quarta-feira, 26 de julho de 2023

Direito ao uso


Postagens como a que fiz tendem a dar motivo para comentários agressivos. Autores que denominam os seus textos “haicai” ou “haikai” se sentem agredidos e revidam. O argumento se apoia na liberdade criativa: cada um faz o haicai do jeito que quiser. Eu nada tenho contra tercetos criativos. Ou dísticos criativos. Quadras, piadas, paródias. Pelo contrário! Meu ponto é o uso do nome. Por que alguém denomina “haicai” um poema breve qualquer? Eis a questão. Por que alguém denomina “poesia” um arranjo visual de formas geométricas? No melhor dos casos, porque busca expandir o sentido do nome, desautomatizar. Mas o que percebo no geral é uma reivindicação de um modo de leitura: leia-me como poesia, leia-me como haicai. O mais comum, porém, não é nem isso, é apenas manifestação da preguiça. Reivindica-se o direito ao uso do nome e ponto. Não se vê um esforço de compreensão, seja do poema japonês, seja da história do uso do nome no Ocidente. Há, por certo, um ponto a considerar: quem advoga o uso do nome para qualquer poema brevíssimo se contrapõe ao haicai reduzido a mero terceto de 5-7-5, animado por um propósito descritivo. Há, de fato, um mar de haicais nesse esquema – e, como em todo tipo de poesia, de literatura, na maior parte coisas sem grande interesse. Além disso, o haicai entendido como terceto promove de fato, como o soneto e a quadra, um exercício meramente formal, automatizado. Com a vantagem de parecer mais fácil, pois muito breve e sem rimas... Mas entre os que buscam ao menos a forma adaptada do 5-7-5 e os que usam o nome para designar algum fruto da preguiça prefiro os primeiros. Porque não haveria mal algum em denominar a própria produção apenas “poesia”. Por que chamar “haicai” a poemas brevíssimos, o mais das vezes escorados apenas num trocadilho, numa piada ou gracinha neoconcreta? Por que não, se a forma lembrar a do haicai, entender o produto como “tercetos criativos” ou o que seja. A reivindicação do nome é outra coisa. Principalmente quando se faz de forma agressiva, a pretexto de combater uma prática que se julga desinteressante, formalista ou castradora, e, na verdade, atropelando, desqualificando aquilo que a palavra denomina (seja como resultado, seja como atitude, seja como busca) na mais alta tradição, seja no país de origem, seja entre nós, no Ocidente.

Treinamento do espírito


Embora afastado da prática e do convívio, continuo recebendo livros físicos e digitais de haicai. Já ao haicai japonês retorno com frequência, como quem abre uma janela e deixa entrar o ar fresco num quarto abafado. Não gosto da ideia, repetida muitas vezes até por quem ignora a língua, de que só é possível fazer haicai em japonês. Como se só houvesse um haicai, um tipo de haicai, no Japão. E como se essa afirmativa se referisse a todos os aspectos do haicai. Só é possível, talvez, fazer haicai naquela forma, tal como se fazia em japonês: a forma clássica. Isto é, com os segmentos regulares definidos por número de -moras- e por palavras de corte. Mas isso é essencial? – poderíamos perguntar. É isso que nos inspira no haicai e nos desperta o desejo de recriá-lo em língua ocidental? Está claro que não. Porque – voltamos ao ponto – a maioria dos praticantes ocidentais não consegue escandir corretamente um haicai japonês, nem mesmo identificar nele as palavras de corte, que definem os segmentos; e porque seria sem sentido tentar compor por -moras- numa língua como o português. Não obstante, a esmagadora maioria dos praticantes se apega a uma tradução grosseira da forma. Traduzem a duração das -moras- por sílabas poéticas contadas à nossa maneira e o delicado equilíbrio dos segmentos por três versos. Junte-se a isso algum pendor descritivo e chegamos ao mínimo múltiplo comum do haicai no Brasil. Até aqui, porém, não temos nada exceto uma fôrma (faz falta o abolido acento diferencial). Do meu ponto de vista, nada de interessante, a não ser pela facilidade – o que responde pela grande cópia de livros de haicai que têm sido publicados. Mas é isso que queremos importar, quando falamos em escrever haicai em português? Se for isso, não vale a pena. Melhor desenvolver a quadrinha. Os mais versados na arte favorecem a divisão das frases em dois blocos: um ocupando dois versos e outro ocupando um verso. E aqui já se roça um elemento importante da forma: a composição por justaposição. Os que conhecem a tradição do haicai japonês acrescentam à justaposição a recusa das figuras de linguagem, evitando especialmente a metáfora e a atribuição de vida aos seres inanimados e de qualidades humanas aos elementos da natureza e aos animais. E ainda a fuga à palavra “eu” e à expressão direta dos sentimentos e emoções. Isso já vale a pena importar ou imitar, eu creio, porque é um bom exercício de negação das práticas usuais da poesia entre nós. Fazer poesia que funcione, dentro desses parâmetros, implica uma forma de olhar para as coisas e uma forma de escrever. É uma arte difícil, na qual a banalidade ronda todo o tempo e não raro triunfa.E chegamos ao que creio que interessa: tal como definido na escola de Bashô, um haicai “brota”. Ou ao menos o broto do haicai surge, podendo depois ser podado, ajustado ao desígnio original. Quando o espírito está livre da visão própria – é a lição – ele se funde com as coisas exteriores e esse movimento determina a forma dos versos, do poema. Aqui está o mais impressionante e o mais difícil, aquilo que, na minha opinião, vale a pena tentar incorporar, importar, imitar: o haicai como produto de um estado de espírito, um jeito de ser, uma forma de estar no mundo e de conceber a palavra e o momento da composição. O mais, ainda aquilo que não seja propriamente supérfluo, não me parece essencial.