Jornal (4) Luiz Gama
Este
texto, como os demais que trazem a rubrica “Jornal”, foi publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular, de Campinas, no ano de 2000.
Orfeu de carapinha
Cinqüenta
anos após a última edição em livro, lançamento repõe em circulação os versos
satíricos do poeta negro que foi também um dos primeiros e mais famosos
militantes do Abolicionismo no Brasil
Esteve à
venda, na praça de Campinas, no final de 1840, um menino chamado Luiz Gama. Por
ser baiano e os negros baianos terem fama de rebeldes, não houve comprador. O
menino, que tinha dez anos e era mercadoria encalhada, acabou sendo escravo
doméstico do comerciante de gente, em São Paulo. Essa seria apenas uma história
comum, não tivesse Luiz Gama nascido livre, filho de africana e de português, e
não tivesse sido vendido pelo próprio pai, que se encontrava cheio de dívidas
de jogo.
Embora algo
incomum, não seria essa uma história digna de nota neste país. O que a
singulariza é o que veio depois: Luiz Gama teria aprendido a ler com 17 anos,
quando ainda era escravo. Sabendo ler, teria conseguido provas de que era um
homem livre, e, por isso, fugido do cativeiro e se alistado na Guarda Municipal
de São Paulo, onde permaneceu até 1854. Após trabalhar algum tempo como
escriturário, publicou, em 1859, um livro de poemas que fez sucesso, tornou-se
maçom e obteve licença para advogar, passando a defender escravos em todo o Estado
de São Paulo. Ainda criou escolas primárias gratuitas para crianças e cursos
noturnos de alfabetização de adultos, participou da fundação do Partido
Republicano Paulista (que depois abandonou), perdeu empregos por combater e
denunciar arbitrariedades da Justiça, foi eleito venerável de uma loja
maçônica, prestou serviços jurídicos gratuitos em questões relativas a
escravos, fundou e dirigiu um jornal satírico ilustrado e morreu pobre, em 24
de agosto de 1882.
Essa é, em
linhas gerais, a biografia aceita de Luiz Gama. Sobre a primeira parte (a
história familiar e o período da escravidão) a única fonte da história é o
testemunho do próprio Gama, de modo que não é preciso jurar que tudo tenha
ocorrido como ele conta. Mas mesmo que não sejam completos ou verdadeiros os
dados referentes ao primeiro período de sua vida (nunca se soube o nome do seu
pai, por exemplo, nem como ele obteve as tais provas de que era livre), o resto
da sua biografia continua sendo literária e politicamente muito singular.
A obra poética
de Luiz Gama é pequena e o que há nela de melhor são os poemas que satirizam os
costumes, as modas e, principalmente, os vícios de classe. O artifício
principal do poeta, que se autodenominava "Orfeu de carapinha", é
explicitar a sua condição de raça, aceitar o olhar preconceituoso do outro e
depois torná-lo vítima do próprio preconceito, mostrando-lhe que o lugar que
ocupam ambos, poeta e interlocutor, é semelhante. É o caso de "Sortimento
de gorras para a gente do grande tom", "E não pôde negar ser meu
parente" e "Quem sou eu?", mais conhecido como
"Bodarrada". Também são muito interessantes os seus
"bestialógicos" ou "disparates rimados" (isto é, poemas que
produzem o riso pela apresentação de cenas ou pela construção de frases
absurdas), como "O grande curador do mal das vinhas".
Ao todo são 51
poemas, a maior parte dos quais foi publicada pela primeira vez em 59, com o
título Primeiras trovas burlescas. Em 1861 saiu uma segunda edição
aumentada, que foi a última em vida do autor. Postumamente, em 1904 e em 1944
fizeram-se outras edições da sua poesia. Agora, 50 anos depois, voltam à
circulação essas Primeiras Trovas Burlescas (Ed. Martins Fontes, 323 p.,
R$ 28), em volume organizado por Lígia F. Ferreira. Trata-se de um
acontecimento que é preciso comemorar. Primeiro porque o leitor agora pode ler,
em versão correta, poemas célebres em seu tempo, como "A pitada" e
"O balão", além dos referidos há pouco. Segundo, porque a obra vem
precedida de um texto introdutório inteligente e sereno, no qual a organizadora
discute os principais pontos da fortuna crítica do autor e apresenta os
principais momentos da sua conturbada biografia. Terceiro, porque a tudo isso
se acresce um belo conjunto de fotografias, muitas das quais feitas para esta
edição.
Seria
possível fazer alguns reparos ao texto introdutório de Lígia Ferreira. Na
consideração da fortuna crítica, a autora identifica a principal questão
cultural, que é: "qual o lugar, na estrutura social do Segundo Reinado, de
um negro livre, escritor, político, contestador do status quo
monarquista e escravocrata?". Identifica perfeitamente também o problema
historiográfico: "analogamente, tem sido difícil propor uma classificação
para a obra de Luiz Gama dentro da literatura brasileira" (p. LXII). Mas
ao proceder à revisão da fortuna crítica, Lígia não aborda com a necessária
firmeza os pontos cegos evidentes nos textos que estuda e transcreve.
Aceitando, com eles, que o Modernismo de 22 é o desenlace lógico de toda a
história da literatura brasileira, Lígia acaba por traçar um panorama literário
um tanto descosido, no qual seu objeto não consegue se encaixar devidamente.
Como, porém, a autora está elaborando um trabalho de grande fôlego sobre Luiz
Gama, de que este livro é apenas a etapa preparatória, não vale a pena debater
agora estas questões, que certamente serão objeto de reflexão mais aprofundada
no novo trabalho já anunciado. De momento, o que importa é agradecer-lhe por
tornar novamente disponíveis para leitura os poemas de Luiz Gama.
Ao leitor que
quiser percorrer o livro, sugiro especialmente, além dos acima mencionados, que
leia o poema "Minha mãe", "Farmacopéia" e, finalmente,
"Meus amores", que celebra o erotismo da mulher negra. Já para o
leitor que se restringirá à leitura desta página, transcrevo, como amostras, o
soneto "Retrato" (que é, pelos seus ecos baianos
seiscentistas, um dos meus favoritos) e alguns trechos de outros poemas maiores,
bem como da famosa carta autobiográfica a Lúcio de Mendonça.
Retrato
É renga, magricela e
presumida,
Com pele de muxiba engrouvinhada;
O corpo de sumaca desarmada,
A cara de muafa mal
cosida;
A perna de forquilha retorcida,
Os ombros de cangalha um tanto
usada;
A boca, de ratões grata morada,
Maçante na conversa e mal
sofrida;
Senhora de um leproso cão
rafeiro,
Que, querendo passar por
mocetona,
Se besunta com sebo de carneiro;
Vestida é saracura de japona,
De feia catadura, e de mau
cheiro,
Eis a choca perua da Amazona.
De "Quem sou eu?"
(...) Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
- Tudo marra, tudo berra -.
(...)
De "Sortimento de gorras
para a gente do grande tom"
(...)
Se os nobres desta terra,
empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros
vícios,
Esquecem os negrinhos seus
patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é
preta-mina:
Não te espantes, ó Leitor, da
novidade,
Pois que tudo no Brasil é
raridade!
(...)
Oh! Eu
tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da
vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao
negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8
ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de
o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com
idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala
atravessou-lhe o crânio.
Este alferes
Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e
trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província.
Como já
disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até
Campinas.
Fui escolhido
por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos
repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu “baiano”.
Valeu-me a
pecha!
O último
recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha,
pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este,
depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:
“- Hás de
ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
- Na Bahia,
respondi eu.
- Baiano? –
exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o quero. Já não foi por bom
que o venderam tão pequeno.”
Repelido
como “refugo”, com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para
a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio no. 2,
sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a
lavar e a engomar roupa e a costurar.
Trecho da carta
autobiográfica enviada por Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, em 25 de julho de
1880.
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