terça-feira, 6 de maio de 2025

O que quer dizer esse haicai?

 Na margem do lago,

Imóveis se olhando, a garça

E a moça de branco.



Uma pessoa me pergunta o que eu quis dizer com o haicai da garça e da moça de branco que postei no story. Eu poderia responder que quis dizer o que disse, mas isso seria uma falsa resposta. Ao mesmo tempo, como responder de outra forma? Nas oficinas de haicai que ministrei, quando não entendia algo indagava qual era a situação em que a pessoa escreveu. Em haicai é a única maneira, eu penso. Minha resposta foi, portanto, contar como eu escrevi. 

Eu gostava de caminhar no Parque Taquaral antes do acidente. De vez em quando conseguia não ficar pensando em nada, apenas olhando e me deixando levar por outras sensações. Quando algo me chamava a atenção, eu anotava imediatamente, tentando não ter nenhuma mediação, exceto a forma dos três versos. Só depois de escrever olhava para aquilo como um espelho. Quero dizer: se algo me chamou a atenção e quis se cristalizar em palavras é porque correspondeu a algo no meu espírito (no meu estado de espírito), que recortou da realidade o que entrava em harmonia com ele. Minha interpretação, por isso, tem o mesmo valor da interpretação que qualquer pessoa que leia possa fazer. O interessante é que essa reação: “o que você quis dizer com isso? É só isso? Não tem mais nada?” – é a que as pessoas em geral têm frente a poemas clássicos da tradição do haicai.

No caso, no final do dia, olhando o que eu tinha escrito, tentei perceber o que me fez registrar aquilo. Além da óbvia graça da situação especular (a garça olha a moça que olha a garça, ambas de branco), há alguma coisa ali que a mim, como leitor, transmite paz. Eu poderia dizer que essa equivalência meio irônica do humano e do animal sugere a ideia de que todos somos parte de um mesmo todo – mas isso seria demais. Prefiro me fixar no retrato e numa certa tensão de espera: quem vai se mover primeiro? o que vai acontecer agora? – tensão que se reflete talvez na estrutura do verso, em que o enjambement traz um minúsculo suspense e surpresa. Mas penso que é mesmo o retrato, o recorte visual que importa, e cada um pode ou desprezar o escrito ou achar um sentido para ele. Mas seja como for lá continuam paradas, olhando uma para a outra, a garça e a moça de branco.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Nunca fui preso... (Um caso abjeto)


1.


Leio sem surpresa que a organização da Flipoços excluiu uma escritora e a proibiu de vender seus livros por conta de uma suposta piada racista.
Sem surpresa porque vivemos o paroxismo woke há já alguns anos.
O motivo da exclusão foi um diálogo. A Excluída perguntou a um representante do Movimento Neomarginal (!?) se podia fazer parte dele. E fez a piada terrível: como faria parte do movimento se nunca tinha sido presa?
Foi o que bastou para que o rapaz, que era negro, assumisse a posição de vítima e proclamasse ter sido objeto de fala racista. Foi um começo de incêndio nas redes sociais. Provavelmente com medo da repercussão, a curadora do festival tomou a decisão draconiana.
O escândalo, quanto a mim, não está na piada – que eu mesmo faria, porque já foi feita há tempos, quando surgiu a poesia marginal, lá pelos anos 70. O nome supunha essa ambiguidade. Provavelmente antes do rapaz ofendido ter nascido. O escândalo, no caso da Flipoços, me parece mais uma jogada de marketing, com base no wokismo cada vez mais intolerante.
Porque, vamos lá, se a piada fosse feita perante uma pessoa branca do movimento nada disso teria acontecido. Ou o movimento Neomarginal exclui brancos e é um movimento exclusivamente negro?
De mais a mais, a reação do rapaz só mostra que de marginal, no sentido dos anos 70, isto é, bem-humorado, informal, libertador, coloquial e contestador, não tem nada. Ou tem, parcialmente: o lado contestador lacrador e faturador.
Uma pena que a curadoria tenha sido tão prontamente censória e mandado sumir com os livros da Excluída! O wokismo não está tão longe do Fahrenheit 451...

 

2.

 

A curadoria da Flipoços baniu uma escritora e seus livros - sim, isso mesmo: a feira de livros baniu livros! - porque ela foi acusada de racista. Não vi racismo no episódio, mas sim uma interação descontraída entre uma escritora branca e um escritor negro. Mas o escândalo foi produzido. O escritor negro, uma vez promovida a comoção, escreveu "a imprensa só escuta um escritor negro quando ele sofre um ataque racista". Não acho. Mas acho que um escritor negro que quer ser escutado pela imprensa tem um caminho mais fácil se se sentir atacado ou conseguir fazer crer que foi atacado por uma pessoa racista.
Isso me fez lembrar uma contrapartida: um escritor negro pode se esquivar de uma crítica honesta se atribuir ao autor da crítica uma atitude racista. Foi o que fez Itamar Vieira Júnior e critiquei numa postagem (http://paulofranchetti.blogspot.com/2023/06/racismo.html).
O suposto racismo, a alegação de racismo revela-se muito útil. Pode servir para promover ou fazer ser ouvido um escritor que ainda é desconhecido, e também para tentar calar o crítico de um escritor triunfante, muitíssimo conhecido, que está certo da sua excelência e perfeição.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Kigos brasileiros

 Carlos Martins publicou no grupo O Zen do Haicai um começo de catálogo de kigos, extraído das postagens de Edson Iura na coluna mensal Haicai Brasileiro, do portal Brasil Nikkei.


Todos os haicais que ilustram o kigo foram produzidos por imigrantes e traduzidos pelo Edson. Enquanto lia, fui anotando os haicais que me impressionaram, talvez porque neles o kigo me pareceu funcionar melhor, talvez simplesmente por me parecerem poemas melhores.

Para estimular o diálogo, reproduzo abaixo as anotações rápidas (e talvez ainda informes) que fiz sobre cada um.

Apressa a passagem
pela cancela do trem
Grito da araponga. (Ayako Nishi)

Este tem humor. O grito metálico da araponga parece um sino, um aviso. Há uma correspondência entre o trem e seu aparato metálico e o grito do pássaro, que funciona como uma campainha ou sinal de alarma.

Bolhas de sabão —
Quem sopra é uma pessoa
cansada deste mundo. (Tomoko Tanaka)

Este é comovente. As efêmeras bolhas de sabão não servem ao lamento pela brevidade da vida ou impermanência das coisas e afetos. A ligação entre o kigo e a segunda parte é por contraste agudo. Como se a pessoa ansiasse pelo fim. E as bolhas de sabão representam também o mundo do qual a pessoa está cansada.

Ganhei uma muda
sem ter um canto para plantar
Dia da Arvore. (Ryokufû Fujino)

Este tem wabi. A pessoa ganhou uma muda, mas não tem um quintal, nenhum lugar para plantar. Poderia ser interpretado também como: não sou digno da graça recebida.

Em meio à queimada
como se fosse um monstrengo
passa o trem noturno. (Sekijô Terada)

A pura notação sensorial é o ponto forte deste haicai. A imagem impacta a mente do leitor. Aos que são contra a comparação no haicai, este é um bom exemplo do contrário.

No espelho do lago
a figura refletida
do salgueiro verde. (Gôga Masuda)

Eu sabia que era do Goga antes de ler o nome do autor. Não sei bem explicar porqu6e. Talvez eu já o tivesse lido. Mas a pura objetividade me fez imaginar a autoria. Goga dizia, num documentário, ser um discípulo de Bashô. Mas como discípulo de Nenpuku Sato, que o era de Kyoshi Takahama, era, na verdade, um discípulo de Shiki (como, em medida variável, quase todos nós).

Talvez uma dúzia.
Debaixo do flamboyant
os bancos de pedra. (Gôga Masuda)

O ponto deste haicai, nesta tradução, é que não se sabe uma dúzia de que coisa: bancos de pedra ou pessoas nos bancos de pedra embaixo do flamboyant. É provável que sejam só bancos de pedra. A forma aqui é tudo.

Luz de vaga-lume —
Imigrante no Brasil
tudo o que me basta. (Nempuku Satô)

Forte haicai, com sabi e wabi. Há solidão e saboreio agradável do pouco e do pequeno. E, claro, a simbologia da luz encontrada na nova terra, além do eco algo irônico da imagem do sol nascente que caracteriza o país de origem na luzinha do pequeno inseto do país de adoção.

Cheiro de goiaba —
Não se fala de tristeza
entre as operárias. (Keizan Kayano)

Pura notação objetiva, em que o prazer simples e momentâneo afasta por instantes as duras condições da vida.

Mordo uma pera
enquanto o ônibus atravessa
as velhas ruínas. (Makkô Miyazaki)

Contraste entre a ação e o ambiente. A intenção pode ter sido de registrar dois prazeres concomitantes: a contemplação e a fruta. Mas o que predomina é o contraste, que me transmite um sentimento pouco piedoso. Por isso me impressionou.

Domingo de Ramos.
Aquele que vende palmas
também é engraxate. (Shûfûshi Ôkuma)

O tom do haicai é entre piedoso e irônico. Mais para o irônico.

A densa Via Láctea.
Veio da mãe o costume
de falar sozinha. (Kayoko Ono)

Em japonês não sei se havia ao final do primeiro verso uma partícula indicando que isso foi dito por alguém. Parece que esse é o sentido. A pessoa diz algo, percebe que falou sozinha e isso desperta a lembrança afetiva.

Planalto Central.
Aqui dá para pegar na mão
a Via Láctea. (Gôga Masuda)

Outro belo haicai que traz a marca do Goga. Observação objetiva, em que o sensório vem para primeiro plano.

O som da coruja —
Começou a resmungar
a velha senhora. (Tomiko Kusunoki)

Aqui também não sei se o primeiro verso traria a partícula que equivaleria às aspas. Mas não caberia o uso de aspas, pois a primeira frase tanto pode ter sido dita pela velha senhora resmungona, quanto pode ser lida como descrição da própria, que resmunga como uma coruja.

Deste dia curto
roubo tempo pra fazer
um aventalzinho. (Teijo Akagi)

Ecoa a ética do trabalho. O avental pequeno como o dia curto. O trabalho possível na condição oferecida.

A filha resoluta
no desejo de ser freira.
Rosa de inverno. (Sumiyo Hirano)

A rosa de inverno fenece rápido. É melancólica quase sempre a imagem, embora também possa ser um símbolo da graça recebida fora de hora. Aqui as duas coisas se misturam. A perda da filha, por um lado. A ideia de salvação ou de bênção por outro. Dado o caráter melancólico da imagem, a primeira ideia se impõe sobre a segunda e o haicai é pungente.

Pelos urubus —
Assim soubemos da morte
do cavalo velho. (Nansenshi Yuda)

É objetivo, realista, forte. O velho cavalo, a que provavelmente a família deve muito, morre ignorado e sua morte é anunciada pelos pássaros que vão devorar seu cadáver. De dar nó na garganta.

sábado, 26 de abril de 2025

Crítica de haicai 2

 Nasci em Matão, simpática cidadezinha italiana no interior do estado. Lá me dediquei às duas atividades culturais disponíveis, que ocupavam o mesmo lugar: o xadrez e a leitura.


Trazendo assim esta marca de origem, como poderia deixar de atender a um conterrâneo que me pede opinião sobre suas incursões no estranho território do haicai?

Do primeiro comentário resultou que o conterrâneo abdicou da métrica, achando por bem privilegiar a impressão. E me enviou outro haicai.

Como achei que este último comentário pontual poderia ser de interesse de mais pessoas, consultei-o sobre se queria a resposta inbox ou por aqui. Era indiferente, mas ele também achava que podia ser melhor por aqui. Então segue.

pelo mato alto,
as gotas deslizam:
é tempo de chuvas

Meu caro Márcio , do ponto de vista formal este é um tipo de haicai que tem sido muito praticado no Brasil. Tem uma estrutura lógica.

Nesse ponto, eu procuro seguir Shiki, que escreveu: “Haikus não são proposições lógicas, e nenhum processo de raciocínio deve aparecer na superfície.”

Aqui, neste seu haicai, o poeta observa algo: as gotas deslizam pelo mato alto. É uma observação “de perto”, como a de uma lente macro. Em seguida, ele conclui, sem carga afetiva ou novidade, que isso se deu porque é tempo de chuva.

A simples inversão já eliminaria o processo do raciocínio na superfície:

É tempo de chuvas –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Aqui, em vez de uma explicação “raciocinante”, o que temos é um constatar da ordem das coisas.

Entre tantas observações que o poeta poderia fazer no tempo de chuva, ele escolheu falar do miúdo. O tempo de chuva não é explicação de nada. É a condição geral, o quadro em que se dá um fenômeno.

Nos dois casos “tempo de chuvas” é kigo. Mas neste segundo faz melhor o papel de kigo, fornecendo o clima, o "mood".

A interpretação fica por conta do leitor, mas poderia ser algo como: o poeta não pode sair de casa, ou está abrigado da chuva, não tem muito o que fazer e observa a água escorrendo pelo mato alto.

Se tivesse usado um outro kigo, o sentido seria diferente. Por exemplo:

Chuva de verão –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Alguém poderia dizer que há aí dois kigos: mato alto e verão. Mas isso só importa aos puristas. Principalmente porque no Brasil deve ser possível encontrar mato alto seja no verão, seja no outono, seja no inverno.

Se isso é ou não possível, é uma coisa. Outra coisa é o efeito diferente que produziria cada caso: chuva de verão, chuva de outono, chuva de inverno. Pode testar para ver.

Mas isso já é outro assunto, o que queria mostrar aqui é que, eliminando o mecanismo explicativo evidente, tudo fica mais “haicaístico”.

Crítica de haicai

 Minha última postagem deu motivo a muitos comentários, sugestões e críticas.


Isso é o melhor do Facebook - esta plataforma tão detestável sob outros aspectos.

De minha parte, acho que palpitar no haicai e nas questões envolvidas nas postagens é ótimo e penso que as pessoas deviam fazê-lo sem pensar que eu poderia me aborrecer com críticas ou ressalvas. Eu posto justamente para ter diálogo.

Com relação à postagem sobre o cachorro morto, um ponto que me parece interessante é a proposição do haicai como anotação direta e "imexível".

Penso que, como exercício espiritual, como caminho, o haicai almeja a notação direta já acabada.

Também como caminho, como aprendizagem, é importante a notação sem retoques, que permite avaliar o grau de desenvolvimento - numa situação tradicional em que há um professor, um mestre.

Por outro lado, como disse num comentário, mexer num haicai, alterar a primeira notação, pode ser um esforço de recuperar a percepção inicial, levar o escrito para mais perto da experiência.

Não é verdade que, quando escrevemos, o amor-próprio nos leva às vezes a tentar "melhorar"o que íamos escrever? Nos leva a querer antecipar a reação do leitor e nos adequar a ela?

Nesse caso, alterar o haicai pode ser justamente eliminar essas intervenções do amor-próprio. Significa depuração das palavras em direção à experiência.

Quando se trata de notação imediata como valor do haicai, sempre me lembro desta formulação de Tohô, um dos discípulos de Bashô:

"Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência. Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade."

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Shiki e o haicai

 Reli hoje a bela apresentação do livro “Shiki, inventor do haicai moderno”, de Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym. É um texto muito interessante. Enquanto lia, fiquei pensando no que significou e significa o haicai para mim. Também refleti sobre o que, na minha concepção de haicai, devo a Shiki – direta ou indiretamente.

A verdade é que cada um de nós faz, com os objetos do passado, uma síntese pessoal a partir de recortes nos quais os interesses do presente desempenham um papel central e ineludível.

No meu caso, a porta de entrada foram os livros de R. H. Blyth. Só depois vieram os outros ocidentais e, por fim, os tratados da escola de Bashô, em tradução ou no texto original, lidos com a Elza Doi, durante o nosso trabalho conjunto.

O meu haicai, ou melhor: o meu ideal de haicai é uma combinação dos preceitos da escola de Bashô com as prescrições de Shiki. Ou eu pensava que seria, porque lendo o livro de Andrei e Roberto fui percebendo que tenho mais afinidades com Shiki do que com Bashô. Ou melhor, que terminei por ler Bashô pelos olhos de Shiki e a praticar um haicai mais próximo deste do que daquele.

Na verdade, são poucos os poemas de Bashô que me tocam profundamente. Seus diários me impressionam, mas muitos dos seus haicais são tão dependentes de intertexto e referência histórica ou cultural que me deixam um pouco distante. A objetividade de Shiki me seduz mais, embora sinta falta de alguma obscuridade e transcendência – que às vezes me parece até excessiva em Bashô.

Na verdade, a figura de Shiki terminou por ser tão importante que até Issa e Buson eu creio que terminei por ler pelos seus olhos, ou – pelo menos – a partir dos ideais de poesia que estão em seus haicais e escritos críticos. E também porque, apesar da fixação de Blyth no Zen, no fundo é a perspectiva moderna de Shiki que orienta muitos de seus comentários.

Da introdução ao livro que originou esta anotação, destaco:

 

“No entanto, se o olhar brasileiro se volta para o Japão, origem do haicai, a imagem que no mais das vezes surge é a do “bom velhinho” Bashô, um sábio venerável e quase santo, que atingiu a iluminação espiritual por via da poesia. Na mitologia construída para ele no Brasil, Bashô reúne tanto o fascínio do exótico como a reputação de iconoclasta e a aura de divindade.

Dessa incongruência iconográfica, oriunda de uma mistura bem intencionada de sede de exótico com orientalismo de segunda mão e falta de acesso a fontes mais fidedignas, surgiu a ideia, bastante encontradiça no Brasil, de que Bashô, no século XVII, escrevia haicai modernista, ou de que os nossos modernos brasileiros, ao escreverem poemas de três versos de 5-7-5 sílabas, estabelecem uma conexão espiritual com uma escola muito antiga de ensinamentos quase religiosos, fundada por um benevolente (e bastante presciente) asceta japonês.

É verdade que tanto a imagem de “homem santo” associada a Bashô quanto a ideia de que o haicai deve ser uma síntese de linguagem criada a partir de uma visão de mundo despojada de ornamentos têm real origem na história da literatura japonesa. Uma e outra estão intimamente ligadas à trajetória de Masaoka Shiki, que lutou contra a primeira e sistematizou a segunda.”

 

Aí está. Enfim, era isso. O que eu queria mesmo dizer é que se trata de um livro que todo praticante ou estudioso de haicai no Brasil deveria ler com atenção.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A arte do haicai


Haicai é um tipo de poesia que se aproxima das artes tradicionais japonesas num aspecto relevante: tem um caráter de exercício, aprendizado, conversa, construção coletiva.

Não é muito comum um poeta enviar poemas para outro e pedir palpites. E quando isso acontece, pouca gente tem a coragem de fazer o que Pound fez com “The Waste Land” – e menos gente ainda tem a humildade de fazer como Eliot, ao receber o seu poema todo cheio de rasuras e palpites.

Mas em haicai isso, por assim dizer, faz parte do jogo.

Por exemplo: um amigo me pediu um palpite sobre um seu haicai. Este:

mar de cana verde
- sob um céu azul sem manchas
outonal Mogiana.

Propus então duas versões, tentando alterar o mínimo e operando principalmente por supressão e inversão da ordem das palavras:

Sobre um mar de cana,
O céu sem manchas -
A Mogiana no outono.

Outono na Mogiana:
Sobre o mar de cana,
Um céu sem manchas.

E por que fiz isso?

Bom, eu achei que os adjetivos, embora acrescentando cores, diminuíam a carga sensória das imagens. Olhando o resultado, pareceu-me que em nenhuma das versões eles de fato fizeram falta.

Mantive a metáfora do mar, porque não me pareceu excessiva. Ou seja: é quase um lugar comum, não chama muito a atenção sobre si mesma.

Mas inverti a direção do olhar. Em vez da descrição estática (isto sob aquilo), preferi um pouco de dinamismo (sobre isto, aquilo). Porque quando digo “isto – sob aquilo”, a segunda parte termina por ter um valor quase adjetivo (não sei explicar melhor essa sensação); já quando digo “sobre isto, aquilo”, há um mínimo suspense e nenhuma parte da frase parece qualificar a outra.

Do ponto de vista da construção da imagem, da apresentação dos elementos, a diferença entre as duas propostas é basicamente a ordem. Na primeira, a cana e o céu são apresentados ao leitor e depois vem a região e a estação. Na segunda, vem primeiro a estação e depois a cana e o céu.

Na primeira, então, o poeta organizaria a percepção, enquadrando-a no último verso; na segunda, os elementos naturais apareceriam como “provas” ou tradução sensível do que se diz no verso inicial.

Ou seja, na primeira o poeta perceberia a cena, registraria os elementos sensíveis, e depois a explicaria, situando esses elementos no quadro sazonal, como quem diz: “Vejam essas coisas, isso mostra que estamos no outono nesta região”. Nesse sentido, talvez fosse melhor suprimir a palavra Mogiana, deixando como último verso isto apenas: O outono chegou!

Já no segundo caso, o poeta “definiria” o outono na região da Mogiana por meio de algo observado objetivamente, como quem diz “Isto é o outono nesta região: uma grande plantação de cana e um céu sem nuvens ou sem poluição”.

As outras modificações, isto é, a comutação de artigos indefinidos e definidos, se explicam pela mudança da perspectiva.

Meu amigo achou boas as sugestões, mas disse que tinha feito um esforço para manter a métrica. Já eu, embora nada tenha contra a métrica, não me importo muito com ela e estou sempre disposto a sacrificá-la em benefício da economia, da naturalidade da expressão e do sabor de haicai.

Numa oficina de haicai, esse tipo extenso de comentário não cabe. É muito teórico. Diz respeito só aos parâmetros de ação de quem conduz a oficina.

Na prática, a conversa seria mais simples: uma pessoa apresentaria um haicai; a outra pessoa – se achasse que poderia “tornar o haicai mais haicai” – proporia uma ou mais versões alternativas, até que a primeira pessoa dissesse “era isso mesmo que eu queria dizer!”, ou então: “entendi!”, ou, mais raramente: “prefiro ficar com a minha versão” por este ou aquele motivo. E em qualquer dos casos, a segunda pessoa diria: “ótimo, tudo bem!”.

E pode mesmo ocorrer que toda a ação da segunda pessoa esteja equivocada. Nem por isso deixa de haver aprendizado de ambas, e principalmente das demais pessoas que assistem à conversa ou participam dela, se se tratar de uma oficina nos moldes tradicionais.

E aqui está: para quem me perguntou como será a oficina do segundo semestre, essa longa postagem deve ser útil, pois pode ajudar a imaginar a forma de operar e de conduzir a atividade.

 

domingo, 13 de abril de 2025

Antologia de haicais clássicos

 Passei a tarde lendo, com alegria e prazer, o livro “Antologia de haicais clássicos”, de Edson Iura.

Conheci Edson Iura em algum momento de 1990 ou 1991. Foi em 90 que participei do V Encontro de Haicai, e nele apresentei o livro “Haikai – antologia e história”, recém-lançado. Na sequência, fui convidado a participar das reuniões do Grêmio Haicai Ipê.
Alguns anos depois, Edson e eu decidimos criar um fórum de discussão sobre haicai em português. A Unicamp cedeu espaço no seu computador central e lá abrimos a Haikai-l, em 28 de março de 1996. Nesse mesmo ano, Edson criou o site Kakinet, o primeiro em língua portuguesa exclusivamente centrado no haicai – e que hoje é uma referência imprescindível a quem quer saber mais sobre essa poesia.
Acompanhei depois o trabalho e a dedicação incansável do autor, que recentemente frutificou em livros. Primeiro, com o lançamento, em 2021, de “Cesto de caquis”, notável trabalho que ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional em 2022. Nesse mesmo ano, com “O Mendigo Sonha” – uma coletânea de seus haicais, escritos ao longo de décadas. Agora, por fim, em 2025, com a reunião em volume de algumas das muitas traduções de haicais clássicos que foi publicando, de 1999 a 2003, na coluna “Um mestre japonês” do “Jornal Nippo-Brasil”.
O que mais apreciei na Antologia foi a escolha do tom e da forma. Minimalismo é a palavra-chave. Sua tradução poderia ser modéstia, adequação de registro ao original, recusa ao brilho fácil, ausência de ego, delicadeza.
Edson não se deixou engessar pela forma. Em vez de buscar manter alguma semelhança com a métrica do haiku, optou por buscar a naturalidade da expressão. Isso, porém, não significa dar forma sintática completa, analítica, à frase. Edson consegue o mais difícil e, do meu ponto de vista, o essencial na tradução do haiku para o português: manter ao mesmo tempo a naturalidade, o coloquialismo e o aspecto lacunar, que deriva principalmente da composição por justaposição. Além disso, é sensível uma preocupação extra; a de preservar, quando possível, a ordem de apresentação dos elementos que constituem o haicai.
O autor optou por não inserir notas, não situar os haicais, nem suprir informações contextuais ou literárias que poderiam ajudar no entendimento. E creio que fez bem, porque a forma livre que adotou lhe permite a flexibilidade necessária para que o próprio poema, graças a uma sábia escolha de palavras e forma de apresentação, se sustente. De mais a mais, a maior parte dos haicais que ele escolheu são clássicos, muito comentados em outras obras e em artigos da internet.
Com este livro, Edson completa o seu triátlon: um livro de estudos sobre o haicai, um livro com os haicais de lavra própria e um livro de traduções de haicais dos grandes mestres – estudo, tradução, composição. E o completa em grande estilo! Estou seguro de que a publicação desta antologia constitui um momento especial na história do haicai no Brasil.

domingo, 6 de abril de 2025

Haicai e zen

Li há pouco, na página do Haiku en español, um texto de Vicente Haya, intitulado “O haicai não é poesia zen”. Tendo a concordar com ele, quando diz que a atitude de buscar iluminação ou o incompreensível não é a mesma atitude, o mesmo modo de estar no mundo, do poeta de haicai, que busca sempre em primeiro lugar a concretude, o sensível – e a emoção ligada à percepção sensível. Mas discordo também da radicalidade dele, ao entender o zen como algo monolítico, que busca o satori como iluminação súbita. Na verdade, não entendo o zen. Apenas leio e penso...
Em certo ponto, ele refere um haicai de Bashô, como prova de que haicai não é zen. A passagem é esta:

Sin embargo, el propio Bashō -el haijin que se toma como prototipo de "poeta Zen"- en uno de sus haikus concede la beatitud precisamente al ser humano que "no comprende" (satoranu) ante una manifestación de la Naturaleza:

稲妻にさとらぬ人の貴さよ

inazuma ni satoranu hito no tōtosa yo

¡Qué santidad
la del hombre que ante un relámpago
no despierta a la realidad!

Por diversão, submeti o haicai ao ChatGPT e conversei um pouco com a máquina sobre ele. Vou transcrever a conversa toda. Vale a pena ver como a máquina interpreta o haicai, dentro do universo zen. Mais ou menos como se ele fosse uma declaração de adesão ao Soto Zen. Vale também a pena ver as traduções modernas que ela propõe. Uma delas poderia integrar a tradição leminskiana, eu creio.
Eis aqui:

-x-x-x-x-x

Claro! A frase japonesa 稲妻にさとらぬ人の貴さよ pode ser traduzida como:

"Quão nobre é a pessoa que não busca iluminação no relâmpago."

Ou, de forma um pouco mais interpretativa:

"A nobreza daquele que não se deixa iluminar por um relâmpago."

Essa é uma expressão poética e provavelmente faz parte de um haicai ou waka. Ela sugere que há valor ou dignidade em quem não busca uma compreensão súbita e chamativa (como o clarão de um relâmpago), mas talvez trilhe um caminho mais silencioso ou contemplativo.

Se quiser, posso ajudar a analisar o contexto poético ou filosófico também.

Claro! Vamos fazer uma análise mais profunda da frase 稲妻にさとらぬ人の貴さよ:

Tradução literal:
• 稲妻 (いなずま / inazuma): relâmpago
• に: partícula indicando direção ou causa
• さとらぬ (悟らぬ): forma negativa de 悟る (satoru), que significa "atingir a iluminação", "compreender profundamente", "despertar espiritual"
• 人 (ひと / hito): pessoa
• の: partícula possessiva ou de qualificação
• 貴さ (とうとさ / toutosa): nobreza, preciosidade, dignidade
• よ: partícula exclamativa, que adiciona ênfase emocional

Tradução poética sugerida:
“Quão nobre é a pessoa que não se ilumina com o relâmpago.”

Análise filosófico-poética:
1. Simbolismo do relâmpago (稲妻):
O relâmpago costuma simbolizar revelação súbita, uma iluminação repentina — como o satori no Zen, uma forma de despertar espiritual que pode vir de uma percepção abrupta. Algo momentâneo, poderoso, mas também fugaz.
2. A recusa da iluminação súbita:
A pessoa descrita não se ilumina pelo relâmpago — ou seja, não busca (ou não se deixa levar por) uma compreensão imediata, espetacular, repentina. Isso pode indicar alguém que prefere o caminho da paciência, da introspecção, do crescimento lento.
3. A nobreza dessa escolha (貴さ):
A frase destaca a "nobreza" ou "valor" dessa pessoa. Em vez de criticar, ela exalta aquele que não busca as respostas fáceis ou as revelações rápidas. O poeta parece valorizar quem não se apressa para entender o mundo em um clarão, mas que talvez escolha o caminho gradual, silencioso e constante do autoconhecimento.

Possível interpretação Zen:
Em algumas escolas do Zen, especialmente o Rinzai, o satori súbito é valorizado. Mas em outras tradições (como Soto Zen), a prática contínua é vista como mais importante do que qualquer momento de iluminação repentina. Essa frase parece dialogar com essa segunda abordagem: a sabedoria silenciosa, humilde, que floresce sem espetáculo.

Se você quiser, posso criar uma versão poética em português inspirada nessa ideia.

Com prazer! Aqui vai uma versão poética em português, inspirada no espírito e na cadência do original:

Quanta nobreza há
em quem não busca o clarão
para se entender.

Ou, numa versão mais livre e contemplativa:

Nobre é aquele
que não se apressa a despertar
com o brilho de um relâmpago.

Beleza! Aqui vão algumas versões mais modernas, mantendo a ideia original mas com um toque contemporâneo e direto:

1.Tem algo de bonito
em quem não precisa de um choque
pra se encontrar.

2.Nem todo mundo vê a luz no raio —
e tudo bem.
Tem força nisso também.

3.Admiro quem não corre
atrás de epifanias.
Só vive. E entende.

Curte esse estilo ou quer algo ainda mais urbano ou despojado? Posso ajustar fácil.

Fechou! Aqui vão algumas versões com uma pegada mais urbana, meio spoken word, com aquele clima de rua, cotidiano e introspecção sutil:

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1.
Respeito quem não brilha no raio.
Que aprende no escuro, no tempo, no trampo.

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2.
Nem todo mundo precisa de luz na cara.
Tem gente que acorda devagar,
no silêncio da quebrada.

---

3.
Enquanto uns esperam trovão,
outros crescem quieto,
tipo semente no asfalto.

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4.
Tem quem não se liga no flash.
Prefere a brisa da noite,
descobrindo as coisas no passo.

-x-x-x-x-x-x

A conversa poderia continuar, pois a máquina pergunta se quer mais isto ou aquilo, neste ou naquele estilo. Mas já é suficiente...

terça-feira, 25 de março de 2025

Haikai e Haimi - um haiku de William J. Higginson

 Nem sempre o conhecimento produz um bom haicai. Creio mesmo que a intenção de fazer um bom haicai pode se tornar um obstáculo.


Em certo ponto do seu livro, Higginson conta a gênese de um de seus haicais. Aparentemente, um de que gosta bastante.

O autor está comentando a recepção de haicais, como eles rebatem nas cordas da memória individual. Em certo ponto, para exemplificar uma questão, ele narra uma sensação/emoção que lhe despertou o desejo da escrita. E prossegue expondo a intenção e as campanhas de redação, até chegar a um resultado, que indica ser “final”.

Este:

“Winter Solstice

wooden wind chimes
in the wind in the
wood smoke dusk”

Contra seus próprios princípios, acrescentou um título, porque a percepção disparadora se tinha dado no dia do solstício de inverno. E ele não queria deixar nada de fora. E por isso tirou o kigo do haicai para incluir outra coisa. Mas deve logo ter percebido que o que retirou, afinal, era o kigo – e então o reintroduziu pela janela, ou melhor, pelo título.

Outra informação, igualmente interessante, é que ele ouviu aqueles sininhos de vento de metal, mas os transformou em sinos ou campainhas eólicas de madeira, porque isso entrariam em consonância com o cheiro de madeira queimada que sentiu enquanto tocavam os sininhos. A associação que deve ter feito é entre a madeira que se queima e desaparece e a madeira que ainda permanece, tendo voz quando exposta ao vento. Uma associação por contraste.

Ele também alterou o período do dia. Tudo tinha acontecido mais cedo, mas ele terminou por mudar o haicai para o momento crepuscular, o final do dia, talvez por lhe parecer mais apropriado ao clima. No caso, talvez alguma melancolia.

Como traduzir esse haicai?

“Solstício de Inverno
sinos (ou campainhas) de madeira no vento no crepúsculo de fumaça de madeira”

Ou:
Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / na fumaça de madeira ao anoitecer

Ou ainda:

Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / no crepúsculo de fumaça de madeira.

Não consegui achar uma forma que me parecesse razoável.

Mas para a sensação inicial, que ele registra e da forma como a registra, talvez sim.

Higginson escreveu isto, sob o efeito imediato de ouvir os sinos de vento:

“solstício... wind in the / wind chimes”

Deveria, em português, eu acho, ser algo desta ordem:

Solstício de inverno – ah o som do vento nos sininhos de vento...

Ou:

Solstício de inverno – o vento nos sinos de vento

Não me saí provavelmente muito bem, mas creio que melhor do que no haicai em forma final.
O que talvez queira dizer que, para o meu gosto e para a minha concepção de haicai, a notação imediata de Higginson tinha haimi (sabor de haicai), enquanto o poema em forma final, não muito.

Haiku e Senryu

 Um dos livros clássicos sobre haicai no Ocidente é um manual: o “The haiku handbook – how to write, share, and teach haiku”, de William J. Higginson.


Estive relendo o livro, porque retomei um projeto antigo: escrever um manual semelhante, porém mais focado na composição.

Em certo momento deparei com a parte em que o autor diz que boa parte do que fazemos no Ocidente como haiku é, na verdade, senryu. É algo que sempre me pareceu evidente, talvez até mesmo porque depois da obra insubstituível do Blyth, o livro de Higginson tenha sido um dos que mais me interessaram.

O ponto é interessante e delicado, pois, como ele diz, mesmo no Japão a fronteira pode parecer indefinida entre um gênero e outro.

Durante a leitura, achei que valia a pena traduzir esta passagem para os interessados no tópico:

When the Committee on Definitions of the Haiku Society of America completed its work in the early 1970s, they included the following as one definition of senryu: “Loosely, a poem similar to haiku which does not meet the criteria for haiku." Although I was a member of that committee, I do not like suggesting that a senryu is a failed haiku. In the hands of those who set out to write a senryu, such as one-time editor of “American Haiku”, Clement Hoyt, a senryu "relies on a point of wit instead of provocation by contrast, as does the haiku."

“Quando o Comitê de Definições da Sociedade Americana de Haiku concluiu seu trabalho no início dos anos 1970, incluiu o seguinte como definição de senryu: "De modo geral, um poema semelhante ao haiku que não atende aos critérios do haiku." Embora eu fosse membro daquele comitê, não gosto de sugerir que um senryu é um haiku fracassado. Nas mãos daqueles que se propõem a escrever um senryu, como o ex-editor do ‘American Haiku’ Clement Hoyt, um senryu "depende de um toque de agudeza em vez da provocação por contraste, como faz o haiku."

Hesitei na escolha da tradução de “point of wit”. Wit é sagacidade, espírito (no sentido de ser espirituoso), verve, agudeza, humor inteligente. Escolhi “agudeza”, pois é uma palavra que remete principalmente à inteligência e à forma de elocução.

Num texto que eu mesmo escrevesse, usaria a palavra “sacada”, no sentido que usualmente digo que o haicai de Leminski muitas vezes repousa sobre uma sacada.

Agudeza X provocação por contraste. As fronteiras podem mesmo ser pouco precisas...

Do meu ponto de vista, tendo a pensar que, para o gosto ocidental, o haiku surja como algo mais “plano” no nível da expressão, mais sutil, demandando abertura de espírito aos sentidos vários. Um texto que repousa principalmente na justaposição – ou, como dizemos às vezes, de modo talvez um pouco pomposo, na composição ideogramática.

quinta-feira, 20 de março de 2025

O que veio antes - Sensei e Auctoritas

 Uma das evidentes vantagens da IA é fazer rapidamente algumas tarefas básicas, como redigir. Por exemplo, eu queria ver os caracteres da palavra sensei, em japonês, porque queria usar a etimologia para uma palestra. Claude.ai me respondeu: 

A palavra "sensei" (先生) em japonês tem uma etimologia interessante baseada nos caracteres que a compõem:

·        (sen): significa "antes" ou "anterior"

·        (sei): significa "vida" ou "nascer"

Quando combinados, estes caracteres literalmente significam "aquele que nasceu antes" ou "aquele que veio antes", transmitindo a ideia de uma pessoa com mais experiência ou conhecimento acumulado ao longo do tempo.

Na cultura japonesa, "sensei" é um título honorífico usado para se referir a mestres, professores, médicos e outros profissionais que possuem conhecimento especializado ou habilidades superiores em alguma área. O termo reconhece o respeito devido a alguém que "veio antes" no caminho do conhecimento e, portanto, pode guiar outros.

É claro que eu poderia ir ao google e copiar os caracteres e depois escrever algo assim. Mas foi coisa de um segundo apenas.

Agora tenho uma boa definição. Na minha palestra, partirei dessa definição para falar um pouco da degradação da autoridade – da auctoritas – do professor nos dias de hoje.

Para trabalhar com o conceito latino de auctoritas, de novo pude me valer de Claude, conseguindo de modo eficiente a informação relevante:

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O conceito latino de "auctoritas" é fundamental para entender a estrutura política, social e cultural da Roma Antiga.

"Auctoritas" refere-se a uma forma de influência social que não é baseada no poder coercitivo (potestas) ou na força militar (imperium), mas sim em um tipo de autoridade moral, prestigioso e legitimador. É um poder informal que vem do reconhecimento social da sabedoria, experiência e integridade de uma pessoa ou instituição.

Características principais da auctoritas:

1.     Era uma qualidade pessoal baseada no mérito, virtude e realizações, não apenas um título formal ou posição

2.     Permitia que seu possuidor influenciasse decisões e comportamentos através do respeito e da persuasão, não por ordens diretas

3.     Estava fortemente associada aos anciãos (especialmente no Senado Romano - a própria palavra "senado" vem de "senex", significando "homem velho")

4.     Era diferente de poder legal (potestas) ou comando militar (imperium)

5.     Aumentava com a idade, experiência e demonstrações de prudência e sabedoria

Na República Romana, a auctoritas do Senado (auctoritas patrum) era particularmente importante - embora tecnicamente apenas consultiva, suas recomendações carregavam enorme peso pela autoridade moral coletiva dos senadores. Durante o Império, os imperadores romanos procuraram combinar auctoritas com imperium e potestas para fortalecer sua posição.

O conceito influenciou significativamente o pensamento político ocidental posterior e continua relevante para entendermos diferentes tipos de autoridade nas sociedades contemporâneas.

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Meu ponto será que um dos motivos da corrosão seja a crença de que a experiência e o conhecimento acumulado foram ou rapidamente serão ultrapassados, deslegitimados, tornados inúteis pela velocidade da evolução tecnológica e dos meios de acesso e tratamento da informação.

De fato, a imagem do velho que é incapaz de acertar a hora de um forno de micro-ondas ou de manipular um celular de última geração foi se fixando com estridência. Contaminou tudo. No campo científico, por exemplo, a figura prestigiosa do velho médico ou cirurgião, cheio de experiência, foi sendo obscurecida perante a crença na superioridade do conhecimento ou da técnica do recém-formado.

Mas o ponto que eu gostaria de frisar, nessa palestra, depois das considerações gerais, seria manifestado na própria estrutura da palestra, em que a IA desempenha um papel assim preponderante. A mesma IA que será cada dia mais inevitavelmente presente nas salas de aula, nos trabalhos escolares e nas dissertações acadêmicas.

Nesse quadro, qual a autoridade, em qualquer sentido, do mero “nascido antes”?

segunda-feira, 17 de março de 2025

furuike ya

 O haicai mais famoso é furuike ya kawazu tobikomu mizu no oto.

Há incontáveis traduções dele para inúmeras línguas.
Lembro-me sempre da tradução literal feita por Wenceslau de Moraes, o marinheiro português que foi cônsul em Kobe e depois passou o resto da vida em Tokushima:
“Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs atirando-se para a água”
Moraes optou pelo plural. Das traduções que conheço, creio que é a única.
Em japonês tanto pode ser singular ou plural. Optando pelo singular, o tradutor aumenta o (por assim dizer) mistério. Há um lago, um poeta e uma rã. O ruído da rã saltando é único e delicado. Um plop apenas. E a ideia de solidão, de abandono do velho tanque vem para primeiro plano. Como é fácil imaginar o tanque num templo (como fez Moraes na sua tradução em forma de quadra), tudo fica muito japonês e um pouco zen.
Entretanto, é perfeitamente possível ler “rãs”, no plural. A cena, então, seria mais prosaica: há um tanque e quando o poeta caminha para ele algumas rãs, assustadas, saltam para dentro. Ou seja, em vez da observação minuciosa em um ambiente restrito, podemos estar agora em campo aberto e em vez de um plop solitário, uma sequência meio barulhenta.
O que mais gosto na tradução de Moraes, porém, é que ela está feita em duas frases apenas.
Eu não consegui isso, no “Haikai – antologia e história”. Fiz “em prateleira”, 3 frases, embora desde aquela época me parecesse claro que os dois últimos segmentos devessem ser uma sentença.
É que na época me vi prensado entre dois princípios.
Um deles é o que acabo de referir: o haicai é dividido por um corte, não por dois. O bom haicai tem, portanto, duas partes e não três.
O outro é que as coisas ou as ações são, nos melhores haicais, grafadas na ordem da percepção.
Ora, aqui o poeta vê o tanque – primeiro segmento do poema, marcado pelo corte da expletiva “ya” – depois vê o mergulho das rãs e ouve o barulho da água.
Na tradução de Moraes, primeiro vem o barulho e depois as rãs. É um poema centrado no som. No original, o verbo tobikomu põe peso no visual, pois – como explorou Haroldo de Campos – é formado por saltar e mergulhar. Portanto, no de Moraes, o poeta deduz que são rãs saltando. Nas traduções corriqueiras, o poeta vê e depois ouve.
Parece nada, mas – glosando Pessoa – em poesia às vezes o que parece nada é tudo.
Tanto é verdade que, se eu fosse conciliar os dois princípios, teria de ter traduzido mais ou menos assim:
Velho tanque –
Da(s) rã(s) saltando,
O barulho de água.
Mesmo assim perderia a ordem dos fatos no último verso, só recuperável com "da rã mergulhando / na água o barulho".
Funcionaria? Com essas inversões violentas, eliminando a naturalidade da expressão? Duvido...

domingo, 16 de março de 2025

De novo, o haicai

 Aos poucos vou voltando ao haicai. Li por esses dias um livro interessante. Esse cuja capa vem nesta postagem.

Segue o caminho inverso dos livros bilíngues. Aqui, haicais de brasileiros são traduzidos para o japonês e caligrafados por um artista daquele país.
Enquanto lia, fui anotando os que mais me chamaram a atenção, por um motivo ou outro.

1.
fim da tarde –
duas formigas
escalam a folhagem. Diego Petrarca

2.
meu coração adia
tudo que não é
poesia Léo Cruz

3.
meu plano - festejar
a virada de cada mês
como se fosse de ano Marcelo Pires

4.
paisagem colorida –
de quando em quando
uma vaca em preto e branco Ricardo Silvestrin

Considerando esses quatro haicais, vejo que a presença de Leminski e/ou Millôr é sensível em metade. A sacada anima, se casa bem com a forma breve. Os meus preferidos, entretanto, são os que me parecem ter mais sabor de haicai. Ou então: os que correspondem mais à minha concepção de haicai.
O de Silvestrin é uma descrição objetiva, mas que se apoia também numa sacada. A gente lê normalmente o poema até o último verso, em que a vaca malhada é descrita como em p&b, contrastando com o – por assim dizer – RGB da paisagem. Isso dá um toque de graça ao verso.
O de Petrarca é também uma descrição objetiva, mas sem apoio em sacada ou trocadilho ou referência cultural.
Qual a relação entre o fim de tarde e as duas formigas que escalam a folhagem? Por que só duas formigas? Onde está o poeta? Onde é essa folhagem? Por que ele resolveu anotar isso?
Não é possível responder a nenhuma dessas perguntas. Por isso mesmo essas duas formigas, num final de tarde qualquer, escalando uma folhagem qualquer se fixam na memória, disponíveis para que nelas projetemos sentidos, percepções, experiências. São um símbolo objetivo, por assim dizer.
Fechado o livro, os poemas 1 e 4 permaneceram na memória da leitura. Mas se consigo explicar por que me lembro do poema de Silvestrin, não consigo explicar por que me lembro ainda mais do poema do Petrarca. Essa é a marca, o sabor, o gosto particular do haicai.

 

 

2.

 

Alguém me escreve, inbox, que o haicai na sua origem tem humor. É verdade. A própria denominação, como se sabe, é uma caracterização de um tipo de poesia, baseada na seriedade do renga. Renga informal, cômico, engraçado etc. Meu ponto tampouco era condenar o humor ou um tipo de haicai. Muito menos o de Leminski, que estudei e acho na verdade um tributo a Millôr, esse gênio do humor. Há lugar para todos debaixo do sol. Meu comentário, como todo comentário crítico, traz um gosto, busca a expressão de um gosto - e muitas vezes promove um gosto ou tenta explicitar um gosto; ou ainda influenciar o gosto do leitor. É da natureza da crítica. No caso, entre os quatro haicais que me chamaram mais a atenção no livro, dois ficaram na memória espontânea da leitura. Eu disse que entendo por que um deles ficou, mas não entendo por que o outro também ficou. Daí explicitei a minha honesta preferência, sem desfavor de um poeta ou favor de outro, por um tipo de haicai - o mais plano, por assim dizer. Isso tem a ver certamente com o que eu entendo do haicai tradicional, e principalmente do que escolhi ali como interessante para a nossa tradição - em outras palavras: o que existe lá que mal existe aqui e eu posso aproveitar. E tem a ver com o tipo de haicai que eu mesmo procuro escrever, que já foi descrito por um companheiro das trilhas do haicai como "descolorido" - e creio que é uma boa definição.

 

3.

 

Quando publiquei "Toques", em 2020, Antonio Fabiano escreveu uma resenha simpática: “As descoloridas pinceladas dos haicais de Paulo Franchetti”. Antonio Fabiano, que em haicai se chama Seishin, do meu ponto de vista acertou a mão logo no título. Não devo comentar a sensível e generosa análise que faz de alguns haicais desse livro. Basta referir, para o que pretendo aqui, o fecho do texto: “Por essas e outras, com seus descoloridos haicais e despretensiosa atuação poética, o haijin do 'Oeste' se configura como um caso singularíssimo no cenário nacional de tantos e tão mais brilhantes haicaístas.” Essa formulação final me foi especialmente gratificante. Se há algo em que me reconheço é nessa ideia de uma despretensiosa atuação poética. É o contrário da minha às vezes incisiva atuação crítica e teórica no que diz respeito ao haicai. Talvez porque, como disse na postagem anterior, eu tenha me esforçado para buscar, na tradição longínqua do haicai japonês, algo que me parece bom e útil fortalecer dentro do nosso próprio horizonte literário. E o que seria isso? O haicai como poesia da modéstia, da magreza, da notação imediata do que o espírito recolhe como imagem ou eco ao seu estado, como utilização do mínimo para produzir apenas o suficiente. Ou seja, de uma forma ou de outra, fico feliz de perceber que, na opinião de um companheiro de jornada, meus descoloridos haicais cumprem seu papel, humildemente, descoloridamente.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

O tio da caminhonete de Pablo Simpson

 Recebi por esses dias um livrinho interessante de uma coleção interessante de uma editora interessante. 


Trata-se de “O tio da caminhonete”, de Pablo Simpson, publicado na Coleção Caravelas, da Editacuja Editora. Para completar a informação: São Paulo, 2021. 


A arte visual é de Fernando Morato, desde a envolvente sobrecapa, até os desenhos ótimos, que batem papo com o texto ao longo das páginas. 


Na ficha técnica encontro mais amigos, ex-alunos da Unicamp. Lá estão Pedro Marques, na curadoria da coleção, e Marcelo Beso, na revisão. E entre os autores já publicados, mais alguns: além do Pedro, o Marco Catalão, de quem já falei aqui, numa dessas crônicas de leitura, e Francine Ricieri, cujo “Eppur si muove” propus a mim mesmo comentar um dia desses e terminei por não o fazer.


O livro de Pablo vale a leitura. E os desenhos de Fernando, idem.


O que me agradou mais foi a mistura. Na caçamba dessa mítica caminhonete cabe de tudo. Cabe Alberto Caeiro, que está na epígrafe e é glosado nas primeiras linhas: “Eu nunca guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse” vira “Eu nunca dirigi uma caminhonete / Mas é como se dirigisse”. Cabem Ray Charles, Santa Teresa de Jesus e Raul Torres e Serrinha nas epígrafes, e cabe, no espírito, também o irmão – porque filho do mesmo pai – de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Esse, na verdade, o inconfessado guiador, porque também aqui o poeta é o tio que guia a caminhonete e é a própria caminhonete. Além disso, ajeita-se nessa caçamba um rolo farpado de alusões e citações, confessas ou disfarçadas.


Pode ser verdade que o tio que nos fala nunca tenha guiado uma caminhonete, mas é quase certo que o poeta, sim. Porque a celebrada D-20 surge muito técnica e sensualmente descrita, do alto dos seus trinta anos, na página final. Sua biografia minuciosa, junto com a de Alberto Caeiro, revela conhecimento íntimo, atesta manipulação amorosa e constante de ambos.


Mas voltando à estrada de Sintra, aqui transmutada, ao que parece, na Washington Luís entre Araraquara e São José do Rio Preto: graças a um código QR, que remete ao Spotify, sabemos que esse hipotético tiozão vai ouvindo uma verdadeira salada musical que junta um pouco de tudo, em justaposições inesperadas:  Roberto Carlos, Jota Quest, Sérgio Reis, Johnny Cash, Mötley Crüe, forrozão...


Assim como a trilha sonora, a salada de gêneros e tonalidades afetivas é a tônica do poema. E nisso reside sua arte e interesse, porque nos meandros desse negaceio brotam trevos e carrapichos de lirismo. 


Enquanto lia me lembrei de um belo poema de William Carlos Williams, “The right of way”. José Paulo Paes o traduziu. Começa assim:


O DIREITO DE PASSAGEM 


Transitando com a ideia posta

em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem

eu desfruto a estrada por

efeito de lei —


Direto de passagem não é boa tradução. É uma via preferencial, na qual o poeta pode dirigir sem se preocupar em parar nos cruzamentos e assim ir contando o que vê à margem da estrada.


No poema de Pablo não há direito de passagem, e o momento de autoestrada é breve: aqui não há narrativa de escopo realista, mas uma série de montagens paródicas e irônicas.


Talvez por isso mesmo me tenha lembrado também de um texto de Freud que me causou muita impressão quando o li na juventude. 


Se me lembro bem, Freud dizia que quando um eu se abre com outro, se aproxima muito, o movimento do outro é de fechamento, de erguer barreiras, de se afastar. Freud então se pergunta por que e como a exposição de algo muito íntimo num poema ou numa obra de arte nos atinge, passa as barreiras, nos causa empatia, pode nos comover profundamente.


Talvez eu não tenha resumido bem, mas a ideia era essa, a pergunta era essa. E a resposta dele foi que a arte nos distrai. A forma nos ocupa, nos atrai a atenção. E o conteúdo psíquico nos atinge. Mais ou menos como um truque, uma espécie de prestidigitação psíquica.


(Este é um resumo bem condizente com esta manhã preguiçosa e calorenta de sábado, que me impede de ir buscar o texto e de o reler.)


Pois bem, esse texto de Freud me ocorreu porque nesse passeio com a velha caminhonete acontece algo semelhante: nessa bricolagem irônica, em que o poeta joga em todas as posições, de goleiro a centroavante, algo passa – ao gosto do freguês, podia talvez dizer, mas seria uma leitura simplista – algo passa de lirismo. Um lirismo que pede passagem, tropeça nos imaginados engradados de cerveja na caçamba, habita o lema machista do para-choque, às vezes surge numa frase, outra numa só palavra encaixada para o efeito, até que fecha o livro num haicai:


 Noite e eu só sempre só

 escovo os dentes ouço

 um grilo na calçada.


É verdade que o fecho do livro – como acontece com os fechos todos, dos romances e das vidas – redimensiona o que veio antes dele, percorre-o como uma fagulha, iluminando retrospectivamente a vida ou o romance, com uma luz nova que destaca cenas e palavras que tinham ficado embaçadas ou nas quais tínhamos atentado pouco.


Seja como for, a releitura fragmentária pareceu-me tão interessante quanto a leitura. O que, para mim, é um tipo de, como se dizia antigamente, prova dos nove.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

IA e crítica literária

 Vi hoje uma entrevista de um famoso neurocirurgião, que dizia que a IA é balela, porque não é verdadeiramente nem inteligente nem artificial. Dizia ainda que ela é diferente do cérebro porque só trabalha com dados do passado. Fiquei me perguntando: ora, e nós?

Eu acho que o poder da IA é dialético, no sentido que ela “ouve” muitos e muitos textos sobre um assunto, processa o conjunto e extrai algo deles, como síntese. Ou seja, ela os faz dialogar entre si.
Pensar que não se pode criar uma hipótese a partir desse diálogo, uma hipótese nova, não parece fazer muito sentido para mim. Acho que é exatamente assim que eu funciono. Então é provável que eu também não seja verdadeiramente inteligente, embora ainda pareça claro que não sou - pelo menos do ponto de vista físico - artificial.
Mas a sério: o que uma máquina de IA nos mostra é que o processamento do conhecimento acumulado já é feito de forma muito mais eficiente pelas máquinas. Portanto, a novidade que há para extrair daí de modo lógico também será extraído por elas muito mais rápida e eficientemente.
Do ponto de vista da minha área, o que isso quererá dizer? Que texto crítico poderá ser produzido de modo mais eficiente por humanos, quando a IA estiver adulta (é atualmente uma criança, nem chegou à adolescência...).
Talvez o diferencial resida no de sempre: naquela fagulha que poderíamos chamar de intuição crítica e que consiste na projeção dos nossos problemas sobre um objeto do passado (ou do presente). Nesse sentido, a IA não parece ameaça, e sim ajuda, instrumento de apoio que permite economizar muito esforço, uma vez obtida a fagulha.
Na verdade, no que me diz respeito, será o de sempre (e pela idade, é quase certo que eu não veja a IA no esplendor da sua maturidade). E o de sempre é: quando me defronto com uma obra literária, anoto tudo que me ocorre, por mais despropositado que possa parecer no momento. Depois daquilo tudo peneirado e selecionadas as partes boas, vem o dolorido processo de revisão da bibliografia, para ver o que já foi dito e explorado e também o que posso modificar da percepção original.
Desse processo, o que sobra, no final das contas, é a pequena razão de originalidade. É sobre ela que tento, então, construir o argumento.
É provável que a máquina não tenha essa sensibilidade do tempo, essas angústias por resolver. Embora me pareça claro que em breve ela as possa emular...
Isso é que desafia e anima.

Pessanha e a história de Portugal, segundo a DeepSeek

 E aqui está o que a sensação do momento, a DeepSeek, escreveu sobre a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal;

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"A poesia de Camilo Pessanha, embora frequentemente associada ao simbolismo e à influência oriental, também mantém uma relação subtil e profunda com a história de Portugal. Essa conexão não se manifesta de forma explícita ou direta, como em poetas épicos ou nacionalistas, mas surge de maneira mais discreta, através de temas, atmosferas e uma sensibilidade que refletem o contexto histórico e cultural português do final do século XIX e início do XX.
Pessanha viveu numa época de grandes transformações para Portugal. O país enfrentava uma crise política, económica e identitária, marcada pelo declínio do império colonial, a instabilidade da monarquia e o advento da República em 1910. Embora ele tenha passado a maior parte de sua vida em Macau, distante geograficamente de Portugal, sua poesia carrega ecos dessa crise e de uma certa melancolia histórica. A sensação de desencanto, decadência e fragilidade que percorre sua obra pode ser lida como um reflexo do sentimento de um país que via seu poder e influência diminuírem no cenário global.
Em *Clepsidra*, sua principal obra, Pessanha explora temas como a passagem do tempo, a efemeridade da vida e a busca por um sentido transcendente. Esses temas, embora universais, adquirem um significado particular quando contextualizados na história de Portugal. A imagem da clepsidra, ou ampulheta, pode ser interpretada como uma metáfora para o próprio país, que vê suas glórias passadas escoarem-se lentamente, enquanto enfrenta um presente incerto. A poesia de Pessanha, com seu tom introspectivo e melancólico, parece capturar o espírito de uma nação que luta para reconciliar-se com seu passado grandioso e um futuro desafiador.
Além disso, a relação de Pessanha com a história de Portugal também se manifesta em sua ligação com o simbolismo, um movimento literário que, em Portugal, estava intimamente conectado à busca por uma identidade cultural moderna. O simbolismo português, representado por figuras como Eugénio de Castro e António Nobre, buscava renovar a literatura nacional, distanciando-se do realismo e do naturalismo e abraçando uma estética mais subjectiva e espiritualizada. Pessanha, embora distante fisicamente, fazia parte desse movimento e contribuiu para essa renovação, trazendo para a poesia portuguesa uma sensibilidade única, influenciada tanto pela tradição europeia quanto pela cultura oriental.
Por fim, a própria vida de Pessanha, marcada pelo exílio voluntário em Macau, pode ser vista como um reflexo da diáspora portuguesa e da complexa relação do país com seu império colonial. Macau, como um território português na China, era um espaço de encontro entre culturas, mas também um símbolo da presença colonial de Portugal no Oriente. A poesia de Pessanha, ao mesmo tempo que celebra a beleza e a espiritualidade da cultura chinesa, também carrega consigo a sombra de um império em declínio.
Em suma, a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal é feita de nuances e subtilezas. Sua obra não fala directamente de eventos históricos ou de figuras nacionais, mas captura o espírito de uma época marcada pela decadência, pela busca de identidade e pela tensão entre o passado e o futuro. Através de sua linguagem simbólica e introspectiva, Pessanha oferece uma visão poética e profundamente humana de um país em transição, revelando como a história e a cultura de Portugal estão entrelaçadas com sua própria sensibilidade artística."