segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Oriente, de Thomaz Albornoz Neves

 Passei os últimos dias navegando erraticamente pelo volume "Oriente", de Thomaz Albornoz Neves. São 771 páginas, encadernadas em capa dura, em edição rigorosamente do autor. Quero dizer: o trabalho de seleção dos textos, a tradução, as anotações, a chancela editorial, o projeto gráfico e a diagramação, tudo.

Não vou longe nestes comentários. Esse mar de poesia é amplo, a gente tem de passar entre Cila e Caríbdis várias vezes, tem de interpretar, sem ouvir, as reações desse Ulisses ao contínuo canto das sereias orientais e, por fim, não poucas vezes, na companhia imaginária dos leitores presentes e futuros, regalar-se no banquete, nos termos em que Carlos Alberto Nunes traduziu o momento da confraternização sagrada: “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas”.
Não li de enfiada, confesso. Um livro como esse é um companheiro de muitos anos. A gente mergulha, sai, respira, sente saudade e volta para nova imersão, exercício ou banho rápido. Outras vezes apenas para buscar frescor de alívio. Ou ainda sal que conserve, pela revisita, a divagação, e que tempere, tornando menos angustiante o engolir diário de palavras toscas.
Li um pedaço aqui, outro ali, conhecendo o que ignorava e reconhecendo o já visto. Às vezes, ainda, não reconhecendo ou mesmo desconhecendo o que já conhecia.
São muitos os efeitos especulares nesse caso, as miragens, as refrações.
A gente se afeiçoa a uma versão e depois, mesmo que se depare com outra, que pode até ser melhor, a primeira não se apaga. Foi assim com o Tao Te King. Li pela primeira vez esse texto ainda na primeira juventude, num dos dois volumes de “A sabedoria da China e da Índia”, de Lin Yu Tang. Ele o traduziu do chinês para o inglês. E dessa língua foi traduzido para o português. Mas não foi essa a versão que se imprimiu no meu espírito, mas uma que li num período em que visava não diretamente a poesia, mas buscava um caminho correto, ou um caminho de libertação. A versão do Thomaz é mais fluida, mais bonita. Mas a cada passo, como um véu que distorce, o que eu tinha fixado na memória impedia a completa fruição do novo.
Outra coisa sucedeu com os haikais. Conheço vários que estão reunidos no volume. Thomaz não os recolheu da fonte mais generosa, que são os livros do Blyth. Como confessa, propositalmente manteve-se fora do alcance desse autor, cujas traduções e interpretações moldaram em grande parte o que foi o haikai no mundo de língua inglesa. Recorreu a outras fontes.
Confesso que em vários momentos suspeitei de que um dado haikai era outro, digamos assim. Por exemplo: um haikai que eu mesmo traduzi me aparecia sob uma vestimenta que exigia que o despisse para ver-lhe a matéria íntima e o reconhecesse. Noutros casos, devo ter passado rente a algum velho conhecido sem sequer o cumprimentar. Por outro lado, havia vários convivas nessa festa que eu nunca tinha encontrado (eu creio) e me foram ali apresentados.
Esse efeito deriva do princípio esposado pelo tradutor. E de alguma coisa mais, que logo direi.
Quanto ao princípio, vejamos o que ele escreve no posfácio:

“O autor desconhece os originais, nunca esteve nos lugares em que foram escritos nem manteve contato com especialistas para aprofundar seu entendimento. Preferiu conservar suas dúvidas e seguir a intuição, selo de seu diletantismo, no lugar de maquiar um domínio da matéria que não possui. Por serem baseadas em traduções, as versões não possuem valor filológico. São ecos do eco anterior distantes da voz que os causou.”

Não seria talvez despropositado aproximar essa última frase de um bem conhecido verso das correspondências de Baudelaire. Porque na floresta de ideogramas em que o poeta gaúcho se move, são os ecos que importam. E não necessariamente ou não apenas os ecos da voz original, digo, do chinês ou do japonês que escreveu o texto a traduzir. Mas os ecos de uma voz anterior, que ressoa sob a forma de intuição. O diletantismo se configura, eu penso, como estratégia de preservação dessa busca. 
Logo adiante, seu trabalho de tradutor é descrito como “prática de falsário”, o que não é uma boa definição. Com essa modéstia irônica, o que se aponta é o conjunto de atividades que permite a refratada aproximação (e ao mesmo tempo reafirma o distanciamento) do tradutor em relação ao original intangível e, ainda mais, talvez, ao original daquele original – por assim dizer. 
O posfácio, aliás, se intitula “A tradução no escuro”, o que não é um título exato, uma vez que essas traduções se fazem a uma luz particular, difícil, mas intensa. É, porém, no escuro, no sentido em que a iluminação oferecida pela filologia (e mesmo pelo estudo básico da língua) é cuidadosamente desprezada. 
É que seu interesse está mais além, como se vê por aqui: “de tudo, em cada caso, ao tradutor resta o contato direto com o que é intraduzível”. Estaria em erro, entretanto, quem lesse a frase como resignação ao fracasso da tradução. Pelo contrário, o que aí está é uma celebração, o desvelamento do fim da atividade e da origem desse livro, como dos outros do autor. Também da poesia se poderia dizer isso, com modalizações; mas seria arriscado e não viria aqui ao caso. A menos que eu enveredasse pelos demais livros do Thomaz. Da tradução, sim, como ele mesmo disse: o contato direto com o que não pode ser vertido em palavras. No universo abarcado pelo título do livro não é também isso o que se denomina iluminação?

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ainda a tradução de poesia



Numa conversa com Thomaz Albornoz Neves, ele escreveu: “Por meu temperamento, quando a versão não me convence poeticamente a descarto. Creio que o meu sarrafo é esse. A literalidade sem poesia não justifica uma tradução, mas a poesia que se afasta do contexto do original tampouco.”

Para começo de conversa, devo dizer que concordo com ele. Não só nesse ponto, mas – até agora pelo menos 🙂 - em quase tudo sobre o que conversamos. Mas é claro que há matizes na concordância. Às vezes, mais que matizes: alteração de algumas cores, sem prejudicar muito o conjunto do quadro. Afinal, sou sobretudo um acadêmico e ele é sobretudo um poeta.

Vejamos. O critério para inclusão de haikais no livro “Haikai – antologia e história” foi mais ou menos este: encontrar o ponto mais próximo entre a sustentação poética dos três versos e o chão oriental em que eles se enraízam. Como as traduções foram o resultado do trabalho das aulas de japonês que tive com a Elsa, ao longo dos meses se acumularam e terminaram por ser centenas. Mas apenas 107 foram acolhidas no livro. Quando, para que o haikai se sustentasse em pé, eu precisasse ou me afastar demais do original ou sobrecarregar o texto de notas, descartei e passei adiante. 

Mas agora vem um matiz importante, que deriva da finalidade talvez, mas não só. Como no livro demos a tradução palavra por palavra, eu poderia ter mais liberdade e fazer uma tradução mais criativa. Não fiz isso, porém. Optei pela mais literal possível, acrescentando o mínimo: sintaxe e nexos subentendidos, a maior parte das vezes. E deixei para notas aquelas informações que eu não poderia incluir na tradução em dois ou três versos breves. Quanto à finalidade e à situação é evidente: por um lado, era um livro algo erudito, embora se destinasse também à divulgação; por outro, a tradução em sintaxe portuguesa não foi pensada para funcionar autonomamente, mas sim em conjunto com a tradução mais literal possível, quase palavra por palavra, com a qual dialogaria. 

A literalidade radical tem, ela mesma, poesia, no sentido que provoca o estranhamento e exige a imaginação tradutória. Por exemplo, no haikai mais famoso de Bashô, em japonês a gente entende que ali, na verdade, há dois segmentos e não três. Um terminado pela partícula expletiva -ya, que é uma “palavra de corte” bem comum; e outro que recobre o resto do haikai. Não se trata, pois, de uma frase nominal, que diz “velho tanque”, seguida de outra frase que diz “rã(s) mergulha(m)”, à qual se seguiria uma derradeira frase nominal, “barulho de água”. A primeira coisa que a vem aos olhos do leitor atento, ao ver a tradução palavra por palavra é o final: oto – literalmente, som. O haikai termina, portanto, com a palavra som, o produto, por assim dizer, de tudo que veio antes. Tudo bem que em inglês se poderia obter algo parecido nesse aspecto. Mas o que a tradução mais literal permite ver é que a “kawazu tobikomu mizu no oto” forma um só bloco, algo como, grosseiramente por conta do uso das preposições: o barulho da água do mergulho da rã. Mas ainda assim, ao inverso, com a rã que pula vindo primeiro, a água onde mergulha no meio e o som no final. Assim, em certo sentido eu diria que a declaração “a literalidade sem poesia não justifica uma tradução” é verdadeira, mas não porque ela seja sem poesia necessariamente, mas sim porque (em uma língua como o japonês ou o chinês, mas talvez em nenhuma outra) eu não consigo completa literalidade em tradução. É uma questão de graus, eu sei, mas queria marcar esse ponto, com algum exagero...

Por outro lado, é verdade que não me dediquei muito à tradução. Sempre fui mais um leitor de traduções. E confesso que o meu modelo de livro, como leitor, é algo como aqueles volumes publicados pela Sabiá (e antes, eu creio, pela Editora do Autor). Foi ali que li, entre outros, Pablo Neruda. Na página, o texto original. No rodapé, com os versos divididos por /, a tradução “literal”. Adorava aquilo: ler o original e depois o literal ou vice-versa e tentar perceber a poesia, sabendo que a minha percepção e mesmo a minha avaliação de um dependia da do outro. Os que trabalham com tradução devem achar isso odioso. É relegar a tradução a um estatuto ancilar. Pois é mesmo como eu penso a tradução, no limite. Ao menos como leitor (e como tradutor, a julgar pelo Haikai – Antologia e História). Agora eu poderia, se fosse imprudente, passar a dizer a minha impressão de algum tipo de intervenção e produtos de alguns tradutores recriadores. Mas paro a tempo, lembrando-me da temperança, da prudência que não tive na juventude e talvez devesse começar a ter na velhice.

O dilema do tradutor


Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:


Se eu a tomasse nas mãos

derreteria em lágrimas

Geada outonal


A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.


***


Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:


“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.


Nas mãos derreteria

Sob as lágrimas quentes –

Geada de outono.”


***


No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:


Se a tomasse nas mãos

Derreteria sob as lágrimas quentes:

Geada de outono.


 Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.

 

 E então, que dilema é esse? 

 É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.

 Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.

 O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.

sábado, 24 de dezembro de 2022

IA e o autor como diferencial

 Postei uma série de pequenos experimentos com Inteligência Artificial na minha página do Facebook. Este breve texto decorrente das conversas pode ter algum interesse além delas. 

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Quando postei as respostas da IA a questões literárias, Ricardo Vasconcelos comentou: "Teremos que trazer a vida do escritor para a sala de aula novamente?" É uma pergunta relevante. Principalmente porque a vida dos autores nunca saiu da sala de aula, nem dos estudos literários. O único ponto em aberto é em que medida permaneceu. Na verdade, são dois pontos, porque também se pode perguntar que vida, ou melhor, que biografia. Começando pelo segundo, há pelo menos dois tipos de biografia: a biografia privada e a biografia pública. Isso tudo de modo bem simplificado, claro. A biografia privada pode não ter grande presença na crítica, mesmo considerando o sucesso, em certo tempo, da abordagem de orientação psicológica ou psicanalítica. Já a biografia pública, tem muita. Lemos com muita atenção, por exemplo, a correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. E do primeiro com muitos outros. Construímos aí uma biografia intelectual, que é muito difícil deixar de lado ao tratar da obra de Mário, e talvez um pouco menos difícil ao tratar da obra dos seus interlocutores. E também lemos biografias de autores, literários ou não. É que a biografia, mesmo a mais enxuta, importa muito. Datas de nascimento e morte, bem como de elaboração e publicação de obras, bem como dados sobre a história editorial e política de um autor contam muito. A ideia de que seria possível compor uma história da literatura como pura história de formas em evolução só se sustentou como ilusão no período que vai do apogeu do New Criticism ao progressivo abandono do Estruturalismo como chave a permitir simultaneamente a abertura de todas as portas das ciências humanas. Mas nem isso excluiu a biografia ao menos num sentido: a data de publicação, bem como a língua e o lugar em que um poema ou romance foi publicado. Porque uma obra literária é, no limite, como um gesto. Seu sentido mais completo – e às vezes, o único mais consistente – só se revela quando se sabe em que contexto foi feito. Um livro de sonetos publicado no Brasil em 1890 e um livro de sonetos publicado em 2022 sinalizam coisas diferentes, independente do que os sonetos sejam, além de sonetos. A forma mais rica de trazer a biografia para a sala de aula é a história literária. Por ser narrativa, cada autor (e mesmo cada obra) é uma personagem, e como tal tem uma biografia, o que quer dizer: nascimento, vida finita, vida eterna (isto é, reencarnações) e eventualmente morte. Uma obra, por sua vez, é como um gesto: o pôr a mão junto à testa tem um sentido num desfile militar e numa arquibancada posicionada contra o sol. Se alguém não souber a data de publicação, nem o lugar, nem o que eram as tendências dominantes, a prática do tempo, dificilmente poderá compreender, ou melhor, avaliar a relevância de um texto adequadamente. A valoração literária lida constantemente com conceitos como inovação, repetição, epigonismo, influência, vanguarda, revolucionário etc. que não subsistem sem um mínimo arcabouço biográfico.

Um dos trechos que mais me chamaram a atenção, ao ler um dos livros da escola de Bashô, foi aquele no qual o mestre pergunta, antes de dizer se um haikai é bom ou ruim, quem foi o autor. E, ao saber, diz que era bom. Mas que se fosse de qualquer outra pessoa, não seria. Na época, isso me pareceu muito estranho. Bizarro, talvez. Mas logo percebi que entre nós também é assim, mas não de forma tão direta. E o “quem fez? quem foi o autor?” não é uma pergunta facilmente descartável, porque não é meramente busca de um apoio de autoridade. No geral é uma pergunta pelo sentido do texto no contexto em que foi produzido.

Por exemplo, todos conhecemos os poemas de Oswald de Andrade. Aquele, por exemplo, que diz que o netinho jogou os óculos do vovô na privada. Se não soubermos em que contexto foi escrito e publicado, nem quem foi o seu autor, faríamos a interpretação que fazemos? Consideraríamos sequer que se trata de poesia? E o amor/humor? E mesmo a “Meditação sobre o Tietê”, teria sido lida como foi, e nós a leríamos como a lemos se não trouxesse o nome do autor que traz?

Outro ponto que o haikai tornou mais claro para mim: o valor de um texto, num ambiente fechado de referências e convenções como era o do haikai clássico, também era aquilatado em função do que as pessoas tenderiam a dizer em similar contexto. A novidade do haikai, em grande parte, era essa: dizer algo diferente do automático, ou negar-se a dizer qualquer coisa numa situação em que todos tenderiam a dizer o mesmo, o previsível automático. Isso é, pensei na época, um dos vetores da nossa história literária. Que, no sentido amplo, traz no seu interior uma sucessão de biografias (públicas, objetivas, mas ainda assim biografias).

Essas divagações me ocorreram quando li a pergunta que referi no começo deste texto. E a resposta, além do abstrato destas ponderações, num sentido prático e concreto é: talvez sim. Talvez trazer o autor para a sala de aula, de um modo mais decidido, seja a forma de evitar a sua morte, agora num sentido específico: o de ser confundido com a IA. Ou confundido com ela. Nesse caso, mesmo que a IA evolua (como deve evoluir sem parar) e consiga detectar o contexto e produzir inovação ou conformação, conforme a necessidade ou o gosto do freguês, sempre será possível identificar o autor humano. O que não sei se seria realmente uma vantagem, pois o problema é que, já agora, muitos autores humanos fazem exatamente o que faz a IA hoje: produzem mais do mesmo ou forçam muito o lado subjetivo para tentar inovar a qualquer custo. Ora, quem já corrigiu redações de vestibular sabe como é: quando todo mundo quer ser original na mesma direção, ninguém fica original, todo mundo fica igual, apenas num nível diferente.

Mas sim, trazer o autor para a sala de aula pode ser uma defesa, por enquanto, para o professor. E para o autor.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Uma aluna de Camilo Pessanha

 Quando recortava, para publicar, o texto sobre Danilo Barreiros, lembrei-me da conversa que tive com D. Henriqueta, sua mulher, que fora aluna de Camilo Pessanha em Macau. 

Eu queria confirmar uma percepção. 

É que, por obra dos vários inimigos que o poeta granjeou naquele mundinho abafado, que era o da comunidade portuguesa de Macau, difundiu-se a legenda do poeta maltrapilho, sujo, opiômano, incapaz de qualquer esforço, mau professor etc. 

Até hoje muita gente engole isso tudo como verdade, mesmo com os dados disponíveis – alguns dos quais eu mesmo trouxe a público tanto no livrinho sobre Pessanha publicado pela Imprensa Nacional de Portugal, quanto na edição brasileira da Clepsydra, pela Ateliê. 

Sem dizer nada, pedi a D. Henriqueta que me descrevesse o poeta no dia a dia, pois eu sabia que ele almoçava uma vez por semana em casa de seu pai. 

O que ela me descreveu confirmou minha hipótese e desacreditou de vez o que eu já adivinhava ser exagero, e mais que exagero, falsidade. Sempre elegante, me disse ela. Excelente professor, que encantava os alunos. (Que era competente e dedicado eu já sabia, pois tinha visto as extensas e anotadas folhas em que escrevia a matéria das aulas.) 

Perguntei-lhe, então, de repente, se era verdade que ele não era asseado. Ao que ela me respondeu com certa dose de indignação. De forma alguma, era um home elegante – repetiu – e trazia sempre um lencinho no bolso do paletó. Mencionou cabelo e barba cuidados. E acrescentou que se sentava sempre na primeira fila, na classe (o que, entendi, garantia o que dizia). Por fim, disse  que gostava do sentir o perfume usado por ele. Sempre perfumado, repetiu. Da mesma forma que na escola, à mesa de almoço em sua casa era o mesmo homem bem vestido e elegante – repito a palavra porque era recorrente na conversa.

Dois anos depois, quando voltei a Portugal, conheci Daniel Pires. Dele ganhei um conjunto notável de fotografias de Pessanha. E ainda, em seguida, a fantástica fotobiografia do poeta. Ali se veem muitas coisas. Inclusive as fotografias em que Pessanha posa de mendigo, acompanhado de dois cãezinhos e de uma bengala de castão de prata, sobre um rochedo. Ele ri, contidamente. Faz ali o papel de um eremita ou poeta vagante. Anos depois, propositadamente se ignorou que naquele tempo não havia ainda kodaks portáteis. Para o registro, o poeta teve de fazer ir até lá um fotógrafo com seu equipamento. Depois, mandou fazer várias cóppias, emoldurou-as, autografou-as e enviou para amigos. Durante muitos anos, passaram por provas do seu desleixo e achinesamento (essa palavra que valia um insulto). Como se ele inadvertidamente tivesse sido fotografado, surpreendido em decadência. Para dizer como ele disse num verso célebre, em que desvios a razão se perde!

Haicai no Brasil?

 Evando Nascimento escreveu, num comentário ao post anterior:

“posso estar equivocado, mas é essa sensação que tenho ao ler haicais à brasileira - algo muito fake e por vezes anódino. Mas pode ser só impressão... É como se alguém quisesse fazer gravura japonesa com ideogramas e o Pão de Açúcar ao fundo...”

Depois, como eu prometesse comentar o comentário num novo post, acrescentou:

“Sou totalmente a favor das migrações e adaptações culturais, mas algumas são extremamente difíceis. Ainda não me deparei com nenhum haicai brasileiro que realmente me agradasse como os japoneses, mas, repito, pode ser ignorância minha e haja excelentes haicais por aí...”

Posso começar pelo fim. 

No geral, o que se pratica sob o nome de haicai no Brasil é um terceto com duas características: 1) métrica de 5-7-5 sílabas, contadas entre nós à maneira definida por A. F. de Castilho. (Sobre isso, em vários posts e artigos, escrevi que é o que há de menos interessante a importar: além de ser uma correspondência falsa, porque em japonês não se contam sílabas, mas moras, não nos diz nada ritmicamente...); 2) uma palavra indicativa de estação, o “kigo”.

O haicai assim definido tem vantagem e desvantagens. 

A vantagem é a facilidade com que se podem fazer, da qual decorre a grande quantidade de praticantes solitários ou reunidos em grêmios. Isso não me parece desprezível, do ponto de vista cultural, digo logo. O haicai tem esse caráter de prática coletiva, de atividade grupal, que me parece ter relevância social. Quando essa prática tem, como líder ou guia, um bom poeta ou um bom conhecedor da tradição, os resultados podem ser notáveis. 

As desvantagens são o tom muitas vezes “fake” do uso prescritivo dos kigos, bem como o caráter anódino da maior parte da produção.

Mas esse último ponto é característica apenas do haicai? Não creio. Isso sucede também com a despropositada maioria dos livros de poesia contemporânea brasileira que tenho recebido ou comprado. O mesmo para páginas da internet ou de jornais ou de revistas impressas que vez por outra visito.

Da mesma forma como há alguns bons poetas em meio à multidão dos que se limitam a recortar as linhas de textos que, em prosa, seriam banais – e que em linhas recortadas continuam banais, apesar de o procedimento do corte postular uma leitura diferenciada –, assim também em meio à profusão de livros sem interesse há aqueles nos quais o haicai se justifica como forma e, principalmente, como atitude, disposição, jeito de se situar na linguagem. Um exemplo: o livro “Furusato no uta/Canção da terra natal”, de Teruko Oda – a poeta que, do meu ponto de vista, faz o mais significativo haicai em português.

Sem dúvida que há, no geral, no Brasil, um número muito maior de poetas interessantes do que no pequeno mundo do haicai. Mas isso não é puramente um defeito do haicai, senão no sentido de que seu universo é habitado por muito menos gente do que o outro.

Quanto à migração e adaptação cultural, concordo: a do haicai é muito difícil. Mas não por conta do ideograma, como muitos acreditam. Creio que o uso da letra chinesa no hokku ou no haiku tem sido sistematicamente superestimado no Ocidente. Basta ver os exemplos de haiga (hokku + desenho) que postei aqui mesmo. 

O que é difícil é superar a tentação de reduzi-lo ou a uma forma fixa, espécie de soneto microscópico, ou a um exotismo superficial.

Não que não fazer haicai não seja um exercício de exotismo, mas no sentido radical que Segalen atribuía a essa palavra. 

Em suma, eu acho que o haicai pode ser aclimatado com proveito, como a Ikebana o tem sido. Também as demais artes japonesas que são um caminho se aclimataram, ou têm sido bem praticadas aqui. E não valeria a pena achar que porque temos o facão de mato ou a peixeira seria fútil ou sem sentido praticar as artes orientais da espada. E da mesma forma que quando vamos a uma exposição de Ikebana não faz sentido comparar um pequeno arranjo despojado de três elementos com uma profusa guirlanda holandesa, também para a apreciação do haicai se exige uma disposição receptiva diferente. 

A pergunta decisiva então me parece ser “vale a pena?” Vale a pena a prática séria, vale a pena o esforço? E essas se desdobram em outras, do tipo: o que nos pode interessar no haicai japonês? O que ele pode trazer à nossa prática poética? O que seria seu diferencial, isto é: o que, nesse tipo de composição, é diverso do que fazemos ou pensamos fazer ao escrever poesia? Ou pelo menos, para pensar como R. H. Blyth, o que ele permite tornar mais visível na nossa própria tradição?

 Das respostas a essas perguntas vai depender o julgamento.

 Não é menos relevante pensar em qual a disposição de espírito que o haicai requer do seu leitor. Ou então: qual a disposição que ele favorece nele.

 Confesso que pretendia escrever de modo mais objetivo, inclusive adiantando as minhas respostas pessoais a essas questões finais. Mas não só não tive o tempo de que precisava para escrever hoje e não perder o embalo, mas ainda perdi a mão e escrevi demais.

A voz dos patos

 Lendo um diário de Bashô, deparo com um haikai bem conhecido entre nós, principalmente depois da tradução que dele fez Octavio Paz.

É este:


umi kurete

kamo no koe

honoka ni shiroshi


Valeria a pena, talvez, para os fixados na métrica, dizer que nesse haikai a forma usual não é respeitada, pois em vez de 5-7-5 moras (ou sílabas, para facilitar a referência), temos 5-5-7. E assegurar-lhes que não há como dividi-lo de outra forma. Mas o ponto interessante é que esses versos têm sido lidos entre nós como exemplo de sinestesia. Assim: o mar está escurecendo - a voz do(s) pato(s) é fracamente branca.

É uma leitura possível, mas não é a única.

Os defensores modernos argumentam que é da genialidade do poeta que deriva a sinestesia, que identificam como o ponto mais relevante do poema.

Já os comentadores mais sisudos e tradicionais não abdicam do caráter denotativo, objetivo, como um efeito preferível a esse.

No caso, a leitura seria: o mar está escurecendo – a voz do(s) pato(s) enfraquece na brancura. A brancura seria o aspecto pálido ou enevoado da cena, que é um frio entardecer.

Memórias: Danilo Barreiros


O que vem a seguir, em três partes, é um extrato de um texto mais longo e nunca publicado.

Enviei-o a Pedro Barreiros, quando ele começou a redigir a biografia do pai. Enviei junto as cartas nas quais Danilo terminou a narrativa, pois ficou interrompida pela minha volta ao Brasil.

O encontro com ambos, a que se acrescentou depois o conhecimento da mulher de Pedro, Graça, foi uma das grandes alegrias que tive em Portugal.

 

 

I

 

            Em 1989, de passagem por Lisboa, perguntei a vários conhecidos se ainda vivia e se morava em Lisboa o Dr. Danilo Barreiros. Ninguém sabia responder. A única pessoa que com ele estivera ultimamente, disseram-me, andava agora por Macau, em busca dos rastos de Camilo Pessanha para compor uma fotobiografia.

            O homem era para mim uma referência bibliográfica. Tomei certa vez um avião em São Paulo e voei ao Rio de Janeiro para consultar, na Biblioteca Nacional, A paixão chinesa de W. de Moraes. Tinha dele algumas outras notícias, que me levavam a procurá‑lo. Uma, que morara longos anos em Macau, onde convivera com o grande sinólogo José Vicente Jorge, companheiro e professor de Pessanha. Outra, que se casara com uma filha de Jorge, aluna de Pessanha no Liceu de Macau, herdeira de muitas recordações do mestre e de uma bela coleção de arte chinesa do pai.

            Sobre um móvel de canto, na sala de televisão do hotelzinho, estava a lista telefônica. Na letra B, o nome de minha principal bibliografia sobre Wenceslau de Moraes. Telefonei‑lhe, apresentei‑me e desliguei, surpreso, com uma entrevista marcada para segunda‑feira às duas horas da tarde. Era sexta‑feira, e o programa do final de semana era uma festa de touros Tejo acima, em Alcochete.

            Quando voltei dos touros, fui à casa de Danilo Barreiros. Dona Henriqueta, bem-disposta e elegante, abriu‑me a porta do apartamento da rua Coelho da Rocha e entrei em uma sala grande, que tinha ao fundo um retrato de Vicente Jorge e uma infinidade de outros objetos que só aos poucos pude observar com atenção. Enquanto aguardava, entretive‑me com as peças mais impressionantes e que eram, nesta exata ordem, um biombo de madeira escura coberto de baixos-relevos, um console chinês esculpido e um buda sorridente, que segurava um colar de contas. Todo em bronze, Sakhiamuni vinha ladeado por dois leõezinhos simpáticos, gorduchos, de boca escancarada.

            Não terminara ainda com o sino que ficava mais à esquerda e já Danilo Barreiros chegava, maldizendo a ciática que o castigava muito nos últimos dias. Embrulhado em uma espécie de robe‑de‑chambre arroxeado, que mal se acomodava sobre os pijamas largos, pediu logo ao menino ‑‑ que era eu ‑‑ que o ajudasse a se sentar junto à janela, numa cadeira de braços. Ficamos ali por alguns minutos. O motivo de minha visita, sua disposição em me ajudar, a falta de memória de sua mulher... Nisso sobe as escadas um rapaz magricela e miúdo, que vem consultar o advogado Dr. Barreiros sobre um ponto obscuro na interpretação de uma lei. De minha cadeira, agora à vontade para olhar detidamente o sino, a floreira e os pormenores do console, acompanho a exposição do artigo do Código Civil. É uma explanação clara e enxuta e o pequenino advogado ou estudante de Direito em breve se atira pela escadaria abaixo. Como o calor aumentasse muito, deslocamo‑nos para uma outra pequena sala, de mobília mais chinesa e luz mais escassa. Dizendo‑lhe eu que queria saber a sua vida, o porquê de ter ido a Macau e o que vira por lá pouco depois da morte de Pessanha, propôs‑me Danilo Barreiros o seguinte procedimento: ele iria dizendo o que lhe lembrava; eu anotaria o que me interessasse. Acrescentou, enigmaticamente, que nada ocorria por acaso e que, por isso, podia eu ter certeza de que algo me havia levado até ele naquela tarde quente de segunda‑feira; tínhamos uma missão por cumprir.

            Colocado junto à janela, onde havia mais luz, concordei com a primeira ideia. O calor externo estava realmente insuportável. Passaria ali a tarde, ouvindo as lembranças de Danilo Barreiros e logo mais, à noite, iria vagabundear na Baixa.

            Comecei a tomar notas. Disse‑me ele que nascera em 11 de outubro de 1910, em Lisboa, seis dias depois de proclamada a República. O local era a Rua Arco Marquês de Alegrete, na Mouraria, junto à capela. Era filho de Gregório da Costa Barreiros, originário de Trás‑os Montes. Esse Gregório viera muito cedo a Lisboa e ingressara ainda criança na vida artística, com o nome de Eduardo Barreiros. A respeito do pai, disse‑me que nenhum dos dois nomes era correto, porque o segundo era falso e o primeiro deveria ter sido Gregório Barreiro da Costa.

            Não sabia exatamente por que anotava tudo isso, nem por que ele me contava sua história ab‑ovo. Se devíamos chegar a Macau, o caminho seria muito longo, pensei, e não se vai nesse passo horas a fio com uma ciática tão cruel.

            Fui interrompido, quando divagava nessas questões, por uma observação completamente esdrúxula. Danilo Barreiros, olhando‑me fixamente, disse quase gritando: ‑‑ "O senhor é judeu!" Eu me espantei, é claro. Árabe, sem dúvida, por parte de avô. Judeu era novidade. Disse que não, bati a ponta da caneta no caderno, mostrei que estava a postos para anotar. Só faltava dizer: ora, deixe de brincadeiras, Dr. Danilo, tomemos logo o vapor para Macau! Mas ele me lembrou de que nada sucedia por acaso. Disse que meu perfil jamais o enganaria. A linha da testa, o queixo ‑‑ ou era o traçado do nariz? ‑‑ lhe indicavam claramente o sangue judeu em minhas veias. Falava com tal convicção, que me dispus a encarar o assunto. Pus o caderno sobre a mesinha e esperei. Perguntou‑me se tinha ascendência portuguesa. Disse que sim, que minha avó paterna era uma Teresa Barreira, de Trás‑os‑Montes. Apoiado em boa erudição e maior entusiasmo, o Dr. Danilo explicou‑me de chofre nosso obscuro parentesco, pois não havia dúvidas de que éramos marranos fugidos para Trás‑os‑Montes. Explicou‑me, de entremeio, que os enchidos sem carne, de que eu gostava tanto, eram criação dessa gente que para ocultar a origem matava também o seu capado nos dias previstos e pendurava bem à vista os enchidos ‑‑ sem carne, só aparência, para fugir à perseguição. Mostrou‑me a seguir, apoiado em altas especulações genealógicas e etimológicas, que éramos da mesma família e que, mesmo passados tantos anos e muitas gerações, nem por isso deixávamos de ser primos. Primo! Eu que chegara a ele pela lista telefônica era agora gente da casa! Nessa nova condição, fui novamente apresentado à aluna de Camilo Pessanha, que acorrera ao chamado emocionado de meu parente, trazendo com ela uma mulher que também era da família, além de minha colega. Era judia da gema e professora de uma universidade em Tel‑Aviv. Quase em seguida, chegou um neto do Dr. Danilo que era também, consequentemente, meu primo. Depois outro primo, pai deste, médico e pintor, filho de Danilo. Nessa altura, já tínhamos interrompido as lembranças e as anotações. Voltando à sala grande fizemos alguma festa, com uísque e cerveja. Afinal, desde o tempo de D. Manuel I que a família não se reunia! Cheio de emoção e de bebida, saí de casa de meu primo completamente trôpego, sem qualquer outra utilidade por aquele resto de dia que não fosse dormir despachadamente. Nem mesmo pude ir passear na Baixa e beber a brisa do Tejo. Devo ter descido sem acidentes as escadas, porque acordei ainda eufórico e inteiro, na terça‑feira de manhã.

 

 

II

 

            À tarde fui, na mesma hora, visitar os parentes. D. Henriqueta me recebeu com a cara um pouco mais fechada. Desejava por certo que não se repetisse a pândega do dia anterior, temerosa pela saúde e pelos setenta e nove anos do marido. Este já me esperava na saleta. Mal consegui instalar‑me, começou a contar que sua mãe, que se chamava Carolina Alice Nunes, era atriz e tinha dezoito anos quando ele nasceu. Fui anotando os dados e de novo me veio o pensamento de que aquilo não acabaria mais. Estávamos na segunda tarde de trabalho e meu primo mal acabara de nascer. Nesse ritmo, pensei, mal chegaríamos à primeira adolescência antes do prazo previsto para minha volta, que era dali a uns dez dias. Contou‑me a seguir o seu batizado na Igreja da Mouraria, e nomeou os padrinhos: meu compatriota Leopoldo Fróis, de Niterói, fundador da Casa dos Artistas, solteiro, e uma cantora lírica espanhola chamada Dolores Rentine. A respeito desta, disse‑me ainda que era de origem italiana e de família circense. Declarou ainda que a própria rainha de Espanha a mandara para o Conservatório de Madri, onde deveria apurar a voz maravilhosa. Ora, essa Dolores foi certa feita ao Brasil, numa companhia organizada por um grande empresário português que era também seu marido. No Rio de Janeiro, conhecera Dolores o Dr. Leopoldo Fróis, delegado de polícia. Viram‑se, apaixonaram‑se e ele deixou tudo para segui‑la a Portugal. De modo ‑‑ disse‑me o primo ‑‑ que na sua Certidão de Batismo a única pessoa casada era a madrinha, mas com outro homem. Fróis não era marido dela, nem de ninguém, e o meu tio não se havia casado ainda com a minha tia.

            Por parte de pais, os avós de Danilo Barreiros eram jornaleiros de Peso‑da‑Régua e Mesão‑Frio, nomes sugestivos, mas dos quais minha ignorância geográfica nunca tivera menção.

            Dizia‑lhe a sua mãe que o pai quisera que ele nascesse na Mouraria para que, se fosse homem, viesse a ser fadista. Pessoalmente, confidenciou, não acreditava nela e jogava a frase à conta de sua megalomania. A mãe fora filha de um operário que morreu tuberculoso no Hospital São José e de uma lindíssima senhora, de cujos olhos azuis e cabelos louros jamais conseguiu saber a origem exata. Chamava‑se essa sua avó Virgínia.

            O pai de Danilo Barreiros, que era considerado o melhor tenor português do tempo, conheceu Dolores Rentini e Leopoldo Fróis e com eles foi para o Porto, pois Dolores organizara uma companhia teatral dedicada a operetas e montara naquela cidade do norte a Viúva Alegre. Na peça, Leopoldo era Danilo Danilovitch e Eduardo Barreiros era a personagem secundária, o tenor. Dessa atuação e dessa amizade, veio o nome de meu primo, Leopoldo Danilo. Pouco depois do nascimento, foi a companhia para o Brasil, onde atuaria no célebre Teatro do Pará. No Brasil, a Companhia Dolores Rentini foi dizimada pela febre amarela. O pai de Danilo morreu, ficando sepultado no Pará. Faleceu também Dolores, pouco depois, e foi enterrada no Recife. A mãe de Danilo, que era muito bonita, continuou no Brasil como atriz secundária e lá faleceu, muitos anos depois, como viúva do General Hilton Fontoura, que era apenas um ano mais novo do que meu primo.

            Quando este se levantou para ir até a estante de livros, notei que estava exausto. Trouxe‑me de lá um volume: As mil e uma vidas de Leopoldo Fróis, de Raimundo de Magalhães Jr. A história desses tristes acontecimentos está toda aí, disse‑me. Aproveitando a pausa, disse‑lhe que seria melhor interrompermos nesse ponto a narração e continuarmos no dia seguinte, se não houvesse problema.

 

III

 

            No caminho do hotel, pensei que aquela era uma situação muito estranha. Fora a casa do Dr. Danilo para obter informações sobre Pessanha e Wenceslau e estava agora biografando o biógrafo. E num ritmo tal, que na melhor das hipóteses, viajaria para o Brasil deixando meu primo ainda a poucos anos da adolescência. Macau ficava cada vez mais longe. No entanto, a viagem pelo passado estava agradável. O Dr. Danilo tinha muito estilo e muito humor. Era bom estar naquele terceiro andar cheio de lembranças da China. Resolvi continuar.

            Quando voltei, feitos os cumprimentos de praxe, recomeçou o primo seu relato como se entre a última frase e esta não houvesse um dia inteiro, mas apenas alguns minutos. E como visse que me dispunha a tomar muitas notas, começou ele a falar bem pausadamente, num quase ditado, que fui taquigrafando como pude:

            [...]

            Nesse ponto, provavelmente lembrado dos motivos que me haviam trazido até sua casa, Danilo Barreiros deu por encerrada a sessão da tarde, prometendo cenas picantes para o dia seguinte. Apanhou então, da estante, um vasto arquivo sobre Wenceslau de Moraes, onde colecionara tudo o que pôde sobre o eremita de Tokushima. De uma gaveta, sacou uns papéis velhos que também me deu. Eram três cartas inéditas de Moraes ao seu amigo João Vasco. Passou‑me ainda uma terceira pasta, amarrada com barbantes de armazém, em que havia uma infinidade de recortes de notícias variadas sobre o Japão, publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos trinta anos. Disse‑me que poderia fotocopiar os arquivos e publicar as cartas de Moraes ‑‑ por conta, é certo, de nosso parentesco. Como também me disse que podia publicar suas memórias, tudo o que disse e também o que não disse e eu julgasse que deveria ter dito. Passamos o resto da tarde a falar de Moraes e de Pessanha e saí dobrado sobre uma sacola de feira cheia daqueles papéis. Como fosse a Sintra no dia seguinte, marcamos para segunda‑feira a continuação dos trabalhos. Ele me prometeu que chegaríamos, em uma tarde, a Macau. Não acreditei. Não fazia mais, também, questão alguma.

            Na segunda‑feira, meu primo estava mal. Aumentara a dor da ciática e uma complicação do estômago o deixara muito debilitado no final de semana. Queria, porém, continuar ditando. Insistiu, por isso, que me acomodasse em uma cadeira de balanço ao pé de sua cama, pediu um abajur a D. Henriqueta e, lembrado de que paramos quando de suas furtivas excursões para fora do Colégio, recomeçou a história.

            [...]

 

domingo, 27 de novembro de 2022

Perfis 5 - Modesto Carone

Modesto Carone tinha algumas citações que funcionavam como leitmotiv. Talvez três, talvez quatro. Tinha um jeito particular de enunciá-las. Estivesse andando pela sala ou de frente para o quadro negro, bastava vê-lo girar de modo constante, nem rápido nem lento, sobre as botinas de zíper bem engraxadas para saber que alguma delas logo se encaixaria a contento na ocasião. Dizia-as sério, como se fosse a primeira vez que as enunciasse, mas depois um traço de alegria, como o que atesta no artesão a consciência do trabalho bem feito, iluminava o seu rosto. Lembro-me de duas, que reproduzo como me traz a memória, que não erra.
A primeira era de Brecht, aquela famosa – também porque referida por Benjamin – sobre fotografar fábricas da Krupp. A segunda, esfregada contra a condenação existente nesse texto de Brecht à expressão da vivência, era a conferência sobre lírica e sociedade, de Adorno. A terceira também era deste: aquela frase sobre escrever poesia depois de Auschwitz. Já vi que me lembrei de três, e agora me vem uma quarta: a de Paul Celan, sobre a língua materna dele ser a dos assassinos de sua mãe. Mas essa ocorria bem menos, embora contraposta hábil e produtivamente às duas já evocadas do filósofo de Frankfurt.
Mas além ou aquém (no sentido físico e geográfico) dessas estrelas-guia havia outra, mais efetiva porque encarnada: Roberto Schwarz. Formavam uma boa dupla. Modesto, tradutor notável do alemão, vinha da USP, dessa área. Aqui defrontou-se com um verdadeiro austríaco. E rendeu-se.
Lembro-me de uma demonstração do fato. Foi durante a intervenção que o malfadado Paulo Maluf fez na Unicamp. Um interventor rodara a pé, aparentemente perdido, pelo campus. Nós o acompanhamos aos gritos de “rato” e outros termos do mesmo nível. Fazíamos menção de o agredir, mas não tocávamos nele. Era o tempo sombrio da ditadura e tudo podia acontecer. O rato, por fim, enfiou-se num buraco administrativo, e sumiu.
Na cantina do IEL, depois, comemorávamos e interpretávamos o sucedido. Vendo a agitação jovem, Modesto se aproximou. Tinha essa simpatia generosa pela juventude impulsiva, pelos estudantes. Um de nós tinha uma tese, que foi logo exposta quase em coro, mas ele não concordou. Deu uma interpretação diversa, e a defendeu com grande autoridade de silêncios e ponderações. Quando quase nos dávamos por convencidos, aproximou-se o Roberto. Um de nós lhe pediu opinião e ele disse mais ou menos o que dizíamos. A reação do Modesto ficou famosa. Olhou para nós todos, olhou para o recém-chegado, concordando e assentindo com a cabeça. Inclusive, na sequência, desenvolveu com boa lógica o novo ponto de vista, que já tinha passado a ser o seu.
Fisicamente, Modesto não era nem baixo nem alto, embora mais para baixo do que para alto. E nem era gordo nem magro, talvez puxando um pouquinho mais (quase nada) para a primeira opção. Era compacto. Principalmente no inverno, quando uma persistente gola olímpica vinha juntar-se a um casaco de couro de corte clássico. Tinha o rosto mais para o redondo em certa época, e algum maldoso quis apelidá-lo de Batatinha, em homenagem a um gato célebre dos desenhos animados. Mas o apelido não pegou e nem sei por que me lembrei disso agora.
Intelectualmente, era também robusto e bem composto. Tinha uma grande qualidade como professor: a paciência. Na verdade, tinha duas: a aplicação didática. De novo começo pela redução, pois tinha três: a simpatia generosa com que recebia os alunos, conversava com eles, indicava livros.
Aliás, um dos testemunhos ou sequela da sua seriedade era a fixação nas referências, que ia até o extremo de dar o devido ou suposto crédito, quando possível, a declarações orais. Esse traço, pelo excesso e às vezes pela impertinência do registro, deu inclusive origem a um poema coletivo, em clave alegre. Não tenho a versão da época, porém. Soube depois que foi musicado, mas não sei se no todo ou em parte, se do jeito que nasceu ou acrescido. Começava assim: “Bonjour, comme dirait Charles Aznavour”. Do resto não me lembrava, mas busquei a canção do Zé Miguel, e nela deparei com esta estrofe, que me recorda algumas das afeições da época em que fazia o curso: Il fait chaud, comme dirait Arthur Rimbaud / Merci, comme dirait Claude Debussy / Il fait beau, comme dirait Jean-Jacques Rousseau / Je suis désolé, comme dirait Mallarmé.
O mais admirável desse conjunto de qualidades mobilizadas em sala de aula é que todos sabiam que para ele a docência não era uma vocação, mas um trabalho. Era um escritor talentoso, como depois se viu, no período da aposentadoria. E um tradutor muito notável e reconhecido. Mas mais de uma vez, como era seu costume, repetiu algo que me pareceu divertido, embora eu não o tivesse imitado nisso quando chegou a minha hora. Dizia que, se estivesse dando aula e escrevendo na lousa uma palavra e alguém chegasse à porta e gritasse: “Modesto, saiu sua aposentadoria!”, ele deixaria cair o giz, sem sequer terminar a grafia do vocábulo. O que talvez fosse o caso, se na hora ele estivesse grafando uma daquelas intermináveis palavras alemãs. O que sei é que ele cumpriu seu tempo com dignidade. É certo que depois, como prometido, desapareceu do IEL e, imagino, de qualquer outra sala de aula. O que apenas confirma uma vez mais o mérito: um marcante professor, mesmo se, como ele julgava, lhe faltasse a vocação como já lhe faltava, nos últimos tempos, a vontade.

Perfis 4 - Eric Sabinson

Não sei ao certo quando conheci Eric Sabinson. Mas estou seguro de que antes de o ter conhecido já o tinha ouvido. A altura da sua voz era inversamente proporcional à física, embora igualmente encorpados ambos, corpo e voz, maciços.

Depois que o conheci melhor, percebi que, seja sobre um evento trivial, seja sobre um poema ou peça de música, seu comentário nunca era exposto de modo explícito, analítico. Quanto maior fosse o empenho, mais as palavras saíam da sua boca como se lhe custasse muito. À primeira vista eram um esforço propriamente físico: vinham subindo devagar pela garganta, enroscavam-se, exigiam alguma torção inesperada da língua e das bochechas, até por fim surgirem à tona. Estavam, diríamos, a ponto de explodir, não viesse algum súbito e salvador controle segurar, domar e abater a desmesurada emoção. Muitas vezes desconfiei de que o controle era de fato maior do que parecia, que a arte residia em esconder o andaime. Ou melhor, torná-lo invisível enquanto tal, por apresentá-lo como parte do edifício ou escultura. Uma performance, enfim, mas tão entranhada que se transformara no próprio modo de ser, uma forma física de pensar ou expor o pensamento.
Um elemento importante da arte era o sotaque, mantido (se não cultivado) por décadas. Não era uma fatalidade, era um objetivo, por assim dizer, um elemento central do que poderíamos descrever como a sua poética, que era a do deslocamento. Por exemplo: Eric gostava de traduzir, mas insistiu o tempo todo no que poderia ser descrito como a direção errada, porque nunca o fazia daqui para lá, o que seria mais natural e mais fácil para ele, mas sim de lá para cá. Como muitos de nós, José Paulo Paes parecia preferir que se desse o contrário, já que registrou num prefácio que Eric tinha do português um conhecimento (acho que foi essa a palavra que usou) instrumental. Mas isso seria ignorar a razão, o motivo: Eric queria era desnaturalizar a língua de chegada, violentá-la – o que sempre conseguia. Não por meio de alguma cerebrina teoria tradutória, mas por meio de algo mais impactante e pé-no-chão, uma forma muito particular de conceber e tentar reproduzir corporalmente (por assim dizer) o fôlego, com especial atenção à ordem de aparição das palavras, às sucessões de imagens determinadas pela sintaxe ou pela forma do verso. Dessa perspectiva, um resultado canhestro resultava parecer fruto da intenção, ou era redimido como tal. Era o sotaque, o deslocamento e o indefinível em ação plena.
De modo complementar e coerente com a proposta geral, não só sobre literatura, mas sobre qualquer assunto, dos mais comezinhos do departamento aos mais transcendentes, além da forma importava o por onde agarrava o assunto ou entrava nele. Nem sempre era pelo corpo do problema. Às vezes era pelo rabo, outras por uma pata, outras pelo focinho. A questão era agitada de súbito na frente do nosso nariz, e quando a gente pensava que viria algo como uma vivissecção ou ao menos morte por asfixia, Eric de súbito abandonava a presa, terminando por uma expressão enigmática: “É aquela coisa...”. Revirava os olhos ou mirava o interlocutor de esguelha, deixando-o à espreita, à espera de algo que não se concluía. Creio que não só por isso, digo, pela sua capacidade de agarrar pelo ângulo menos esperado, mas mais pessoal, o assunto – tudo terminava por falar para ele ou dele, como o torso de Apolo de Rilke –, mas ainda por estar sempre muito empenhado em atingir ou iluminar o interlocutor, acabou, para as novas gerações, por se configurar como uma espécie de mestre zen, ou melhor, cavaleiro Jedi – no caso, o Yoda.
Tinha o hábito de se referir a si próprio em terceira pessoa. Dizia “o Eric”. E fazia bem: a expressão designava uma persona, mais do que o emitente. Uma persona maior, autoconsciente, que dominava o antigo artífice e senhor, regendo-o. Além disso, tal persona, sem os pruridos ou o senso de ocasião que talvez tivesse tido seu autor, terminava com frequência por configurar ou ocupar de modo abusivo, e por isso mesmo nem sempre agradável, o ambiente.
Sua erudição musical, principalmente num aspecto, impressionava. Parecia saber tudo de ópera, e devia saber muito mesmo. Não se limitava ao gênero, porém. Filho de um produtor da Broadway, conhecia muito mais do que mostrava usualmente, e quando mostrava era de fato notável.
Nos últimos tempos, lembro-me de ele se dedicar a duas artes que pouco ou nada tinham em comum: o halterofilismo e o clarinete. Ouvi-o muitas vezes amaldiçoar uma palheta, ou discorrer sobre o zen do manejo do instrumento, sobre o esforço de controlar a vontade própria durante os treinamentos, da luta para se esquecer e deixar o corpo interagir. O que, no caso dele, era de fato uma tarefa hercúlea. No outro lado do disco, acompanhei as proezas e as queixas de dores dos esforços desmesurados e irracionais, além de ter visto muitos vídeos e lido ou ouvido inúmeras descrições de suas proezas musculares.
Foi, aliás, o grande empenho de superação nos halteres, eu creio, que terminou por levá-lo ao hospital. A uma desastrada operação da coluna cujas consequências foram fatais.
Eu estava em Portugal, quando chegou a notícia. Alcir me disse depois, com revolta, que lhe parecia erro médico.
Durante um bom tempo da sua vida, sentiu-se deslocado no departamento que o contratou quando veio dos Estados Unidos. Por sorte e por graça de amigos dedicados, finalmente veio para o seu lugar correto, que era a literatura. Lembro-me do singular argumento que um de nós apresentou ao departamento, quando da sua transferência. Os mais sintonizados com os novos tempos produtivistas não eram simpáticos à transferência. Achavam que ele não publicava com a frequência desejável. O que era verdade, pois ele conseguia passar longos períodos em abstinência. Mas se era certo o julgamento sobre o passado, esse julgamento não se aplicava necessariamente ao futuro – disse o advogado de defesa. Desvencilhado de um lugar a que era pouco afeito, quem poderia garantir que não seria diferente? E foi assim, com a absolvição futura, que ele veio.
É verdade que, no tocante às provas de condenação pregressa, nada mudou. Mas isso não foi grave. Como outras figuras notáveis com quem convivemos na Unicamp, Eric não se importava com papéis pintados com tinta. Dedicava-se de corpo (e creio que também de alma) às aulas-performance, e punha particular empenho na orientação de trabalhos. Mais do que isso, aplicava-se muito à tarefa de abrir horizontes, forçar estudantes a pensar “fora da casinha”. O que sabia fazer como ninguém, sendo um parceiro dos neófitos e um aplicado perturbador de certezas ao longo do processo formativo. Por fim, contribuía em algo essencial: atrapalhava, fazia desandar as discussões muito burocratizadas, atrasando assim o destino inevitável do departamento rumo à perda do foco no que importa, em nome de ceder gostosa e, em certo sentido, preguiçosamente aos critérios avaliatórios das agências de avaliação e financiamento. Essas ondas encontravamm nele, que nos momentos acalorados se erguia com a energia do costume, um pequeno, porém inabalável e teimosíssimo rochedo.
Quando me lembro dele, termino por ver claramente na memória seu curioso modo de caminhar, quase aos saltos nas pontas dos pés. Era singular e lhe valeu entre estudantes o apelido de Grilo. Do que ele talvez gostasse, se tivesse sabido, pois para os Pinocchios que abundavam entre os estratos acadêmicos ele, de um jeito ou de outro, era quem fazia o papel de consciência. Quando me casei, Eric foi convidado de honra, já não me lembro se padrinho. No caminho para o cartório, minha mãe, impressionada com o gingado peculiar, inesperadamente começou a imitá-lo. Estávamos todos muito felizes. Penso agora que aquele seu jeito de caminhar mimetizava seu jeito de pensar e de falar. Ou vice-versa. Por impulsos, sempre tentando e quase sempre conseguindo uma altura e um alcance maior, mesmo que isso parecesse estranho, descabido ou inapropriado a quem o visse ou ouvisse.

Perfis 3 - Alexandre Eulálio

Quando vim para o IEL como docente, em março de 1986, passei a dividir uma sala com Alexandre Eulálio. Ele já era professor ali desde 1979. Mas por essa época eu já não frequentava o Instituto, a não ser para os trâmites finais da minha dissertação, defendida em 1981. Com ele convivi pouco, porém. Em meados de 1988, faleceu.

Até sermos colegas, o que eu sabia dele era que tinha sido diretor da Revista do Livro e que era mineiro. O que não era verdade. Alexandre Eulálio era carioca, mas com tanta paixão por Minas que um colega dizia que ele conseguia fazer de um pano de boca de um teatro da província o objeto de uma explanação erudita e sedutora da qual nunca suspeitaríamos. Soube depois que não só não nascera em Minas, e sim no Rio, onde estudou e amadureceu, mas ainda que fora batizado não como Alexandre Eulálio Pimenta da Cunha e sim Alexandre Magitot Pimenta da Cunha. É provável que Eulálio lhe tivesse parecido mais mineiro do que Magitot, embora em matéria de mineirice um certo sobrenome nada vernáculo encontrasse poucos rivais.
A sala que dividíamos era, na verdade, uma meia sala, pois tínhamos uma janela compartilhada com a vizinha. E era espartana: duas mesas de fórmica, um armário deserto e paredes de blocos de concreto mal pintados de branco. O único adorno era um pôster, no qual D. Pedro II se exibia em traje de gala.
Alexandre era monarquista convicto. Mais do que isso, tinha amizades antigas na família imperial e participava de cerimônias, a convite dos nobres, em Petrópolis. Ouvi dizer que consumira uma aula dupla na descrição e análise do pôster da nossa sala, mas pode ser apenas exagero.
Costumo pensar que tenho boa memória. Lembro-me, com frequência, até de frases ditas numa fatídica reunião ou aula feliz de há décadas. Sei que aprendi muito com Alexandre, não tenho dúvida disso. Mas não me lembro bem o quê. Certamente não foi que “Dona Guidinha do Poço” é um dos maiores romances brasileiros. Nem que o regime monárquico é superior ao republicano. Que ele me ensinou muito, isso ensinou, porque podia discorrer por horas, talvez por dias, sobre qualquer assunto que lhe despertasse a paixão. A coisa podia começar como um fio d’água. Logo ganhava um pouco de corpo, ramificava-se, enfrentava obstáculos, que arrastava ou rodeava, descobrindo um caminho insuspeitado; logo afluía para um curso maior, e quando a gente menos percebia já tudo vinha aos borbotões, em cachoeira. Mas não tinha foz esse caudal. Pelo contrário, podia voltar a um dos pontos de afluência, pegar um igarapé, um rio da mesma bacia ou, de um salto, atravessar uma fronteira, para depois, em outro susto e maravilhamento, cruzar o oceano. Ou então, pelo contrário, empacar num veio extinto perto de Vila Rica, que logo vicejava como testemunho fluente de corredeiras e correrias de outro tempo.
De Alexandre, além dessas conversas, tenho apenas três lembranças precisas.
A primeira é de algo que ocorreu semanas depois de eu ser contratado. Eu voltava do almoço, pouco antes das aulas da tarde. Mal nos conhecíamos. Encontrei-o em alvoroço. Lembro-me sobretudo do modo como esfregava as mãos e passava a palma de uma sobre o dorso da outra. Daria a primeira aula do semestre no curso de graduação e confessou estar em pânico. Eu lhe assegurei que comigo era o mesmo, que a primeira aula era sempre um momento tenso, mas ele me fez ver que não era por ser a primeira. Eram todas. E então me disse algo que me esforcei para levar a sério: que ele era diferente de nós, não tinha formação, era um autodidata, um leitor sobretudo, sem treinamento, nem preparo etc. Não sei o que lhe respondi. Provavelmente alguma banalidade tranquilizadora, pois me parecia absurdo, descabido, o que ele confessava. Nos outros dias de aula, pude ver que não era exagero o que me dissera sobre a tensão de cada vez. Mas encontramos então uma forma de lidar com aquilo, por meio de perguntas irônicas sobre o estado de espírito de cada um, na hora mais terrível. E não poucas vezes fomos rindo daquelas piadas a caminho das salas de aula.
A segunda foi assim: eu dirigia, Alcir ia ao meu lado e Alexandre atrás, mas inclinado para a frente, bem no meio de nós. Era um Fusca. Tínhamos passado um dia muito agradável na casa de campo de um colega e voltávamos tarde. Alexandre mencionou um velório a que tinha ido ou tinha de ir. Então, de súbito, nos perguntou o que achávamos: haveria algo após a morte, ou tudo terminava ali mesmo? Mas não perguntou de passagem: insistiu no assunto, e num tom que fez com que Alcir e eu terminássemos por ficar um pouco perturbados.
A última lembrança é de algo que ocorreu pouco antes de ele morrer. Maria Eugenia me ligou, disse que vinha com o Alexandre, perguntou se eu estava em casa e se queria almoçar com eles. Encontrei-os na frente da igreja do Cambuí. Alexandre estava mais magro, mas de muito bom humor. Fez questão de visitar a construção de estilo meio mexicano. Contou que conheceu o arquiteto já velhinho, discorreu sobre as características de cada parte, relacionou essa igreja com alguma outra.
Fomos a uma churrascaria bem ao lado. Ele precisava comer carne, me disse. Estava muito anêmico. Almoçamos ali, de onde se podia ver ainda o flanco da igrejinha, rindo em boa disposição. Abraçou-me ao partirem.
Ao dar-me a notícia da sua morte, Maria Eugenia contou-me que a visita ao Cambuí tinha sido parte do périplo de despedida das pessoas de que ele gostava.
Alcir e eu fomos vê-lo pela última vez. E voltamos, no mesmo Fusca, lembrando daquela pergunta insistente que ele nos fizera poucos meses antes.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Memórias (Perfis 2): Décio Pignatari

 Creio que foi em 2007 que fui tutor de Décio Pignatari. Nos divertimos com essa denominação, que provavelmente não era exata. Eu tinha apresentado o seu nome como artista residente na Unicamp, o projeto tinha sido aprovado e ele ficaria conosco, sob minha responsabilidade acadêmica, durante um ano.

Suas atividades previstas eram poucas: dirigir uma oficina de tradução, fazer uma conferência, desenvolver algum trabalho e ficar no campus, à disposição de pessoas que quisessem conviver com ele.
Foi um período fantástico, no qual tive a oportunidade de conviver com uma das mentes mais ágeis e brilhantes com que me deparei ao longo da vida. Mas também com uma das pessoas mais surpreendentes e idiossincráticas.
Por exemplo, num certo momento veio me dizer que precisar ir à Itália. Eu lhe disse que não seria possível, pois ele tinha o compromisso de aparecer semanalmente, ou no mínimo a cada 15 dias, à Unicamp. Mas ele tinha um argumento muito forte, e tive de ceder. É que ele precisava escrever uma peça de teatro, que seria, com as outras que escrevera, uma das cinco peças de teatro mais importantes da literatura brasileira. Quando lhe perguntei por que teria de ir à Itália escrevê-la, se teria alguma pesquisa a fazer, ele disse que não: era mais grave. Ele só poderia escrever essa peça num hotel em Ferrara. E tinha recebido a notícia de que o hotel estava para fechar. Então ele foi e me mandou algum tempo depois não a peça, mas um simpático postal, no qual se via a fachada do hotel. E tudo estava correndo bem. Quando voltou, acabei me esquecendo de perguntar sobre a peça, e ele não se lembrou de me dizer nada a respeito.
O outro momento memorável foi a sua conferência. Nela elogiou Olavo Bilac e analisou de modo instigante alguns versos (creio) do soneto a Ouro Preto. Sírio Possenti talvez se lembre, porque foi um dos que, surpresos, comentou comigo o desbragado elogio.
Por fim, o terceiro. Décio gostava de beber e tinha um bom companheiro no meu amigo Ricardo Lima, que trabalhava na produção da Editora. Mas num dia em que Ricardo teve folga, lá fui eu com o Décio para um copo de prosa. Eu tinha feito questão de publicar junto com a Ateliê Editorial, em 2004, pela Editora da Unicamp, sua obra poética reunida: Poesia pois é poesia. No vaivém da conversa e dos copos, ele queria saber o que eu achava. Fiz o sincero elogio da sua poesia, que me pareceu sempre a mais consistente e interessante, desde o primeiro livro antes do concretismo, até os poemas sem palavras, dos quais aquele em que junta pátria família tv e pelé me parece ainda hoje divertido e bom. E devia ter parado aí, por prudência. Mas como não tinha parado no copo, não parei também no discurso, e lhe disse que as últimas coisas não me impressionaram muito e concluí com uma frase de que me arrependi logo que ela voltou da minha boca para os meus ouvidos: que alguns (não me lembro bem se disse alguns ou vários) me pareciam interessantes, como o para Maiakóvski, mas que aquele que glosava um verso de Castro Alves e principalmente aquele sobre Chico Mendes me pareciam horrendos. Eu mesmo me arrepiei ao ouvir a palavra, pois já convivido bastante com o homem. E esperei. Décio me olhou, calado. Eu esperei mais. E ele então me disse, como quem não ligasse muito, que eu tinha razão, esses dois eram mesmo muito ruins. Eram boa ideia, mas má realização, concluiu. Eu, ainda arrependido da palavra, concordei logo e passamos ao próximo copo e ao assunto seguinte.

Perfis 1: Haquira Osakabe

 Outro dia, conversando com Alcir, disse-lhe que ia redigir alguns perfis. E convidei-o a colaborar na tarefa. Ele logo se animou e disse que sim, que íamos fazer. Redigi, então, o primeiro. A ele competirá fazer o segundo. Mas outros projetos comuns surgiram e soterraram, ao menos por algum tempo, os anteriores – entre eles, o dos perfis.

O que escrevi então era mais ou menos o que segue. Mais ou menos porque retornei ao esboço há pouco e o refiz em grande parte (acrescentando todo o testemunho), depois de ouvir o quarto podcast do colóquio de Coimbra sobre ensino de literatura, no qual as questões relativas à imitação produtiva e ao momento da aula foram discutidas.
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Haquira Osakabe
Era um nissei muito alto. Na verdade, quando deixou crescer a pera e o bigode, mais parecia chinês. De qualquer modo tinha um ar aristocrático e seu olhar sempre meio vago lhe dava um ar meditativo, mesmo quando argumentava ou falava para uma classe lotada.
Seu discurso acompanhava o olhar, no sentido que parecia às vezes igualmente vago, fazendo círculos em volta de algo que não era dito. Os silêncios entre frases ou mesmo entre palavras de uma frase, quando o olhar se tornava ainda mais vago, como se fixado num ponto no horizonte, geravam expectativa, energizavam o ambiente. E nunca sabíamos se o que ficava por dizer, no centro daquelas voltas, ainda não estava devidamente formulado, ou se era algo que não podia ser expresso com o vocabulário usual da academia.
Meu amigo Alcir o conheceu ainda antes da graduação. Eu apenas no mestrado. Mas ambos trabalhamos com ele ao longo dos anos, nas disciplinas denominadas Literatura Portuguesa, que eram nosso respiro para a literatura europeia. Isso porque o curso de Letras no IEL tinha sido criado por Antonio Candido, e sempre ali houve um tipo de exacerbação nacionalista. Não havia literaturas de língua estrangeira no programa: o curso era articulado sobre duas séries principais, os estudos de literatura brasileira e os estudos de Teoria Literária. Nosso próprio departamento levava este nome.
A estreiteza do ambiente e do programa terminou por fazer da Literatura Portuguesa um espaço de respiração fora do aquário onde circulavam os discípulos à volta das questões nacionais. A situação era de tal modo peculiar que uma disciplina oferecida no quarto ano, denominada Teoria Literária, chegou a ser ministrada com um programa que assim se resumia: “De Platão a Antonio Candido”.
Haquira foi, para nós, um guia para escapar dessas armadilhas. Em sua casa nos reunimos muitas vezes para discutir textos, pegar livros emprestados e, principalmente, programar os cursos de Literatura Portuguesa, que incluíam sempre uma situação dos autores e obras no quadro maior da literatura europeia.
A compreensão desse enquadramento era central para Haquira, assim como a necessidade de estudarmos todos os principais momentos da Literatura Portuguesa. Para isso, insistia na ideia de que os professores da disciplina percorrêssemos todo o arco temporal. Assim, cada um de nós teve de, pelo menos uma vez, ensinar literatura medieval, renascentista, oitocentista e moderna. E como havia pré-requisitos entre as disciplinas, elaborávamos em conjunto os programas e buscávamos linhas de continuidade de um semestre para outro, assim como otimizávamos a bibliografia de cada um.
Com tanta dedicação aos novos professores e aos alunos de graduação e de pós, com quem organizava seguidas sessões de orientação em grupo ou individual, Haquira pouco escreveu. Quase nada no seu campo de dedicação apaixonada, que era a literatura portuguesa.
Entretanto, sua atuação e a sua presença foram para mim (assim como para muitos outros) inspiração e desafio. Inclusive num assunto que terminou por ocupar grande espaço na minha vida pessoal e acadêmica: o haikai. De fato, foi ele que me emprestou, entre outros, os livros (então quase inacessíveis) de R. H. Blyth; foi ele quem me apresentou à minha parceira de trabalhos nesse campo, Elza Doi; e foi ele ainda quem me estimulou a estudar seriamente o haikai, a traduzi-lo com Elza e, por fim, a escrever um estudo de longo fôlego, do qual foi o primeiro leitor. Também foi ele quem me apresentou a Teresa Sobral Cunha (em breve, outra decisiva referência afetiva e intelectual), com quem se concertou para me convencer e estimular a fazer o trabalho de edição de Camilo Pessanha.
Houve ainda outro momento no qual sua presença foi marcante. É que, durante certo tempo, tentei imitá-lo no que fosse possível. Tanto na dedicação às aulas, quanto aos estudantes. E apliquei-me com mais afinco ainda ao estudo, sentindo-me como Eça disse que ficou, sob a inspiração de Antero: compelido a pôr os pés no capacho e a mergulhar silenciosamente nos livros, noite após noite. Nisso e nas aulas e convívio com estudantes consumi vários meses felizes, que prometiam nunca acabar. Foi então que, certa noite, naqueles anos de final dos 80 ou início dos 90, Haquira me apareceu em sonho. Só me lembro da parte principal: escreva, publique! Era uma admoestação dura – um tanto amargurada até, eu diria –, que referia a si mesmo como exemplo a não seguir nesse particular. Durante bom tempo, por semanas ou mesmo meses, fiquei sob o impacto do que ele ali me disse e confessou. E isso também me orientou e gerou decisões relevantes.
De modo que, de um jeito ou de outro, pela orientação explícita, pelo exemplo e ainda pelo sonho (no sentido figurado ou literal) não creio ter havido eventos decisivos no começo da minha carreira universitária sem que Haquira estivesse muito presente.
E é disso que venho aqui dar este singelo testemunho.

Mais um pouco de haikai (2) - ideogramas, haiga etc

 Acabo de postar duas figuras. São dois haiga, isto é, haikais acompanhados de desenhos. Por conta de textos como o de Fenollosa, muitos de nós estamos acostumados a pensar que a caligrafia de alguma forma revela o lado pictórico do ideograma. Ou que, para dizer de uma forma familiar, ela revele os harmônicos, ou seja, os componentes ideogramáticos comuns que integram várias palavras.

Entretanto, a arte de caligrafar me parece muito mais sutil e complexa. Especialmente em haikai.
É que em japonês o calígrafo pode escolher entre a grafia "chinesa", isto é, "ideogramática" (kanji) e grafia silábica. E a escolha pode ser ditada ou por conveniência e equilíbrio da página, ou por alguma outra razão, como a seguir tento mostrar.
Ao mesmo tempo, o caráter "desmanchado" da grafia é uma arte. Não é o desenho, a consecução de cada traço que importa, mas o ritmo, o movimento que a gente faz com o pincel, a direção de cada um dos traços que constituem o kanji.
Além disso, o tamanho de cada letra, a força com que é traçada, a quantidade de tinta, tudo isso produz efeitos de sentido muito além da representação pictórica que nos acostumamos a imaginar na escrita japonesa.
Nas figuras que postei temos, num caso, um haiga de Bashô. É o que tem o desenho de flores.
Seu texto diz:
asagao ni ware wa meshi kû oto kana
junto aos bons-dias eu sou um homem que toma refeição – ah!
É um poema que se entende facilmente, pois alude ao lado errante e frugal da vida do poeta, que dorme ao relento ou sai para a caminhada muito cedo. O ponto mais sugestivo da caligrafia, em minha opinião, é a forma como o poeta grafou meshi (comida). Ele poderia ter escolhido um caractere chinês, um kanji, mas escolheu grafia silábica. Poderia ter escrito de modo "normal" a palavra, mas juntou as duas sílabas e as grafou desmanchando a segunda, que mal termina em gancho, como na forma impressa.
Já no outro, da libélula, de Kempû, diz assim:
tonbô ya mizu wo nabaeru yúgeshiki
a libélula inclina-se sobre a água – cena do anoitecer
Aqui, o interessante, do meu ponto de vista, é a grafia da palavra água, em kanji (ideograma). É a representação de três fios de água correndo, como aprendemos em Fenollosa. Mas neste caaso está desenhada de tal forma que, com pouco esforço, vê-se nela algo como o reflexo do inseto sobre a lâmina de água.





Modernismo - uma ausência

Ao longo da vida quase nada escrevi sobre o Modernismo de 1922. Em tempos tive um projeto de apresentação da poesia brasileira, mas não fui além de dois estudos sistemáticos. Um que teve por título “As Aves que aqui Gorjeiam: A Poesia Brasileira do Romantismo ao Simbolismo”, escrito ao longo de muitos anos e publicado em 2005, e outro, do ano seguinte, intitulado “Pós-tudo: A Poesia Brasileira depois de João Cabral”. A eles se seguiram estudos vários sobre poetas e problemas da poesia contemporânea, posterior à Poesia Concreta. Entretanto, dei aulas sobre os modernistas, especialmente sobre Drummond, que dentre todos é o que mais li e ainda leio. Mas nem mesmo sobre a poesia de João Cabral, cuja poesia me encantou durante o período da faculdade e do mestrado, escrevi qualquer coisa.
Neste ano do centenário ocorreram-me estas lembranças e percebi que, por algum motivo, desviei do Modernismo: nem sobre Bandeira, cuja obra frequentei por anos, nada fiz além de uns poucos esboços de passagem.
O leque dos autores não permite explicação simples. É certo, por exemplo, que nunca me atraiu a poesia de Mário de Andrade. Admirei e admiro o crítico, acima de qualquer outra faceta, no qual me inspirei em vários momentos. E também li e leio com prazer a sua correspondência. Mas a poesia sempre me deixou indiferente. De memória – ou melhor, de cor, no sentido etimológico – apenas restaram pequenos trechos da “Meditação sobre o Tietê”, que me parece escorrer como rio oleoso; restou quase inteiro “O poeta come amendoim”; e talvez o estribilho do poema sobre a Serra do Rola-Moça. Claro, a parte tão batida de “Pauliceia” permanece, mas não por gosto ou identificação, mas por, digamos assim, inseminação escolar. Tampouco tenho especial afeição pela poesia de Oswald, embora tenha mais lembrança de versos seus, especialmente das boutades. Já Bandeira, Drummond e Cabral são poetas de eleição, por motivos vários e em várias épocas da vida.
O que terá mantido meu interesse e investimento de tempo à parte desse período tão celebrado? Talvez tenha sido justamente isso: o fato de ser assim celebrado, de um modo que me pareceu sempre pouco razoável, especialmente no que diz respeito aos autores diretamente vinculados à Semana.
A verdade é que não tive uma boa educação literária escolar. Minha formação no que hoje se denomina ensino fundamental e médio só foi rica no que toca às disciplinas científicas. Por isso mesmo, pensava seguir carreira ou em exatas ou em biológicas. A parte literária da minha vida juvenil foi toda autodidata, até o final do ensino médio, quando uma professora de grande capacidade começou a me despertar para a literatura moderna.
Ter ido, por impulso e por paixão, para o curso de Letras foi uma espécie de acidente. E para o curso de Francês foi uma temeridade. De qualquer forma, a faculdade era um mundo de livros e penso que duas coisas moldaram minha percepção da poesia. Três, na verdade.
A primeira foi que, no primeiro ou segundo ano do ensino médio, na casa de um primo descobri uma coleção das obras completas de Dante, em edição bilíngue. A leitura do seu “Inferno”, com as centenas ou milhares de notas redigidas pelo Monsenhor Pinto de Campos, foi para mim um deslumbramento, criou um padrão junto ao qual tudo me parecia empalidecer – e que me levou a ler, ainda em prosa, a “Eneida” e, em versos de Carlos Alberto Nunes, os poemas homéricos. A segunda foi comprar, logo que cheguei a Araraquara, por recomendação de um livreiro que trabalhava na faculdade, uma antologia do Ezra Pound publicada em Portugal, traduzida e prefaciada pelos então denominados “concretistas”. A terceira foi, na sequência imediata, ainda no primeiro ano da vida nova, conhecer um estudante de Química que fez intercâmbio nos EUA e, sabendo que eu gostava de poesia, deu-me uma tradução que ele mesmo fez do poema “Marina”, de T. S. Eliot. Em seguida, vendo que eu ficara animado, emprestou-me um exemplar de “The Waste Land” e, na sequência, dos “Four Quartets”.
Talvez por isso, ainda em Araraquara e imbuído de alguma fatuidade juvenil, não me interessei pelos modernistas brasileiros de 1922. Sem dúvida a minha pouca formação me impediu de valorizar o que eu lia dessa poesia em função da realidade nacional, ou do sistema literário nacional (como depois aprendi a dizer). Por fim, ainda durante o período da faculdade, a leitura do “Ulisses”, de 1922 como “The Waste Land”, deve ter me atraído mais e desviado a atenção dos romances e poemas nacionais contemporâneos.
Na sequência, com a maturidade, reacendeu-se a paixão juvenil por Manuel Bandeira e por Drummond, cuja obra revisitei muitas vezes. E ainda perdura. E me lembro de que, em algum momento, já durante o período da Unicamp dediquei-me por cerca de um ano à leitura sistemática, por ordem cronológica, da obra até então publicada de cada um deles, bem como de Mário e de Oswald, incluindo nesse conjunto Murilo Mendes e tantos outros, de Cassiano Ricardo a Menotti del Picchia, passando por Raul Bopp.
Por que então sempre evitei escrever o capítulo que preencheria o panorama da poesia desde a Independência? Talvez porque tenha pensado que não valeria a pena dizer isso mesmo que acabo de dizer aqui. Que a energia necessária para tal estudo, nesses termos, seria muita e que me faria falta em outros campos que me chamavam, como a poesia de Camilo Pessanha, a obra histórica de Oliveira Martins, o romance queirosiano e, por fim, o de Machado de Assis, cuja interpretação dominante parecia exigir até mais energia crítica do que a que vigorava sobre o Modernismo. E, paixão por paixão, havia outras, laterais, como o haikai japonês.

Seja como for, nesta altura da vida já não me parece valer a pena completar o panorama crítico. Nem em parece viável, para ser sincero. O tríptico, assim, permanecerá sendo um projeto fracassado, um mero díptico. Mas confesso que o lugar central vago de vez em quando, como agora, me incomoda