Encontrei-me com Rubem Braga duas vezes, e foi assim: Marisa Lajolo coordenava com Samira Campedelli uma coleção da Abril Cultural. Chamava-se “Literatura comentada” e apresentava, em livrinhos vendidos em banca de jornal, os principais autores das literaturas brasileira e portuguesa. Alcir e eu ainda fazíamos o mestrado, o que de alguma maneira combinava, pois a forma do assunto talvez aspirasse ao cânone como nós dois à formação acadêmica. Era nosso primeiro livro, e o fizemos da forma que foi a nossa sempre, desde a tradução até a composição de poesia de nonsense ou obscena: a quatro mãos.
sábado, 15 de julho de 2023
Memória: Rubem Braga
sábado, 8 de julho de 2023
Enquanto espero…
Enquanto espero, por algum motivo me lembro de coisas que li em Ezra Pound. Mais exatamente no livro que entre nós se chamou “ABC da Literatura”. Não a abstrusa noção de paideuma. Essa, tal como ele a operacionaliza, não disfarça o caráter autoritário. Afinal, quem disse que o trabalho de uma geração é capaz de selecionar para a próxima o que é vivo, evitando que ela perca tempo com coisas obsoletas? Não é justamente o contrário? Que na modernidade uma geração digna do nome enterra a anterior, ao menos em parte, descobrindo a novidade ou o interesse onde aquela não punha o seu coração? O que me ocorreu foram outras passagens, que refiro de memória. A primeira é aquela em que ele compara uma opinião a um cheque. É uma questão de fundos. Se ele, Pound, desse um cheque de um milhão de dólares, seria uma piada. Se Rockfeller o fizesse, não. Seria uma coisa séria. Assim também, com a opinião de um não-conhecedor de literatura e arte. A comparação é brutal e pode ser contestada em vários níveis, mas aponta para algo que é de fato importante: o conhecimento como padrão de julgamento (e de gosto, talvez), o valor da autoridade intelectual. Auctoritas. Não se trata de “sabe com quem está falando”, nem de “sabe quem está falando”, e sim a importância de constatar que “quem está falando sabe”. Mas a passagem que primeiro me ocorreu foi uma na qual Pound pergunta se o seu leitor se interessaria pela obra de um autor cuja visão de mundo (acho que ele diz percepção, mas não estou seguro) estivesse abaixo da média (creio que ele disse “não estivesse acima da média”). Confesso que, indagado, tenderia a responder que não. Talvez porque seja essa a base da minha recusa a continuar a leitura de poesia ou prosa na qual não perceba que o autor de fato tenha algo a dizer. Algo relevante, de algum ponto de vista, ainda que seja o puramente pessoal. Nesse ponto, me ocorre outra lembrança: a de que é bastante desfocada a repetição incessante da boutade de Mallarmé sobre a poesia não se fazer com ideias, mas com palavras. Porque a mim não interessa o contrário: a poesia feita com palavras sem ideias. Talvez porque me lembre de Bashô, quando dizia que as obras produzidas apenas com arranjos de palavras são o testemunho de um espírito que não se esforçou para atingir a verdade. Não são dignas de respeito, acrescentava ele. Mas voltando ao Pound: embora tenda a concordar, reconheço a dificuldade. Por exemplo, Fitzgerald. Em que medida poderia dizer que ele tinha uma visão de mundo acima da média? Eu acho que sim, mas não sei bem por que acho isso. Sei apenas que o “Grande Gatsby” me encantou desde a primeira leitura. E não só pelo enredo. Na verdade, não pelo enredo. Mas porque há ali, por exemplo, uma cena na qual a personagem adentra uma sala cheia de leveza e brisa. As mulheres, como tudo o mais, flutuam, se erguem no ar. Quando o dono da casa fecha brutalmente as janelas, tudo se assenta. Assisti às filmagens da obra. E gostei, eu creio. Mas essa cena me marcou a partir do livro, porque se fosse encenada ao pé da letra o resultado seria certamente ridículo. E assim muitas outras cenas e passagens, pelas quais eu avaliava, normalmente em clave deceptiva, as equivalentes nos filmes. Tudo isso para dizer que há mais coisas aí, entre a visão de mundo e o puro domínio das palavras. A mescla é variada e o resultado incerto, penso. Uma coisa parece transformar-se em outra. Ou gerar a outra. E agora, enquanto ainda espero, me lembro de algo que parece ter pouco a ver. A ideia marxista (ou terá sido Engels?) de que a determinação estética pode inclusive corrigir a crença de classe, a visão parcial pessoal do artista. Ou quase isso. Porque sempre vi ali uma postulação do valor de conhecimento, isto é, de análise e desvelamento da realidade, que a submissão à coerência estética acarreta. Como se o justo e o esteticamente ajustado fossem de alguma forma íntimos. Claro que a estética, no caso marxista, era a do realismo. Mas o ponto era esse. Neste momento, porém, acho que já esperei demais. E que há algo de desvario nisto tudo. Mesmo assim, que seja.
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Ensaio
Estive, desde ontem, para escrever uma nota sobre um artigo de Alcir Pécora. Era para ser um comentário a uma postagem que fiz a propósito do livro de Frederico Lourenço.
Sucede que por ter compartilhado e endossado a crítica mordaz que ali (em Lourenço) encontrei sobre a “indústria universitária” logo me tornei alvo da bondade do bom-mocismo. Ora, me disseram em privado, você está subscrevendo uma atitude reacionária. Em público, em comentário desrespeitoso que apaguei, levei um sabão por compactuar com a arrogância e outros vícios, e também me disseram com condescendência que toda pesquisa é válida e sempre há contribuição original, por menor que seja etc. O ponto, entretanto, não estava em parte alguma dessas reações repletas de boas intenções, na maior parte.
Mas voltemos à ideia do comentário. Aconteceu que na sua visita semanal, Alcir me trouxe um número da revista “Miscelânea”, da Unesp. pois lá vinha um texto seu, de brilho característico, sobre aquilo que denominou “um tema que nos interessa”, acrescentando, agora com verdadeira generosidade, que eu já sabia daquilo tudo. O que pode ser verdade, num nível, mas não o era certamente em outro, ou seja, o da capacidade de exposição e síntese que ele tem em dose admirável. A começar pelo título: “O ensaio na época da morte do ensaio”.
Se eu quisesse de fato resenhar e debater o texto, não seria este o espaço. Mas basta-me chamar a atenção para o que nele vai, e realçar alguns pontos em que convergimos. Por fim, se a tanto me ajudasse engenho e arte, gostaria de glosar alguma coisa do texto, numa clave algo crítica, mostrando que os dois terços finais do título não permitem a redenção do primeiro. Mas temo que isso seria demais também, então basta indicar a leitura e transcrever algumas frases.
O primeiro ponto é que, listando uma bibliografia do maior interesse, conclui: “os autores que pensam a universidade ... acabam igualmente por entender o presente dela como um momento de declínio”. Como ele mesmo reconhece, ao tratar do ensaio nesse quadro, seria fácil ceder à nostalgia e entoar um “ubi sunt?”.
Alcir reflete sempre com um pé no chão do presente e outro no campo de combate. Nada de nostalgia, nem de lamento. A situação da universidade, diz, tem uma clivagem dupla: as implicações internacionais da ideia de universidade e as inovações tecnológicas. Ambas incidem diretamente sobre o tema do artigo, que é a escrita. Ou a atitude que preside à escrita, eu talvez pudesse dizer.
Haveria ainda uma terceira determinação presente do pensar a universidade, que é a hegemonia da sociedade de mercado, que lhe permite esta formulação provocativa, algo angustiante: “O quadro incrivelmente raivoso dos novos fundamentalismos que se apresentam como ‘antissistema’ – mas que, de fato, são basicamente antidemocráticos – sugere mesmo que não é impossível que, num futuro próximo, tenhamos saudade do cosmopolitismo laico do capital”.
Ao traçar o quadro da crise das humanidades, Alcir continua com a faca afiada. Aqui, desnaturaliza o uso da palavra “pesquisa” no interior das humanidades, ali indica como, nos países centrais, a tendência é que sejam versadas por pessoas das classes ricas, já que não permitem retorno do capital investido (ele diz de modo mais refinado do que estou resumindo, claro), mais além fustiga a especialização precoce incentivada pelo sistema de bolsas, a começar pela IC. E ainda a “obrigação artificial de interdisciplinaridade”, criada pelas agências de fomento.
Nesse ponto, o autor percebe o risco da navegação e escreve: “Mas se é verdade que eu capitulo diante da determinação um tanto tristonha do gênero que pensa a Universidade, gostaria ao menos de evitar um segundo estágio da melancolia, o de viés catastrofista. Cair nele encerrar-nos-ia definitivamente num cômodo apertado entre a saudade dos bons tempos e a ansiedade do fim. Quando essas duas afecções se juntam, resta-nos apenas a nostalgia da extinção, que tudo devora e reduz a pós-.”
Mas será que ele consegue evitar esse segundo estágio terminal?
O caminho dá nesse ponto uma volta. A volta da definição do que seja o ensaio. E o faz chamando para o palco um texto de Abel Barros Baptista sobre um conto de Poe, de que extrai esta formulação: “O ensaio não é o conhecimento disfarçado de literatura – é a literatura disfarçada de reflexão, análise, conhecimento”.
E aqui chegamos à peripécia, por assim dizer. O que Alcir vai identificar, derivando essa proposição, é a definição de ensaio não como mapeamento do objeto, mas como conquista e/ou imposição do lugar do intérprete.
Para mim, esta é uma percepção muito aguda e certeira: “o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo o alienaria da obra que pretende elucidar”.
E aqui a conclusão, da qual decorreria muita coisa: “Assim, um ensaio bem sucedido é menos a explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema”.
O artigo se encerra poucas linhas após essa frase. Por isso não faz uma amarração dela com o feixe dos problemas e argumentos anteriores.
Quando terminei a leitura, escrevi ao autor. Mas antes de contar o que lhe disse, vejo que me esqueci de ressaltar um ponto muito notável do seu artigo, aquele no qual define a nova forma de relação dos entes universitários. Eis: “Como detalha Collini, ..., o aluno comporta-se cada vez mais como um cliente que tem exigências a serem contempladas pelo professor. E o professor, por sua vez, ... aproxima-se da figura de um fornecedor.”
Pois bem, o que lhe disse primeiramente foi isto: “Você escapa por pouco do lamento pelas neves de outrora, se safa bem com a admissão da tentação e a superação por aquela atitude mesma que me sugere quando me vê resvalar pela encosta da melancolia abaixo.” Depois, provavelmente com algum dramatismo provocador, escrevi-lhe que no novo mundo da universidade, o ensaio, tal como ele o define, está mais para um tapa na cara. Algo do tipo, dito pelo fornecedor ao cliente: olhe aqui, você nunca vai conseguir fazer isso se insistir no que tem insistido!
E claro que, ainda nesse registro chão e brutalista para o qual às vezes gosto de puxar o problema, pisando a questão material fiz as perguntas chãs, mas talvez decisivas: “quem está disposto a pagar pelo ensaio? Como ele atende aos clientes/alunos?”
Claro que uma parte da resposta incômoda já estava lá, naquela parte do artigo em que mencionava o caráter cada vez mais elitista, ou melhor, elitizado das humanidades em algum tipo de instituição universitária. Mas achei que devia, para dar seguimento à conversa, formular claramente a questão.
Por fim, retornado àquela frase do Abel, que ele cita para depois desenvolver, observei que o guizo no pescoço do gato ainda está por amarrar, isto é, ainda é preciso dizer para os financiadores (e convencê-los disso) que um texto literário disfarçado em estudo não é de forma alguma uma trapaça, mas aquilo mesmo que define (e também estou convencido disto) um dos núcleos mais importantes, se não o definidor, na ideia de universidade.
sábado, 1 de julho de 2023
Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna
Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso, a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.
sábado, 10 de junho de 2023
Perfis 8 - Jesus Antônio Durigan
Jesus baixou à Unicamp sem anúncio nem pompa, por via incerta. Veio com uma mala de viagem estruturalista, e fortes tatuagens da passagem de Greimas pelo Brasil. Se bem me lembro, era bom professor, sistemático, cumpridor. Depois, foi diretor do Instituto, na sequência do episódio da intervenção malufista que depôs Carlos Franchi. E foi, como nos cursos que ministrou, fiel cumpridor do que lhe cumpria pensar e fazer. As lembranças mais claras que dele tenho, porém, não são da sala de aula. Fui seu aluno e de tudo o que ali falamos ficou-me apenas a lembrança de uma ardida discussão sobre um texto de Edgar Morin. Recordo-me bem, isso sim, de seu livrinho sobre o erotismo, que teve destaque na época. Mas não só, para minha surpresa: quando comecei a pensar em fazer este perfil, percebi que havia mais, nalgum canto empoeirado da memória. Era algo sobre pecado e sobre narrativa. Abanando a mente com o Google, varrendo a internet por “pecado” + “Jesus” + “Greimas” surgiu-me logo na tela do notebook o artigo de 1984. Não vou dizer que o reli agora há pouco com grande interesse, embora a releitura não fosse desinteressante. Assim como o vestuário sofre com a passagem do tempo (pela época da redação, creio que ainda se teimasse nas calças boca-de-sino e nos sapatos de plataforma), as modas teóricas resistem mal ao progresso do calendário. Será que o guardei por conta do título algo pomposo, que à época não viria despido, para mim, de alguma comicidade? A “ciência do discurso”? Creio que não. Talvez então tenha sido por conta da nota, em que a personalidade do autor se revela junto com as tensões do tempo? Pode ser, porque embora os organizadores se esforçassem por registrar, com a honestidade devida da modalização, que “aparecem aqui lado a lado tanto trabalhos teóricos quanto estudos particularizados (...), num exemplo razoável de coexistência pacífica”, a verdade é que Jesus era um estranho no ninho candidiano e devia sentir-se todo o tempo como tal: “Escrito em 1975, este trabalho se propunha a participar das discussões que se realizavam na época. Muita coisa mudou de lá para cá. Curiosamente, o trabalho foi policopiado e lido por amigos e inimigos. Talvez ainda se preste a fofocas. Por isso, foi mantido na sua versão original.” Enquanto tentava retraçar o perfil moral do homem, o que se me impôs foi o seu perfil físico. Ou melhor, a sua silhueta, inconfundível para quem a tivesse divisado alguma vez no corredor das salas de docentes do IEL. Para quem não conheceu o velho pavilhão, devo dizer que era um pouco soturno. Escuro, atravessado por um corredor comprido, ladeado de salas quase sempre fechadas, com uma grande porta de vidro em cada extremidade, tinha a propriedade de nos acostumar às sombras, e de treinar a vista para reconhecer o desenho projetado do corpo de quem vinha por uma das pontas quando estávamos no meio. Jesus tinha longas pernas arqueadas, como de vaqueiro. Pernas de alicate, como se dizia na minha terra. Ver a sua sombra caminhar num tipo de gingado na nossa direção, na semiobscuridade daquela miúda caverna, gerava alguma tensão, e era fácil imaginar, emergindo do fundo da tela, uma das muitas memoráveis trilhas de Ennio Morricone. Creio que poderíamos ter sido amigos, apesar da diferença de estatuto e de idade. Afinal, éramos ambos caipiras do interior, tínhamos a mesma origem veneziana. O que nos garantia um sotaque comum e, mais do que o sotaque, aquela entonação de quem foi criado com macarronada e frango assado aos domingos, sob a dupla sombra do crucifixo e da Comédia. Mas a verdade é que nunca fomos próximos. Jesus parecia ter, por assim dizer, o physique du rôle para cavalgar a burocracia: logo, de diretor do Instituto passou à presidência (ou direção executiva, não estou seguro) da fundação da Unicamp. Creio que foi a saída que encontrou. Mas não continuou muito tempo nessa estrada e se recolheu. No final da sua temporada no IEL, ainda gostava de o encontrar, quando percorria semanalmente outra longa estrada, de Franca (eu acho que era Franca), para dar as últimas aulas necessárias à aposentadoria. De alguma forma me identificava muito vagamente com ele. Principalmente nos primeiros tempos, em que eu tinha a impressão de que não pertencia àquele ambiente, não conseguiria me mover ou crescer dentro das fronteiras demarcadas. Ambos ansiávamos, eu acho, pela largueza dos campos gerais, em vez do canteiro bem cercado. Com o tempo, devo ter me acostumado (ou talvez a horta tenha crescido e se multiplicado), embora até hoje suspeite que aquele não foi para mim o melhor terreno. Para ele, olhando desde este ponto do tempo, tenho cada vez maior convicção de que não foi.
7 Perfis
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sexta-feira, 9 de junho de 2023
Memória: editora
Alguém me pede que compartilhe mais memórias editoriais. Não tenho muitas. E as que tenho talvez não devesse contar. Não por razão obscura ou constrangedora, mas por insignificantes para quem não for do meio. Entretanto, quando pensava em dizer que não me veio à mente um episódio interessante, veio. E começa assim: quando assumi a Editora da Unicamp não tínhamos recursos para nada. Não que o catálogo fosse ruim. A parte melhor, porém, estava esgotada ou ainda por publicar. Sem recursos nem pessoal, parecia que o fim daquela jornada chegava junto com o seu começo. Foram dias em que o ditado se comprovou: a criatividade é filha da necessidade. Ou seria esta a mãe daquela. O que dá, rigorosamente no mesmo, sendo a diferença o grau de angústia ou de otimismo a presidir à construção da frase. O episódio em questão era que tínhamos uma coleção promissora, que andava a meio do caminho. Chamava-se “História do Marxismo no Brasil”. Sem julgamento de qualidade ou competência, devo dizer que na direção da Editora logo percebi que havia dois tipos de leitores abundantes ou persistentes: os marxistas e os linguistas. Então era urgente levar adiante a empreitada que se dirigia aos primeiros. Ocorre que os volumes já editados apresentavam problemas variados em qualidade e quantidade: desde a revisão até a capa, passando pela diagramação. Eram tempos difíceis, da Forma Composer e do fotolito. Redigitar e rediagramar parecia impossível, além de muito lento. Continuar a coleção com o projeto de capa e o design antigo estava além da minha resignação aos tormentos do cargo. Foi então que a filha surgiu da mãe, isto é, a criatividade nasceu da necessidade. Não de um salto, como Diana da coxa de Júpiter, mas aos poucos. Primeiro vi que eu tinha visto muito mais capas de livros do que os tinha lido. Depois, tirando por mim, leitor mediano, concluí que milhares de pessoas veriam os livros da Editora, enquanto só 1000 ou 1500, na melhor hipótese, os comprariam. Portanto, era urgente eliminar a velha capa e arrumar um vestuário mais adequado. A ideia foi cozinhada de uma perspectiva progressiva: era preciso garantir a inteireza da coleção. Não apenas por motivo estético, mas também comercial: uma coleção que se apresenta como tal parece nos induzir, a nós, leitores, a completá-la. Seriam muitos volumes, o que justificava ainda mais o pensamento na penúria. Por fim, abriu-se o ovo de Colombo e nasceu a ideia inteira, a piar de alegria: uma capa bem feita, chamativa sem ser escandalosa, como convinha ao assunto, mas capa de coleção, não de volumes. E já agora a ideia, como um galo, lançava o seu brado de alvorecer: quando a coleção se alinhasse na estante do comprador, ele teria uma surpresa – o rosto de Marx surgiria, indiscutido, da junção das lombadas. Pronto, pensei, quem se arriscaria a deixar de fora uma fatia de tal face? Restava ainda um problema: como fazer com os miolos antigos que iriam se enfeixar no rosto marxista? Não me lembro, ou é melhor que não me lembre, se imprimimos todos os volumes antigos, mesmo com a feia diagramação e com todas as gralhas, só alterando a capa. Ou , o que seria inconfessável e portanto não vou confessar aqui, se chegamos mesmo a desencapar os volumes não vendidos para os vender rapidamente com o novo rosto. Mas afirmo com a voz de testemunha confiável que a coleção foi um sucesso e com o tempo, se tivermos por acaso chegado ao absurdo de reencapar livros, todos os volumes foram corrigidos, rediagramados e refeitos. O que afinal desmente outro ditado, pois se é verdade que não há mal que sempre dure, não é certo – ao menos no caso dessa boa coleção - que não haja bem nunca se acabe.
*
Este pequeno palco, dizem, está com os dias contados. Houve quem o comparasse certa vez a um privado outdoor. Não me lembro bem, mas creio que a ideia era que o dono o rabiscaria à noite e o poria no terreno na frente da casa. No dia seguinte, tomaria seu café e sairia para a varanda. O minúsculo grupo ou a pequena multidão aglomerada à frente ou apenas de passagem dava o tônus e a perspectiva do dia, antes da segunda xícara. Se não era assim, poderia ser dessa maneira. Pelo menos, é como o recordo agora. Mas outras formas crescem ao lado, lançam sobre ele a sombra sufocante, pura imagem. Veja, me dizem: as folhas da grama ainda balançam no vento. Na planície ondulada cada uma é, olhando bem, um pequeno outdoor, o minúsculo palco individual! Mas quem as distingue ou repara nas que caem? Devo dizer que também eu, nesta floresta de teto baixo, gemo e aguardo os ecos dos gemidos, que de longe se confundem. Na mesma tenebrosa unidade, poderia sempre dizer: mas não a dos eleitos e malditos, na profundidade, apenas a dos comuns, no raso. Os que não têm onde respirar, os inconformados invisíveis, os graduados na escala solitária, conscientes em medida vária, ou amortecidos, adormecidos talvez em pesadelo. Nesse incessante debater-se, o pequeno palco suga e supre. Ainda assim, já parece que perde a força. Parece mesmo condenado a desaparecer.
sábado, 3 de junho de 2023
Racismo?
Itamar Vieira Júnior escreveu um texto sobre Vini Júnior. Nele, o escritor, a pretexto de manifestar solidariedade ao jogador, contesta uma crítica ao seu novo romance. Diz ele:
“Acabei de colocar um romance na rua e nele mais uma vez segui meu propósito de narrar a história da minha gente, daqueles que me antecederam e daqueles que me cercam. Estou no meio literário há pouco tempo, mas já acumulei repertório suficiente para escrever uma etnografia desse grupo. É claro que eu esperava racismo por minha insubordinação de continuar a escrever. Esperava que alguém me lembrasse, como o professor branco, que meus pés jamais deveriam ter deixado a senzala.”
“Então vou contar para vocês os adjetivos que ganhei de uma professora branca em redes sociais simplesmente porque decidi ignorar a "cusparada": "sujeito" (alguém inferior que não pertence à sua classe e raça), "arrogante" (já vi o mesmo adjetivo destinado a outros corpos negros altivos, como Djamila Ribeiro, Luiza Bairros e Silvio Almeida) e "preguiçoso mental" (será que é um insulto xenófobo por eu ter nascido e ainda viver na Bahia?).”
Curioso, fui atrás do quiproquó.
Li, primeiro, o texto de Lígia G. Diniz. E, nele, estes trechos que devem ter irritado sobremaneira o escritor:
“Talvez, no entanto, a literatura de Itamar Vieira Junior encarne, mais do que qualquer outra no país, o espírito do tempo, e isso as vendas mostrarão melhor do que uma resenha. É mesmo um mérito saber sintetizar assim uma tendência. Para a literatura brasileira, porém, esse sucesso aponta o status enfraquecido da ficção imaginativa e o triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.
Não se trata só de sucesso de público, no entanto, e é preciso refletir acerca das razões para que esse tipo de literatura obtenha tanto espaço institucional — dos prêmios à atenção recebida pela mídia, o que inclui esta longa resenha. É frustrante que essas razões apontem para o caminho do autoflagelo fácil, e nada produtivo, de uma elite ilustrada que, para expurgar a culpa por seus privilégios, celebra narrativas maniqueístas (e, ironicamente, muito cristãs) em que miséria é sinônimo de virtude, e a desigualdade brasileira se explica pelas ações de monstros muito, muito malvados.”
É verdade que a autora da crítica, a julgar pela foto dela numa rede social, é branca. Mais que branca, pelo que vi: é ruiva e tem olhos claros. O que talvez, de um certo ponto de vista, a desqualifique de uma vez por todas para tratar do texto de um homem pardo. (Penso agora que talvez eu mesmo, apesar de não ser totalmente branco na Europa por conta da costela árabe, sendo suficientemente branco aqui, devesse ser forçado a calar a boca nesse caso.)
Aliás, “calar a boca” foi o motivo da tal briga em rede social a que alude Itamar. E foi assim: ele bloqueou a crítica numa das suas redes, e ela reclamou disso em público. Foi aí que disse que a recusa dele à crítica era preguiça mental e que o bloqueio foi prova de arrogância. Ele, por sua vez, na Folha, equiparou essa reclamação aos insultos recebidos por Vini Jr. e logo traduziu tudo em clave identitária. Afinal, além de ela ser branca, o editor da Quatro Cinco Um (segundo Itamar, pois eu não conheço ninguém ali) é branco!
Ora, mesmo correndo o risco de também ser equiparado à torcida espanhola que xingava Vini Jr. de macaco, devo dizer que a crítica da Lígia me pareceu rigorosa, coerente e sem ponta de racismo.
Por isso mesmo, creio que o Itamar, ao equipará-la aos torcedores espanhóis e ao se comparar ao Vini Jr. apenas reforça, confirma a propriedade da crítica que ela faz nos parágrafos transcritos.
Ou seja, sem absorver a crítica, ele optou por bloquear a autora dela, tirar-lhe o direito de fala no perfil dele, o que deve parecer grave para os que frequentam esse universo fervente que são as redes sociais. Caindo ela na esparrela de reclamar, Itamar conseguiu a resposta mais fácil e lucrativa ao texto dela: tratou logo de se engatar no Vini Jr, surfar na onda e faturar. Com um ganho adicional, qual seja o de prevenir-se de futuras críticas de pessoas não-negras ou não-pardas. Como quem diz: - olha aqui, brancos e brancas: vocês podem ler os meus livros, mas a atitude correta que lhes cabe é fazer logo um ato de contrição e calar a boca sobre qualquer reparo que queiram fazer aos meus produtos, seus racistas!
terça-feira, 30 de maio de 2023
Memória - Teoria
quinta-feira, 25 de maio de 2023
poema 2
no ar seco do meio da tarde
poema 1
Do mesmo velho caderno, esta imitação (eu creio) de Cesário Verde. Mas também com rastros de António Nobre (ao que parece).
Sobre ensino - maio 2023
Devendo preparar uma conversa sobre ensino, fiquei refletindo como quem pensa em voz alta, só que por escrito.
Notas sobre ensino – 1
Numa aula de xadrez, pressupõe-se que o professor tenha grande conhecimento da arte. Numa dada posição, seu olhar pode divisar mais rápida e profundamente os pontos fortes e as fraquezas de cada lado e com base nisso escolher a estratégia ou a tática mais eficaz. Sei bem como é. No meu tempo, em Matão, os dois jogadores mais experientes podiam me demonstrar sua capacidade de jogo facilmente, porque numa configuração qualquer, de algum equilíbrio podiam me vencer assumindo qualquer dos lados do tabuleiro. A mim competia tentar igualá-los. Para isso ia aos livros. Além dos clássicos de abertura, em que disputavam minha atenção os livros do Panov e os do Ludek Pachman, meu preferido era “Estratégia moderna do xadrez”, desse último autor. O teste do rendimento da aprendizagem era invariavelmente o mesmo: comparar a minha capacidade de análise com a dos meus mestres e, quando fosse o caso, enfrentá-los no tabuleiro. Talvez tenha vindo daí a ideia persistente de que a um excelente professor, como eram os dois Biavas, não basta o conhecimento abstrato e a exposição dele. O momento de espanto, que provocava o estudo e estimulava a vontade de aprender, era sempre o da demonstração, em que se materializavam o conhecimento teórico e as lições da experiência. Penso que é assim que sucede nas artes tradicionais japonesas. Um professor tem de saber fazer o que ensina. De seu desempenho provém sua autoridade real. Da sua capacidade de mostrar pelo exemplo o que deve ser feito. Talvez por conta disso eu só tenha ousado conduzir oficinas de haicai quando percebi que meu conhecimento teórico e minha experiência prática permitiam que, na maior parte dos casos, eu pudesse sugerir (ouvindo o relato da pessoa que compôs o haicai apresentado a mim) uma forma mais eficaz ou mais justa de dar conta da intenção.
Notas sobre ensino – 2
Talvez por conta do que contei no post anterior, sempre me debati (e ainda me debato) com uma questão prévia a toda a reflexão, mas bem difícil: o que ensina quem ensina literatura? E também, como uma derivação desta: como ensina, quem ensina literatura? É talvez mais fácil responder a outra questão, menos frequentemente formulada: o que aprendeu (ou teve de aprender ou deveria ter aprendido) quem ensina literatura? Digo que é talvez mais fácil porque a resposta pode ser mais imediata: quem ensina literatura deve, em primeiro lugar, ter construído um bom repertório de leituras. Mas de que leituras? Do meu ponto de vista, não só de leituras literárias, embora essas sejam o elemento mais importante, os alicerces do edifício. Dependendo do objeto, o repertório precisa ser ampliado. Filosofia, história, antropologia, psicologia, filologia, que mais? Também é preciso um repertório musical, sem dúvida. E por que não de pintura, escultura, arquitetura? E o cinema? E o que mais pudermos incluir no conceito vago de “cultura”. Mas a pergunta incômoda é mesmo a primeira: o que ensina quem ensina literatura. Não é filosofia, por certo; nem sociologia ou antropologia. Nem história, esse guarda-chuva tentador, que tantas vezes oferece abrigo ao se juntar ao restritivo “literária”. Professores de literatura que se põem a ensinar psicanálise tendem a fazer um mau trabalho, no que diz respeito à psicanálise. Idem os que se metem com a filosofia ou sua história. E assim por diante. Aliás, ouvi já de algum malvado que os departamentos de literatura são lugares a partir dos quais pessoas podem ensinar o que não sabem ou conhecem pela rama, uma área onde alguém pode explicar o que mal conhece pelo que ignora ainda mais. Opinião que não posso dizer que endosse, embora dela não discorde inteiramente.
Notas sobre ensino – 3
Mas então o que ensina quem se propõe a ensinar literatura? Quando eu mesmo me pergunto isso, a resposta é sempre a mesma: um professor de literatura é sobretudo um professor de leitura. Creio de fato nisto: ensinar literatura é ensinar a ler textos literários; ou, se se preferir, é ensinar a ler literariamente. Nesta última formulação se podem abrigar todos os chamados “dados contextuais”. Porque ler “literariamente” é, em primeiro lugar, do meu ponto de vista, estar atento ao texto, mergulhar nele e na sua rede de sentidos; o que implica, em medida vária, retraçar as referências, as citações, os intertextos, as alusões e aquilo que poderia denominar “biografia pública” do autor. Vê-lo em diálogo com outros tempos do seu texto, para assim aquilatar o que nele há de novo ou de mais bem sistematizado, em relação à média. Ler textos literários é, quanto a mim, uma tarefa que implica uma boa dose de submissão ao objeto, um esforço para fazê-lo falar desde o seu tempo e lugar. Mas fazê-lo falar para nós. É certo que se pode usar os textos literários de outra forma: como exemplos de teoria ou campo de teste de hipóteses metodológicas; ou ainda, normalmente por meio de partes selecionadas, como elementos de prova de teorias ou ideias gerais sobre várias coisas. E também se pode fazer com que falem algo que não falaram ou que falem algo que hoje parece X e no tempo deles parecia Y. Tudo isso, nessa diversidade, faz sentido. E não duvido que em quase todos esses casos a prova da competência possa ser feita. Que um aluno possa trazer um texto ao professor e que este possa fazer como fazia o meu professor de xadrez. Mas também não duvido de que uma aproximação ao texto a partir de um amplo repertório cultural, uma leitura que não violente o texto para fazê-lo dizer apenas uma coisa ou impedi-lo de dizer outras, é capaz de dar conta de um leque muito mais amplo de textos e de gerar respostas mais duradouras nos estudantes, permitindo-lhes mais ampla formação. Quando eu cursava a faculdade de Letras, caiu sobre nós o Estruturalismo. Foi uma febre. Um sarampo, como depois se disse. A Linguística era tida como a chave das ciências humanas. As aproximações linguísticas ao texto literário proliferaram. A vertente mais ativa foi a que teve na palavra “estrutura” o seu esteio. Uma leitura como a que Jakobson fez de um poema de “Mensagem” foi imitada até a exaustão. A competência dos professores que aderiram era inegável: um texto ia para a lousa ou para a transparência e era impiedosamente desmembrado, em busca de todo tipo de estrutura: acoplamentos, paralelismos, quiasmos, classes de palavras, paronomásias, anagramas, oclusivas, dentais, sibilantes etc. Drummond compôs, sobre essa prática de vivissecção, um poema engraçado, “Exorcismo”, com um refrão que pedia a Deus para nos liberar de uma aluvião de termos técnicos – e das formas de leitura que deles se valiam ou neles se escoravam. Passou em certo momento o sarampo, mas deixou cicatrizes. Houve gerações que, no ensino médio ou no superior, foram expostas. Ler literariamente, naquele tempo, para muita gente, era esquartejar um texto e exibir a sua anatomia: os ossos, os músculos, os tendões. Fora disso, era tudo gordura. E melhores eram os textos quanto menos gordura tivessem. Quando a “teoria” saiu de moda e a forma de leitura idem, a competência de leitura específica de professores treinados no modelo, e só nele, se esvaiu. Os que ficaram aferrados àqueles mecanismos interpretativos passaram rapidamente do laboratório de vanguarda ao depósito do museu.
Notas sobre ensino - 4
No último post terminei por desviar talvez o assunto e evocar os tempos em que estudar literatura pareceu, no Brasil, tratar de responder, de certo ângulo de visão, à pergunta: como funciona o texto literário? Como funciona a máquina do poema? No caso do romance, a perspectiva teve menos sucesso ou menos aplicação. Talvez porque o método seleciona o objeto? O pressuposto define o lugar do exercício do método? Seja como for, voltando ao ponto: para mim, ensinar literatura é ensinar a ler textos literários. Por isso mesmo, retomando, creio que tanto melhor é o resultado do trabalho da leitura quanto mais se permita que o texto force os limites do método ou dos pressupostos do leitor. Os melhores professores que tive foram os que não obrigavam o texto a dizer isto ou aquilo, nem tratavam de buscar a pedra filosofal da literariedade, muito menos os que moíam e peneiravam um texto em busca dos pedregulhos com que escorar ideias sobre a sociedade. Mas agora, nestas divagações preparatorianas, surgem de novo perguntas incômodas. Por que estudar literatura na escola? Por que estudar só literatura e não as demais artes, isto é: por que parece natural a muita gente que somente a literatura seja a única arte exigida como parte do currículo? Será por inércia curricular que as universidades pedem, no vestibular, apenas o conhecimento da história literária ou de obras literárias, e não de pintura, escultura ou música? Quando a questão da nacionalidade era central, a pergunta de por que estudar literatura, ou por que a literatura tinha proeminência sobre outras artes nem fazia muito sentido. Isso ainda era muito forte nos tempos de Antonio Candido, como se vê pela famosa proposição de que é a nossa pobre e fraca literatura que “nos” exprime. Daí o dever de amor que ele ali preconizava. Mas e hoje? Qual o futuro da literatura como disciplina escolar e como parte essencial da educação dos cidadãos? Por quanto tempo ainda haverá a obrigação de estudar literatura e, portanto, a necessidade de ensiná-la na escola regular? Como estas divagações nasceram de um convite para falar mais uma vez sobre ensino de literatura, creio que é daqui, deste lugar mais incômodo, que deva prosseguir. Mas termino estas anotações por confessar que ainda não sei bem como.
quinta-feira, 18 de maio de 2023
Um manuscrito
Isto estava em um caderno muito antigo. Manuscrito, em péssima letra, de leitura tão árdua que não garanto a fidelidade nem a autoria.
Trazia ainda uma palavra feia, que tratei logo de ocultar para menor ofensa ao leitor.
O verso 12 foi o mais obscuro, de decifração mais difícil, dada a condição do material.
A lição deste texto é a do Alcir, a quem pedi socorro.
A minha dizia: Que coragem te dê no que restou.
Ó bárbara criatura, ó desprovida:
“Se em cada verso meu onde c*g*ste
Uma rosa se erguesse numa haste
Seria esta clepsidra bem florida!”
- De nada valem reis ou marafonas
Em teu socorro virem com asnices:
Não há como ocultar tuas sandices,
Não há como esconder um Amazonas.
E se vires que possas afogar
Alguma inveja no bestunto teu,
Roga ao Deus que teu cérebro encurtou
Que fé te dê no pouco que sobrou
Pra confessar que no trabalho meu
Cuspindo disfarçaste o chupitar.
segunda-feira, 15 de maio de 2023
Monstros masculinos
Estive lendo um artigo no The Guardian. Era assinado por Claire Dederer. Minha ignorância englobava também esse nome. Então fui à procura. Aprendi que é uma autora norte-americana conhecida. O artigo que li era um extrato do livro “Monsters: A Fan’s Dilemma”. Achei-o na Amazon, felizmente em versão Kindle. Sua capa é divertida. Veremos o livro, que comprei, mas ainda não li. Estou ainda com o texto do jornal.
O artigo merece atenção. A autora desde logo assume o lugar de onde pensa: o de uma mulher, vítima da opressão e agressão masculinas. Mas seria ingênuo pensar que as questões que apresenta se limitem ao universo das leitoras, embora ela explicitamente atribua a propalada separação entre a biografia e a obra, no sentido de que a qualidade estética pode ser avaliada por si só, aos homens. Eis como escreve: “Quando comecei a explorar esse problema, descobri que críticos masculinos desejavam que a obra permanecesse intocada pela vida.” Na sequência, identificando “male critics” com “a voz da autoridade” desenvolve um parágrafo que parece um petardo endereçado aos axiomas do New Criticism, mas não só.O ponto que mais me interessou talvez tenha sido o jeito como ela descreve o crime de um homem monstruoso: uma mancha, que vai se espalhando pelo entorno, pela obra.
Na apresentação do livro na Amazon, lemos: “O que fazer da arte de homens monstruosos? Podemos amar a obra de Roman Polanski e Michael Jackson, Hemingway e Picasso? Deveríamos amá-la?” No artigo, além desses nomes aparece o de Bowie, que desvirginou uma menina de 15 anos.
O crime de Bowie inclusive lhe parece mais grave na medida em que a menina não sentia que era uma mancha a perda da sua virgindade para um artista que adolescentes (inclusive Claire Dederer, no seu tempo) adoravam.
Mas voltando ao ponto da mancha. Pensei que a melhor expressão para nomear o que ela descreve talvez fosse “ferrugem”. Porque a ferrugem tem essa propriedade de se espalhar, corroer, como uma espécie de podridão líquida que se derrama em todas as direções.
E fiquei pensando em quais autores eu tinha sentido, por conta da sua biografia, essa ferrugem a corroer a obra. Desses que ela mencionou, fixei-me no caso de Hemingway, um autor que realmente amo – para usar o termo que ela usa. Sucede que li certa vez uma biografia que lançava várias manchas sobre o caráter e mesmo sobre a motivação e origem da obra de Hemingway. Uma péssima biografia, eu creio, escrita por alguém que antipatizava com o autor de modo muito intenso, Anthony Burgess.
Como já se vê, não houve mancha que ali se lançasse sobre o homem Hemingway que se transportasse, no meu julgamento ou afeição, para a obra do autor de “Adeus às armas”. E depois ainda li outras. E sei da antipatia que o escritor desperta em certos meios, dos ecológicos aos feministas, passando por largo espectro. Mas a verdade – talvez por ser eu mesmo um “crítico masculino”, como diz Dederer – é que ainda leio com grande prazer, pela terceira ou décima vez, um conto do autor de “O sol também se levanta”. Ao mesmo motivo alguém poderia atribuir o fato de que nenhuma revelação sobre Salinger, verdadeira ou não, tenha afetado minimamente a minha fascinação pelas suas “Nove histórias”.
Resta agora ler o livro da autora, para ver se a minha insistência em acreditar que “a thing of beauty is a joy for ever” não é, no final das contas, alguma desprezível cumplicidade com monstruosas criaturas.
Serviço: https://www.theguardian.com/books/2023/may/06/can-i-still-listen-to-david-bowie-a-superfans-dilemma?CMP=fb_gu&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR0KST6J8zXD5S5ustvpSzAXS-Jencnx3pBRugeK-tSv0KeHhpAxEeoxRI0&mibextid=Zxz2cZ#Echobox=1683368487
quinta-feira, 6 de abril de 2023
Leo Vaz
Alexandre Eulálio conheceu Leo Vaz. Gostava dos seus livros e gostou de saber que eu também. Na verdade, houve uma época em que pensei seriamente em lhe dedicar um trabalho mais longo. Queria escrever – e o faria ainda se tivesse força para isso – um estudo sobre um tipo de literatura que ficou soterrada pela aluvião da herança modernista. Pensava em centrar o trabalho sobre dois livros, “Vida ociosa”, de Godofredo Rangel, e “O professor Jeremias”, de Leo Vaz. Ambos publicados em 1920. Alexandre, como é fácil imaginar, adorou a ideia. Como incentivo, um dia me apareceu com o exemplar cuja foto vai anexada. Eu tinha defendido o mestrado no ano anterior ao da dedicatória. Queria que ele me orientasse, mas ele se recusou. Não tinha formação, dizia. Não era um acadêmico. Era um diletante.
sexta-feira, 10 de março de 2023
Perfis 7 - Antonio Arnoni Prado
Certa vez, numa conversa sobre o Modernismo, de repente perguntei ao Arnoni se ele era da família Prado. Ele parou de falar e dispôs a mão na frente do queixo, num gesto todo seu: só o indicador, meio dobrado, ocultava um pouco do sorriso estranho, no qual os cantos da boca não se erguiam, mas abaixavam num esgar controlado. “Que é isso, companheiro? Sou um prado do Tremembé!”
Arnoni era homem de poucos gestos, mas expressivos. Gostava de ficar de meio perfil para o interlocutor, olhando de esgueio. Não falava alto nem baixo e tinha uma bela voz. Na verdade, sempre me pareceu que poderia ser ator. Um galã, com rosto quadrado e olhar um tanto enigmático, como se ponderasse com certa hesitação tensa as palavras e os movimentos dos músculos do rosto.
Tinha na fala o hábito das reticências, que intercalava com uma combinação esparsa de exclamação com interrogação, todas sempre apoiadas num risco de ironia.
Se dissesse que o temperamento era melancólico não creio que incorresse em erro. Mas talvez valesse mais a pena sublinhar uma certa camada de tinta machadiana, aquela pátina de descrença que a gente vai percebendo ao longo da evolução do escritor, entretanto sem dose de cinismo ou de exibicionismo irônico.
Quando certa vez me socorri do valhacouto dos desamparados, que era a casinha campineira do Haquira Osakabe, Arnoni lá foi parar também. Havia mais dois quartos na parte interna, que ele recusou. Preferia ficar num cômodo alijado, no fundo do quintal. Dava mais certo com ele, afirmou.
Foi um conviva quase invisível. Vez por outra passava ao lado da janela aberta da salinha de jantar. Eu estava ali, normalmente estudando. Ele cumprimentava, às vezes parava um minuto. Certa vez, parou mais. Falou um pouco de tudo e depois sacou da bolsa um exemplar do Baudelaire, da Pléiade. Estou muito bem acompanhado, me disse, segurando o livro como um amuleto. E se foi.
Não tive tempo de dizer nada, mas se tivesse talvez teria dito que pelo aspecto de ambos não pareciam boa companhia mútua.
Não tive segunda chance: em poucos dias um de nós deixou o refúgio e depois só nos falamos institucionalmente.
Aliás, creio que essa era a forma preferencial de relação do meu fugaz companheiro da casinha da rua Amélia Bueno.
Apenas uma vez o vi fora da contenção habitual. Foi durante o período mais tenso da vida do departamento. Fundado por Antonio Candido e organizado a partir de um núcleo composto por seus orientandos, vivia o DTL um processo de redefinição. Arnoni, naquela época, se recuperava de alguma lesão nas pernas e caminhava com auxílio psicológico de uma bengala.
Aquilo na verdade lhe caía bem. Ele não fumava cachimbo, que eu soubesse, mas tinha um pouco a boca torta, como se diz dos habituados à arte. Com a bengala, a possível reminiscência do cachimbo ressaltava os traços do rosto e a contenção habitual dos gestos. Parecia um aristocrata.
Mas numa das reuniões nas quais se debatia a herança, o encanto se desfez. Enfrentando um oponente mais ardido, enquanto dirigia palavras num tom de voz grave, alguns decibéis acima do usual, Arnoni foi se aproximando lentamente. Enquanto gesticulava, parecia ter se esquecido do apoio psicológico, que agora se movimentava quase por vontade própria. Em certo momento, como fecho da frase, ergueu a mão direita. E com ela a bengala, que ficou vibrando no ar por alguns segundos densos, pesados como a madeira de que era feito o objeto gesticulante.
O oponente não me lembro se se intimidou, mas Arnoni pareceu surpreso. Não de todo insatisfeito com o gesto, eu creio. Mas num minuto se conteve, voltou a usar a bengala na sua função precípua, apoiou-a no chão, virou sobre os calcanhares e caminhou solenemente de volta ao fundo da sala, onde se sentou.
Eu me lembro de que o olhava entre perplexo e divertido. Estávamos praticamente lado a lado, mas não julguei que a bengala, embora eu estivesse no mesmo campo do interlocutor de há pouco, fosse de novo adquirir vida. Percebendo meu olhar, ele fez o mesmo gesto característico que descrevi no começo da crônica. Ainda parecia um tanto irritado e combativo. Afinal, era um aspecto do legado do Mestre que estava sendo questionado. Mas já se via que o ar fleumático ia ganhando terreno até subir à superfície, na forma de um meio sorriso, entre resignado e cúmplice.
Não o vi muitas vezes depois disso. Minhas atividades na Editora me pouparam de muitas reuniões burocráticas e anódinas. E soube que, naquele bom tempo em que não havia lista de presença nem problemas com ausência, ele também não dava muito as caras por lá.
Quando tive notícia da sua morte, não pude, por conta da minha própria saúde, ir prestar-lhe homenagem. O que faria com gosto e por justiça. Como faço aqui.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
Versificação: acento e metro
Um amigo me diz que há interesse entre poetas jovens pelas questões de métrica. Eu julgava que não, e fiquei animado com a notícia. Resolvi, então, fazer aqui uma pequena provocação.
E é a seguinte: quando dizemos que a nossa versificação é silábico-acentual, queremos dizer exatamente o quê? Que a base é silábica e que a distribuição das tônicas de verso (ou pausas, como diria Castilho) ocorre segundo esquemas tradicionais. Exemplo: uma linha que tem dez sílabas poéticas, tem tônicas de verso preferenciais na quarta ou na sexta. No primeiro caso, o do verso sáfico, ocorre também na maioria dos casos um acento na oitava sílaba. E no segundo caso, o do verso heroico, há uma variante com acento na terceira e outra com acento na segunda.Essa seria uma definição correta, porque tradicional. E porque tem guiado, no nível básico, a prática por décadas ou séculos.
Entretanto, como reconhece o próprio Castilho, há poetas em cuja obra predomina o verso correto, porém ruim...
Sempre pensei nisso, e terminei por suspeitar de que talvez haja outra componente importante da nossa versificação, que possa explicar em parte esse paradoxo do verso correto, porém mau. O que, em certo sentido, é uma conversa sobre como o metro e o ritmo combinam ou não combinam, conversam ou não conversam.
Do meu ponto de vista, essa componente é o caráter acentual da nossa língua, enfatizado pela nossa versificação. (Quase diria: a oralização literária, o modo como oralizamos tanto a poesia quanto a prosa literária, acentua o lado acentual da língua, mas essa é outra discussão.)
Em suma, na denominação “silábico-acentual”, creio que devem ter o mesmo peso os dois termos. Com isso quero valorizar outro aspecto do “acentual”: uma versificação ou oralização baseada na tendência de que entre uma tônica e outra haja aproximadamente o mesmo intervalo de tempo. Ou seja, que haja isocronismo entre as tônicas. Na versificação acentual, para isso acontecer, quando há menos sílabas entre uma e outra tônica, inserem-se pausas; e quando há mais sílabas, a velocidade da elocução é maior.
Que há versos em português assim construídos, em prejuízo da base silábica, parece certo. Um exemplo é a cantiga que diz: palma palma palma / pé pé pé / roda roda roda / caranguejo peixe é. A base silábica é redondilha menor: cinco sílabas. No segundo verso, em vez de uma átona depois de cada “pé” temos, para completar o pé, uma pausa. Já no último verso é preciso alguma ginástica para enquadrá-lo no tempo da cantiga. Talvez a pausa entre versos seja usada para abrigar as duas primeiras sílabas (caran-), porque tudo soa muito natural quando cantado.
Se assumirmos que a isocronia é algo importante na nossa versificação, muita coisa muda na nossa maneira de entender o ritmo dos versos tradicionais, como o decassílabo e as medidas velhas...
E aqui, eu creio, pode começar uma outra discussão, sugerida por outro amigo: a caracterização do poema em prosa em português. Minha intuição, sem ter pensado muito no assunto, é que um texto de poema em prosa, não tendo metro, no sentido estrito, pode seguir esse princípio: o de favorecer ou incentivar a leitura, silenciosa ou em voz alta, que destaque a isocronia.
Castilho andou buscando algo assim, quando escandiu trechos imensos de boa prosa, em busca dos metros clássicos. Não conseguiu nenhum resultado. Talvez mesmo porque ali não era o metro silábico que contava, mas o princípio da versificação acentual.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
De uma conversa com Thomaz Albornoz Neves
Na obra de Manuel Bandeira, a questão do metro em poesia tem um desenvolvimento interessante: no seu primeiro livro, a metrificação parece algo pacificado, no sentido de que ocorre natural e harmonicamente. Depois, há um momento no qual, parodiando um título, podemos falar em “metro dissoluto”. Então, mais do que dissolver o metro, Bandeira passou a buscar o “verso puro”- no sentido de Ureña. A propósito, é bem conhecida a passagem do “Itinerário de Pasárgada”, na qual ele expressa o ideal dessa fase ou busca: “Ora, no verso livre autêntico o metro deve estar de tal modo esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentro dele sem virtude de verso medido.” Por fim, à medida que progredimos na leitura da sua obra completa, observamos o retorno do metro, da linha medida, sem drama – por assim dizer, outra vez pacificada –, que vai ombreando com os versos livres, até predominar.
Sei que essas questões interessam hoje a pouca gente. No geral, perdemos a noção do metro. Os otimistas podem dizer que, em troca, ganhamos na capacidade de perceber o ritmo. Os pessimistas, que o ritmo da elocução, perdida a memória do metro, pode predominar na leitura, mas não na escrita, onde a linha cortada sem metro nem ritmo é quase apenas um pequeno enigma, uma forma de criar hesitação.Voltei a me lembrar disso tudo porque um dos poetas cuja obra me interessa muito, depois de a construir sem metro, mas fazendo daquilo que Mallarmé denominou a “respiração perceptível no antigo sopro lírico” ou “direção pessoal entusiasta da frase” a base da sua poesia, de repente se lançou a produzir sonetos.
Conversamos ontem sobre isso. Sobre esse assunto abstruso, a metrificação. E sobre o que significa para nós o apagar-se do fantasma do verso medido, ainda tão forte no tempo de Mallarmé, depois do legado de Victor Hugo.
E foi então, no final da conversa, que, como um cumprimento ao poeta, enviei-lhe este soneto improvisado, feito com versos misturados naquilo de que falávamos: heroicos e provençais – e ainda misturado na forma, pois italiano um pouco na divisão lógica, e inglês outro tanto na distribuição das rimas.
Falando com Thomaz sobre o soneto,
Dizia-lhe que o verso bem medido
Não tem ritmo, mas só subentendido
O padrão da cantilena, o esqueleto
Que dá sustentação à carnadura
E que mal se adivinha, quando a dança
Ergue alto a carne, reforçando a aliança
Do corpo e do sentido, em forma pura.
Enfim, dizia, o metro não ouvido
Na leitura expressiva, ainda persiste
Na base, e bate ou vibra ali em despiste,
Fantasma ora aparente, ora escondido.
Se sem metro há poesia, e ainda verso,
Melhor é o ritmo com metro submerso.