segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Viva o Editor!


Acabo de ver um vídeo fantástico, no qual Paulina Chiziane, com os pés junto a uma fogueira, faz um agradecimento comovido a Zeferino Coelho, da Caminho, que a editou em Portugal. Sua voz se embarga um pouco ao mencioná-lo.
A mim, tudo impressionou nesse vídeo. Mas depois, pensando nele enquanto tentava ler uma monografia, ocorreu-me o motivo por que essa última parte do depoimento me moveu mais.
É que eu também tive e tenho a felicidade de ter um editor no sentido pleno dessa palavra. Quero dizer: um editor receptivo, alerta, que lê o que publica, e escolhe, e orienta. E isso, infelizmente, não é uma experiência comum.
Desde uma novela fragmentária até um livro recente de estudos de literatura, passando por quase uma dezena de outros trabalhos, sempre pude contar não só com a leitura atenta e produtiva, mas também com generosidade e compreensão: se eu precisava de 30 páginas prefaciais, podia escrever; se precisasse de 50, também; e houve até casos em que a apresentação de um livro pequeno terminou por ocupar o número absurdo de 70 páginas de texto corrido. Na verdade, nunca sequer perguntei de quantas laudas poderia dispor, nem me preocupei com isso: simplesmente fui escrevendo, até a questão que me propus abordar estar bem delineada ou resolvida, e depois lhe enviei, certo de que tudo seria publicado na íntegra.
Na verdade, mais do que um editor, sempre tive nele um parceiro. No último livro, o que narra uma viagem de motocicleta, foi ele o primeiro leitor da primeira versão. E foi a sua receptividade e o seu “quero publicar!” que me animaram a empenhar os meses seguintes na apuração do texto, de modo que fosse digno de livro.
Mas houve outro momento que pode dar uma ideia mais precisa de até onde vai a paixão pelo livro, por dar forma ao original informe. Uma paixão tão intensa que pode parecer até mesmo tingida de alguma loucura. E foi quando enviei ao Plínio Martins Filho – pois é dele que se trata – um conjunto de poemas malvados, obscenos, pornográficos, de escárnio e maldizer. Enviei-os para deleite privado, pois eram cheios de referências intertextuais, e porque me pareciam bem divertidos, apesar das maldades que deles escorriam. Ou talvez justamente por conta delas.
Ele não teve dúvidas: queria publicar. Eu lhe disse que de forma alguma. Aquilo não era para circular. Era impublicável. Mas ele insistiu e me propôs algo muito surpreendente.
Aceita a proposta, pedi a Alcir Pécora que escrevesse um prefácio para o livro obsceno, no que ele se saiu, como sempre, da melhor maneira possível, com um texto agudo e erudito, que tentava inclusive, eu acho, minimizar um pouco a maldade explícita.
Plínio então contratou um desenhista, que fez ilustrações à altura, ou talvez fosse melhor dizer à baixura, do livro. Com isso compôs um belo volume de capa dura e mandou imprimir exatos 98 exemplares. Ficou com meia dúzia e me deu os demais, de presente.
Esse livro nunca foi posto à venda, nunca foi exibido numa livraria, nunca esteve à disposição de qualquer público, exceto as pessoas a quem o enviei. Um livro, portanto, quase em circuito fechado: do autor para o editor e do editor para o autor, até mesmo um pouco contra a vontade deste último.
Se isso não é uma boa definição do que seja um editor, capaz de submeter todas as questões práticas à paixão de publicar um livro de que gostou, então não sei qual seria.

Um poema para Leminski

Paulo Leminski era exatamente dez anos mais velho do que eu. Só o encontrei uma vez, já no final da sua vida, quando veio fazer uma palestra sobre haicai em Piraciaba.
Durante ela, projetou uma série de pranchas do livro "Haiku" ou do "A history of haiku", de R. H. Blyth, e fez uma exposição inteiramente baseada na leitura desses livros.
Naquela época, eu tinha descoberto os tratados canônicos da escola de Bashô e começava a colocar em causa um tipo de leitura que confinava com a dele.
Foi nessa linha que lhe apresentei um comentário/pergunta, e ele, antes de não responder, disse com notável espontaneidade e num tom engraçado que jamais pensaria encontrar em Piracicaba alguém que conhecesse o Blyth.
Depois da palestra, conversamos um pouco. Muito pouco. Ele não parecia muito interessado em debater teoria, história ou prática do haicai. Para abreviar a conversa, convidou-me para acompanhá-lo ao bar para onde o levariam, mas senti que não era hora nem local.
Algum tempo depois, tive notícia de seu falecimento. Era meados de 1989. Eu estava fora de Campinas. Tinha ido fazer uma palestra. Creio que em Assis. Já tinha entregue à Editora da Unicamp, para publicação, o "Haikai - antologia e história", que sairia no ano seguinte e que eu contava enviar-lhe assim que possível, pois esperava que aquele livro pudesse ser, a seu modo, a continuação do diálogo efetivo que não houve.
Demorei para superar o choque. Um estranho choque. Tanto que um mês depois anotei umas linhas que talvez sejam injustas, talvez sejam muito derramadas, talvez apenas insossas, mas que deram conta.
Nunca as publiquei, é claro. Em algum momento as enviei, como homenagem meio torta, a Alice Ruiz.
Nestas noites de insônia, neste país que a cada dia parece mais desmoronado, a memória faz, de um jeito ou de outro, o trabalho de reconstrução. E resolvi, depois de tantos anos, voltar a estas linhas, este desajeitado pastiche, encharcado de melancólica revolta, que ao mesmo tempo que iluminou o afeto parece ter obscurecido ou carregado o julgamento.

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Eu não gostava muito de você, Leminski.
Você tinha as unhas sujas
E era muitas vezes meio chato.
Falava de haicai de um modo incompleto,
E o seu Jesus era muito concreto.
Também não gostava de seus poemas,
Só de alguns, estou sendo sincero.
Nem da prosa que você fazia, que me aborrecia.
No entanto, estou sentindo a sua falta.
Não sei o que é, mas você faz falta.
Estou aqui como um bobo lhe fazendo versos
E quando vivo mal pudemos nos falar
Sobre pinga, peixe e poesia, em Piracicaba.
Um pouco de judô, um pouco de Blyth, o nosso vovô.
Você foi para um bar, encher bem a cara.
Eu não fui festejar a sua fala.
De novo a gente não conversaria.
Nem eu queria, nem você gostaria.
Mas me fazia bem pensar que você
Quando a chuva era fraca
Fazia haicai para as línguas de vaca.
Fazia bem, mesmo pra quem não gostava,
O jeito tão ágil que era você,
E entre os copos de vinho e de vodca
O brilho da mente que ali faiscava.
Não soube logo que você morreu.
Falara em você no dia anterior.
Como sempre: nem mal e nem melhor.
Na casa de uma amiga me disseram: faleceu.
Já faz dois dias, ela disse.
Dois dias que o Leminski faleceu.
Arrumei o jornal, li o necrológio, pensei:
Pra que essa tristeza?
Dele, afinal, nunca eu gostei...
Mas um dia vem e vai, outro também,
E já passou um mês inteiro.
Eu mal o conhecia, então por que
Não foi só um sentimento passageiro?
Por que não me esqueci,
Por que sofri? – sofri?
Ah, se sofri! Você pensa que é mentira?
Que é força de expressão, papagaiada?
Então por que faria toda esta versalhada?
É incrível, mas nada me tira
Essa tristeza enorme que é você ter morrido.
Você que não era meu amigo, nem meu conhecido,
Mas que era de algum jeito, obscuro e contramão,
Uma espécie de ininteligível meu irmão.
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Uma carta de Mecia de Sena

    Em 1993 conheci, em Los Angeles, Emmanoel Santos. Sua simpatia me causou profunda impressão e nos estendemos em longa conversa, como se não fosse o primeiro encontro. Quando nos despedíamos, disse-me ele que eu precisava conhecer sua mulher, Gilda, porque ela era como eu. Usou a seguir uma palavra do campo semântico da palavra “dínamo”, que depois pude constatar ser muito apropriada para descrevê-la, mas não a mim, muito mais lento, e acomodado.
    Gilda estava em Santa Barbara e para lá segui, no final de semana, para encontrá-los na casa de Mecia de Sena.
    A partir daquele momento estava selada uma das amizades mais gratificantes, que foi a do casal Santos, e estava criada a condição para uma longa troca de correspondência com Mecia, com quem, apesar de ter regressado várias vezes aos EUA e de ela ter vindo algumas ao Brasil, não tive a oportunidade de ter outro encontro pessoal.
    Nesse diálogo epistolar, que se estendeu até o começo dos anos 2000, tratamos um pouco de tudo: da obra de Jorge de Sena, que me entusiasmara, dos percalços editoriais, dos seus esforços para editar e divulgar a obra e de um projeto, que não consegui levar a cabo, que era ajudar na publicação da correspondência de Sena com Alexandre Eulálio.
    Várias vezes pensei que valeria a pena publicar as cartas que me mandou, mas alguma confusão nos meus papeis fez com que desaparecessem. Em vão as procurei, porque em duas delas havia informações sobre Camilo Pessanha que teriam sido úteis quando escrevi o livrinho da coleção O Essencial. Lembrava-me, aliás, perfeitamente do que tinha lido, mas sem as cartas não me atrevi a incluir nenhuma informação.
    Também sentia muito não encontrar essas cartas, por conta de ela ter feito, num comentário justamente a um artigo que escrevi sobre a biografia de Pessanha, observações muito interessantes quanto a fantasias biográficas sobre Fernando Pessoa.
    Numa dessas noites de insônia, quando a gente termina por fazer algo apenas para passar o tempo e aguardar o começo do dia, finalmente encontrei-as num lugar improvável, onde jaziam há anos fora do alcance. Tive vontade de reuni-las, transcrevê-las e publicá-las numa revista, para preservar a sua memória. E talvez ainda o faça. Mas como não é certo, pensei que valeria logo a pena, sem nenhum aparato nem transcrição, dar a conhecer a mais interessante delas, datada de 24 de março de 1994.
    
    E é isso que faço a seguir.