terça-feira, 25 de março de 2025

Haikai e Haimi - um haiku de William J. Higginson

 Nem sempre o conhecimento produz um bom haicai. Creio mesmo que a intenção de fazer um bom haicai pode se tornar um obstáculo.


Em certo ponto do seu livro, Higginson conta a gênese de um de seus haicais. Aparentemente, um de que gosta bastante.

O autor está comentando a recepção de haicais, como eles rebatem nas cordas da memória individual. Em certo ponto, para exemplificar uma questão, ele narra uma sensação/emoção que lhe despertou o desejo da escrita. E prossegue expondo a intenção e as campanhas de redação, até chegar a um resultado, que indica ser “final”.

Este:

“Winter Solstice

wooden wind chimes
in the wind in the
wood smoke dusk”

Contra seus próprios princípios, acrescentou um título, porque a percepção disparadora se tinha dado no dia do solstício de inverno. E ele não queria deixar nada de fora. E por isso tirou o kigo do haicai para incluir outra coisa. Mas deve logo ter percebido que o que retirou, afinal, era o kigo – e então o reintroduziu pela janela, ou melhor, pelo título.

Outra informação, igualmente interessante, é que ele ouviu aqueles sininhos de vento de metal, mas os transformou em sinos ou campainhas eólicas de madeira, porque isso entrariam em consonância com o cheiro de madeira queimada que sentiu enquanto tocavam os sininhos. A associação que deve ter feito é entre a madeira que se queima e desaparece e a madeira que ainda permanece, tendo voz quando exposta ao vento. Uma associação por contraste.

Ele também alterou o período do dia. Tudo tinha acontecido mais cedo, mas ele terminou por mudar o haicai para o momento crepuscular, o final do dia, talvez por lhe parecer mais apropriado ao clima. No caso, talvez alguma melancolia.

Como traduzir esse haicai?

“Solstício de Inverno
sinos (ou campainhas) de madeira no vento no crepúsculo de fumaça de madeira”

Ou:
Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / na fumaça de madeira ao anoitecer

Ou ainda:

Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / no crepúsculo de fumaça de madeira.

Não consegui achar uma forma que me parecesse razoável.

Mas para a sensação inicial, que ele registra e da forma como a registra, talvez sim.

Higginson escreveu isto, sob o efeito imediato de ouvir os sinos de vento:

“solstício... wind in the / wind chimes”

Deveria, em português, eu acho, ser algo desta ordem:

Solstício de inverno – ah o som do vento nos sininhos de vento...

Ou:

Solstício de inverno – o vento nos sinos de vento

Não me saí provavelmente muito bem, mas creio que melhor do que no haicai em forma final.
O que talvez queira dizer que, para o meu gosto e para a minha concepção de haicai, a notação imediata de Higginson tinha haimi (sabor de haicai), enquanto o poema em forma final, não muito.

Haiku e Senryu

 Um dos livros clássicos sobre haicai no Ocidente é um manual: o “The haiku handbook – how to write, share, and teach haiku”, de William J. Higginson.


Estive relendo o livro, porque retomei um projeto antigo: escrever um manual semelhante, porém mais focado na composição.

Em certo momento deparei com a parte em que o autor diz que boa parte do que fazemos no Ocidente como haiku é, na verdade, senryu. É algo que sempre me pareceu evidente, talvez até mesmo porque depois da obra insubstituível do Blyth, o livro de Higginson tenha sido um dos que mais me interessaram.

O ponto é interessante e delicado, pois, como ele diz, mesmo no Japão a fronteira pode parecer indefinida entre um gênero e outro.

Durante a leitura, achei que valia a pena traduzir esta passagem para os interessados no tópico:

When the Committee on Definitions of the Haiku Society of America completed its work in the early 1970s, they included the following as one definition of senryu: “Loosely, a poem similar to haiku which does not meet the criteria for haiku." Although I was a member of that committee, I do not like suggesting that a senryu is a failed haiku. In the hands of those who set out to write a senryu, such as one-time editor of “American Haiku”, Clement Hoyt, a senryu "relies on a point of wit instead of provocation by contrast, as does the haiku."

“Quando o Comitê de Definições da Sociedade Americana de Haiku concluiu seu trabalho no início dos anos 1970, incluiu o seguinte como definição de senryu: "De modo geral, um poema semelhante ao haiku que não atende aos critérios do haiku." Embora eu fosse membro daquele comitê, não gosto de sugerir que um senryu é um haiku fracassado. Nas mãos daqueles que se propõem a escrever um senryu, como o ex-editor do ‘American Haiku’ Clement Hoyt, um senryu "depende de um toque de agudeza em vez da provocação por contraste, como faz o haiku."

Hesitei na escolha da tradução de “point of wit”. Wit é sagacidade, espírito (no sentido de ser espirituoso), verve, agudeza, humor inteligente. Escolhi “agudeza”, pois é uma palavra que remete principalmente à inteligência e à forma de elocução.

Num texto que eu mesmo escrevesse, usaria a palavra “sacada”, no sentido que usualmente digo que o haicai de Leminski muitas vezes repousa sobre uma sacada.

Agudeza X provocação por contraste. As fronteiras podem mesmo ser pouco precisas...

Do meu ponto de vista, tendo a pensar que, para o gosto ocidental, o haiku surja como algo mais “plano” no nível da expressão, mais sutil, demandando abertura de espírito aos sentidos vários. Um texto que repousa principalmente na justaposição – ou, como dizemos às vezes, de modo talvez um pouco pomposo, na composição ideogramática.