segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Versificação: acento e metro

Um amigo me diz que há interesse entre poetas jovens pelas questões de métrica. Eu julgava que não, e fiquei animado com a notícia. Resolvi, então, fazer aqui uma pequena provocação.

E é a seguinte: quando dizemos que a nossa versificação é silábico-acentual, queremos dizer exatamente o quê? Que a base é silábica e que a distribuição das tônicas de verso (ou pausas, como diria Castilho) ocorre segundo esquemas tradicionais. Exemplo: uma linha que tem dez sílabas poéticas, tem tônicas de verso preferenciais na quarta ou na sexta. No primeiro caso, o do verso sáfico, ocorre também na maioria dos casos um acento na oitava sílaba. E no segundo caso, o do verso heroico, há uma variante com acento na terceira e outra com acento na segunda.
Essa seria uma definição correta, porque tradicional. E porque tem guiado, no nível básico, a prática por décadas ou séculos.
Entretanto, como reconhece o próprio Castilho, há poetas em cuja obra predomina o verso correto, porém ruim...
Sempre pensei nisso, e terminei por suspeitar de que talvez haja outra componente importante da nossa versificação, que possa explicar em parte esse paradoxo do verso correto, porém mau. O que, em certo sentido, é uma conversa sobre como o metro e o ritmo combinam ou não combinam, conversam ou não conversam.
Do meu ponto de vista, essa componente é o caráter acentual da nossa língua, enfatizado pela nossa versificação. (Quase diria: a oralização literária, o modo como oralizamos tanto a poesia quanto a prosa literária, acentua o lado acentual da língua, mas essa é outra discussão.) 
Em suma, na denominação “silábico-acentual”, creio que devem ter o mesmo peso os dois termos. Com isso quero valorizar outro aspecto do “acentual”: uma versificação ou oralização baseada na tendência de que entre uma tônica e outra haja aproximadamente o mesmo intervalo de tempo. Ou seja, que haja isocronismo entre as tônicas. Na versificação acentual, para isso acontecer, quando há menos sílabas entre uma e outra tônica, inserem-se pausas; e quando há mais sílabas, a velocidade da elocução é maior. 
Que há versos em português assim construídos, em prejuízo da base silábica, parece certo. Um exemplo é a cantiga que diz: palma palma palma / pé pé pé / roda roda roda / caranguejo peixe é. A base silábica é redondilha menor: cinco sílabas. No segundo verso, em vez de uma átona depois de cada “pé” temos, para completar o pé, uma pausa. Já no último verso é preciso alguma ginástica para enquadrá-lo no tempo da cantiga. Talvez a pausa entre versos seja usada para abrigar as duas primeiras sílabas (caran-), porque tudo soa muito natural quando cantado.
Se assumirmos que a isocronia é algo importante na nossa versificação, muita coisa muda na nossa maneira de entender o ritmo dos versos tradicionais, como o decassílabo e as medidas velhas...
E aqui, eu creio, pode começar uma outra discussão, sugerida por outro amigo: a caracterização do poema em prosa em português. Minha intuição, sem ter pensado muito no assunto, é que um texto de poema em prosa, não tendo metro, no sentido estrito, pode seguir esse princípio: o de favorecer ou incentivar a leitura, silenciosa ou em voz alta, que destaque a isocronia.
Castilho andou buscando algo assim, quando escandiu trechos imensos de boa prosa, em busca dos metros clássicos. Não conseguiu nenhum resultado. Talvez mesmo porque ali não era o metro silábico que contava, mas o princípio da versificação acentual.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

De uma conversa com Thomaz Albornoz Neves

 Na obra de Manuel Bandeira, a questão do metro em poesia tem um desenvolvimento interessante: no seu primeiro livro, a metrificação parece algo pacificado, no sentido de que ocorre natural e harmonicamente. Depois, há um momento no qual, parodiando um título, podemos falar em “metro dissoluto”. Então, mais do que dissolver o metro, Bandeira passou a buscar o “verso puro”- no sentido de Ureña. A propósito, é bem conhecida a passagem do “Itinerário de Pasárgada”, na qual ele expressa o ideal dessa fase ou busca: “Ora, no verso livre autêntico o metro deve estar de tal modo esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentro dele sem virtude de verso medido.” Por fim, à medida que progredimos na leitura da sua obra completa, observamos o retorno do metro, da linha medida, sem drama – por assim dizer, outra vez pacificada –, que vai ombreando com os versos livres, até predominar.

Sei que essas questões interessam hoje a pouca gente. No geral, perdemos a noção do metro. Os otimistas podem dizer que, em troca, ganhamos na capacidade de perceber o ritmo. Os pessimistas, que o ritmo da elocução, perdida a memória do metro, pode predominar na leitura, mas não na escrita, onde a linha cortada sem metro nem ritmo é quase apenas um pequeno enigma, uma forma de criar hesitação.
Voltei a me lembrar disso tudo porque um dos poetas cuja obra me interessa muito, depois de a construir sem metro, mas fazendo daquilo que Mallarmé denominou a “respiração perceptível no antigo sopro lírico” ou “direção pessoal entusiasta da frase” a base da sua poesia, de repente se lançou a produzir sonetos.
Conversamos ontem sobre isso. Sobre esse assunto abstruso, a metrificação. E sobre o que significa para nós o apagar-se do fantasma do verso medido, ainda tão forte no tempo de Mallarmé, depois do legado de Victor Hugo.
E foi então, no final da conversa, que, como um cumprimento ao poeta, enviei-lhe este soneto improvisado, feito com versos misturados naquilo de que falávamos: heroicos e provençais – e ainda misturado na forma, pois italiano um pouco na divisão lógica, e inglês outro tanto na distribuição das rimas.

Falando com Thomaz sobre o soneto,
Dizia-lhe que o verso bem medido
Não tem ritmo, mas só subentendido
O padrão da cantilena, o esqueleto
Que dá sustentação à carnadura
E que mal se adivinha, quando a dança
Ergue alto a carne, reforçando a aliança
Do corpo e do sentido, em forma pura.
Enfim, dizia, o metro não ouvido
Na leitura expressiva, ainda persiste
Na base, e bate ou vibra ali em despiste,
Fantasma ora aparente, ora escondido.
Se sem metro há poesia, e ainda verso,
Melhor é o ritmo com metro submerso.