sábado, 30 de setembro de 2023

Fausto

Quando assumi a direção da Editora da Unicamp, percebi que a última reunião do conselho editorial da gestão anterior tinha, para empregar uma expressão triste recentemente usada por um vilão, colocado algumas granadas no bolso no inimigo. O inimigo, no caso, era eu – por algum motivo que ainda não sei precisar. As granadas não eram algumas, na verdade; eram muitas: desde uma profusão de livros aprovados sem o rito necessário – isto é, sem pareceres de mérito que permitissem fundamentar a decisão –, até carta-branca a dois docentes de certo instituto, para que publicassem o que quisessem de uma extensa lista que, se desdobrada, daria origem a duas centenas de títulos. Porque aquilo significava apenas uma coisa: que eu não teria nada que fazer, ao longo dos quatro anos de meu mandato, senão ir pagando a dívida impagável. Ainda mais que o saldo em caixa era próximo de zero, se é que não estava negativo. Por sorte, pude contar desde o primeiro dia com um conselho editorial do mais alto nível e, nele, com o meu parceiro de longa data, Alcir Pécora. Com este passei em revista, durante vários dias, os processos dos livros aprovados irregularmente, que foram logo todos descartados, com um convite aos autores para que, se houvesse real vontade, reapresentassem proposta. Com o Conselho rigoroso erguido como assombração no final do processo, quase nenhum foi reapresentado. Vários dos que ainda constavam na lista, talvez como meros espantalhos, já tinham inclusive sido publicados. Restava o caso dos professores plenipotenciários. A cada um enviei ofício, comunicando que tal promessa-aprovação não se sustentava, cada livro teria de ser examinado, cada caso seria um caso. Dos dois, só um me deu notícia: um velho professor, que marcou hora e veio cobrar o prometido. Eu já o conhecia de nome, de modo que fiquei feliz com a oportunidade. Para espanto dos que aguardavam e temiam o possível embate, o que ecoou pela Editora foi o riso sonoro, quase uma repetida exclamação de Papai Noel, característico daquela personagem. Ofereci-lhe, tendo sido revogada a tal carta-branca genérica, a possibilidade de dirigir uma coleção inteira, nova modalidade aprovada pelo Conselho Editorial. Ou melhor, duas. E talvez três. Desde que dirigidas por ele e por uma equipe de alto nível, que elaboraria pareceres e mostraria ao Conselho a necessidade, a propriedade e a qualidade de cada publicação pretendida.
Foi assim que fiquei amigo de Fausto Castilho.
Na sequência, uma frase deu a real medida do feito e, em dimensão oposta, da real medida de quem a disse: um professor da nova geração, colega de Fausto, vendo-nos à porta do restaurante, deu um jeito, na sequência, de rir-se e me dizer que não sabia como eu tinha paciência para aturar a figura pitoresca. Nada respondi. O tempo diria. Como disse: Fausto dirigiu coleções de obras filosóficas imprescindíveis à formação de profissionais e interessados na filosofia; fez traduções e supervisionou as feitas por colegas e ex-alunos, zelou pelas edições bilíngues e apresentou à editora intelectuais que até hoje são autores da casa. Além disso, publicou conosco um livro fundamental para pensar o ensino superior no Brasil, expondo seu conceito de universidade, até hoje uma bandeira e um ideal de resistência à miséria imposta à instituição pela máquina produtivista americana. Ao mesmo tempo, foi me contando histórias deliciosas de suas visitas (ainda menino) a Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, e dos tempos da Sorbonne, da França e da Alemanha, falando de Bachelard e Sartre e Heidegger e tantos outros com familiaridade, pois os conhecera a todos. É certo que era dado a exageros e se acreditava, ao que parece, imortal. Um dia entrou na minha sala agarrado a um livro pesado. Vestia seu traje usual, que era um safári de cor clara. Vendo-o assim, ocorreu-me um caçador esmagado sob o peso da caça maior que ele. De fato, estava calor e vinha esfalfado. Depois de um minuto de suspense, em que saboreou o meu espanto, com um risinho maroto desabou o livro sobre a minha pobre mesa, com estrondo. Então riu alto e disse, com seu vozeirão: “Dr. Paulo, temos de publicar este livro!” Era o Kant Lexikon. Olhei aquilo, olhei para ele, e para aquilo de novo. Seus olhos claros riam mais do que o seu rosto. Perguntei-lhe: quem vai traduzir isto, Professor? E ele, rindo de novo: “Eu, claro!” Andava ele, eu creio, pelos oitenta anos. Ou pouco menos... Disse-lhe que podia ser, mas que precisávamos de recursos, ao que me respondeu que traduziria de graça. Quanto aos custos, seriam também por conta dele. Não tinha filhos, acrescentou. O Kant Lexikon nunca foi publicado por nós. Mas talvez de algum lugar do seu espólio ainda nos possa surpreender o trabalho começado. Mas foi bem que não o traduzisse, que não gastasse muita energia nele, porque assim se dedicou às coleções e à idealização da profícua Fundação que leva o seu nome.
Veio tudo isto à memória hoje porque Ricardo Lima passou comigo a manhã, mostrando-me o conjunto e lendo para mim a apresentação e o primeiro capítulo do livro que acaba de terminar: uma biografia de Fausto Castilho. Do que vi, ouvi e li nesta manhã, posso dizer que se trata de um livro excepcional, muito bem escrito, bem fundamentado em pesquisas, entrevistas e documentos, e ricamente ilustrado. Sobretudo, trata-se de um livro animado por um propósito louvável, e necessário: mostrar ao público o vulto inteiro de um grande intelectual, que pensou a universidade com profundidade, coerência e paixão. Em mais alguns meses, estará impresso. Quando isso acontecer, pretendo voltar ao assunto, depois de o ter lido com calma e por inteiro.

Tradução?

 Gosto de ler as postagens de Thomaz Albornoz Neves e de debater com ele. É que ele é inteligente, culto e não-acadêmico, cousas que juntas (como diria Camões) se encontram raramente. Acabo de ler uma delas. Diz o seguinte: “Esta edição de Renée propõe um exercício conceitual. No lugar do autor traduzindo seus próprios poemas, os oferece em cinco idiomas sem determinar um original. / Discorrer pelo sentido dos versos com um vocabulário multilíngue, mas fiel a uma única voz, refrata a leitura, logo a amplia. Sugere que a poesia é a mesma em qualquer idioma. Em si o poeta não muda, o poema é que varia conforme a época e a cultura.” Bom, Renée é o nome de um livro do autor. Que foi publicado (e aposto que escrito) em português. Então, há um original. O autor é o original? Sem dúvida, mas há um original textual, ou melhor: uma forma primeira em que se cristalizou alguma experiência ou expectativa. Ou seja, é difícil concordar que não há aí um autor a traduzir os seus poemas. A não ser que se afirme que um poeta recriar em alguma língua os poemas que escreveu em outra não seja tradução. (Nem vamos aqui mergulhar nas águas confusas da emoção recolhida na tranquilidade, ou no vapor úmido da inspiração. Basta pensar que algo teve uma realização num dado sistema de sons e sentidos e depois teve outras realizações, para as quais era impossível obliterar a primeira, que ao menos estará lá como baliza, pauta, desenho interior.) Mas o que me chamou a atenção nesse caso foi menos esse espinho conceitual do que a carnadura prática do resultado. Por exemplo, o primeiro verso do poema VIII desse moderno guardador de rebanhos (sendo o rebanho, no caso, o dos seus versos em prisma poliglótico): Oscurece y volvemos de la ensenada /  Tramonta e torniamo dalla cala / The sun fades and we return from the cove / Le jour tombe et nous revenons de la baie / Entardece e voltamos da enseada. Se fosse uma tradução (e não é, mesmo?) eu logo me perguntaria o que foi traduzido. Seriam os conceitos? Apenas eles? Em português, ouve-se um eco tradicional forte: o ritmo heroico do decassílabo se impõe desde logo à leitura, dando à abertura um acento que falta (me parece) completamente à versão inglesa. Também esse harmônico, por assim dizer, falta ao francês, onde poderia haver se viesse forma ou ritmo alexandrino. A aliteração do italiano produz outro efeito, diverso, ainda que forcemos bastante (a meu ver) a escansão para emular o decassílabo de Dante. Já em espanhol não percebo equilíbrio, nem eco ou alusão formal. Então, mais uma vez: se fosse uma tradução, o que estaria sendo traduzido exatamente? O autor, porém, nos informa de que não é tradução. O poeta nos oferece os poemas em várias línguas. Que quer dizer isso? Reescreve? Recria-os? É difícil escapar do sentido amplo ou restrito da palavra tradução. Seja qual for o prisma – me pergunto –  esses versos se equivalem? Não. É certo que deveria talvez julgar o conjunto de cada poema e não o incipit apenas. Mas o começo é decisivo, porque dá a tônica. Seria o poema uma operação de perde-ganha? Isso ainda seria tradução. Seria livre-composição a partir da reconstrução e vivência nova do impulso, da configuração vida-linguagem do momento em que cada um foi escrito em português? Mas então por que não seriam novos poemas, com novo título, novas palavras, em um novo livro? E seria verdade que, em várias línguas, seria sempre a mesma voz? É o mesmo o que fala assim, ou refala, em vários idiomas, com vária tradição e diversos sentidos acomodados em cada cadência ou número? A poesia é a mesma, por graça dessa identidade suposta de origem? Seria a poesia algo transcendente ao idioma? Em que sentido? Seria capaz de o atravessar incólume? Ou mesmo de permanecer idêntica a si mesma além ou aquém dos sentidos implicados nas formas? Fiquei pensando nisso, sem concluir nada porque nada queria concluir. Apenas fui anotando, em traços rápidos, as impressões. Como numa conversa, aqui, olhando a noite e a lua cheia, com um copo e um palheiro, enquanto a noite segue.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Crônica - anotação

 Na minha última divagação, registrei que a crônica me parece a poesia realmente integrada aos meios de comunicação de massa. Porque a poesia, qualquer que seja ela, não me parece. Ao deparar com um poema num jornal, abre-se como uma janela, ou melhor uma porta ou portal, para outro universo: o da Literatura. Muda a atitude do leitor. Mesmo os folhetins são janelas para fora do universo da notícia, do presente. A crônica, não. Deixa-se ler como parte do presente, seu tempo de escrita e referência é ou dá a impressão de ser o mesmo tempo da leitura. Tem isso em comum com a reportagem e o registro do fait divers de uma coluna esportiva ou policial. Se se abre nela uma janela para o lirismo, é uma espécie de janela sorrateira. Que a gente quer e espera que se abra, desde que a sua abertura não exija grande alteração na postura no leitor, por assim dizer.

Rubem Braga

 Estávamos falando sobre Caetano Veloso. Começou com a homenagem em Salamanca. Lembramos que Alcir e eu fizemos um livrinho com as suas letras, tiradas de ouvido, em 1980 ou 1981. O assunto mudou aos poucos, mas eu continuei nele, derivando: passei a recordar que, antes do Caetano, escrevemos na mesma coleção sobre Rubem Braga. Naquele tempo, foi um deslumbramento. Para mim, foi uma descoberta muito mais importante do que o vislumbre da totalidade (até então) das letras e textos de Caetano. Lemos de enfiada todos os livros do Velho Braga. Aprendemos, nos emocionamos e nos divertimos a valer. Após a leitura individual, relíamos em voz alta as crônicas que mais impressionaram. Até um volume que pelo título parecia desinteressante se revelou delicioso: “Com a FEB na Itália”. Em todos os livros, impressionou-me o lirismo intenso. Pensei e ainda penso, sem ter retornado a elas, que muitas dessas crônicas são maravilhosos poemas em prosa. O notável era o tom, o jeito de quem nunca perdia de vista o leitor, a figura mais ampla e variada de leitor, o da imprensa cotidiana. Seus textos nunca eram poesia pura, nesse sentido. Eram poesia contaminada pela presença do leitor, pela dimensão da coluna e pela atualidade, ou melhor, pela afirmação do interesse no presente. A liberdade da crônica, sua versatilidade e descompromisso de registro fazia com que a leitura de um livro se assemelhasse muito à de um volume de poemas, melhor dizendo, daquele tipo de livro de poemas que chamávamos de álbum, em contraposição ao livro organizado como livro, com começo, desenvolvimento e fim. Essa versatilidade permitia extrair muitos poemas de notícias de jornal, e, na direção contrária, transformar muitos momentos líricos em um tipo de notícia: a crônica, o relato do tempo que passa ou já passou. O mais corriqueiro se elevava a símbolo, o mais alto símbolo podia ser trazido ao nível literal do chão e fazer rir ou enternecer. Ainda hoje me ocorre que a crônica, entendida dessa forma, é a poesia de fato integrada aos meios de comunicação de massa. E também me ocorre algo que ainda preciso pensar melhor: que há um momento na obra do genial cronista que foi Machado em que a enorme liberdade de que ele dispunha nesse gênero invade o domínio do romance, onde ele até então era um comportado senhor, bem diferente do afiado e imprevisível cronista de jornal. Mas isso foi uma divagação dentro de outra. A que importava e me desviava repetidamente a tenção, enquanto a conversa voltava ao rumo da crítica às homenagens e títulos acadêmicos honoríficos, era a que me trazia à lembrança o impacto que teve a leitura sequencial das crônicas que Braga julgou por bem ajuntar e publicar em livro.


Autoplágio



A manhã já vai a meio. Faço uma pausa para um café e divago. E me vem à cabeça o conceito de autoplágio, que só existe porque o produto do pensamento passa a ser tratado cruamente como mercadoria. Creio que o conceito e sua aplicação têm origem dupla: por um lado, a lógica perversa do sistema de revistas científicas internacionais, que vivem de vender assinaturas. O intelectual ali aliena o produto do seu pensamento, mas sem remuneração. Sua instituição ou uma agência de fomento paga a ele para estudar e pesquisar, e sem seguida os resultados de seu trabalho é cedido aos periódicos. Mas a cessão não é gratuita nem remunerada ao pesquisador ou instituição: trata-se de uma inaudita cessão na qual o cedente paga ao cessionário pelo direito que lhe transfere. Para maior estranhamento, uma vez cedido o direito, a instituição, num circuito perverso, paga para ter acesso a ele por intermédio do periódico. Também nessa categoria de negócio ficam as editoras, mas com dignidade na maior parte dos casos, pois o editor de fato investe capital e trabalho na produção do livro e paga os direitos autorais. Dessa forma, ocorre uma relação clara e limpa entre o produtor, o intermediário e o público. Entretanto, há também muitas editoras caça-níqueis, que no Brasil se apresentam como Qualis A ou B, e que só publicam mediante pagamento dos custos de produção. Nesse caso, como os periódicos, se apropriam gratuitamente do produto intelectual, mas ao menos em geral pagam os direitos autorais em exemplares ou, mais raramente, em pecúnia. De outro lado fica a cultura do produtivismo, que se dispensa de verificar o mérito ou o caráter de cada publicação. Como não se lê nada nem se verifica a situação e o lugar de publicação, e como se traduz tudo em números, o posterior uso do produto pelo produtor, isto é, do texto pelo seu autor, fica alienado assim que publicado, sendo a republicação, no todo ou em parte, considerada uma fraude.
Entretanto, ao menos na nossa área, alguns trabalhos fundamentais, que atravessam os anos, poderiam ser banidos da produção do professor ou pesquisador sob alegação de autoplágio. Refiro-me aos livros que reúnem artigos publicados em periódicos ou na imprensa de massa. Mas não é só o caso de clássicos como os livros de Antonio Candido, que são reuniões de artigos e conferências. Ocorre também na escala miúda. Eu mesmo sou um autoplagiador. Por exemplo, no livro que resultou da minha livre-docência, o primeiro capítulo tinha sido publicado um ano antes num livro de homenagem a Óscar Lopes. E em uma conferência sobre Pessanha utilizei esse mesmo capítulo para exposição oral. Creio que utilizei ao menos uma parte dele em algum lugar. Um trabalho sobre I-Juca Pirama saiu num livro da Edusp e depois foi incluído numa coletânea de trabalhos, junto com artigos de jornal e outros textos já publicados. Na verdade, quase nada há inédito em “Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa”. Ou seja, esse é um livro que deveria pontuar 0, se algum metrificador o lesse e visse nele a referência da publicação anterior de cada parte. Além disso, um programa que algumas editoras usam para verificar se alguma parte de um livro já foi publicada certamente encontraria nos capítulos de livros e artigos de periódicos rastros e trechos mais ou menos longos de publicações que fiz no meu blog. Tanto é que uma editora recente, para publicar um livro, condicionou a publicação à retirada do ar de textos em que o programa encontrou partes idênticas ou quase idênticas. O que, sendo uma relação comercial clara, não me pareceu absurdo. E cumpri.
Voltando ao ponto: a origem dessa polícia é fácil de entender. É a pressão para os professores e pesquisadores produzirem muito. Uma pressão irracional, que produz forte distorção em algumas áreas, como a dos estudos literários, que demandam tempo de amadurecimento e redação (porque o estilo é parte importante e porque dificilmente tem interesse a publicação apressada e precoce de resultados parciais de uma reflexão em curso). Mas não só. Nas áreas “duras”, essa pressão resulta em oportunismo: dados falsificados, conceitos errados e resultados fantasiosos. Se a origem é essa, a função dessa polícia é ratificar a alienação promovida pelos periódicos internacionais e pelo sistema de avaliação matemática da produção da pesquisa.
Uma consequência grave da visada produtivista é o desprestígio da docência. Um bom professor que não publica muito passa a ser condenado. Mas não um péssimo docente que publica um artigo após o outro. É que a docência não se mede numericamente. Na situação atual, dar 10 aulas ruins pode parecer melhor do que dar 4 aulas fundamentadas. Além disso, a docência é cheia de autoplágio: de outras aulas e de artigos e ensaios que o professor publicou. A docência, assim, não é mensurável, a não ser quantitativamente ou, pior, por questionários aos alunos. Daí que as pessoas sejam contratadas nas universidades como “professores”, mas que a sua valorização para auxílios, bolsas e promoção na carreira seja basicamente pela divulgação de sua produção de pesquisa. E na avaliação do pesquisador não se incluem os ganhos intelectuais obtidos na preparação e no desenvolvimento dos cursos. 
Um amigo a quem envio estes textos esparsos me diz sempre que é perda de tempo. Estamos depois do fim. O fim já aconteceu. É, portanto, irreversível. Escrever sobre isso é como desenhar na água ou num pote de geleia. Talvez ele esteja certo. Mas Anchieta não o fazia na areia? Então, com predecessor tão ilustre, não me sinto mal rabiscando no nosso pote de geleia, enquanto a brisa forte da manhã vai amenizando o calor neste final de um estranho inverno.

Periódicos - a máfia

Acabo de responder a um questionário de pesquisa do CNPq sobre publicações. As perguntas eram de dois tipos: por que eu escolheria um determinado periódico para publicar? – e: o que acho da cobrança para publicação? Da minha confortável posição de aposentado, posso dizer com ainda mais ênfase o que sempre disse quando militava na Unicamp. À primeira pergunta respondi que escolho por dois critérios: sem cobrança de taxa alguma tanto para o autor quanto para o leitor (um terceiro critério, que não vem ao caso por ser cada vez mais raro é: receber pela publicação); a relevância que uma dada revista tem na minha área, independente dessa bobagem matemática chamada índice de impacto. O segundo critério tem a ver com a área, mas não só. Em Literatura, a gente sabe quais são as boas revistas, e sabe também da farsa frequente que são os conselhos editoriais, inchados de pessoas ilustres, e o registro fictício das datas de recebimento e aprovação. Creio que isso seja apenas uma cedência à imposição de outras áreas, nas quais não posso dizer que tais dados tenham relevância (a não ser para registro de precedência), embora desconfie que não é tanto quanto a propaganda dos editores acabou por nos fazer crer. A primeira pergunta tem a ver diretamente com a máfia das revistas: cobram uma alta taxa das universidades ou dos órgãos financiadores para publicar artigos e depois vendem para essas mesmas universidades as assinaturas de suas revistas a peso de ouro. E é bem-feito: as universidades se tornaram presa fácil, na medida em que delegaram às revistas o filtro para contratar docentes e avaliar a produção dos já contratados. A CAPES, assistindo ao que se passa e por imposição das ciências duras, estabeleceu a escala do Qualis. Mas sinceramente nunca fui verificar o Qualis de uma revista para publicar nela. Se meu artigo for bom, será encontrado por quem se interesse pelo assunto, se não for ficará merecidamente no limbo, seja em que tipo de revista estiver. Além disso eu tenho um blog. E se comparar o acesso a artigos em revistas especializadas e no blog, tendo a pensar que deveria publicar mais ali do que em qualquer periódico. Essas coisas estão todas ligadas e é fácil compreender. Por exemplo, um dirigente de órgão de financiamento à pesquisa, fortemente convicto da importância da matemática na mensuração da qualidade, passa a integrar a diretoria da que é talvez a maior editora dos periódicos que toda universidade se vê obrigada a assinar, por conta da roda-viva produtivista. Dizer não a esse esquema é difícil para os jovens professores. Principalmente porque já vêm desde o início da carreira colonizados pelos ditames da produção desenfreada e do papel dos periódicos na avaliação da qualidade. Para os mais velhos, creio que é mais fácil, embora nem todos estejam dispostos a comprar a briga. Para encerrar, li que uma colega recentemente disse que as editoras e os financiadores são elementos importantes do ecossistema de pesquisa. No tal sistema, universidades e agências financiadoras pagariam o processo todo da pesquisa, e as editoras entrariam no final. É verdade. O que faltou dizer é que nesse tal ecossistema o segundo elemento é um predador voraz do primeiro.

sábado, 2 de setembro de 2023

Perfis - 10 – Carlos Vogt



Uma certeza me guia nesta tarefa, que desobedece a um preceito. O preceito era não redigir perfil de pessoas vivas. A certeza é que se há alguém que suportaria contemplar-se num desses perfis, ignorando ou fruindo a eventual carga de ironia, é ele. Aliás, creio que, sendo um perfil dele, já lhe bastaria, acostumado que está ao sim e ao não, desde que subordinados à presença. Conheci-o primeiro no restrito redil acadêmico. Fomos colegas de Instituto e quase de Departamento. Mas quando pleiteou a transferência já era muito político. Seu patrono argumentava que, nesse aspecto, o candidato mudara, estava desistindo da vida pública, queria um cantinho para trabalhar em paz com literatura, e ser, como nós, apenas mais um acadêmico relativamente anônimo e às vezes dedicado. Alexandre Eulálio, porém, brandiu o argumento de peso universal: ninguém muda! E fez bem, porque, se aceito, Vogt não seria só mais um, provavelmente apenas estaria ali nominalmente, sendo seus horários e tarefas divididos entre nós. Ou seja, não seria bom para ninguém. Já da forma como foi, ganharam todos: ele, a universidade e o Estado. E nós. Ninguém muda. E graças a isso a universidade foi regida pelos oito anos que muitos, eu incluído, consideram as quadras douradas da instituição. Estou afastado da Unicamp há vários anos, mas sou dos que se acostumaram a ver o vulto do homem em toda parte. Talvez, no meu caso, por ter sido quase atropelado por uma sua criatura, o Projeto Qualidade. In illo tempore a gente não tinha pressa em se titular. Bastava estudar e lecionar. O doutoramento não era uma necessidade nem um objetivo, e assim ia sempre ficando para as calendas. Enfin Vogt vint... foi o nosso Malherbe: regrou tudo, baniu o que achava banível, exigiu o que achava exigível. Doutoramento em três anos ou rua. Por isso fui parte do rebanho que pastou bibliografia, roeu canetas e rasgou a alma nas madrugadas ruminando páginas. Chegando mais perto, diria que o mais marcante nesse homem era a capa de blandícia. Por debaixo podia haver um tigre ou um como nós. Mas ela era suficientemente opaca para não deixar ver, e por isso incongruente com a fama gerada, o que a tornava quase ameaçadora. Em certo sentido era a essência de seu poder: uma meia frase, um sorriso de canto de boca, um olhar que é como uma pergunta aliciante, um risinho controlado, temperado com um endurecimento dos lábios, uma oscilação da narina e algum movimento súbito do olho. Dali podia vir um favor ou uma punição. Ou nenhum dos dois – o que me parece ter sido quase sempre a regra. Embora eu ainda acredite que, sendo essa a regra, as exceções pudessem ser doloridas. Sempre me admirei desse poder em pura potência, que não dependia de nada para se sustentar na altura da cara do interlocutor, como um balão de ar que poderia se tornar uma granada ou uma flor, mas que na ordem das coisas era e continuava sendo apenas um balão. Talvez venha dessa manipulação do balão de ar o magnífico poder de atração, que fazia com que sempre a roda à sua volta, seja num baile, numa tese ou num comício, fosse maior do que a roda dos demais. O quilate do homem, sua têmpera, se revelava no graúdo, mas também no miúdo. Certa vez sentou-se à mesa ao meu lado, deixando vaga a cabeceira. Observei que il Cappo di Tutti Cappi deveria se ter sentado à cabeceira, ao que me respondeu, com ironia na dose certa para ser afirmação segura, que tanto fazia onde se sentasse, porque o lugar passaria a ser a cabeceira. Eustáquio Gomes, num livro memorável, narrou com precisão um momento simbólico. Era o final da reitoria. Nosso herói passa os olhos lentamente pelos retratos, quadros e objetos da sala – pessoas, lugares e símbolos do poder, que ele soube exercer com as doses eficazes em tudo o que fosse preciso. Eustáquio percebeu a melancolia tensa do momento, que narrou como terminal. Mas deve ter visto, embora não registrasse, que era apenas um capítulo mais dramático, não o fim do romance. Porque a propósito poderia requentar aqui um dito popular: Vogt saiu da Unicamp, mas a Unicamp nunca saiu dele. O que é verdadeiro, mas não suficiente, porque a realidade exigiria um quiasmo: a Unicamp saiu do Vogt, mas o Vogt nunca saiu da Unicamp. Este, aliás, mais justo, porque se ela lhe saiu das garras diretas, ele não desgrudou dela, nem quando ocupou outros cargos relevantes. Nesse esforço de domínio, a unha até hoje enfiada na carne acadêmica é o Labjor. Mas outras unhas se juntam à primeira, a mais recente das quais atendia pelo nome de IdEA. A cordialidade costumeira, que é talvez a unha do mindinho, faz escala na sua poesia: a cada ano, pelo encerramento, um breve poema pelo correio ou pelo escaninho. Era um cumprimento e um lembrete. Não era, porém, poeta bissexto ou de data fixa. Alcir Pécora, num texto de perfeita descrição, mapeou a corrente dos anos de 1960. Uma nota ali permite juntar o poeta ao professor e este ao estudioso e ao político. Não sei se a traduzo bem, mas seria algo como a consciência vigilante. Alcir a surpreendeu nos títulos, assinalando o seu poder modalizador, controlador da leitura, basicamente pelo recurso à ironia. O obsceno, o mordente, o cínico, o confessional ou o pungente são, por meio deles, conduzidos a um registro mais pacífico. Talvez por isso de menos potência. Algo como um pé no freio, de busca de uma faixa neutra, fora da zona de guerra, do perigo. O crítico, ao final do prefácio, diz que iria reler o conjunto, torcendo secretamente por surpreender algo que desbordasse os limites do controle. Penso agora que o sentimento é do mesmo tipo, com sinal trocado, do que descrevi como presidindo à constatação da blandícia, que na crítica ou na atuação se resolvia, no confronto ou aliança pessoal, como mero temor e sobressalto, que o mecanismo, a estratégia e objetivo final eram, em essência, os de sempre. Tinha este texto pronto, quando Vogt veio, com Alcir, visitar-me. Trazia o homem um belo chapéu. Sentou-se na varanda, de frente para a praça. Conversamos longamente os três. Ainda a vivacidade, e o mesmo jeito de falar com o pé no freio e com o sorriso que indicava um subentendido. Que às vezes eu entendia, às vezes buscava em vão. Era sempre o mesmo homem. Ninguém muda. Estava certo o perspicaz e veemente Eulálio. E era bom.