domingo, 29 de janeiro de 2023

Primeiro capítulo de um livro não escrito


 Matão era uma cidadezinha pacata, integrada ao mundo pela ferrovia Araraquarense. É certo que também passava ao lado a rodovia Washington Luís. Naquele tempo, porém, o trem era mais seguro e na linha férrea não havia desvios, com eventuais atoleiros, nem vacas pastando à margem, perigosamente, naquela boa preguiça mastigante que eu não me cansava de admirar.

Quanto à gente que lá vivia, eu me lembro de uma frase que meu pai dizia rindo: se alguém fosse ao Banco do Brasil e visse as placas com os nomes dos caixas e demais funcionários, ia achar que era a escalação da Azurra. 

De fato, os italianos eram maioria e, dentre eles, os que tinham origem no Vêneto. Os sobrenomes terminados em consoante já indicavam o dialeto aos menos familiarizados. Mas os demais também acusavam a origem.

Pequena e pacata, era entretanto uma cidadezinha progressista, como disse Mário de Andrade quando a visitou. Ao menos no que diz respeito à indústria. Quando a deixei, no começo dos anos de 1970, um grande cartaz na entrada avisava ao visitante que no município havia cerca de trinta e cinco mil habitantes e cento e quarenta e tantas indústrias.

Depois, a essas empresas de origem familiar veio juntar-se uma grande fábrica de suco de laranja, fazendo brotar em volta campos perfumados e fábricas menores no mesmo ramo. 

As multinacionais trouxeram um contingente grande de migrantes, e até o arrabalde final da cidade, que no meu tempo era a Vila Raposa (acho que era esse o apelido), foi englobado na parte mais central. E também o Bairro Alto, que ficava depois da estação ferroviária, esse marco divisório do miolo e das franjas da cidade, passou a pertencer ao núcleo principal.

Confesso que hoje perdi o contato e não sei como aquilo anda. Mas creio que não anda mal.

Uma outra comunidade de habitantes de algum relevo – se pensarmos nas ramificações desde Matão até São José do Rio Preto – era a de origem árabe. E nessa forquilha me encaixo eu: entre o Vêneto e a Síria (ou o Líbano, porque as fronteiras mudavam mais antes do que hoje).

O lado vêneto, porém, não se radicou ali. Na sequência da crise de 1929, a terra conseguida em pagamento de trabalhos não virou indústria, como no caso de outros vizinhos. Virou mais terra, muito mais terra, no norte do Paraná, para onde o avô levou a prole para derrubar a mataria e plantar café.

Tivessem ficado em Matão, em vez de funcionário público eu poderia ser herdeiro de indústria metalúrgica, porque talento na área não faltava ao avô, nem aos tios, nem ao pai. De modo que mesmo faltando a mim a coisa estaria garantida.

Já no Paraná, as geadas trabalharam contra e só o empenho de vários anos permitiu que a tribo se fosse ajeitando na terra e na comunidade, numa vila que hoje tem tantos parentes quanto o meu apartamento tem livros.

O outro braço da forquilha é o árabe. Ou turco, como se dizia. Monteiro Lobato em algum lugar fala da venda do Elias Turco. Pois era também um Elias Turco o rapaz que se estabeleceu na beirada de uma das fazendas dos ingleses, num sítio pequeno, ao lado da Estrada do Rumo, num armazém de duas portas.

Elias veio cedo do Líbano ou da Síria. Provavelmente desta. Primeiro ele mascateou a cavalo, depois, já com algum capital, de caminhonete; por fim, abriu a venda, que denominou Casa Síria, casou-se com uma calabresa brava, que foi o terror dos clientes, dos filhos e dele mesmo. Ainda conseguiu comprar um pequeno sítio e trazer a velha mãe para a nova terra. E ali, arrastando a perna entre o quarto e a salinha atrás do balcão, onde gostava de se sentar para ouvir a conversa do comércio, terminou os seus dias, depois de dois derrames, dois anos mais jovem do que eu neste momento em que escrevo isto.

Meu pai, depois de descobrir que não estava talhado para o sacerdócio, largou o seminário e foi trabalhar de escrevente na fazenda Tamanduá, do conjunto inglês. Num final de tarde, reparou na turquinha, na venda. E muitos anos depois estavam casados: quando ele conseguiu, como parecia ser a praxe do tempo, estabelecer-se num bom emprego.

A casa onde cresci era típica da cidade: tinha duas janelas dando para a rua, de onde minha mãe atendia as vizinhas e clientes dos botões forrados com que ajudava nas despesas. Um portão de ripas dava acesso a um caramanchão, que era uma parreira de uvas que nunca deram fruto e que servia de garagem para o velho Ford 38. Seguindo adiante abria-se um quintal onde reinava uma jabuticabeira e havia um quartinho que mais parecia uma capela. E era, em certo sentido, pois ali o meu pai, como seus irmãos em seus quintais, instalou uma sagrada reprodução, em ponto menor, da oficina ancestral.

A rua era perpendicular ao rio. Da frente da casa via-se perfeitamente a baixada e a encosta da colina, sobre a qual ficava a estação de trem. Do lado oposto, duas casas acima ficava a Padaria Central, que era um dos centros culturais e políticos da cidade. Assim como a farmácia tinha sido em outros tempos.

Matão era conhecida por duas coisas e depois ficou sendo, em certos meios, por três. A primeira delas é uma valsa famosa, intitulada precisamente “Saudades de Matão”. Sempre me perguntei se esse “matão” do título se referia ao, na época, povoado de São Bom Jesus do Matão, ou se era simplesmente uma referência vaga a um mato grande, sinônimo de natureza agreste. A segunda é a tradição de enfeitar as ruas para a passagem do Corpo de Cristo. Parece ter começado com simples flores espalhadas no chão, mas logo evoluiu como a cidade, adquirindo um aspecto de grande artesanato, até chegar a um estágio quase industrial, com moldes metálicos que garantiam a precisão dos padrões. Por fim, a terceira é mais modesta e limitada, mas não menos notável: Matão foi um celeiro tão grande de enxadristas para os Jogos Regionais e Abertos, quanto de laranjas para as fábricas de suco.

E aqui voltamos à rua de casa, porque a porta do celeiro era justamente a Padaria Central, onde o padeiro, vendido o pão do dia, cantava árias de óperas italianas junto ao balcão deserto e acolhia os jovens interessados na arte do xadrez, discutindo com eles partidas e aberturas, sobre um grande tabuleiro de madeira que nunca deixava de estar pronto, mesmo entre uma fornada e a seguinte.

Foi nessa cidadezinha adorável, ensolarada e calorenta, e nessa rua que desde a madrugada era invadida pelo cheio de pão fresco, e também nos arredores rurais, em que os cafezais foram lentamente sendo substituídos por laranjais, pastos e finalmente canaviais, que cresci. Aí vivi, vi, ouvi ou imaginei a partir de indícios, as histórias que agora vou contar.