ERRÂNCIAS de Décio Pignatari
[Jornal 11]
Décio Pignatari
publicou há pouco tempo um livro chamado Errâncias (Editora Senac, R$
32). Como todos os títulos do autor, este também não admite a indiferença como
resposta. Composto com um senso agudo de provocação, visa a polêmica. Não é
exatamente um livro de memórias, nem de ensaios filosóficos, semióticos ou
políticos, nem de narrativas de viagem; tampouco é um conjunto de crônicas de
celebração dos totens concretistas, ou uma série de estudos sobre eles. É tudo
isso alternada ou misturadamente.
Errâncias se inscreve
preferencialmente, entretanto, no gênero memorialístico, já que se assume como
"biobalanço" e em várias partes é francamente evocativo de eventos
biográficos de alcance estritamente pessoal. Mas esse lugar genérico não é
imune à corrosão, pois o livro tem, como objetivo confesso, montar-se como uma
"colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias". A
descrição parece muito adequada para descrever o que aqui se encontra. Quando
todos os fatos, pessoas, registros fotográficos e ainda a história da
semiótica, da poesia, da cultura e da política brasileira são assimilados ao
registro autobiográfico e apenas em função dele valorados e interpretados,
obtém-se um gênero novo. É essa a novidade do livro, e dela procedem
simultaneamente a força provocativa e o estranho encantamento que o livro
adquire, tão logo se vença a resistência originada pela egolatria que o
percorre como um baixo-contínuo. Isto é, tão logo a perspectiva egocêntrica,
autocelebratória, seja assimilada como recurso genérico, entendida como
estratégia textual. Se não for assim, aliás, não há como prosseguir de boa
vontade na leitura de um texto cujo autor pretende falar de um lugar inaugural,
do pórtico de uma nova atualização do "pensamento experimental", que o
seu senso de medida aproxima e compara, de alguma forma, ao que representou a
adoção do alfabeto na história da humanidade.
Bem desenhado, o volume é um
belo objeto. Alternam-se as páginas brancas, de letras negras, com as páginas
negras, com letras em azul claro, que delimitam os 'capítulos' ou 'seções'. Em
todos, com exceção do último, o texto é um diálogo intenso com as imagens
fotográficas que os abrem e fecham. Essas imagens -- muitas das quais têm
interesse em si mesmas -- são de vária ordem. Há desde fotografias anódinas de
paisagens agrestes ou urbanas, como as feitas por qualquer turista, até
retratos posados, passando por instantâneos de figuras como Borges, João
Cabral, Tarsila e Jakobson.
A linguagem também oscila,
variando o registro conforme a natureza da seção, da relação com o objeto
visual, ou sem razão evidente. O que se mantém inalterado é o impulso reflexivo
e de combate cultural, que mesmo na história infeliz do pugilista Paulo de
Jesus descobre matéria não só para evocar e descrever em termos poéticos a
"escritura do seu boxe", mas ainda para verberar "os fáceis
clamores de louvor e entusiasmo por feitos e obras lambuzadas de ungüentos
nacionalistas auto-satisfacientes" que se evolavam da "rota
tenda-circo cultural do Brasilumpem" da década de 50, em que não havia
lugar para o "rigor elegante de uma arte que não encontrava aplauso".
Na maior parte do tempo o texto corre solto, "a ponto de não se
perceber estilo nenhum, o que inclui a busca ou a pretensão de um não
estilo", como o autor mesmo se incumbe de avisar na
"Apresentação". Em alguns momentos, vale-se do pastiche, da paródia
ostensiva, como nesta abertura do texto "Levallois": "O tempo do
olhar não é o tempo do ler, ouvir, cheirar, apalpar. É um tempo do passar e do
ficar, nem sempre o do projetar, que é o tempo de pensar." Mas quase a
cada momento, com maior ou menor extensão, encontram-se passagens como esta, em
que rebrilham ligeiramente nomes e conceitos: "Traduzida para a
superestrutura semiótica, o conflito apresenta fascinantes e intrigantes
aspectos nas áreas-limite do verbal (simbólico) e do não verbal (icônico),
aquele tentando monitorar, quando não subjugar este, pois o vértice do conceito
hegeliano é a lei ('argumento' peirciano), que se esparrama para as bases sob a
forma verbal" (p. 136).
Multifacetado, o volume traz
algumas seções belas (e, mesmo, comoventes), como o texto intitulado
"Delfos", em que o relato autobiográfico domina, praticamente
absoluto. Seja por isso mesmo, seja pela
posição que ocupa na seqüência, "Delfos" tem uma força de evocação,
de presentificação, que o torna muito destacado dos demais. Também ficaram mais
intensamente na minha memória de leitura, mas em segundo plano, os seguintes:
"Jakobson", "Vidraria" e "Franklin Horylka". Não
é muito, para um livro tão cuidado do ponto de vista gráfico e tão pleno de
investidura intelectual, mas é suficiente para, junto com passagens isoladas de
cada um dos outros textos, garantir o interesse da obra, que é composta com
inteligência.
Pignatari, falando de Jorge Luis
Borges, escreve que este "passa a ser um contador de histórias das
histórias, metalinguagem da ficção narrativa, despeitada, com alguma graça ou
humor, para assegurar-se distância e superioridade". Parodiando a
formulação, poderia dizer que Pignatari faz aqui uma espécie de metalinguagem
da narrativa memorialista, com muita digressão reflexiva em que se mobilizam
importantes referências culturais. E o faz para assegurar-se a mesma
superioridade. No seu caso, porém, é quando a distância e o despeito diminuem
que surge o melhor do livro: o discurso evocativo, que é de boa têmpera. Nesses
momentos, tudo – evocação, reflexão e exposição de conceitos – se amalgama. Nos
demais, em que o discurso evocativo tem menos peso, tudo parece reduzir-se a
índices, emanações, produtos imediatos de uma personalidade que se proclama
digna, por si mesma, de atenção e homenagem. Ou seja, a exposição egocêntrica
cessa de ser artifício provocativo que se conhece, se apresenta e funciona como
tal, e se deixa ler apenas como impostação.
Texto publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em 21 de outubro de 2000
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