quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Aporias

 Uma questão curiosa me ocorreu durante a leitura do livro do Tom. Mas minha intuição foi não a incluir naquela nota do Facebook, porque as redes sociais são terreno para todo tipo de leitura transviada, sem pé na realidade dos argumentos. Conversando a propósito com o Alcir, disse-me ele outra das suas frases antológicas: "uma intuição é uma operação lógica em velocidade muito alta". Eu lhe respondi que aquela era uma bela maneira de recuperar para o XVII uma das peças-chaves do fim do XVIII, um dos carros-chefes do Romantismo. Com essa observação meu amigo, que nada sabe de redes sociais, embora reconhecesse a pertinência da questão, argumentava que provavelmente eu não a devesse postar. Talvez ele estivesse certo, mas creio que vale a pena a discussão, justamente por ser um assunto anguloso. E dos vários ângulos o que me pareceu merecer maior atenção é este: tenho a impressão de que, nestes tempos delicados, a expressão do desejo masculino, com aquilo que ele pode implicar de violência real ou imaginária, anseio de conspurcação da beleza ou de busca de domínio/entrega do/ao outro – temas tradicionais da literatura erótica ou pornográfica – vai ficando cada vez mais complicada em chave heterossexual. Na outra ponta, também a confissão ou revelação do amor em situações públicas tem um efeito normalmente kitsch ou excessivamente piegas, em regime discursivo hétero. Mas não em regime homo – por assim dizer –, porque aí é ação afirmativa, reivindicação de direito, cujo alcance ultrapassa o individual, recobrindo-se de sentido político. Mas voltando ao erotismo: a linguagem crua, o impulso de dominação ou de submissão e todas as formas do desejo naquilo que ele tem de “desrespeitoso” a uma das partes, é cada vez mais difícil de passar pela peneira do bom gosto e das reivindicações do lugar de fala ou do politicamente correto, quando o emissor é um homem e o assunto ou destinatário é uma mulher. Já quando emissor e assunto/destinatário são do mesmo sexo, por algum motivo a questão do exercício do poder parece afundar no horizonte. A discussão fica ainda mais ardida se pensamos em um tipo de expectativa cada vez mais difundida de conformidade e interdição, de fechamento do campo do possível. Por exemplo, alguém poderia arguir aquela postagem nos seguintes termos: das duas uma, ou você não pode sentir e falar com propriedade, sendo presumivelmente hétero, da voltagem estética da poesia homoerótica; ou pode, desde que ocupe, de alguma forma, ostensiva ou secretamente, o devido e apropriado lugar de fala. Vai sem dizer também que me seria interdito, nesse caso, com a devida exceção condicional, compor poemas homoeróticos. Carreguei um pouco nas tintas ao pintar o problema, talvez. Mas é um argumento cada vez mais presente, que não apenas busca delimitar a verdade da crítica, como também a da produção poética ou ficcional. Uma amiga com quem conversei sobre isso fez uma observação interessante: “Essas questões de lugar de fala, literatura homoerótica, literatura de autoria feminina e outras tais me dão uma preguiça infinita. Independentemente da chave erótica ou pornográfica. As causas são justas, mas o modo de lidar com essas questões em literatura me parece bem pouco produtivo do ponto de vista literário. Em tempos em que a leitura de textos literários deixou de ter importância para a formação humana parece que a academia busca justificar o estudo da literatura em um lugar fora dela.” Essa última frase do desabafo daria margem a outras conversas. Quanto ao essencial, a mim também parece que é notável, em alguns discursos identitários, uma desconfiança no poder da ficção e na capacidade de alguém capaz de escrever boa prosa ou bons versos colocar-se na pele de outro alguém, diferente, de outra origem ou condição; ou seja, uma desconfiança na capacidade de alguém retratar adequadamente o diverso, como se a qualidade ou legitimidade do retrato se escorasse na possibilidade de ele ser também autorretrato, ou testemunho partilhado; ou, por fim, voltando ao ponto: a desconfiança na capacidade de um leitor ou crítico compreender e, mais do que compreender, apreciar e avaliar o que provier de fonte diversa ou distante em termos de alguma identidade.