terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ainda a tradução de poesia



Numa conversa com Thomaz Albornoz Neves, ele escreveu: “Por meu temperamento, quando a versão não me convence poeticamente a descarto. Creio que o meu sarrafo é esse. A literalidade sem poesia não justifica uma tradução, mas a poesia que se afasta do contexto do original tampouco.”

Para começo de conversa, devo dizer que concordo com ele. Não só nesse ponto, mas – até agora pelo menos 🙂 - em quase tudo sobre o que conversamos. Mas é claro que há matizes na concordância. Às vezes, mais que matizes: alteração de algumas cores, sem prejudicar muito o conjunto do quadro. Afinal, sou sobretudo um acadêmico e ele é sobretudo um poeta.

Vejamos. O critério para inclusão de haikais no livro “Haikai – antologia e história” foi mais ou menos este: encontrar o ponto mais próximo entre a sustentação poética dos três versos e o chão oriental em que eles se enraízam. Como as traduções foram o resultado do trabalho das aulas de japonês que tive com a Elsa, ao longo dos meses se acumularam e terminaram por ser centenas. Mas apenas 107 foram acolhidas no livro. Quando, para que o haikai se sustentasse em pé, eu precisasse ou me afastar demais do original ou sobrecarregar o texto de notas, descartei e passei adiante. 

Mas agora vem um matiz importante, que deriva da finalidade talvez, mas não só. Como no livro demos a tradução palavra por palavra, eu poderia ter mais liberdade e fazer uma tradução mais criativa. Não fiz isso, porém. Optei pela mais literal possível, acrescentando o mínimo: sintaxe e nexos subentendidos, a maior parte das vezes. E deixei para notas aquelas informações que eu não poderia incluir na tradução em dois ou três versos breves. Quanto à finalidade e à situação é evidente: por um lado, era um livro algo erudito, embora se destinasse também à divulgação; por outro, a tradução em sintaxe portuguesa não foi pensada para funcionar autonomamente, mas sim em conjunto com a tradução mais literal possível, quase palavra por palavra, com a qual dialogaria. 

A literalidade radical tem, ela mesma, poesia, no sentido que provoca o estranhamento e exige a imaginação tradutória. Por exemplo, no haikai mais famoso de Bashô, em japonês a gente entende que ali, na verdade, há dois segmentos e não três. Um terminado pela partícula expletiva -ya, que é uma “palavra de corte” bem comum; e outro que recobre o resto do haikai. Não se trata, pois, de uma frase nominal, que diz “velho tanque”, seguida de outra frase que diz “rã(s) mergulha(m)”, à qual se seguiria uma derradeira frase nominal, “barulho de água”. A primeira coisa que a vem aos olhos do leitor atento, ao ver a tradução palavra por palavra é o final: oto – literalmente, som. O haikai termina, portanto, com a palavra som, o produto, por assim dizer, de tudo que veio antes. Tudo bem que em inglês se poderia obter algo parecido nesse aspecto. Mas o que a tradução mais literal permite ver é que a “kawazu tobikomu mizu no oto” forma um só bloco, algo como, grosseiramente por conta do uso das preposições: o barulho da água do mergulho da rã. Mas ainda assim, ao inverso, com a rã que pula vindo primeiro, a água onde mergulha no meio e o som no final. Assim, em certo sentido eu diria que a declaração “a literalidade sem poesia não justifica uma tradução” é verdadeira, mas não porque ela seja sem poesia necessariamente, mas sim porque (em uma língua como o japonês ou o chinês, mas talvez em nenhuma outra) eu não consigo completa literalidade em tradução. É uma questão de graus, eu sei, mas queria marcar esse ponto, com algum exagero...

Por outro lado, é verdade que não me dediquei muito à tradução. Sempre fui mais um leitor de traduções. E confesso que o meu modelo de livro, como leitor, é algo como aqueles volumes publicados pela Sabiá (e antes, eu creio, pela Editora do Autor). Foi ali que li, entre outros, Pablo Neruda. Na página, o texto original. No rodapé, com os versos divididos por /, a tradução “literal”. Adorava aquilo: ler o original e depois o literal ou vice-versa e tentar perceber a poesia, sabendo que a minha percepção e mesmo a minha avaliação de um dependia da do outro. Os que trabalham com tradução devem achar isso odioso. É relegar a tradução a um estatuto ancilar. Pois é mesmo como eu penso a tradução, no limite. Ao menos como leitor (e como tradutor, a julgar pelo Haikai – Antologia e História). Agora eu poderia, se fosse imprudente, passar a dizer a minha impressão de algum tipo de intervenção e produtos de alguns tradutores recriadores. Mas paro a tempo, lembrando-me da temperança, da prudência que não tive na juventude e talvez devesse começar a ter na velhice.

O dilema do tradutor


Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:


Se eu a tomasse nas mãos

derreteria em lágrimas

Geada outonal


A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.


***


Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:


“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.


Nas mãos derreteria

Sob as lágrimas quentes –

Geada de outono.”


***


No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:


Se a tomasse nas mãos

Derreteria sob as lágrimas quentes:

Geada de outono.


 Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.

 

 E então, que dilema é esse? 

 É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.

 Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.

 O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.

sábado, 24 de dezembro de 2022

IA e o autor como diferencial

 Postei uma série de pequenos experimentos com Inteligência Artificial na minha página do Facebook. Este breve texto decorrente das conversas pode ter algum interesse além delas. 

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Quando postei as respostas da IA a questões literárias, Ricardo Vasconcelos comentou: "Teremos que trazer a vida do escritor para a sala de aula novamente?" É uma pergunta relevante. Principalmente porque a vida dos autores nunca saiu da sala de aula, nem dos estudos literários. O único ponto em aberto é em que medida permaneceu. Na verdade, são dois pontos, porque também se pode perguntar que vida, ou melhor, que biografia. Começando pelo segundo, há pelo menos dois tipos de biografia: a biografia privada e a biografia pública. Isso tudo de modo bem simplificado, claro. A biografia privada pode não ter grande presença na crítica, mesmo considerando o sucesso, em certo tempo, da abordagem de orientação psicológica ou psicanalítica. Já a biografia pública, tem muita. Lemos com muita atenção, por exemplo, a correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. E do primeiro com muitos outros. Construímos aí uma biografia intelectual, que é muito difícil deixar de lado ao tratar da obra de Mário, e talvez um pouco menos difícil ao tratar da obra dos seus interlocutores. E também lemos biografias de autores, literários ou não. É que a biografia, mesmo a mais enxuta, importa muito. Datas de nascimento e morte, bem como de elaboração e publicação de obras, bem como dados sobre a história editorial e política de um autor contam muito. A ideia de que seria possível compor uma história da literatura como pura história de formas em evolução só se sustentou como ilusão no período que vai do apogeu do New Criticism ao progressivo abandono do Estruturalismo como chave a permitir simultaneamente a abertura de todas as portas das ciências humanas. Mas nem isso excluiu a biografia ao menos num sentido: a data de publicação, bem como a língua e o lugar em que um poema ou romance foi publicado. Porque uma obra literária é, no limite, como um gesto. Seu sentido mais completo – e às vezes, o único mais consistente – só se revela quando se sabe em que contexto foi feito. Um livro de sonetos publicado no Brasil em 1890 e um livro de sonetos publicado em 2022 sinalizam coisas diferentes, independente do que os sonetos sejam, além de sonetos. A forma mais rica de trazer a biografia para a sala de aula é a história literária. Por ser narrativa, cada autor (e mesmo cada obra) é uma personagem, e como tal tem uma biografia, o que quer dizer: nascimento, vida finita, vida eterna (isto é, reencarnações) e eventualmente morte. Uma obra, por sua vez, é como um gesto: o pôr a mão junto à testa tem um sentido num desfile militar e numa arquibancada posicionada contra o sol. Se alguém não souber a data de publicação, nem o lugar, nem o que eram as tendências dominantes, a prática do tempo, dificilmente poderá compreender, ou melhor, avaliar a relevância de um texto adequadamente. A valoração literária lida constantemente com conceitos como inovação, repetição, epigonismo, influência, vanguarda, revolucionário etc. que não subsistem sem um mínimo arcabouço biográfico.

Um dos trechos que mais me chamaram a atenção, ao ler um dos livros da escola de Bashô, foi aquele no qual o mestre pergunta, antes de dizer se um haikai é bom ou ruim, quem foi o autor. E, ao saber, diz que era bom. Mas que se fosse de qualquer outra pessoa, não seria. Na época, isso me pareceu muito estranho. Bizarro, talvez. Mas logo percebi que entre nós também é assim, mas não de forma tão direta. E o “quem fez? quem foi o autor?” não é uma pergunta facilmente descartável, porque não é meramente busca de um apoio de autoridade. No geral é uma pergunta pelo sentido do texto no contexto em que foi produzido.

Por exemplo, todos conhecemos os poemas de Oswald de Andrade. Aquele, por exemplo, que diz que o netinho jogou os óculos do vovô na privada. Se não soubermos em que contexto foi escrito e publicado, nem quem foi o seu autor, faríamos a interpretação que fazemos? Consideraríamos sequer que se trata de poesia? E o amor/humor? E mesmo a “Meditação sobre o Tietê”, teria sido lida como foi, e nós a leríamos como a lemos se não trouxesse o nome do autor que traz?

Outro ponto que o haikai tornou mais claro para mim: o valor de um texto, num ambiente fechado de referências e convenções como era o do haikai clássico, também era aquilatado em função do que as pessoas tenderiam a dizer em similar contexto. A novidade do haikai, em grande parte, era essa: dizer algo diferente do automático, ou negar-se a dizer qualquer coisa numa situação em que todos tenderiam a dizer o mesmo, o previsível automático. Isso é, pensei na época, um dos vetores da nossa história literária. Que, no sentido amplo, traz no seu interior uma sucessão de biografias (públicas, objetivas, mas ainda assim biografias).

Essas divagações me ocorreram quando li a pergunta que referi no começo deste texto. E a resposta, além do abstrato destas ponderações, num sentido prático e concreto é: talvez sim. Talvez trazer o autor para a sala de aula, de um modo mais decidido, seja a forma de evitar a sua morte, agora num sentido específico: o de ser confundido com a IA. Ou confundido com ela. Nesse caso, mesmo que a IA evolua (como deve evoluir sem parar) e consiga detectar o contexto e produzir inovação ou conformação, conforme a necessidade ou o gosto do freguês, sempre será possível identificar o autor humano. O que não sei se seria realmente uma vantagem, pois o problema é que, já agora, muitos autores humanos fazem exatamente o que faz a IA hoje: produzem mais do mesmo ou forçam muito o lado subjetivo para tentar inovar a qualquer custo. Ora, quem já corrigiu redações de vestibular sabe como é: quando todo mundo quer ser original na mesma direção, ninguém fica original, todo mundo fica igual, apenas num nível diferente.

Mas sim, trazer o autor para a sala de aula pode ser uma defesa, por enquanto, para o professor. E para o autor.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Uma aluna de Camilo Pessanha

 Quando recortava, para publicar, o texto sobre Danilo Barreiros, lembrei-me da conversa que tive com D. Henriqueta, sua mulher, que fora aluna de Camilo Pessanha em Macau. 

Eu queria confirmar uma percepção. 

É que, por obra dos vários inimigos que o poeta granjeou naquele mundinho abafado, que era o da comunidade portuguesa de Macau, difundiu-se a legenda do poeta maltrapilho, sujo, opiômano, incapaz de qualquer esforço, mau professor etc. 

Até hoje muita gente engole isso tudo como verdade, mesmo com os dados disponíveis – alguns dos quais eu mesmo trouxe a público tanto no livrinho sobre Pessanha publicado pela Imprensa Nacional de Portugal, quanto na edição brasileira da Clepsydra, pela Ateliê. 

Sem dizer nada, pedi a D. Henriqueta que me descrevesse o poeta no dia a dia, pois eu sabia que ele almoçava uma vez por semana em casa de seu pai. 

O que ela me descreveu confirmou minha hipótese e desacreditou de vez o que eu já adivinhava ser exagero, e mais que exagero, falsidade. Sempre elegante, me disse ela. Excelente professor, que encantava os alunos. (Que era competente e dedicado eu já sabia, pois tinha visto as extensas e anotadas folhas em que escrevia a matéria das aulas.) 

Perguntei-lhe, então, de repente, se era verdade que ele não era asseado. Ao que ela me respondeu com certa dose de indignação. De forma alguma, era um home elegante – repetiu – e trazia sempre um lencinho no bolso do paletó. Mencionou cabelo e barba cuidados. E acrescentou que se sentava sempre na primeira fila, na classe (o que, entendi, garantia o que dizia). Por fim, disse  que gostava do sentir o perfume usado por ele. Sempre perfumado, repetiu. Da mesma forma que na escola, à mesa de almoço em sua casa era o mesmo homem bem vestido e elegante – repito a palavra porque era recorrente na conversa.

Dois anos depois, quando voltei a Portugal, conheci Daniel Pires. Dele ganhei um conjunto notável de fotografias de Pessanha. E ainda, em seguida, a fantástica fotobiografia do poeta. Ali se veem muitas coisas. Inclusive as fotografias em que Pessanha posa de mendigo, acompanhado de dois cãezinhos e de uma bengala de castão de prata, sobre um rochedo. Ele ri, contidamente. Faz ali o papel de um eremita ou poeta vagante. Anos depois, propositadamente se ignorou que naquele tempo não havia ainda kodaks portáteis. Para o registro, o poeta teve de fazer ir até lá um fotógrafo com seu equipamento. Depois, mandou fazer várias cóppias, emoldurou-as, autografou-as e enviou para amigos. Durante muitos anos, passaram por provas do seu desleixo e achinesamento (essa palavra que valia um insulto). Como se ele inadvertidamente tivesse sido fotografado, surpreendido em decadência. Para dizer como ele disse num verso célebre, em que desvios a razão se perde!

Haicai no Brasil?

 Evando Nascimento escreveu, num comentário ao post anterior:

“posso estar equivocado, mas é essa sensação que tenho ao ler haicais à brasileira - algo muito fake e por vezes anódino. Mas pode ser só impressão... É como se alguém quisesse fazer gravura japonesa com ideogramas e o Pão de Açúcar ao fundo...”

Depois, como eu prometesse comentar o comentário num novo post, acrescentou:

“Sou totalmente a favor das migrações e adaptações culturais, mas algumas são extremamente difíceis. Ainda não me deparei com nenhum haicai brasileiro que realmente me agradasse como os japoneses, mas, repito, pode ser ignorância minha e haja excelentes haicais por aí...”

Posso começar pelo fim. 

No geral, o que se pratica sob o nome de haicai no Brasil é um terceto com duas características: 1) métrica de 5-7-5 sílabas, contadas entre nós à maneira definida por A. F. de Castilho. (Sobre isso, em vários posts e artigos, escrevi que é o que há de menos interessante a importar: além de ser uma correspondência falsa, porque em japonês não se contam sílabas, mas moras, não nos diz nada ritmicamente...); 2) uma palavra indicativa de estação, o “kigo”.

O haicai assim definido tem vantagem e desvantagens. 

A vantagem é a facilidade com que se podem fazer, da qual decorre a grande quantidade de praticantes solitários ou reunidos em grêmios. Isso não me parece desprezível, do ponto de vista cultural, digo logo. O haicai tem esse caráter de prática coletiva, de atividade grupal, que me parece ter relevância social. Quando essa prática tem, como líder ou guia, um bom poeta ou um bom conhecedor da tradição, os resultados podem ser notáveis. 

As desvantagens são o tom muitas vezes “fake” do uso prescritivo dos kigos, bem como o caráter anódino da maior parte da produção.

Mas esse último ponto é característica apenas do haicai? Não creio. Isso sucede também com a despropositada maioria dos livros de poesia contemporânea brasileira que tenho recebido ou comprado. O mesmo para páginas da internet ou de jornais ou de revistas impressas que vez por outra visito.

Da mesma forma como há alguns bons poetas em meio à multidão dos que se limitam a recortar as linhas de textos que, em prosa, seriam banais – e que em linhas recortadas continuam banais, apesar de o procedimento do corte postular uma leitura diferenciada –, assim também em meio à profusão de livros sem interesse há aqueles nos quais o haicai se justifica como forma e, principalmente, como atitude, disposição, jeito de se situar na linguagem. Um exemplo: o livro “Furusato no uta/Canção da terra natal”, de Teruko Oda – a poeta que, do meu ponto de vista, faz o mais significativo haicai em português.

Sem dúvida que há, no geral, no Brasil, um número muito maior de poetas interessantes do que no pequeno mundo do haicai. Mas isso não é puramente um defeito do haicai, senão no sentido de que seu universo é habitado por muito menos gente do que o outro.

Quanto à migração e adaptação cultural, concordo: a do haicai é muito difícil. Mas não por conta do ideograma, como muitos acreditam. Creio que o uso da letra chinesa no hokku ou no haiku tem sido sistematicamente superestimado no Ocidente. Basta ver os exemplos de haiga (hokku + desenho) que postei aqui mesmo. 

O que é difícil é superar a tentação de reduzi-lo ou a uma forma fixa, espécie de soneto microscópico, ou a um exotismo superficial.

Não que não fazer haicai não seja um exercício de exotismo, mas no sentido radical que Segalen atribuía a essa palavra. 

Em suma, eu acho que o haicai pode ser aclimatado com proveito, como a Ikebana o tem sido. Também as demais artes japonesas que são um caminho se aclimataram, ou têm sido bem praticadas aqui. E não valeria a pena achar que porque temos o facão de mato ou a peixeira seria fútil ou sem sentido praticar as artes orientais da espada. E da mesma forma que quando vamos a uma exposição de Ikebana não faz sentido comparar um pequeno arranjo despojado de três elementos com uma profusa guirlanda holandesa, também para a apreciação do haicai se exige uma disposição receptiva diferente. 

A pergunta decisiva então me parece ser “vale a pena?” Vale a pena a prática séria, vale a pena o esforço? E essas se desdobram em outras, do tipo: o que nos pode interessar no haicai japonês? O que ele pode trazer à nossa prática poética? O que seria seu diferencial, isto é: o que, nesse tipo de composição, é diverso do que fazemos ou pensamos fazer ao escrever poesia? Ou pelo menos, para pensar como R. H. Blyth, o que ele permite tornar mais visível na nossa própria tradição?

 Das respostas a essas perguntas vai depender o julgamento.

 Não é menos relevante pensar em qual a disposição de espírito que o haicai requer do seu leitor. Ou então: qual a disposição que ele favorece nele.

 Confesso que pretendia escrever de modo mais objetivo, inclusive adiantando as minhas respostas pessoais a essas questões finais. Mas não só não tive o tempo de que precisava para escrever hoje e não perder o embalo, mas ainda perdi a mão e escrevi demais.

A voz dos patos

 Lendo um diário de Bashô, deparo com um haikai bem conhecido entre nós, principalmente depois da tradução que dele fez Octavio Paz.

É este:


umi kurete

kamo no koe

honoka ni shiroshi


Valeria a pena, talvez, para os fixados na métrica, dizer que nesse haikai a forma usual não é respeitada, pois em vez de 5-7-5 moras (ou sílabas, para facilitar a referência), temos 5-5-7. E assegurar-lhes que não há como dividi-lo de outra forma. Mas o ponto interessante é que esses versos têm sido lidos entre nós como exemplo de sinestesia. Assim: o mar está escurecendo - a voz do(s) pato(s) é fracamente branca.

É uma leitura possível, mas não é a única.

Os defensores modernos argumentam que é da genialidade do poeta que deriva a sinestesia, que identificam como o ponto mais relevante do poema.

Já os comentadores mais sisudos e tradicionais não abdicam do caráter denotativo, objetivo, como um efeito preferível a esse.

No caso, a leitura seria: o mar está escurecendo – a voz do(s) pato(s) enfraquece na brancura. A brancura seria o aspecto pálido ou enevoado da cena, que é um frio entardecer.

Memórias: Danilo Barreiros


O que vem a seguir, em três partes, é um extrato de um texto mais longo e nunca publicado.

Enviei-o a Pedro Barreiros, quando ele começou a redigir a biografia do pai. Enviei junto as cartas nas quais Danilo terminou a narrativa, pois ficou interrompida pela minha volta ao Brasil.

O encontro com ambos, a que se acrescentou depois o conhecimento da mulher de Pedro, Graça, foi uma das grandes alegrias que tive em Portugal.

 

 

I

 

            Em 1989, de passagem por Lisboa, perguntei a vários conhecidos se ainda vivia e se morava em Lisboa o Dr. Danilo Barreiros. Ninguém sabia responder. A única pessoa que com ele estivera ultimamente, disseram-me, andava agora por Macau, em busca dos rastos de Camilo Pessanha para compor uma fotobiografia.

            O homem era para mim uma referência bibliográfica. Tomei certa vez um avião em São Paulo e voei ao Rio de Janeiro para consultar, na Biblioteca Nacional, A paixão chinesa de W. de Moraes. Tinha dele algumas outras notícias, que me levavam a procurá‑lo. Uma, que morara longos anos em Macau, onde convivera com o grande sinólogo José Vicente Jorge, companheiro e professor de Pessanha. Outra, que se casara com uma filha de Jorge, aluna de Pessanha no Liceu de Macau, herdeira de muitas recordações do mestre e de uma bela coleção de arte chinesa do pai.

            Sobre um móvel de canto, na sala de televisão do hotelzinho, estava a lista telefônica. Na letra B, o nome de minha principal bibliografia sobre Wenceslau de Moraes. Telefonei‑lhe, apresentei‑me e desliguei, surpreso, com uma entrevista marcada para segunda‑feira às duas horas da tarde. Era sexta‑feira, e o programa do final de semana era uma festa de touros Tejo acima, em Alcochete.

            Quando voltei dos touros, fui à casa de Danilo Barreiros. Dona Henriqueta, bem-disposta e elegante, abriu‑me a porta do apartamento da rua Coelho da Rocha e entrei em uma sala grande, que tinha ao fundo um retrato de Vicente Jorge e uma infinidade de outros objetos que só aos poucos pude observar com atenção. Enquanto aguardava, entretive‑me com as peças mais impressionantes e que eram, nesta exata ordem, um biombo de madeira escura coberto de baixos-relevos, um console chinês esculpido e um buda sorridente, que segurava um colar de contas. Todo em bronze, Sakhiamuni vinha ladeado por dois leõezinhos simpáticos, gorduchos, de boca escancarada.

            Não terminara ainda com o sino que ficava mais à esquerda e já Danilo Barreiros chegava, maldizendo a ciática que o castigava muito nos últimos dias. Embrulhado em uma espécie de robe‑de‑chambre arroxeado, que mal se acomodava sobre os pijamas largos, pediu logo ao menino ‑‑ que era eu ‑‑ que o ajudasse a se sentar junto à janela, numa cadeira de braços. Ficamos ali por alguns minutos. O motivo de minha visita, sua disposição em me ajudar, a falta de memória de sua mulher... Nisso sobe as escadas um rapaz magricela e miúdo, que vem consultar o advogado Dr. Barreiros sobre um ponto obscuro na interpretação de uma lei. De minha cadeira, agora à vontade para olhar detidamente o sino, a floreira e os pormenores do console, acompanho a exposição do artigo do Código Civil. É uma explanação clara e enxuta e o pequenino advogado ou estudante de Direito em breve se atira pela escadaria abaixo. Como o calor aumentasse muito, deslocamo‑nos para uma outra pequena sala, de mobília mais chinesa e luz mais escassa. Dizendo‑lhe eu que queria saber a sua vida, o porquê de ter ido a Macau e o que vira por lá pouco depois da morte de Pessanha, propôs‑me Danilo Barreiros o seguinte procedimento: ele iria dizendo o que lhe lembrava; eu anotaria o que me interessasse. Acrescentou, enigmaticamente, que nada ocorria por acaso e que, por isso, podia eu ter certeza de que algo me havia levado até ele naquela tarde quente de segunda‑feira; tínhamos uma missão por cumprir.

            Colocado junto à janela, onde havia mais luz, concordei com a primeira ideia. O calor externo estava realmente insuportável. Passaria ali a tarde, ouvindo as lembranças de Danilo Barreiros e logo mais, à noite, iria vagabundear na Baixa.

            Comecei a tomar notas. Disse‑me ele que nascera em 11 de outubro de 1910, em Lisboa, seis dias depois de proclamada a República. O local era a Rua Arco Marquês de Alegrete, na Mouraria, junto à capela. Era filho de Gregório da Costa Barreiros, originário de Trás‑os Montes. Esse Gregório viera muito cedo a Lisboa e ingressara ainda criança na vida artística, com o nome de Eduardo Barreiros. A respeito do pai, disse‑me que nenhum dos dois nomes era correto, porque o segundo era falso e o primeiro deveria ter sido Gregório Barreiro da Costa.

            Não sabia exatamente por que anotava tudo isso, nem por que ele me contava sua história ab‑ovo. Se devíamos chegar a Macau, o caminho seria muito longo, pensei, e não se vai nesse passo horas a fio com uma ciática tão cruel.

            Fui interrompido, quando divagava nessas questões, por uma observação completamente esdrúxula. Danilo Barreiros, olhando‑me fixamente, disse quase gritando: ‑‑ "O senhor é judeu!" Eu me espantei, é claro. Árabe, sem dúvida, por parte de avô. Judeu era novidade. Disse que não, bati a ponta da caneta no caderno, mostrei que estava a postos para anotar. Só faltava dizer: ora, deixe de brincadeiras, Dr. Danilo, tomemos logo o vapor para Macau! Mas ele me lembrou de que nada sucedia por acaso. Disse que meu perfil jamais o enganaria. A linha da testa, o queixo ‑‑ ou era o traçado do nariz? ‑‑ lhe indicavam claramente o sangue judeu em minhas veias. Falava com tal convicção, que me dispus a encarar o assunto. Pus o caderno sobre a mesinha e esperei. Perguntou‑me se tinha ascendência portuguesa. Disse que sim, que minha avó paterna era uma Teresa Barreira, de Trás‑os‑Montes. Apoiado em boa erudição e maior entusiasmo, o Dr. Danilo explicou‑me de chofre nosso obscuro parentesco, pois não havia dúvidas de que éramos marranos fugidos para Trás‑os‑Montes. Explicou‑me, de entremeio, que os enchidos sem carne, de que eu gostava tanto, eram criação dessa gente que para ocultar a origem matava também o seu capado nos dias previstos e pendurava bem à vista os enchidos ‑‑ sem carne, só aparência, para fugir à perseguição. Mostrou‑me a seguir, apoiado em altas especulações genealógicas e etimológicas, que éramos da mesma família e que, mesmo passados tantos anos e muitas gerações, nem por isso deixávamos de ser primos. Primo! Eu que chegara a ele pela lista telefônica era agora gente da casa! Nessa nova condição, fui novamente apresentado à aluna de Camilo Pessanha, que acorrera ao chamado emocionado de meu parente, trazendo com ela uma mulher que também era da família, além de minha colega. Era judia da gema e professora de uma universidade em Tel‑Aviv. Quase em seguida, chegou um neto do Dr. Danilo que era também, consequentemente, meu primo. Depois outro primo, pai deste, médico e pintor, filho de Danilo. Nessa altura, já tínhamos interrompido as lembranças e as anotações. Voltando à sala grande fizemos alguma festa, com uísque e cerveja. Afinal, desde o tempo de D. Manuel I que a família não se reunia! Cheio de emoção e de bebida, saí de casa de meu primo completamente trôpego, sem qualquer outra utilidade por aquele resto de dia que não fosse dormir despachadamente. Nem mesmo pude ir passear na Baixa e beber a brisa do Tejo. Devo ter descido sem acidentes as escadas, porque acordei ainda eufórico e inteiro, na terça‑feira de manhã.

 

 

II

 

            À tarde fui, na mesma hora, visitar os parentes. D. Henriqueta me recebeu com a cara um pouco mais fechada. Desejava por certo que não se repetisse a pândega do dia anterior, temerosa pela saúde e pelos setenta e nove anos do marido. Este já me esperava na saleta. Mal consegui instalar‑me, começou a contar que sua mãe, que se chamava Carolina Alice Nunes, era atriz e tinha dezoito anos quando ele nasceu. Fui anotando os dados e de novo me veio o pensamento de que aquilo não acabaria mais. Estávamos na segunda tarde de trabalho e meu primo mal acabara de nascer. Nesse ritmo, pensei, mal chegaríamos à primeira adolescência antes do prazo previsto para minha volta, que era dali a uns dez dias. Contou‑me a seguir o seu batizado na Igreja da Mouraria, e nomeou os padrinhos: meu compatriota Leopoldo Fróis, de Niterói, fundador da Casa dos Artistas, solteiro, e uma cantora lírica espanhola chamada Dolores Rentine. A respeito desta, disse‑me ainda que era de origem italiana e de família circense. Declarou ainda que a própria rainha de Espanha a mandara para o Conservatório de Madri, onde deveria apurar a voz maravilhosa. Ora, essa Dolores foi certa feita ao Brasil, numa companhia organizada por um grande empresário português que era também seu marido. No Rio de Janeiro, conhecera Dolores o Dr. Leopoldo Fróis, delegado de polícia. Viram‑se, apaixonaram‑se e ele deixou tudo para segui‑la a Portugal. De modo ‑‑ disse‑me o primo ‑‑ que na sua Certidão de Batismo a única pessoa casada era a madrinha, mas com outro homem. Fróis não era marido dela, nem de ninguém, e o meu tio não se havia casado ainda com a minha tia.

            Por parte de pais, os avós de Danilo Barreiros eram jornaleiros de Peso‑da‑Régua e Mesão‑Frio, nomes sugestivos, mas dos quais minha ignorância geográfica nunca tivera menção.

            Dizia‑lhe a sua mãe que o pai quisera que ele nascesse na Mouraria para que, se fosse homem, viesse a ser fadista. Pessoalmente, confidenciou, não acreditava nela e jogava a frase à conta de sua megalomania. A mãe fora filha de um operário que morreu tuberculoso no Hospital São José e de uma lindíssima senhora, de cujos olhos azuis e cabelos louros jamais conseguiu saber a origem exata. Chamava‑se essa sua avó Virgínia.

            O pai de Danilo Barreiros, que era considerado o melhor tenor português do tempo, conheceu Dolores Rentini e Leopoldo Fróis e com eles foi para o Porto, pois Dolores organizara uma companhia teatral dedicada a operetas e montara naquela cidade do norte a Viúva Alegre. Na peça, Leopoldo era Danilo Danilovitch e Eduardo Barreiros era a personagem secundária, o tenor. Dessa atuação e dessa amizade, veio o nome de meu primo, Leopoldo Danilo. Pouco depois do nascimento, foi a companhia para o Brasil, onde atuaria no célebre Teatro do Pará. No Brasil, a Companhia Dolores Rentini foi dizimada pela febre amarela. O pai de Danilo morreu, ficando sepultado no Pará. Faleceu também Dolores, pouco depois, e foi enterrada no Recife. A mãe de Danilo, que era muito bonita, continuou no Brasil como atriz secundária e lá faleceu, muitos anos depois, como viúva do General Hilton Fontoura, que era apenas um ano mais novo do que meu primo.

            Quando este se levantou para ir até a estante de livros, notei que estava exausto. Trouxe‑me de lá um volume: As mil e uma vidas de Leopoldo Fróis, de Raimundo de Magalhães Jr. A história desses tristes acontecimentos está toda aí, disse‑me. Aproveitando a pausa, disse‑lhe que seria melhor interrompermos nesse ponto a narração e continuarmos no dia seguinte, se não houvesse problema.

 

III

 

            No caminho do hotel, pensei que aquela era uma situação muito estranha. Fora a casa do Dr. Danilo para obter informações sobre Pessanha e Wenceslau e estava agora biografando o biógrafo. E num ritmo tal, que na melhor das hipóteses, viajaria para o Brasil deixando meu primo ainda a poucos anos da adolescência. Macau ficava cada vez mais longe. No entanto, a viagem pelo passado estava agradável. O Dr. Danilo tinha muito estilo e muito humor. Era bom estar naquele terceiro andar cheio de lembranças da China. Resolvi continuar.

            Quando voltei, feitos os cumprimentos de praxe, recomeçou o primo seu relato como se entre a última frase e esta não houvesse um dia inteiro, mas apenas alguns minutos. E como visse que me dispunha a tomar muitas notas, começou ele a falar bem pausadamente, num quase ditado, que fui taquigrafando como pude:

            [...]

            Nesse ponto, provavelmente lembrado dos motivos que me haviam trazido até sua casa, Danilo Barreiros deu por encerrada a sessão da tarde, prometendo cenas picantes para o dia seguinte. Apanhou então, da estante, um vasto arquivo sobre Wenceslau de Moraes, onde colecionara tudo o que pôde sobre o eremita de Tokushima. De uma gaveta, sacou uns papéis velhos que também me deu. Eram três cartas inéditas de Moraes ao seu amigo João Vasco. Passou‑me ainda uma terceira pasta, amarrada com barbantes de armazém, em que havia uma infinidade de recortes de notícias variadas sobre o Japão, publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos trinta anos. Disse‑me que poderia fotocopiar os arquivos e publicar as cartas de Moraes ‑‑ por conta, é certo, de nosso parentesco. Como também me disse que podia publicar suas memórias, tudo o que disse e também o que não disse e eu julgasse que deveria ter dito. Passamos o resto da tarde a falar de Moraes e de Pessanha e saí dobrado sobre uma sacola de feira cheia daqueles papéis. Como fosse a Sintra no dia seguinte, marcamos para segunda‑feira a continuação dos trabalhos. Ele me prometeu que chegaríamos, em uma tarde, a Macau. Não acreditei. Não fazia mais, também, questão alguma.

            Na segunda‑feira, meu primo estava mal. Aumentara a dor da ciática e uma complicação do estômago o deixara muito debilitado no final de semana. Queria, porém, continuar ditando. Insistiu, por isso, que me acomodasse em uma cadeira de balanço ao pé de sua cama, pediu um abajur a D. Henriqueta e, lembrado de que paramos quando de suas furtivas excursões para fora do Colégio, recomeçou a história.

            [...]