sexta-feira, 9 de junho de 2023

Memória: editora

 Alguém me pede que compartilhe mais memórias editoriais. Não tenho muitas. E as que tenho talvez não devesse contar. Não por razão obscura ou constrangedora, mas por insignificantes para quem não for do meio. Entretanto, quando pensava em dizer que não me veio à mente um episódio interessante, veio. E começa assim: quando assumi a Editora da Unicamp não tínhamos recursos para nada. Não que o catálogo fosse ruim. A parte melhor, porém, estava esgotada ou ainda por publicar. Sem recursos nem pessoal, parecia que o fim daquela jornada chegava junto com o seu começo. Foram dias em que o ditado se comprovou: a criatividade é filha da necessidade. Ou seria esta a mãe daquela. O que dá, rigorosamente no mesmo, sendo a diferença o grau de angústia ou de otimismo a presidir à construção da frase. O episódio em questão era que tínhamos uma coleção promissora, que andava a meio do caminho. Chamava-se “História do Marxismo no Brasil”. Sem julgamento de qualidade ou competência, devo dizer que na direção da Editora logo percebi que havia dois tipos de leitores abundantes ou persistentes: os marxistas e os linguistas. Então era urgente levar adiante a empreitada que se dirigia aos primeiros. Ocorre que os volumes já editados apresentavam problemas variados em qualidade e quantidade: desde a revisão até a capa, passando pela diagramação. Eram tempos difíceis, da Forma Composer e do fotolito. Redigitar e rediagramar parecia impossível, além de muito lento. Continuar a coleção com o projeto de capa e o design antigo estava além da minha resignação aos tormentos do cargo. Foi então que a filha surgiu da mãe, isto é, a criatividade nasceu da necessidade. Não de um salto, como Diana da coxa de Júpiter, mas aos poucos. Primeiro vi que eu tinha visto muito mais capas de livros do que os tinha lido. Depois, tirando por mim, leitor mediano, concluí que milhares de pessoas veriam os livros da Editora, enquanto só 1000 ou 1500, na melhor hipótese, os comprariam. Portanto, era urgente eliminar a velha capa e arrumar um vestuário mais adequado. A ideia foi cozinhada de uma perspectiva progressiva: era preciso garantir a inteireza da coleção. Não apenas por motivo estético, mas também comercial: uma coleção que se apresenta como tal parece nos induzir, a nós, leitores, a completá-la. Seriam muitos volumes, o que justificava ainda mais o pensamento na penúria. Por fim, abriu-se o ovo de Colombo e nasceu a ideia inteira, a piar de alegria: uma capa bem feita, chamativa sem ser escandalosa, como convinha ao assunto, mas capa de coleção, não de volumes. E já agora a ideia, como um galo, lançava o seu brado de alvorecer: quando a coleção se alinhasse na estante do comprador, ele teria uma surpresa – o rosto de Marx surgiria, indiscutido, da junção das lombadas. Pronto, pensei, quem se arriscaria a deixar de fora uma fatia de tal face? Restava ainda um problema: como fazer com os miolos antigos que iriam se enfeixar no rosto marxista? Não me lembro, ou é melhor que não me lembre, se imprimimos todos os volumes antigos, mesmo com a feia diagramação e com todas as gralhas, só alterando a capa. Ou , o que seria inconfessável e portanto não vou confessar aqui, se chegamos mesmo a desencapar os volumes não vendidos para os vender rapidamente com o novo rosto. Mas afirmo com a voz de testemunha confiável que a coleção foi um sucesso e com o tempo, se tivermos por acaso chegado ao absurdo de reencapar livros, todos os volumes foram corrigidos, rediagramados e refeitos. O que afinal desmente outro ditado, pois se é verdade que não há mal que sempre dure, não é certo – ao menos no caso dessa boa coleção - que não haja bem nunca se acabe.

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 Este pequeno palco, dizem, está com os dias contados. Houve quem o comparasse certa vez a um privado outdoor. Não me lembro bem, mas creio que a ideia era que o dono o rabiscaria à noite e o poria no terreno na frente da casa. No dia seguinte, tomaria seu café e sairia para a varanda. O minúsculo grupo ou a pequena multidão aglomerada à frente ou apenas de passagem dava o tônus e a perspectiva do dia, antes da segunda xícara. Se não era assim, poderia ser dessa maneira. Pelo menos, é como o recordo agora. Mas  outras formas crescem ao lado, lançam sobre ele a sombra sufocante, pura imagem. Veja, me dizem: as folhas da grama ainda balançam no vento. Na planície ondulada cada uma é, olhando bem, um pequeno outdoor, o minúsculo palco individual! Mas quem as distingue ou repara nas que caem? Devo dizer que também eu, nesta floresta de teto baixo, gemo e aguardo os ecos dos gemidos, que de longe se confundem. Na mesma tenebrosa unidade, poderia sempre dizer: mas não a dos eleitos e malditos, na profundidade, apenas a dos comuns, no raso. Os que não têm onde respirar, os inconformados invisíveis, os graduados na escala solitária, conscientes em medida vária, ou amortecidos, adormecidos talvez em pesadelo. Nesse incessante debater-se, o pequeno palco suga e supre. Ainda assim, já parece que perde a força. Parece mesmo condenado a desaparecer.