Pessanha e a gruta de Camões[1]
Uma
das últimas incursões de Pessanha na escrita foi uma conferência
que pronunciou sobre
Camões, por ocasião
do dia nacional
português, o 10 de junho,
em 1924 – menos
de dois anos,
portanto, antes
da sua morte,
que ocorreria em
1o de março de 1926.
Intitulada
“Macau e a gruta de Camões”, aborda uma questão da maior relevância para o
poeta: as condições de existência e manutenção da capacidade poética no exílio.
Não
são muitos os textos em
prosa de Pessanha em que ele reflete sobre poesia. Reduzem-se
basicamente a três: uma resenha de um livro de Alberto Osório de Castro, o resumo
de uma conferência dedicada à estética chinesa, e esta.
A
resenha do livro
de Alberto Osório de Castro mereceu já atenção crítica,
num belo ensaio
de Gustavo Rubim,
intitulado Experiência da alucinação – Camilo Pessanha e a questão
da poesia. Rubim também estudou a
conferência sobre a estética chinesa. Mas o breve
texto da conferência
de 1924 (que tem apenas
cinco páginas),
talvez mesmo
porque dele não
se consiga extrair
um perfil
modernista para Camilo Pessanha, permaneceu
praticamente sem comentário analítico, apesar de aí se
encontrar uma curiosa
e muito particular
definição do que
sejam lirismo e inspiração
poética.
A
análise desse texto – precedida do comentário de poemas em que alguns tópicos
relacionados com o seu tema são glosados – constituirá o cerne desta comunicação.
1
Antes, porém, para melhor situar, no arco da vida e da reflexão
de Camilo Pessanha, o texto que hoje nos interessa, devemos fazer
um recuo de exatos
30 anos. Devemos voltar
a abril de 1894. Pessanha acabara de chegar a Macau. Ainda
deslumbrado com a diversidade
oriental e esforçando-se por
ambientar-se na colônia, escreve a
Alberto Osório de Castro uma carta na qual expõe uma percepção
da passagem do tempo
e do deslocamento para
longe da terra
natal que
permitirá melhor compreender
o texto da conferência
sobre Camões.
Como
não será possível alongar-me, destacarei apenas dois pequenos trechos da carta.
Eis
o primeiro deles:
E eu, que tinha saudades de
quanto ia deixando, até de Barcelona, onde estive cinco dias, até de Colombo
onde estive duas horas. Porque a gente é bem um grumo de sangue, que por toda a
parte se vai desfazendo e vai ficando.[2]
O
afastamento impõe o esvaziamento, como a
passagem do tempo
também o impõe: ao longo
do duplo percurso, temporal
e espacial, esse
coágulo que
somos nós perde um
pouco de si,
impregna aquilo que
nos impressionou ou
nos seduziu: algo
se desprende de nós e fica para trás, e nós nos vamos assim dissolvendo ao longo
dos eixos do tempo
e do espaço. É o sentimento
decorrente dessa percepção que o poeta denomina
genericamente de saudade e que tem, no contexto
em que
surge, uma forma específica:
menos do que
uma perspectiva de recuperação
de um bem
perdido, é a consciência de que não é possível apreender as experiências e mantê-las, não
é possível incorporá-las à
subjetividade. A noção básica que
informa essa passagem é a da perda. A própria memória,
vista pelo prisma da metáfora
do grumo de sangue,
se reduz assim a uma espécie de consciência
dolorosa da perda
inevitável. Ter
memória das experiências,
parece, é possuir ao mesmo
tempo o desejo
pela vida
que se escoa e a consciência
do desfazimento gradual implícito em toda experiência
sensível e afetiva.
Essa
mesma percepção percorre boa parte dos poemas de Camilo Pessanha, e foi objeto
de um estudo que em outro tempo realizei e que não cabe agora resumir.[3]
Para o que nos interessa aqui,
o importante é considerar
esses trechos
a partir da questão do exílio, do afastamento da terra
natal – que
era o tópico
daquela carta em
que a viagem
para o Oriente fornece a matéria
principal.
Ora,
enquanto experiência de exílio, não há aqui uma saudade indeterminada, e sim
uma atualização muito concreta da nostalgia, que potencializa a sensação de
deslocamento e o desejo de retorno.
É
em função
da nostalgia que
devemos observar o apego
inesperado aos lugares
pelos quais
passa, pois o
que aí
vem para primeiro plano é sempre
a percepção do afastamento. Como se quisesse reter o movimento de distanciamento
da pátria, o poeta
se agarra emocionalmente às escalas dessa navegação
para o outro lado do mundo e
assim sente saudades
inexplicáveis. É, portanto, por uma espécie
de contágio que
a partida desses lugares
sem conteúdo
real afetivo
lhe vai despertar
o mesmo sentimento
com que
se afastara da terra natal,
no começo do percurso.
A
segunda passagem da mesma carta permite completar o quadro:
Ai,
meu pobre amigo: eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim:
o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza.[4]
Alberto
Osório de Castro é aí associado ao apetite, à vontade de posse e de conquista.
É um contraponto perfeito a Pessanha, que se retrata como aquele que tenta
desesperadamente acumular, guardar em si os afetos e as sensações, protegê-los
inutilmente do desfazimento a que está fatalmente condenado o sujeito ao longo
da vida e da viagem.
A
consideração do texto de 1924 permitirá dar um sentido mais amplo à metáfora da
“avareza” como atitude do poeta frente ao mundo. Mas antes, para fazer
comparecer aqui a grande poesia de Camilo Pessanha, vou comentar brevemente
dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos
quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.
2
São eles o
díptico de sonetos intitulado “San
Gabriel” – que foi escrito
por ocasião
do quarto centenário
da descoberta da Índia
– e o soneto “Depois
da luta e depois
da conquista”, de data
incerta, mas ao que
tudo indica escrito
em Macau.
Comecemos por este último:
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato
antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol
aquático
Tudo verde, verde, -- a
perder de vista.
Porque vos fostes, minhas
caravelas,
Carregadas de todo o meu
tesoiro?
-- Longas teias de luar de
lhama de oiro,
Legendas a diamantes das
estrelas!
Quem vos desfez, formas
inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
-- Leão armado, uma espada
nos dentes?
Felizes vós, ó mortos da
batalha!
Sonhais, de costas, nos
olhos abertos
Refletindo as estrelas,
boquiabertos...
Podemos discernir
nesse poema dois
registros bem
distintos. Por
um lado,
temos aqui um
eu que
nos fala,
de forma mais
ou menos
alegórica, da decepção inerente
a toda tentativa
de realização de um
desejo. Por
outro, as imagens
e os símbolos de que
se vale para fazê-lo
fazem presente um
conteúdo histórico
que não
é nada neutro
em Portugal: conquista,
ilha, muralha,
caravelas e tesouros
refluem para um
fundo mítico que
percorre toda a cultura
moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
Quero
dizer, pela forma como se
apresenta, o soneto opera uma forte identificação
entre elementos
do passado histórico
e do passado pessoal.
Mas devemos observar
a especificidade dessa formulação
simbólica, que se encontra
também em
outros autores
do período (António Nobre,
principalmente). O que
me parece mais
notável nesse poema
é que não
fica claro qual
é o ponto de vista
principal e qual
é o secundário, isto
é, qual é o plano
alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito
sensível na poesia
do final do século
XIX em Portugal, do destino
pessoal do poeta
e do destino coletivo
da nação. Quero dizer:
temos aqui mais
um exemplo
da particular assimilação,
em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De fato,
todo o estado
de espírito décadent tem um sentido muito específico,
quando expresso
em língua
portuguesa no final do século XIX.
Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”,
ele frisava, pela
contraposição de sua
forma de sentir ao sentimento geral
do homem comum,
instalado na sua inabalável
crença no progresso
contínuo da civilização,
que o poeta e
a arte estavam mesmo
a rebours, nadavam contra a corrente triunfante
no tempo, lutavam contra
ela, em
nome de outros
valores que
se sentiam ameaçados.
Mas quando Nobre ou
Pessanha falavam em decadência,
e expressavam aquele estado de espírito
desistente e langoroso que se convencionou chamar
de Decadentismo, o sentido social
de suas palavras
era profundamente
diferente. Ecoavam eles,
ao assumir os estilemas e as formas
de sentir do Decadentismo,
as mais profundas comoções
da inteligência e da sociedade
portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência
nacional nas conferências
de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” – seu poema mais ostensivamente
trabalhado nessa direção, em
que é insistente
o contraponto entre
o dentro e o fora,
a vida íntima
do poeta e a vida
geral da nação
– com esta estrofe
sinistra:
Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a
meditar?
[...] Vês teu país sem
esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no
Ar?
Memória coletiva
e memória individual
convergem nessas estrofes: a história de vida
do indivíduo e a da nação
são símbolos
intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro,
explica-se por ele
no nível imagético.
Também
no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que
Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por
isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o
poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a
partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso
entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre
a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim,
apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto
o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo,
interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer
dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade
uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos
mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a
sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
Lido
dessa forma, o poema
é uma meditação sobre
o descompasso entre
os móveis e o resultado
da ação dos homens,
que termina por
aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade.
Uma felicidade apenas
negativa, pois
provém apenas da supressão dos motivos da dor,
da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não
retêm o ideal, nem
contemplam a sua realização.
Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que
se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um
dos sonetos mais
célebres do autor:
“Imagens que
passais pela retina
/ dos meus olhos,
por que
não vos
fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo
congelado e sem consecução.
O
que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em
símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer:
mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional
está presente, participa do registro da emoção pessoal.
E
destaca-se, na leitura, o fato de que uma só palavra é capaz de evocar,
inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo
contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra
Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores
camoniana.
No
poema quinhentista, após
a descoberta e a conquista,
a armada encontra
a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas
se deleitam com as ninfas
e contemplam a máquina do mundo.
No
soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas
trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
A
conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de
sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a
vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha,
de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais
próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério
pedregoso que Baudelaire retratou em “Un
voyage à Cythère”.
Entretanto, no poema
de Pessanha não há crime,
nem castigo
violento. Ao ato
antipático da conquista
sucedem apenas a solidão
desabitada, a perda
dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos
os esforços. O desejo
de morte, que
comparece no final, não
tem qualquer caráter
punitivo. É antes
evasivo, um
anseio pela
aniquilação porque ela
significa a forma possível
de resistência do ideal,
preservado do choque com a realidade.
Embora esse soneto não se preste a uma leitura
alegórica cerrada, é bastante sensível
a forma pela qual nele confluem (por meio
da simbólica das navegações), a trajetória
nacional e a percepção
do destino individual
do poeta.
No
âmbito das imagens
do poema, não parece haver
qualquer expectativa
da retomada da ação:
valoriza-se aqui apenas
retrospectivamente o móvel da empresa e invejam-se
os que morreram ainda
de posse dessa força
que, na personagem
que nos
fala nesse soneto,
já não
existe senão para
lamentar o bem perdido.
Não temos indicação
de quando teria sido composto
esse soneto.
Não podemos, portanto,
saber qual a sua posição temporal em relação a outro
poema bastante
similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em
1898, para celebrar o quarto centenário do
descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
Do
ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, “San Gabriel” representa uma continuação do movimento reflexivo
presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem
apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional,
o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um
esforço frustrado.
SAN GABRIEL
(No
quarto centenário do
descobrimento
da Índia)
I
Inútil!
Calmaria. Já colheram
As velas.
As bandeiras sossegaram
Que tão
altas nos topes tremularam,
--
Gaivotas que a voar desfaleceram.
Pararam de
remar! Emudeceram!
(Velhos
ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada
que os ventos nos armaram!
A que foi
que tão longe nos trouxeram?
San
Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra
vez abençoar o mar.
Vem‑nos
guiar sobre a planície azul.
Vem‑nos
levar à conquista final
Da luz, do
Bem, doce clarão irreal.
Olhai!
Parece o Cruzeiro do Sul!
II
Vem
conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez,
pela noite, na ardentia,
Avivada
das quilhas. Dir‑se‑ia
Irmos
arando em um montão de estrelas.
Outra vez
vamos! Côncavas as velas,
Cuja
brancura, rútila de dia,
O luar
dulcifica. Feeria
Do luar,
não mais deixes de envolvê-las!
San
Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa
Que do
horizonte vapora, luminosa
E a noite
lactescendo, onde, quietas,
Fulgem as
velhas almas namoradas...
-- Almas
tristes, severas, resignadas,
De
guerreiros, de santos, de poetas.
Publicado
num jornal especial
dedicado à efeméride, em Macau, “San
Gabriel” é uma celebração. Como celebração,
o poema se deixa
ler por referência à viagem
de 1498.
Iniciando
in media res, surpreendemos a nau
capitânia, que
dá título ao díptico, no centro de uma calmaria.
Uma voz que
se articula em primeira
pessoa do plural
inicia então uma prece,
que se estenderá por
todo o resto
dos versos, dirigida ao arcanjo que tem
o mesmo nome
da nau. Atendida a prece
com a brisa
nova que
põe a frota em
movimento, a voz
se ergue mais uma vez
e roga que
a viagem seja levada
a bom termo.
Entretanto,
ao longo do poema algumas palavras e imagens vão como que minando a leitura
feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um
movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra
vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico, a se
deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a
voz que nos diz “nós” começa a se deixar ler como parte de um tempo outro, que
não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro
soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer,
parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e
tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal
inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é um
ponto a destacar.
Mas
de momento, importa observar como essa navegação outra, que se propicia pela
intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com
as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas
em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite,
clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
Prosseguindo
nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico.
É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma
representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre
as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele
trajeto subitamente paralisado:
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
Dessa
perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a
viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige
para um novo porto: não mais se trata de buscar os tesouros do Oriente, mas sim
de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que
embasaram a conquista histórica.
Embora
esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional,
próximo do soneto que comentamos anteriormente, é sensível que os dois poemas
apresentam diferenças de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da
conquista.
Enquanto
no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse
entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, aqui essa
perspectiva se delineia: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à
descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a
este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista.
Não
é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos
as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a
impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projeta-se na distância
infinita: é a nebulosa que é agora o destino dessa nau que só pode mesmo
navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado.
É
essa transposição de uma viagem marítima e carnal
em uma fantasmagórica
navegação entre
as estrelas, com
velas banhadas de luar, em
busca da luz
e do Bem, que
vemos no “San Gabriel” de
Pessanha e que nos
parece, no que diz respeito
à sua reflexão
constante sobre
as glórias e o futuro
da Pátria de Camões, a sua mais
impressiva e acabada realização.
O
seu fim, o seu desígnio já não é senão o encontro com o passado. Mas não na
forma da retomada ou transfiguração da energia perdida, e sim apenas na
contemplação dos exemplos de resignação, tristeza e severidade. Nessa navegação
para a desistência se afirma a perspectiva desesperançada de Pessanha, no
limiar da modernidade portuguesa. E é essa perspectiva toda negativa, que não
ensaia qualquer redenção, nem no nível pessoal, nem no coletivo, que distingue
o tom específico de Pessanha dos vários tons modernistas que lhe são
contemporâneos.
3
Chegamos
por fim
ao texto no qual
Pessanha se dedica explicitamente à memória
de Camões, que começa
por referir a
tradição de que
Camões esteve em Macau e ali escreveu Os Lusíadas. Observando que
é da índole do tempo
contestar as verdades
tradicionais, Pessanha compara a tradição
com uma planta
viva, arraigada no sentimento
popular, do qual
tira a seiva
que a mantém.
A
tradição é assim,
para ele, mais do que um testemunho
de verdade histórica,
um símbolo
vivo e adequado à expressão
de um conceito.
E por isso
sua conferência
se propõe não a discutir
a sua procedência
factual, mas sim a grandeza
do objeto venerado e o equilíbrio e a adequação
dos elementos que
o acompanham e com ele
compõem o quadro significativo.
Para Pessanha, a grandeza
de Camões é evidente. Cumpre-lhe, então, como primeiro passo de análise, verificar se os demais elementos
– isto é, principalmente,
Macau – prestam-se a formar, com
a grandeza do poeta
e dos feitos heróicos
que ele
cantou no seu poema,
um conjunto
coerente e significativo.
Para
afirmá-lo, Pessanha lança mão de dois argumentos. O primeiro é autodemonstrativo:
o território português na China é o lugar mais remoto a que chegaram e em que
se instalaram os portugueses – ou seja, a localização de Macau se harmoniza com
o assunto do poema camoniano, que canta a epopéia marítima das descobertas
orientais. Já o segundo tem complexidade maior e se embasa numa postulação
surpreendente, de alcance amplo. É o que nos interessa mais de perto.
Eis:
[...]
a inspiração
poética é emotividade,
educada, desde a infância
e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países
os supremos intérpretes
do sentimento étnico.
Toda a poesia
é, em certo
sentido, bucolismo: e bucolismo e regionalismo são
tendências do espírito
inseparáveis. Notáveis
prosadores (basta
lembrar, dentre
os contemporâneos, Lafcadio Hearn,
Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm
celebrado condignamente os encantos dos países
exóticos. Poeta,
nenhum.
Para
Pessanha, a inspiração não apenas radica na emotividade. É emotividade. Mas emotividade modalizada, moldada pela “educação”,
que lhe dá uma direção, limitação ou pré-configuração específica. A forma dessa
modalização da emotividade, que a transforma em capacidade de poesia, não é,
porém, como a palavra “educada” poderia fazer supor, a inserção numa tradição
literária. Não estamos aqui no mesmo universo em que se moverá, por essa época,
a reflexão de T. S. Eliot ou de Ezra Pound. O que faz a inspiração poética,
para Camilo Pessanha, é a sua determinação pela experiência coletiva
sedimentada num dado espaço e enquadramento natural – e que comparece, no seu
texto, na metáfora vegetal do profundo enraizamento no “húmus da terra natal”.
O
ponto é importante:
para Pessanha, não
é a simples integração
na Natureza ou
a sua contemplação
embevecida a condição da poesia. Pelo contrário, seu texto caminha
no sentido de reduzir
a abrangência do “natural”. Primeiro, pela identificação do “natural”
com o bucólico
– isto é, limitando a natureza eficaz
para a poesia
aos elementos que
caracterizam a forma de vida
das populações agrícolas,
num território delimitado; segundo, pela assimilação do bucolismo ao regionalismo
– o que promove uma segunda
particularização do natural,
restringindo ainda mais
a sua eficácia
e determinando-o, no âmbito do texto, como lugar de origem.
A
postulação de que a poesia é regionalismo é ainda da maior importância porque é
com base nela que Pessanha irá assentar, na seqüência, a especificidade da
forma portuguesa de ser poeta. E ele o faz da seguinte maneira: se toda poesia
se define, de alguma forma, como vivência do bucólico e do regional, e se a
emoção poética em geral se orienta pelas mesmas forças que determinam a
constituição de um caráter étnico específico, a inspiração poética portuguesa
se vai caracterizar e distinguir por só vigorar em vinculação direta com o
torrão natal.
Para
um português, assim, o afastamento da origem é uma ameaça concreta à permanência
da inspiração poética, pois esta só pode vigorar se, por meio da evocação, a
sensação de desenraizamento, de exílio e afastamento da terra natal for
eliminada ou posta em suspenso.
Daí
procedem a importância e a singularidade
de Macau, entre os territórios
habitados pelos portugueses. Sendo ela a única possessão situada no hemisfério
norte, é ela
a única que
tem as estações do ano
sincrônicas com as da metrópole. Por conta disso, em Macau
os eventos religiosos
e culturais têm o mesmo enquadramento sazonal que em Portugal, o que
teria, segundo Pessanha, uma importante conseqüência.
Vejamos:
[...]
em Macau é fácil à imaginação exaltada pela
nostalgia, em
alguma nesga de pinhal
menos freqüentada pela
população chinesa, abstrair
da visão dos prédios
chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas [...], das águas
amarelas do rio e da rada, onde
deslizam as lentas embarcações chinesas
de forma extravagante
[...], e criar-se, em certas épocas
do ano e a certas
horas do dia,
a ilusão da terra
portuguesa.
À
primeira vista,
nada pareceria mais
difícil, já
que Macau pouco
tem de português senão
as casas e o contorno
dos telhados. Para
produzir-se a ilusão de estar
em Portugal, de fato,
é preciso abstrair-se de tudo o que é
chinês – de tudo o que,
enfim, é Macau. Ou
seja, é preciso ser
capaz de obliterar
os dados dos sentidos
– não ver as inscrições, não
perceber os odores
tropicais, não
ouvir as falas
e as vozes, não
contemplar os barcos.
Mas, ainda
assim, ali
é fácil – ou
seja, é possível, por
oposição às colônias
outras, situadas no hemisfério sul – produzir a alucinação
do retorno, porque
o enquadramento sazonal do calendário afetivo
e cultural é um potente
estimulador da nostalgia, que acende a imaginação
e produz a alucinação de retorno
à terra natal
– condição necessária
para a inspiração poética portuguesa.
Descobre-se, então, a primeira justificativa
para a escolha de Macau como lugar de culto de Camões e do povo português. Ao
afirmar que ele ali teria escrito o poema nacional português, a tradição
celebra o gênio que, mesmo nas condições adversas do exílio prolongado, conseguiu
manter viva, dentro de si, a pátria distante. Conseguiu, portanto, manter
produtiva a sua inspiração.
Retomando
a metáfora vegetal com que explicara não só o vigor das tradições, mas a própria
inspiração poética, Pessanha celebra nestes termos o poeta quinhentista:
[...]
o gênio de Camões, alimentado embora
exclusivamente da seiva
que trouxera da Pátria
– da imagem viva
da sua paisagem,
da lembrança minuciosa
e fiel dos seus
costumes, da sua
história, das suas
lendas, das suas
crenças, da sua
cultura científica
e literária –, teve pujança
bastante para
triunfar dos meios
mais adversos,
para resistir
aos mais implacáveis
fatores de perversão
e de atrofia.
Essa
homenagem a Camões, ao fazer dele um símbolo da energia da nação no seu apogeu,
levanta imediatamente a questão da continuidade – do império português e do
sentimento poético português – isto é, a comparação entre o passado e o
presente:
[...]
mas a terrível ação
depressiva do clima e do ambiente físico
e social dos países
tropicais, se não
tiveram poder contra
a assombrosa vitalidade
criadora do poeta máximo,
têm-no, todavia, [...] para
esterilizar em
cada um
de nós outros,
os pigmeus que
a quatro séculos
de distância o contemplamos, o pouco de aptidão
versificadora que algum
tivesse, mas ainda
para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha
parcela de imaginação
de que é indispensável
dispor quem
intente evocar a estatura
do gigante, o seu
esbelto perfil
e a sua figura
augusta.
A
oposição está dada,
e a explicitação do paralelo direto entre o orador e o homenageado, enquanto
poetas, é, assim,
inevitável:
[...]
quem estas linhas escreve – diz
Pessanha – teve, por várias vezes (há quantos
anos isso
vai!), deambulando pelo passeio
da Solidão, a ilusão,
bem vivida apesar de pouco
mais duradoira que
um relâmpago,
de caminhar ao longo
de uma certa colina
da Beira-Alta, muito familiar à sua adolescência.
Nos termos do quadro conceitual
em que
se move a conferência, o que Pessanha afirma é que,
enquanto estava alimentado pela “seiva que trouxera da Pátria
– da imagem viva
da sua paisagem,
da lembrança minuciosa
e fiel dos seus
costumes, da sua
história”, pudera
ele próprio conseguir a ilusão indispensável à criação
poética. Mas
essa seiva, diferentemente
do que ocorrera com
Camões, se esvaíra. “Há quantos anos isso vai!”
é a exclamação dolorosa
que abre caminho
à confissão do fracasso
e ao paralelo do poeta
moderno com
o antigo.
A
contraposição com Camões não se traça apenas no nível individual. O poeta de
outrora pudera manter-se espiritualmente, por anos a fio, apenas com as
lembranças da pátria ausente porque vivera num outro tempo, no qual a “energia
da raça” era tão exuberante a ponto de despender-se por “todo o imenso império
português” que então se construía. Já o
tempo a partir do qual o poeta moderno dirige o olhar para o passado é visto
sob o prisma da decadência, da ausência daquela energia que caracterizara os
anos de 1500. Sente-se Pessanha num mundo e num momento em que nem a “raça” é
pródiga de energias, nem (talvez por isso mesmo) o poeta é capaz de prover-se
de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitam manter-se
alimentado, quando desligado do ambiente e da paisagem portuguesas.
Ao
montar essa equação,
na qual a cada
momento na história
da nação corresponde um tipo de poeta, Pessanha acaba por
fazer, da sua
obra quase
inexistente, uma espécie
de equivalente gorado da obra
de Camões. É como se ele se representasse como
um não-Camões, ou melhor, como o Camões possível nos tempos da decadência – para
o qual até
mesmo a evocação
da grandeza do passado
é um desafio.
Se nos
lembrarmos agora daquela carta de 1894, perceberemos
que a conferência
forma com ela um conjunto de coerência metafórica, contra
o qual os poemas
aqui rapidamente comentados ganham relevo e densidade.
De
fato, a metáfora
da avareza já
preludiava a formulação de 1924, segundo a qual
a capacidade poética
depende da manutenção da seiva haurida em
contato com
a terra natal;
e a imagem do grumo
de sangue a da esterilidade
correspondente ao esvaziamento da seiva trazida do húmus
da terra natal.
Houvesse
tempo e a leitura
contrastiva dos textos de Pessanha sobre a China e dos poucos
poemas nos
quais ele
glosa a paisagem
exótica ou
distante nos
permitiria agora traçar
outro quadro,
que com
esse faria conjunto:
o da tentação e do perigo
da entrega à sedução
do diferente, por
conta do amortecimento da capacidade
de transfiguração nostálgica, imprescindível, segundo
o poeta, à eclosão e à manutenção do sentimento poético português.
[1] Texto lido no colóquio “Camilo Pessanha: orientalisme, exil et
esthétiques fin-de-siècle”, na Universidade Paris Oeste/Nanterre, em novembro
de 2008.
[2] Carta
datada de 30 de abril
de 1894, reproduzida em Camilo Pessanha, Cartas, transcrição e organização
de Maria José de
Lancastre. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1984, p. 47.
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