quinta-feira, 27 de julho de 2023

A rã de Bashô – II (ainda as rápidas anotações insones)



Para muitos, tanto aqui quanto no Japão, esse haikai merece toda a fama que tem pelo seu sentido. Uma história tradicional diz que um mestre zen, com quem Bashô teria estudado, fez aos discípulos algumas perguntas de resposta impossível. O resultado é algo como um koan: o mestre pergunta algo sobre a lei de Buda e Bashô, ouvindo o barulho de uma rã pulando na água responde com a última parte do poema: o barulho das rãs pulando na água. O mestre fica muito admirado e toma isso como um índice da iluminação de Bashô. Depois disso, Bashô submete a questão aos seus discípulos: qual seria o primeiro verso para esse haikai? Depois de várias sugestões, ele diz que o verso será “O velho tanque –“. Nisso se teria aberto o Olho do Haikai! É uma história zen, como se vê. E como outras que dizem respeito a Bashô e o zen, provavelmente apenas tradicional, ou seja, não factual. Por conta disso, muito se investiu na interpretação zenista desse poema. E de outros de Bashô. A ligação do haikai de Bashô com o zen, é tributária da orientalização da contracultura norte-americana, na qual o irracionalismo encontrou na imagem daquela vertente do Budismo um terreno propício à projeção dos seus ideais e de suas angústias com o rumo da vida ocidental. Um escritor magnífico como Alan Watts, por exemplo, teve grande magistério. E também D. T. Suzuki, em cujo livro mais famoso há um capítulo intitulado “Haikai e Zen”. Para esses leitores, um poema plano como o furu-ike ya exigia uma interpretação esotérica. Tão mais esotérica quanto mais objetivo ele se apresenta. Mas a pergunta permanece: por que esse haikai especificamente? Por que nele recaiu a atenção e por que nele se investiu tanto na interpretação esotérica? A resposta a essa questão se pode encontrar num texto muito interessante escrito por Masaoka Shiki. Nele, Shiki finge um diálogo com um visitante justamente sobre esse poema. O artigo foi traduzido por Blyth, e creio que foi esse texto que fez com que ele, Blyth, corrigisse a sua própria percepção do poema, em certa época muito embebida de zen. Eis o começo do texto de Shiki, onde a questão se apresenta da forma que julgo mais razoável. Começa a sua visita por dizer que o poema é conhecido até pelas pessoas menos estudadas, que é uma obra-prima, “embora ninguém consiga explicar o seu significado”. Ao que Shiki responde: O sentido desse poema é apenas o que ele diz; ele não tem nenhum outro sentido, nenhum sentido especial. Na sequência, esclarece: o poema ficou assim famoso porque Bashô o apresentou como o primeiro da sua própria maneira, aquele que divide o novo estilo do velho. Por isso, completa, as pessoas depois ficaram falando dele. Com o tempo, essa fama terminou por se confundir, no sentido de que esse poema seria o melhor haikai de Bashô, e o sentido da sua fama e o próprio sentido do poema terminaram por ser esquecidos, dando lugar a todo tipo de interpretação esquisita. Em seguida, mostra como a rã era representada, de modo antropomórfico ou como objeto de ridicularização, até propor que a novidade do poema de Bashô é que ali a(s) rã(s) faz(em) apenas o que as rãs fazem, mais nada. Ou seja, o que Shiki diz é que a maneira de Bashô é a poesia objetiva e fiel à realidade observável, sobre objetos simples em linguagem despojada: com clareza e com simplicidade, nada escondendo e nada cobrindo, evitando o raciocínio e a exibição técnica. Essa é a nova poesia, de que esse haikai é a primeira realização. Pessoalmente, tendo a concordar com Shiki e não creio que ele tenha interpretado mal o sentido desse haikai na história do gênero. Nem por isso cai por terra a possibilidade de uma leitura zen, à ocidental, pois onde mais, a não ser numa cultura na qual o zen tem um papel importante, um poema com tais características negativas poderia ter tal destaque, ter anunciado uma nova maneira e se tornado um marco na história de uma arte centenária?

A rã de Bashô – I (rápidas anotações de uma noite de insônia)



Não deve haver muitos poemas (não creio mesmo que haja algum) tão conhecido no mundo todo quanto o que Bashô compôs sobre uma rã que mergulha num velho tanque. Em português, há dúzias de traduções. Em inglês e em francês, idem. E não deve ser diferente em outras línguas europeias. Além disso, é um clássico japonês e creio que em todo o Oriente quem gosta de poesia já deve ter ouvido falar ou lido uma tradução. É verdade que a diminuta extensão do texto favorece. Mas não é só isso. O haikai, desde a segunda metade do século XIX vem despertando o interesse ocidental, na esteira da “descoberta” do Japão, propiciada pela abertura do país a partir de 1867, depois de mais de 300 anos ciosamente protegido dos olhares e da experiência direta dos estrangeiros. A onde de exotismo extremo-oriental, bem conhecida no final do século, também favoreceu o pequeno poema de 17 sílabas.
Mas afinal por quê? Há tantos versos de Bashô e de outros grandes poetas japoneses que permanecem desconhecidos... Mesmo entre os que louvam o haikai de Bashô poucos haverá que possam dizer de memória qualquer outro poema dele. Apenas o furu-ike na flutua na memória e passa por ser o melhor poema de Bashô, ou mesmo o melhor poema da literatura japonesa. Mas seria isso verdade? 
Comecemos pela pergunta mais simples e direta: o que diz esse poema? Uma tradução simples seria: velho tanque - rã(s) mergulha(m), barulho de água. É difícil decidir se se trata de uma rã ou de rãs. E a expressão “tanque velho” vem seguida da partícula “ya”, que indica um corte e não tem bom equivalente. Pode ser dada como uma exclamação “Ah!”, mas eu acho que isso é forte. Poderia ser uma exclamação ou reticências, mas também me parece forte. No geral, a solução encontrada por muitos é marcar com um travessão a quebra indicada pelo “ya”. Mas há outra coisa que escapa sempre: não é possível em português deixar indefinido o número: ou marcamos pelo menos duas vezes o plural: rãS mergulhaM, ou marcamos de modo indubitável o singular: UMA rã mergulha. Temos de optar e com isso já temos eliminada a possibilidade de o barulho também ser, por assim dizer, plural. Mas vamos concordar que se trata de uma só rã. Ainda assim, em português o haikai aparece muito quebrado, pois em japonês “kawazu tobikomu” é uma expressão que adquire um aspecto adjetivo. Ou seja, uma possibilidade de tradução seria: o barulho da água do mergulho da rã. Isso é muito analítico, embora seja mais fiel ao original, no sentido que o barulho da água e o mergulho formam uma unidade, um qualifica o outro. Mas nessa ordem tudo se perde, pois o movimento deve começar com a rã e terminar com o barulho, logo depois de a rã entrar na água, enquanto na nossa paráfrase se dá justamente o contrário. Algumas traduções buscam ressaltar o aspecto sonoro. Leminski não disse “rã”, mas “sapo”. O sapo salta é uma aliteração. E há outros que escolheram o sapo. Apesar de algum ganho sonoro, não me parece uma boa solução, porque a rã é que vive em lagoas; os sapos vão para a água para procriar apenas. O mais importante, porém, é o enquadramento sazonal: rã é indicativo de primavera, renovação da natureza, retomada do ciclo da vida. Quando contraposta ao tanque velho, que sugere algo imutável, provoca-se o contraste. Se há união de opostos aqui é a da renovação com a permanência, do renascer com a velhice. A materialização dessa união é o som. Por fim, nesse contraste se encontra uma glosa ou alusão à ideia tão cara à escola de Bashô de que na arte há um elemento fixo e outro variável. De mais a mais, o japonês é uma língua com poucas combinações de sons para formar sílabas ( normalmente uma consoante e uma vogal) e não me parece que nesse haikai em particular haja algum esforço de onomatopeia. Então fiquemos com a rã. Mas tudo isso que dissemos até este ponto poderia ser encontrado em outros poemas de Bashô ou outro poeta de primeira linha no haikai. Portanto, fica ainda sem resposta o porquê de esse haikai em especial ter ganho essa fama e ter merecido tanta análise e comentário. (Continua…)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Direito ao uso


Postagens como a que fiz tendem a dar motivo para comentários agressivos. Autores que denominam os seus textos “haicai” ou “haikai” se sentem agredidos e revidam. O argumento se apoia na liberdade criativa: cada um faz o haicai do jeito que quiser. Eu nada tenho contra tercetos criativos. Ou dísticos criativos. Quadras, piadas, paródias. Pelo contrário! Meu ponto é o uso do nome. Por que alguém denomina “haicai” um poema breve qualquer? Eis a questão. Por que alguém denomina “poesia” um arranjo visual de formas geométricas? No melhor dos casos, porque busca expandir o sentido do nome, desautomatizar. Mas o que percebo no geral é uma reivindicação de um modo de leitura: leia-me como poesia, leia-me como haicai. O mais comum, porém, não é nem isso, é apenas manifestação da preguiça. Reivindica-se o direito ao uso do nome e ponto. Não se vê um esforço de compreensão, seja do poema japonês, seja da história do uso do nome no Ocidente. Há, por certo, um ponto a considerar: quem advoga o uso do nome para qualquer poema brevíssimo se contrapõe ao haicai reduzido a mero terceto de 5-7-5, animado por um propósito descritivo. Há, de fato, um mar de haicais nesse esquema – e, como em todo tipo de poesia, de literatura, na maior parte coisas sem grande interesse. Além disso, o haicai entendido como terceto promove de fato, como o soneto e a quadra, um exercício meramente formal, automatizado. Com a vantagem de parecer mais fácil, pois muito breve e sem rimas... Mas entre os que buscam ao menos a forma adaptada do 5-7-5 e os que usam o nome para designar algum fruto da preguiça prefiro os primeiros. Porque não haveria mal algum em denominar a própria produção apenas “poesia”. Por que chamar “haicai” a poemas brevíssimos, o mais das vezes escorados apenas num trocadilho, numa piada ou gracinha neoconcreta? Por que não, se a forma lembrar a do haicai, entender o produto como “tercetos criativos” ou o que seja. A reivindicação do nome é outra coisa. Principalmente quando se faz de forma agressiva, a pretexto de combater uma prática que se julga desinteressante, formalista ou castradora, e, na verdade, atropelando, desqualificando aquilo que a palavra denomina (seja como resultado, seja como atitude, seja como busca) na mais alta tradição, seja no país de origem, seja entre nós, no Ocidente.

Treinamento do espírito


Embora afastado da prática e do convívio, continuo recebendo livros físicos e digitais de haicai. Já ao haicai japonês retorno com frequência, como quem abre uma janela e deixa entrar o ar fresco num quarto abafado. Não gosto da ideia, repetida muitas vezes até por quem ignora a língua, de que só é possível fazer haicai em japonês. Como se só houvesse um haicai, um tipo de haicai, no Japão. E como se essa afirmativa se referisse a todos os aspectos do haicai. Só é possível, talvez, fazer haicai naquela forma, tal como se fazia em japonês: a forma clássica. Isto é, com os segmentos regulares definidos por número de -moras- e por palavras de corte. Mas isso é essencial? – poderíamos perguntar. É isso que nos inspira no haicai e nos desperta o desejo de recriá-lo em língua ocidental? Está claro que não. Porque – voltamos ao ponto – a maioria dos praticantes ocidentais não consegue escandir corretamente um haicai japonês, nem mesmo identificar nele as palavras de corte, que definem os segmentos; e porque seria sem sentido tentar compor por -moras- numa língua como o português. Não obstante, a esmagadora maioria dos praticantes se apega a uma tradução grosseira da forma. Traduzem a duração das -moras- por sílabas poéticas contadas à nossa maneira e o delicado equilíbrio dos segmentos por três versos. Junte-se a isso algum pendor descritivo e chegamos ao mínimo múltiplo comum do haicai no Brasil. Até aqui, porém, não temos nada exceto uma fôrma (faz falta o abolido acento diferencial). Do meu ponto de vista, nada de interessante, a não ser pela facilidade – o que responde pela grande cópia de livros de haicai que têm sido publicados. Mas é isso que queremos importar, quando falamos em escrever haicai em português? Se for isso, não vale a pena. Melhor desenvolver a quadrinha. Os mais versados na arte favorecem a divisão das frases em dois blocos: um ocupando dois versos e outro ocupando um verso. E aqui já se roça um elemento importante da forma: a composição por justaposição. Os que conhecem a tradição do haicai japonês acrescentam à justaposição a recusa das figuras de linguagem, evitando especialmente a metáfora e a atribuição de vida aos seres inanimados e de qualidades humanas aos elementos da natureza e aos animais. E ainda a fuga à palavra “eu” e à expressão direta dos sentimentos e emoções. Isso já vale a pena importar ou imitar, eu creio, porque é um bom exercício de negação das práticas usuais da poesia entre nós. Fazer poesia que funcione, dentro desses parâmetros, implica uma forma de olhar para as coisas e uma forma de escrever. É uma arte difícil, na qual a banalidade ronda todo o tempo e não raro triunfa.E chegamos ao que creio que interessa: tal como definido na escola de Bashô, um haicai “brota”. Ou ao menos o broto do haicai surge, podendo depois ser podado, ajustado ao desígnio original. Quando o espírito está livre da visão própria – é a lição – ele se funde com as coisas exteriores e esse movimento determina a forma dos versos, do poema. Aqui está o mais impressionante e o mais difícil, aquilo que, na minha opinião, vale a pena tentar incorporar, importar, imitar: o haicai como produto de um estado de espírito, um jeito de ser, uma forma de estar no mundo e de conceber a palavra e o momento da composição. O mais, ainda aquilo que não seja propriamente supérfluo, não me parece essencial.

domingo, 16 de julho de 2023

Poesia, pontuação, minúsculas, corte

 Nesta manhã friorenta domingueira, vejo que me marcaram numa postagem do Facebook. E que há ali um enorme debate, por assim dizer. Na verdade, uma série de declarações, a maior parte profissões de fé. Vejo ainda que me marcaram em outra questão. Não me animei a responder ontem. Mas agora, enquanto não me animo a deixar cama, pensei no assunto.


Então: emprego ou ausência de pontuação em poesia; o corte do verso na poesia contemporânea; o uso ou não de maiúsculas em começo de verso ou frase. 
Uma resposta simples, considerando a maior parte dos casos, poderia ser: são marcas de “poesia”. Algo como uma reivindicação de pertencimento a uma categoria. Uma demanda de um modo de leitura: leia-me como poesia – é o que dizem esses procedimentos ostensivos. O que quer dizer, mais ou menos: leia devagar, interprete, faça um investimento de sentido. Ou seja: me leve a sério! 
Isso para a má poesia, alguém poderia dizer. Assim como a medida e a rima foram em outros tempos. E é certo também. 
Será verdade que hoje se produz muito mais má poesia do que em outros tempos? Talvez seja, num sentido específico: o de que as marcas de poesia se tornaram mais fáceis. Não é preciso dominar a contagem das sílabas, nem buscar palavras de final igual ou parecido. A mesma tolice pode ser dita num soneto ou num pseudo-haicai. E este tem, sobre aquele, a vantagem da brevidade. (O que favorece tanto o autor quanto o leitor, diga-se.) Mas sem dúvida é mais difícil fazer (e ler) um soneto do que um poema pequeno de 3 versos sem rima. É certo também que é mais fácil fazer um “poema moderno”, ou modernista, em “versos livres”, frases sem pontuação e sem maiúsculas, do que compor em terza rima, em quadras ou mesmo em estrofes livres, de mesmo metro. 
Má poesia, porém, sempre houve. Não fazemos ideia do que se acumulava nos “álbuns” que muitas pessoas mantinham no século XIX. Mas podemos facilmente ver que o próprio soneto não era barreira suficiente ao derramamento de banalidades. O que muda, eu acho, é que nos dias de hoje a visibilidade é maior, por conta não só do barateamento da produção em papel, mas principalmente porque a eletrônica permite a publicação imediata e praticamente sem custo. E o custo, social ou material, terminava por ser um filtro. De classe, poderiam logo gritar alguns. Sim, mas não só. De qualquer modo, a facilidade de publicação nas mídias sociais é um estímulo à produção, assim como a organização de comunidades de autores-leitores, em grupos, sites, blogs. Nesse sentido, pode ser, sim, que hoje haja muito mais má poesia (desde que se admita que o que se autodefine como poesia seja por isso mesmo poesia) circulando do que em qualquer outra época.
Na poesia clássica, o verso era definido pela medida. Por isso o enjambement, o terminar da ideia, da frase ou o fechamento do sintagma no verso seguinte era muito comum. Como nos primeiros versos da Eneida:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris 
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit
litora,

Fechando um pouco o foco: em português, o verso foi também por muito tempo definido pela medida. Não já baseada em compassos, mas em número de sílabas. Assim, completada a medida, percebia-se completo o verso. Nesse sentido, a rima era apenas um reforço, do ponto de vista métrico.
Dissolvido o metro como definidor do verso, sobra a rima. E, além dela, várias formas de acoplamento, paralelismos. E ainda, em certo tipo de verso livre, o simples término da frase ou do conceito.
Homero era para ser ouvido. Virgílio já era para ser lido, embora o metro implicasse a oralização, chamasse aquele tipo de cantilena que se pode imaginar como o modo de leitura da poesia antiga e que persistiu, por exemplo, na missa. Já Dante parece sentir a leitura como forma principal de recepção da sua obra épica, uma vez que ao longo da Comédia tematiza o leitor, dirige-se a alguém que lê, não a alguém que ouve. Não obstante, neles é a medida que define o verso. Assim como em Os Lusíadas ou em O Uraguai.
Voltando ao ponto: quando a medida deixa de ser requisito do verso, é preciso buscar outras formas de o definir. E em muitos casos reagir a qualquer definição, tematizar inclusive isso, é uma forma parasitária de verso, que se sustenta e define por oposição, negação da medida. Nesse caso, a marca formal, o mínimo múltiplo comum da variedade é o corte da linha – porque se trata, quase sempre, de escrita.
Até agora, nesta parte, não falei propriamente de poesia, só de verso. Verso que podia ser utilizado inclusive para escrever o que hoje não definimos como poesia.
Então voltando ao ponto: os procedimentos contemporâneos (falta de pontuação, falta de maiúsculas, corte violento e “arbitrário” dos sintagmas e dos vocábulos) são uma reivindicação de “poesia”, isto é, de pertencimento a um gênero. No limite, uma reivindicação de uma forma de leitura que invista no sentido, na necessidade da forma. Ainda quando a falta de sentido e a arbitrariedade da forma sejam ostensivamente buscadas. Porque o que parece definir o gênero, em termos modernos, é a necessidade. A não-arbitrariedade (repetindo: inclusive a não arbitrariedade da encenação de arbitrariedade). 
Na maior parte dos casos, esses jogos se processam no plano da escrita e da leitura silenciosa, atenta à tipografia e à distribuição no espaço do papel ou da tela. Daí que os recitais desse tipo de poesia, a leitura em saraus, sejam normalmente muito aborrecidos. Porque ali a reivindicação de “leia-me como poesia” não se sustenta no texto lido. Daí também o esforço de encontrar alguma diferença no tom de voz, ou de apoiar o texto no ambiente.
A dissociação entre poesia e verso chegou a ser total, em algum momento. Mas mesmo nesse caso, como mostra o fato de que nunca se abdicou da denominação “poesia” ou “poema”, persistiu a mesma reivindicação de pertencimento a um gênero, ou seja, de uma forma de leitura que faça no texto um decidido investimento de sentido. O que cria a necessidade de manifestos e, como eles não bastam, de um tipo de manual ou guia de leitura, que caracteriza alguma poesia de vanguarda e inclusive favorece a criação de uma especial linhagem de poetas-críticos. Muitas vezes, poetas-críticos-e-intérpretes-de-si-mesmos.
Creio, porém, que a divagação domingueira está se afastando muito do tópico daquela postagem. E é hora de ver o sol e aproveitar o dia.

sábado, 15 de julho de 2023

Memória: Rubem Braga

Encontrei-me com Rubem Braga duas vezes, e foi assim: Marisa Lajolo coordenava com Samira Campedelli uma coleção da Abril Cultural. Chamava-se “Literatura comentada” e apresentava, em livrinhos vendidos em banca de jornal, os principais autores das literaturas brasileira e portuguesa. Alcir e eu ainda fazíamos o mestrado, o que de alguma maneira combinava, pois a forma do assunto talvez aspirasse ao cânone como nós dois à formação acadêmica. Era nosso primeiro livro, e o fizemos da forma que foi a nossa sempre, desde a tradução até a composição de poesia de nonsense ou obscena: a quatro mãos.

A primeira vez que o vi foi logo que recebemos o convite. Eu estava no Rio, acompanhado do meu pai, em busca de material para a minha dissertação sobre poesia concreta. Eram tempos difíceis aqueles, sem internet nem máquinas digitais ou celulares. A Biblioteca Nacional era um caos. Por falta de pessoal ou competência, abriam andares ímpares e pares alternadamente. De modo que se por acaso o que você quisesse num dia ímpar estivesse num andar par, a consulta ficava para o dia seguinte, mas sem garantias, porque de repente a sequência podia ser quebrada por algum motivo. Além disso, não havia serviço disponível de microfilmes. E era aí que entrava o meu pai: fotógrafo amador, foi autorizado a fotografar com sua Pentax as páginas que me interessassem dos jornais dos anos de 1950.
Meu pai sempre foi um bom leitor, além de músico, poeta e cronista nos jornais do interior onde vivemos. Por isso, era grande fã de Rubem Braga. Bastava-lhe saber que o cronista estava num periódico para assiná-lo ou comprar na banca.
Não desperdicei a oportunidade, portanto. Telefonei ao velho Braga e lá fomos visitá-lo numa bela tarde ensolarada, após o trabalho na Biblioteca. Não me lembro nada do que falamos. Apenas me recordo claramente da expressão do meu pai, quando apertou a mão do escritor. Depois, ficamos ali conversando. Eu na verdade não tinha assunto, senão lhe dizer que eu e um amigo escreveríamos sobre ele.
Quando voltei a Campinas, organizamos as jornadas de trabalho. Lemos a obra de Braga de uma ponta a outra, selecionando cada um as crônicas que mais impressionavam. Em voz alta as relemos e depois as fotocopiamos, recortando os xerox para montar o conjunto.
Em seguida, redigimos uma apresentação crítica – ainda muito colada à bibliografia, vi agora –, o esboço biográfico e as notas. E então veio a notícia terrível: Rubem Braga não queria ser explorado pela Abril (não foi bem isso o que disseram, mas o que entendemos, e ele depois confirmou) e exigia que no livrinho houvesse tanto texto dele quanto sobre ele.
Foi então que fui pela segunda vez à sua casa, saindo de Campinas numa madrugada fria, de moto, para apanhar o avião da ponte-aérea e voltar no final do mesmo dia.
Isso explica que eu calçasse uma bota quase até o joelho e carregasse uma grande mochila, onde meti depois o casaco e as luvas, mas não as botas. E portanto em poucas horas lá estava eu, com aquelas botas e aquela mochila, andando pela praia de Ipanema, sob um sol de assar batata na rua.
É que Rubem Braga tinha ido a um enterro no horário matinal combinado. E só me receberia quando voltasse. Por isso nem me afastei muito do apartamento dele, nem fiquei muito por lá, com tal aparência suspeita.
Quando me recebeu, pude ver melhor o famoso apartamento de cobertura, com jardim de Burle Marx e um pequeno aquário rodeando a casa.
Vejo agora que não descrevi o escritor. Não era baixo nem alto, se me lembro bem. Nem gordo nem magro. Tinha cabelos brancos e um bigode esbranquiçado. Seu traço mais marcante eram os olhos. Bovinos, disse dele alguém. E não encontrei melhor palavra. Como o boi do poema de Drummond, talvez. Eram olhos ao mesmo tempo acolhedores e investigativos, nos quais também julguei perceber algum tédio, derivado da experiência. Assim devia ser o jeito de Aires, lembro-me que pensei.
Perguntei-lhe o que achara do nosso texto. Ele me disse algo vago, que não assegurava que tinha lido. Eu lhe disse que nossa ideia para cumprir a exigência era desenvolver a apresentação e acrescentar uma pequena fortuna crítica. E acrescentei que a sua biografia tinha saído tão breve porque havia muita inconsistência no que estava disponível. Por fim, que pretendia fazer com ele uma entrevista e acrescentá-la ao livro, para cumprir o necessário.
Ele mandou vir uma grande caixa. Abriu-a sobre a mesa e vi que nela havia de tudo: cartão de repórter de guerra, passaportes, salvo-condutos, muitas fotografias, cartas, recortes, registro de nascimento, carteira profissional. Juntos separamos a papelada e reconstruímos a vida dele, corrigindo os dados que eu trazia anotados a partir das leituras. Selecionei por fim os documentos mais relevantes, que a editora trataria de fotografar. E fiz a entrevista. Um dos trechos vem junto desta postagem.
Na saída, deu-me um exemplar do seu único volume de poesia, que tinha acabado de ser publicado em Recife, pelas Edições Pirata, mas com a condição de que os versos não seriam incluídos no livro que fazíamos.
Na volta, com base na conversa do Rio e atendendo à necessidade de espichar o texto, reforçamos as notas de rodapé, aumentamos a biografia e inventamos um diálogo. Essa foi a parte melhor, na verdade, a mais divertida e produtiva: submetemos o nosso texto primeiro à crítica, desdobrando-nos em duas figuras – o Mestre questionador e o Discípulo aplicado – e pudemos assim ser mais ousados, autoirônicos e agudos. Por fim, convocamos para a conversa o próprio Rubem Braga, atribuindo-lhe as palavras que me disseram no Rio.
Ele me dissera que uma prova da decadência da crônica era que a revista Manchete tivera outrora quatro bons cronistas, mas que agora só tinha o Adolfo Bloch, que só escrevia para um leitor, ele mesmo. Como ele me disse, publicamos.
Algum tempo depois, ele se referiu numa crônica aos rapazes de Campinas que colocaram aquelas palavras na sua boca. Disse que não se lembrava de tê-las dito, mas que, já que dissemos que ele disse, então estava dito.

sábado, 8 de julho de 2023

Enquanto espero…

Enquanto espero, por algum motivo me lembro de coisas que li em Ezra Pound. Mais exatamente no livro que entre nós se chamou “ABC da Literatura”. Não a abstrusa noção de paideuma. Essa, tal como ele a operacionaliza, não disfarça o caráter autoritário. Afinal, quem disse que o trabalho de uma geração é capaz de selecionar para a próxima o que é vivo, evitando que ela perca tempo com coisas obsoletas? Não é justamente o contrário? Que na modernidade uma geração digna do nome enterra a anterior, ao menos em parte, descobrindo a novidade ou o interesse onde aquela não punha o seu coração?  O que me ocorreu foram outras passagens, que refiro de memória. A primeira é aquela em que ele compara uma opinião a um cheque. É uma questão de fundos. Se ele, Pound, desse um cheque de um milhão de dólares, seria uma piada. Se Rockfeller o fizesse, não. Seria uma coisa séria. Assim também, com a opinião de um não-conhecedor de literatura e arte. A comparação é brutal e pode ser contestada em vários níveis, mas aponta para algo que é de fato importante: o conhecimento como padrão de julgamento (e de gosto, talvez), o valor da autoridade intelectual. Auctoritas. Não se trata de “sabe com quem está falando”, nem de “sabe quem está falando”, e sim a importância de constatar que “quem está falando sabe”. Mas a passagem que primeiro me ocorreu foi uma na qual Pound pergunta se o seu leitor se interessaria pela obra de um autor cuja visão de mundo (acho que ele diz percepção, mas não estou seguro) estivesse abaixo da média (creio que ele disse “não estivesse acima da média”). Confesso que, indagado, tenderia a responder que não. Talvez porque seja essa a base da minha recusa a continuar a leitura de poesia ou prosa na qual não perceba que o autor de fato tenha algo a dizer. Algo relevante, de algum ponto de vista, ainda que seja o puramente pessoal. Nesse ponto, me ocorre outra lembrança: a de que é bastante desfocada a repetição incessante da boutade de Mallarmé sobre a poesia não se fazer com ideias, mas com palavras. Porque a mim não interessa o contrário: a poesia feita com palavras sem ideias. Talvez porque me lembre de Bashô, quando dizia que as obras produzidas apenas com arranjos de palavras são o testemunho de um espírito que não se esforçou para atingir a verdade. Não são dignas de respeito, acrescentava ele. Mas voltando ao Pound: embora tenda a concordar, reconheço a dificuldade. Por exemplo, Fitzgerald. Em que medida poderia dizer que ele tinha uma visão de mundo acima da média? Eu acho que sim, mas não sei bem por que acho isso. Sei apenas que o “Grande Gatsby” me encantou desde a primeira leitura. E não só pelo enredo. Na verdade, não pelo enredo. Mas porque há ali, por exemplo, uma cena na qual a personagem adentra uma sala cheia de leveza e brisa. As mulheres, como tudo o mais, flutuam, se erguem no ar. Quando o dono da casa fecha brutalmente as janelas, tudo se assenta. Assisti às filmagens da obra. E gostei, eu creio. Mas essa cena me marcou a partir do livro, porque se fosse encenada ao pé da letra o resultado seria certamente ridículo. E assim muitas outras cenas e passagens, pelas quais eu avaliava, normalmente em clave deceptiva, as equivalentes nos filmes. Tudo isso para dizer que há mais coisas aí, entre a visão de mundo e o puro domínio das palavras. A mescla é variada e o resultado incerto, penso. Uma coisa parece transformar-se em outra. Ou gerar a outra. E agora, enquanto ainda espero, me lembro de algo que parece ter pouco a ver. A ideia marxista (ou terá sido Engels?) de que a determinação estética pode inclusive corrigir a crença de classe, a visão parcial pessoal do artista. Ou quase isso. Porque sempre vi ali uma postulação do valor de conhecimento, isto é, de análise e desvelamento da realidade, que a submissão à coerência estética acarreta. Como se o justo e o esteticamente ajustado fossem de alguma forma íntimos. Claro que a estética, no caso marxista, era a do realismo. Mas o ponto era esse. Neste momento, porém, acho que já esperei demais. E que há algo de desvario nisto tudo. Mesmo assim, que seja.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Ensaio

 Estive, desde ontem, para escrever uma nota sobre um artigo de Alcir Pécora. Era para ser um comentário a uma postagem que fiz a propósito do livro de Frederico Lourenço. 

Sucede que por ter compartilhado e endossado a crítica mordaz que ali (em Lourenço) encontrei sobre a “indústria universitária” logo me tornei alvo da bondade do bom-mocismo. Ora, me disseram em privado, você está subscrevendo uma atitude reacionária. Em público, em comentário desrespeitoso que apaguei, levei um sabão por compactuar com a arrogância e outros vícios, e também me disseram com condescendência que toda pesquisa é válida e sempre há contribuição original, por menor que seja etc. O ponto, entretanto, não estava em parte alguma dessas reações repletas de boas intenções, na maior parte.

Mas voltemos à ideia do comentário. Aconteceu que na sua visita semanal, Alcir me trouxe um número da revista “Miscelânea”, da Unesp. pois lá vinha um texto seu, de brilho característico, sobre aquilo que denominou “um tema que nos interessa”, acrescentando, agora com verdadeira generosidade, que eu já sabia daquilo tudo. O que pode ser verdade, num nível, mas não o era certamente em outro, ou seja, o da capacidade de exposição e síntese que ele tem em dose admirável. A começar pelo título: “O ensaio na época da morte do ensaio”.

Se eu quisesse de fato resenhar e debater o texto, não seria este o espaço. Mas basta-me chamar a atenção para o que nele vai, e realçar alguns pontos em que convergimos. Por fim, se a tanto me ajudasse engenho e arte, gostaria de glosar alguma coisa do texto, numa clave algo crítica, mostrando que os dois terços finais do título não permitem a redenção do primeiro. Mas temo que isso seria demais também, então basta indicar a leitura e transcrever algumas frases.

O primeiro ponto é que, listando uma bibliografia do maior interesse, conclui: “os autores que pensam a universidade ... acabam igualmente por entender o presente dela como um momento de declínio”.  Como ele mesmo reconhece, ao tratar do ensaio nesse quadro, seria fácil ceder à nostalgia e entoar um “ubi sunt?”. 

Alcir reflete sempre com um pé no chão do presente e outro no campo de combate. Nada de nostalgia, nem de lamento. A situação da universidade, diz, tem uma clivagem dupla: as implicações internacionais da ideia de universidade e as inovações tecnológicas. Ambas incidem diretamente sobre o tema do artigo, que é a escrita. Ou a atitude que preside à escrita, eu talvez pudesse dizer.

Haveria ainda uma terceira determinação presente do pensar a universidade, que é a hegemonia da sociedade de mercado, que lhe permite esta formulação provocativa, algo angustiante: “O quadro incrivelmente raivoso dos novos fundamentalismos que se apresentam como ‘antissistema’ – mas que, de fato, são basicamente antidemocráticos – sugere mesmo que não é impossível que, num futuro próximo, tenhamos saudade do cosmopolitismo laico do capital”.

 Ao traçar o quadro da crise das humanidades, Alcir continua com a faca afiada. Aqui, desnaturaliza o uso da palavra “pesquisa” no interior das humanidades, ali indica como, nos países centrais, a tendência é que sejam versadas por pessoas das classes ricas, já que não permitem retorno do capital investido (ele diz de modo mais refinado do que estou resumindo, claro), mais além fustiga a especialização precoce incentivada pelo sistema de bolsas, a começar pela IC. E ainda a “obrigação artificial de interdisciplinaridade”, criada pelas agências de fomento.

Nesse ponto, o autor percebe o risco da navegação e escreve: “Mas se é verdade que eu capitulo diante da determinação um tanto tristonha do gênero que pensa a Universidade, gostaria ao menos de evitar um segundo estágio da melancolia, o de viés catastrofista. Cair nele encerrar-nos-ia definitivamente num cômodo apertado entre a saudade dos bons tempos e a ansiedade do fim. Quando essas duas afecções se juntam, resta-nos apenas a nostalgia da extinção, que tudo devora e reduz a pós-.”

Mas será que ele consegue evitar esse segundo estágio terminal?

O caminho dá nesse ponto uma volta. A volta da definição do que seja o ensaio. E o faz chamando para o palco um texto de Abel Barros Baptista sobre um conto de Poe, de que extrai esta formulação: “O ensaio não é o conhecimento disfarçado de literatura – é a literatura disfarçada de reflexão, análise, conhecimento”.

E aqui chegamos à peripécia, por assim dizer. O que Alcir vai identificar, derivando essa proposição, é a definição de ensaio não como mapeamento do objeto, mas como conquista e/ou imposição do lugar do intérprete. 

Para mim, esta é uma percepção muito aguda e certeira: “o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo o alienaria da obra que pretende elucidar”.

E aqui a conclusão, da qual decorreria muita coisa: “Assim, um ensaio bem sucedido é menos a explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema”.

O artigo se encerra poucas linhas após essa frase. Por isso não faz uma amarração dela com o feixe dos problemas e argumentos anteriores.

Quando terminei a leitura, escrevi ao autor. Mas antes de contar o que lhe disse, vejo que me esqueci de ressaltar um ponto muito notável do seu artigo, aquele no qual define a nova forma de relação dos entes universitários. Eis: “Como detalha Collini, ..., o aluno comporta-se cada vez mais como um cliente que tem exigências a serem contempladas pelo professor. E o professor, por sua vez, ... aproxima-se da figura de um fornecedor.”

Pois bem, o que lhe disse primeiramente foi isto: “Você escapa por pouco do lamento pelas neves de outrora, se safa bem com a admissão da tentação e a superação por aquela atitude mesma que me sugere quando me vê resvalar pela encosta da melancolia abaixo.” Depois, provavelmente com algum dramatismo provocador, escrevi-lhe que no novo mundo da universidade, o ensaio, tal como ele o define, está mais para um tapa na cara. Algo do tipo, dito pelo fornecedor ao cliente: olhe aqui, você nunca vai conseguir fazer isso se insistir no que tem insistido! 

E claro que, ainda nesse registro chão e brutalista para o qual às vezes gosto de puxar o problema, pisando a questão material fiz as perguntas chãs, mas talvez decisivas: “quem está disposto a pagar pelo ensaio? Como ele atende aos clientes/alunos?” 

Claro que uma parte da resposta incômoda já estava lá, naquela parte do artigo em que mencionava o caráter cada vez mais elitista, ou melhor, elitizado das humanidades em algum tipo de instituição universitária. Mas achei que devia, para dar seguimento à conversa, formular claramente a questão. 

Por fim, retornado àquela frase do Abel, que ele cita para depois desenvolver, observei que o guizo no pescoço do gato ainda está por amarrar, isto é, ainda é preciso dizer para os financiadores (e convencê-los disso) que um texto literário disfarçado em estudo não é de forma alguma uma trapaça, mas aquilo mesmo que define (e também estou convencido disto) um dos núcleos mais importantes, se não o definidor, na ideia de universidade.

sábado, 1 de julho de 2023

Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna


Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso,  a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.