quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Aporias

 Uma questão curiosa me ocorreu durante a leitura do livro do Tom. Mas minha intuição foi não a incluir naquela nota do Facebook, porque as redes sociais são terreno para todo tipo de leitura transviada, sem pé na realidade dos argumentos. Conversando a propósito com o Alcir, disse-me ele outra das suas frases antológicas: "uma intuição é uma operação lógica em velocidade muito alta". Eu lhe respondi que aquela era uma bela maneira de recuperar para o XVII uma das peças-chaves do fim do XVIII, um dos carros-chefes do Romantismo. Com essa observação meu amigo, que nada sabe de redes sociais, embora reconhecesse a pertinência da questão, argumentava que provavelmente eu não a devesse postar. Talvez ele estivesse certo, mas creio que vale a pena a discussão, justamente por ser um assunto anguloso. E dos vários ângulos o que me pareceu merecer maior atenção é este: tenho a impressão de que, nestes tempos delicados, a expressão do desejo masculino, com aquilo que ele pode implicar de violência real ou imaginária, anseio de conspurcação da beleza ou de busca de domínio/entrega do/ao outro – temas tradicionais da literatura erótica ou pornográfica – vai ficando cada vez mais complicada em chave heterossexual. Na outra ponta, também a confissão ou revelação do amor em situações públicas tem um efeito normalmente kitsch ou excessivamente piegas, em regime discursivo hétero. Mas não em regime homo – por assim dizer –, porque aí é ação afirmativa, reivindicação de direito, cujo alcance ultrapassa o individual, recobrindo-se de sentido político. Mas voltando ao erotismo: a linguagem crua, o impulso de dominação ou de submissão e todas as formas do desejo naquilo que ele tem de “desrespeitoso” a uma das partes, é cada vez mais difícil de passar pela peneira do bom gosto e das reivindicações do lugar de fala ou do politicamente correto, quando o emissor é um homem e o assunto ou destinatário é uma mulher. Já quando emissor e assunto/destinatário são do mesmo sexo, por algum motivo a questão do exercício do poder parece afundar no horizonte. A discussão fica ainda mais ardida se pensamos em um tipo de expectativa cada vez mais difundida de conformidade e interdição, de fechamento do campo do possível. Por exemplo, alguém poderia arguir aquela postagem nos seguintes termos: das duas uma, ou você não pode sentir e falar com propriedade, sendo presumivelmente hétero, da voltagem estética da poesia homoerótica; ou pode, desde que ocupe, de alguma forma, ostensiva ou secretamente, o devido e apropriado lugar de fala. Vai sem dizer também que me seria interdito, nesse caso, com a devida exceção condicional, compor poemas homoeróticos. Carreguei um pouco nas tintas ao pintar o problema, talvez. Mas é um argumento cada vez mais presente, que não apenas busca delimitar a verdade da crítica, como também a da produção poética ou ficcional. Uma amiga com quem conversei sobre isso fez uma observação interessante: “Essas questões de lugar de fala, literatura homoerótica, literatura de autoria feminina e outras tais me dão uma preguiça infinita. Independentemente da chave erótica ou pornográfica. As causas são justas, mas o modo de lidar com essas questões em literatura me parece bem pouco produtivo do ponto de vista literário. Em tempos em que a leitura de textos literários deixou de ter importância para a formação humana parece que a academia busca justificar o estudo da literatura em um lugar fora dela.” Essa última frase do desabafo daria margem a outras conversas. Quanto ao essencial, a mim também parece que é notável, em alguns discursos identitários, uma desconfiança no poder da ficção e na capacidade de alguém capaz de escrever boa prosa ou bons versos colocar-se na pele de outro alguém, diferente, de outra origem ou condição; ou seja, uma desconfiança na capacidade de alguém retratar adequadamente o diverso, como se a qualidade ou legitimidade do retrato se escorasse na possibilidade de ele ser também autorretrato, ou testemunho partilhado; ou, por fim, voltando ao ponto: a desconfiança na capacidade de um leitor ou crítico compreender e, mais do que compreender, apreciar e avaliar o que provier de fonte diversa ou distante em termos de alguma identidade.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Isto não é uma crítica

 Recebi do autor este “piano B.”. Um livro paradoxal, ou melhor, que busca o paradoxo num nível leve, talvez pudesse dizer de modo mais preciso. A assinatura na capa é o nome do Tom. Logo abaixo, depois da ilustração, vem o título, seguido da classificação genérica “poemas”. Continuando, por ordem de chegada na leitura, já que a quarta-capa é branca, vem a orelha, que qualifica o gênero: são poemas homoeróticos. A precisão é extrema: alguns, alerta, são mais precisamente homopornográficos. A que se segue uma primeira estratégia que poderia denominar de barreira, ou mesmo defensiva: “na melhor tradição da poesia fescenina”. Logo adiante, o foco se fecha do tradicional para o pessoal, com a surpreendente afirmação de que “a acreditar nas várias notas que abrem o livro, é verídica a experiência relatada.” Por fim, declara-se que há, na profusão de notas prévias, alguma charada, que cumpre ao leitor decifrar. Prosseguindo, nos deparamos com a primeira, a do autor – que tudo indica seja mesmo o que assina o livro e que é descrito, na segunda orelha, como o Prof. Antonio Donizeti Pires, nascido em São Joaquim da Barra, e vinculado à cadeira de literatura brasileira na Unesp de Araraquara. A identidade se reforça porque o Autor data sua Nota justamente dessa cidade, em fevereiro de 2013. Mas o que nos diz o Autor? Garante que é um melancólico. E agora, sim: que o livro que tenho em mãos foi “milimetricamente concebido como catarse e exorcismo”, e que a sua origem é paixão doentia por um rapaz muito mais jovem. É o registro mais pessoal, mas ao mesmo tempo ecoa o tema muito tradicional da paixão do homem velho ou maduro pelo efebo. Portanto, qual seria a charada? Antes de tentar responder, o leitor verá que se estabelece a seguir um pequeno baile de máscaras: comparecem depois do Autor, um Editor e o Professor. Todos de Araraquara, pois assinam seus textos em fevereiro abril e maio do mesmo ano em que o Autor redigiu a primeira nota. Vêm a seguir uma série de epígrafes, e então começa o corpo livresco. Ah, mas não devo prosseguir sem dizer que o Professor censura no livro – com alguma razão, eu diria – o excesso de maiúsculas simbolizantes. Mas digo também que divergimos, o suposto professor e eu, na condenação do livro, porque ele poderia afrontar “a própria família [do autor] e seu status social”. Estamos no reino do desdobramento irônico, como se vê. Esse espelhamento de eus, com notas caricatas, logo reivindica a herança evidente, mas explicitada em rodapé, de Fernando Pessoa. Mas e depois? Quando lemos os poemas, o que vemos? Que o Autor de fato produz uma poesia erótica de alta voltagem, declaradamente pessoal, ou melhor, de tom confessional. Ou seja, que o jogo de espelhos, o calidoscópio das notas e epígrafes acaba por fazer parte daquele mecanismo de sentido que é convocar, como frágil barreira protetora, a tradição, as referências, as puxadas dos cordéis do mundo “alto”. E por fim em propor que essa barreira não resiste ao que vem de baixo, à explosão em palavras do desejo ou da amargura. Pelos vãos da frágil armadura que é também roupa de clown, expõe-se então a carne do tesão masculino em forma nua e crua. Uma estratégia de obter um efeito de sinceridade. Quando a mim, o que me agradou no livro foi exatamente esse negaceio todo para a expressão direta, dando nome aos bois – como se diz. O contraste entre o baixo, o mais baixo, e o mais alto, assim, funcionou melhor. A naturalidade sintática e vocabular desse desejo versejado espelha a pulsão erótica, esse ideal, esse desejado retorno ao estado de natureza. Isso foi o que mais me interessou e impressionou nesse livrinho que promete ser o primeiro de vários, a julgar pela orelha. O Editor afirmou que o livro é “lírico até à medula, até o talo” e nisso radicou a sua singularidade. Não sei se lírico é exatamente a palavra, nem saberia dizer se é até o talo. Mas a sua singularidade para mim, para a minha experiência de leitura, por certo, não repousa nem no talo nem no lirismo. Em que então? Qual a solução da charada? - poderia perguntar-me. Mas não me pergunto, pois não vejo charada alguma que valesse encontrar-lhe a chave. Mas vejo algo mais relevante e notável, nesta tarde chuvosa em que passei uma hora folheando: diferentemente do tédio que quase sempre me domina, quando leio poesia contemporânea – porque os salamaleques às modas e aos paredros cansam, e algumas perguntas fatais terminam por não ter resposta (“o que esta pessoa tem para me dizer?”, “por que pretendeu falar desta maneira?”, “era mesmo preciso me falar em verso?”) – este livro se foi desdobrando em duradouro interesse, satisfação e diversão. A dose de autoironia, aliás, não é pequena. “Suplico-te / [...] que de todo te entregues à voracidade / deste lobo de presépio”. E ela me agrada na medida em que também contribui para o efeito, resultado e conclusão da leitura, que para mim mesmo resumo nesta formulação singela: esse autor, esse ponto de convergência de todo o calidoscópio, sentia que tinha algo relevante a dizer, que havia algo que lhe era importante dizer, e usou de todos os artifícios ao seu alcance para o dizer de modo interessante. E assim, com esta nota arrevezada, que vem, desde fora, juntar-se às demais que integram o livro, e não almeja a ser mais do que um brinde, agradeço ao Tom o presente inesperado.


Nota: Antonio Donizeti Pires. piano B.. São Paulo: Terra Redonda, 2021.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Lista de livros para o vestibular II - ou: Abaixo a lista de livros!

 Numa resposta a um comentário de uma amiga, na postagem anterior, escrevi que não acho interessante ter uma lista de livros para o vestibular. Essa é a questão subjacente ao meu post. E não acho por vários motivos. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que possa parecer, é uma desvalorização da formação literária como elemento de cidadania. Em vez de um programa amplo, que de fato pudesse orientar os docentes do ensino médio e dos cursinhos preparatórios, receita-se uma simples lista de livros. Daí sucede o óbvio: cria-se uma forma de preparar os estudantes que, no limite, visa a dispensar a leitura das obras. Se se sabe quais serão elas, o treinamento tende a recair sobre como responder às questões, e não sobre como entender o texto literário nas suas determinações e relações mais amplas com a sociedade e a cultura. Eu também fiz a experiência de perguntar aos estudantes (do curso de Letras!) se tinham lido as obras indicadas para o vestibular. A resposta, em geral, ao longo dos anos, foi decepcionante... Um segundo problema da lista de livros é o seu arco temporal. Por conta de um paternalismo disfarçado de interesse pedagógico, os textos indicados tendem a ser cada vez mais contemporâneos, mais “interessantes”, mais “atuais” – mais “fáceis de entender”, para dizer de forma bruta. Mas o contemporâneo não é um campo de domínio público, por isso a escolha de autores vivos ou dentro da vigência do direito autoral tem evidentes e incontornáveis implicações econômicas, nem sempre claras ou nem sempre levadas em conta. Poderia listar outros motivos, mas o post ficaria muito longo.

Os argumentos a favor de uma lista acabam por recair sobre um ponto: ao eleger como matéria de aferição aquela dúzia ou dezena de livros, a universidade influiria sobre o ensino de nível médio. É a ideia que sustenta a lista feminina: criar um cânone alternativo, implodir (mesmo que apenas por três anos...) o cânone macho-branco – ou apenas macho, já que Lima Barreto e Machado, por exemplo, são mestiços, assim como Gonçalves Dias, entre outros. Ora, isso também poderia ser feito por meio de um programa de concurso – e lembremos: o vestibular é um concurso –, no qual se apresentariam os pontos e problemas literários que a universidade julga relevantes para a cidadania. A lista de livros, em vez do programa ou em substituição tácita a ele, atesta sobretudo a desconfiança na formação secundária. Em vez de delegar aos professores do ensino médio o recorte das obras e das questões implicadas num programa amplo, a universidade lhes dá mastigada essa versão econômica da apostila: a lista de livros. Mas faz sentido pensar que, se os professores do ensino médio não têm preparo ou tempo ou capacidade para fazer um bom trabalho formativo a partir de um programa amplo, eles vão ter no trabalho com os livros da lista? Creio que não. Daí que eu não veja nessa ideia de uma lista de livros um triunfo ou um gesto de resistência, mas sim uma resignada cedência, uma disfarçada capitulação.

Lista de livros para o vestibular - I

 Acabo de ler que a lista de livros para o vestibular da USP será composta apenas de obras escritas por mulheres. Machado de Assis, diz a chamada sensacionalista, foi expulso. Voltará só daqui a três anos. E mais dois homens com ele. Até lá, nem o de Assis, nem Drummond, nem Bandeira, nem Guimarães Rosa, nem Oswald ou qualquer outro macho.


O divertido da matéria é a expertise do diretor da Fuvest, um professor de direito. Talvez sem as suas justificativas, a decisão instigasse. Com elas, o ridículo puxa a franja da toga, exibindo ao público a roupa de baixo em mau estado.

Entretanto, não me surpreendeu. Tenho observado os exames, tomado o pulso do que se pede em matéria literária. E é quase nada. Ou tudo se resume à interpretação de texto, com algum verniz de terminologia, ou acaba por ser um retorno confesso ou envergonhado à velha história da literatura. Assim, a rigor tanto faz o que se eleja, pois o gesto da eleição o mais das vezes é puro movimento inercial. E fugir à inércia, em princípio, desperta simpatia.

Mas a inércia não é adversário desprezível. Tanto é assim que o professor de direito, falando pela USP, nos tenha vindo garantir que as obras escolhidas permitirão que sejam estudadas as características das escolas literárias.

Então é isso: a vetusta USP quer indicar aos professores e estudantes do ensino médio que o importante em literatura é conhecer as escolas? Se for, então está certo, pois tanto faz que sejam homens ou mulheres os autores. Como também é despicienda a questão da qualidade, bem como a da recepção da obra ao longo do tempo. É tudo razoável, desse ponto de vista. E se é razoável, por que não tocar a melodia do tempo?

Mas o jurista vai além, nos garante que as obras escolhidas têm qualidades literárias grandes e explica: se ficaram preteridas em relação a um Machado, por exemplo, foi apenas porque foram produzidas por mulheres.

Nesse tipo de declaração, reconheçamos, não há nada de novo. Por isso me pareceu, num primeiro momento, exagerada a reivindicação uspiana de que se trata de um gesto de vanguarda radical.

Se bem que, pensando não no curto prazo da notícia, mas no tempo dilatado do ensino, talvez haja alguma verdade aí também.

É que a USP tem peso. E se bem entendi o regozijo do núncio do vestibular com a novidade, ele realmente espera que, pelo estado de São Paulo afora (se não mesmo pelo Brasil), o ensino das escolas literárias, possa ser feito, de agora em diante, depois da decisão libertadora da USP, em clave variada. Afinal, a identidade é um deus de muitas faces e há várias maneiras de servi-lo.

Ao mesmo tempo, a notícia traz um testemunho torto. O de que o lugar do literário é ainda um podium de prestígio ou de autoridade. Por isso mesmo é zona de combate. Terra em disputa. Inserir ali, esta ou aquela obra, esta ou aquela identidade, é ainda um gesto pleno de sentido, de reivindicação. Mas não é algo como dar uma cotovelada e encontrar um lugar entre tantos. É no limite combater o próprio lugar.

Por isso, o testemunho não é favorável. No prazo mais longo, acho que tenderá a se esvaziar ou diminuir o lugar literário, fazendo com que seja um desperdício o esforço ou mesmo o simples gesto de ali inserir ou de lá retirar algum autor ou obra ou filtro de identidade.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Jorge Cury

 

Na pequena faculdade de Araraquara havia um só professor de Literatura Brasileira e somente um professor de Literatura Portuguesa. Creio que não estou em erro quanto à primeira; mas quanto à segunda, estou seguro.
O regente desta última cadeira, quando o vi pela primeira vez, pareceu-me vagamente familiar. Talvez fosse o bigode, talvez o formato das maxilas, ou o jeito desconfiado com que olhava meio de baixo para cima, talvez mesmo o jeito de caminhar. O certo é que de imediato o associei à infância ainda próxima, às matinés no Cine Theatro Polytheama, onde nos fazia rir o grande Amácio Mazzaropi.
Conhecendo-o depois, como aluno, apreciei e imitei o seu humor meio matuto, cortante e nem sempre contido. Nas tardes modorrentas, a classe enlanguescia. Jorge, sentado à mesa, apertava os olhos ao passá-los sobre nós. No novo campus, havia incômodas nuvens de minúsculos mosquitos. Voejavam junto dos olhos e da boca. Jorge então batia palmas na frente do nariz, para espantá-los. Aproveitava as palmas para dizer com o olhar irônico ou com a voz meio esganiçada que não era pra dormir. E muitas vezes emendava com aquela frase que hoje talvez lhe custasse o emprego.
Eu achava divertido. Eram outros tempos. Mesmo que houvesse ali verdade, confesso logo que ele estava errado em dizer e eu mais ainda em rir, cúmplice. Não, não era um curso de espera-marido, o de Letras. Estou certo de que não. Mesmo que não estivesse convencido disso na época, hoje sem dúvida devo estar. Por isso, não devia rir mais alto quando Jorge completava que, enquanto o marido não aparecia, todo mundo tinha de estudar.
Talvez devesse dizer que era acima de tudo um rabugento. Mas quanto a mim era um adorável rabugento. Porque não creio que houvesse, apesar da máscara protetora de azedume, professor mais dedicado a nós, mais atento, mais solícito.
Durante muitos anos, e talvez até hoje, a sua vida – ou o que eu imaginava que ela fosse – foi um ideal. Jorge vivia em frente a uma escola grande da cidade. Sua casa tinha uma garagem que dava para a rua. Mas não era usada como tal. Era uma biblioteca.
Habitava-a, além do Jorge em carne e osso, o Jorge em papel e tinta. Digo: um enorme fichário, onde ele guardava inúmeras fichas, minuciosamente preenchidas, arrumadas e catalogadas. Suas leituras todas, desde um tempo que me parecia imemorial, se prontificavam ali, ao alcance da mão!
Durante muitos anos, meu sonho foi voltar a Araraquara como professor, comprar uma casa com garagem, fazer uma biblioteca na garagem e ser um novo Jorge Cury. Só me faltaria o fichário, por isso ainda no segundo ano comecei a preencher uma ficha para cada leitura escolar ou relevante. E se parei com as fichas pautadas de papelão foi porque continuei a fazê-las em formato digital, nos primeiros e precários computadores de 8 bits.
Devo dizer, entretanto, que não foi pacífica nossa convivência. Jorge era muito cristão. Demasiadamente cristão para o meu gosto. Certa ocasião, em vez de me dizer coisas interessantes, começou a louvar o casamento. As virtudes cristãs do casamento. Estávamos na sua biblioteca. Eu tinha 18 anos e lhe garanti, como alguém que tem mentalmente muitos anos a menos do que 18, que não me casaria nunca. Foi uma conversa, um debate meio sem sentido, mas terminou com uma aposta bizarra. Como eu tinha acabado de ganhar um Karman-Ghia vermelho, que era meu xodó, e sabendo o Jorge que eu invejava a sua biblioteca, apostamos uma contra o outro: ou seja, se eu um dia me casasse, lhe daria o carro; se não, ele me daria a biblioteca. Jorge ria muito, quando selamos o trato. Mas quando finalmente me casei, apenas uns cinco anos depois, não voltei para vê-lo. Muito menos para lhe levar o carro, que eu já não tinha.
Outra nossa desavença foi pública. Ele ensinava o Camões. Tínhamos de ler o Jorge de Sena. E lá estava o nosso Jorge escrevendo na lousa o número das estrofes de cada canto, do menor para o maior. Em certo ponto, havia dois cantos com o mesmo número de estrofes. Então ele os escreveu na mesma linha. Por fim, quando terminou, virou-se para nós e disse que ali estava uma revelação. Não sei se usou essa palavra, mas o jeito como falou sugeria que se tratava de uma revelação. E a revelação era que aquele arranjo de números na lousa formava a Cruz.
Eu tinha visto que o encontro dos tempos narrativos, em “Os Lusíadas”, se dava na estrofe 551. Como o poema tinha 1102 estrofes, ok: Camões tinha feito cálculos, segundo o outro Jorge, o de Sena, para que isso acontecesse assim mesmo. Mas a história da cruz me parecia uma grande bobagem!
Quando ouviu essa palavra, ainda piorada pelo qualificativo, Jorge ficou transtornado. Foi um desacato pessoal. Sua voz se alterou. Quando se irritava, parecia taquara rachada. Disse-me, indignado, que eu era uma formiguinha perto do Sena. Passou-me uma lição de moral, uma descompostura em regra. Mas então, em certo momento, disse a frase que nunca me saiu da memória. Por algum motivo, para aumentar a glória do Sena, resolveu se meter na comparação. Disse que, perto da grande árvore que era o xará português, ele, o Cury, era “um humilde pilriteiro”! Aquilo me abalou. Um pilriteiro! Jorge era um pilriteiro e eu era uma formiga! Eu não fazia ideia do que fosse um pilriteiro, mas concluí que provavelmente havia ali um recado para mim, e que eu era a formiga no pilriteiro que ficava embaixo da árvore do Sena. Eu mais não disse. Nem ele retrucou, satisfeito com a constatação da minha derrota embaraçada e encolhida.
Houve ainda outros embates, mas a verdade é que eu o adorava e ele me tolerava bem.
Quando me decidi a fazer a livre-docência, Jorge foi um dos primeiros nomes que me ocorreu submeter ao departamento. No memorial, já registrara a dívida imensa, então era de justiça.
Naquele tempo, a gente começava a ser dispensado de apresentar tese. Podia ser uma reunião de ensaios. Eu já tinha feito a tese, sobre Pessanha. Mas na incerteza também tinha preparado o livro de ensaios. Então apresentei os dois. No dia da defesa, reencontrei o riso sardônico do Jorge, quando ele se queixou do meu exagero, que o obrigava ainda agora a trabalhar tanto. Ele ria ainda do mesmo jeito, meio entrecortadamente, alternando o sorriso com a careta e mastigando, sob o bigode já branco, as palavras que vinham embaladas em veneno leve. Depois, na titularidade, convoquei-o outra vez. Era parte de tudo aquilo, de um jeito ou de outro, desde que debutei em escrita acadêmica, na revista dos alunos e no jornal do diretório, com dois textos nascidos das suas aulas.
Vi-o por fim numa reunião da turma. Foi a última vez, eu creio, que conversamos de viva voz. Em silêncio, entretanto, durante leituras, planejamento de cursos e redação, o diálogo algo conflituoso de Araraquara nunca se apagou. Pelo contrário, quando o assunto era português, foi se mantendo e, aqui e ali, frutificando, em boa emulação e melhor cumplicidade, risonha e admirativa.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Um soneto de Pessanha - "o mais perfeito da sua Obra"

 Estou preparando uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, a sair pela Dilúvio Editora, em Portugal.

Revisitar os documentos que utilizei para fazer a edição crítica e as subsequentes é sempre uma aventura. Por exemplo, estive consultando as decisões que tomei quanto ao texto do soneto que começa “Foi um dia de inúteis agonias”. Não é um soneto qualquer. Pessanha o considerava “o mais perfeito” dos seus poemas, segundo anota seu melhor amigo em Portugal, Carlos Amaro.
Ora, quando esteve em Portugal, em 1916, na sua última visita à terra natal, Pessanha anotou “de memória” alguns poemas, que depois foram utilizados para sua amiga Ana de Castro Osório compor a “Clepsydra”, de 1920. Esse soneto não está na caligrafia de Pessanha, mas de João de Castro Osório. Pessanha apenas corrigiu a palavra “impressível”, que João entendeu e anotou como “imperecível” e alguns pormenores.
Esse autógrafo deve ter servido para Luís de Montalvor publicar esse soneto na revista “Centauro”, em 1916. Publicação essa que foi revista por Pessanha, pois Pessanha teve de novo de corrigir “imperecível” para “impressível”.
Até aqui, tudo bem. Sucede que no autógrafo de Carlos Amaro há algo que torna o poema melhor, do meu ponto de vista. Algo que não há nem no apógrafo corrigido do seu espólio, nem na revista “Centauro”.
Nunca pude reproduzir essa versão, porque os critérios que escolhi exigiam que eu reproduzisse apenas a última versão, a última vontade do poeta.
Mas aqui, que é o Facebook e o meu blog, posso reproduzir o soneto da forma que me parece melhor, mesmo que seja contra a vontade do poeta – por assim dizer.
A diferença mais significativa está nos versos 6 e 8. No autógrafo que reproduzo aqui, lê-se “teu mole sorriso”. Nas outras versões “seu mole sorriso”.
Não creio que o autógrafo que pertenceu a Carlos Amaro tenha sido algum dia reproduzido. Aqui está ele, juntamente com a página corrigida da revista “Centauro”. A anotação diz: "Disse-me o Camilo Pessanha que era *Isto* o mais perfeito da sua Obra".

Para maior facilidade de leitura, eis o texto do manuscrito, já me ortografia brasileira.


Foi um dia de inúteis agonias,
-- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias. 
-- Dia de sol, inundado de sol. 
Foi um dia de falsas alegrias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Passavam, das feiras e romarias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido! 
Difuso de teoremas, de teorias... 
O dia fútil, mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!