzi-lo ou a uma forma fixa, espécie de soneto microscópico, ou a um exotismo superficial.
Não que não fazer haicai não seja um exercício de exotismo, mas no sentido radical que Segalen atribuía a essa palavra.
Em suma, eu acho que o haicai pode ser aclimatado com proveito, como a Ikebana o tem sido. Também as demais artes japonesas que são um caminho se aclimataram, ou têm sido bem praticadas aqui. E não valeria a pena achar que porque temos o facão de mato ou a peixeira seria fútil ou sem sentido praticar as artes orientais da espada. E da mesma forma que quando vamos a uma exposição de Ikebana não faz sentido comparar um pequeno arranjo despojado de três elementos com uma profusa guirlanda holandesa, também para a apreciação do haicai se exige uma disposição receptiva diferente.
A pergunta decisiva então me parece ser “vale a pena?” Vale a pena a prática séria, vale a pena o esforço? E essas se desdobram em outras, do tipo: o que nos pode interessar no haicai japonês? O que ele pode trazer à nossa prática poética? O que seria seu diferencial, isto é: o que, nesse tipo de composição, é diverso do que fazemos ou pensamos fazer ao escrever poesia? Ou pelo menos, para pensar como R. H. Blyth, o que ele permite tornar mais visível na nossa própria tradição?
Das respostas a essas perguntas vai depender o julgamento.
Não é menos relevante pensar em qual a disposição de espírito que o haicai requer do seu leitor. Ou então: qual a disposição que ele favorece nele.
Confesso que pretendia escrever de modo mais objetivo, inclusive adiantando as minhas respostas pessoais a essas questões finais. Mas não só não tive o tempo de que precisava para escrever hoje e não perder o embalo, mas ainda perdi a mão e escrevi demais.