quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Crônica - anotação

 Na minha última divagação, registrei que a crônica me parece a poesia realmente integrada aos meios de comunicação de massa. Porque a poesia, qualquer que seja ela, não me parece. Ao deparar com um poema num jornal, abre-se como uma janela, ou melhor uma porta ou portal, para outro universo: o da Literatura. Muda a atitude do leitor. Mesmo os folhetins são janelas para fora do universo da notícia, do presente. A crônica, não. Deixa-se ler como parte do presente, seu tempo de escrita e referência é ou dá a impressão de ser o mesmo tempo da leitura. Tem isso em comum com a reportagem e o registro do fait divers de uma coluna esportiva ou policial. Se se abre nela uma janela para o lirismo, é uma espécie de janela sorrateira. Que a gente quer e espera que se abra, desde que a sua abertura não exija grande alteração na postura no leitor, por assim dizer.

Rubem Braga

 Estávamos falando sobre Caetano Veloso. Começou com a homenagem em Salamanca. Lembramos que Alcir e eu fizemos um livrinho com as suas letras, tiradas de ouvido, em 1980 ou 1981. O assunto mudou aos poucos, mas eu continuei nele, derivando: passei a recordar que, antes do Caetano, escrevemos na mesma coleção sobre Rubem Braga. Naquele tempo, foi um deslumbramento. Para mim, foi uma descoberta muito mais importante do que o vislumbre da totalidade (até então) das letras e textos de Caetano. Lemos de enfiada todos os livros do Velho Braga. Aprendemos, nos emocionamos e nos divertimos a valer. Após a leitura individual, relíamos em voz alta as crônicas que mais impressionaram. Até um volume que pelo título parecia desinteressante se revelou delicioso: “Com a FEB na Itália”. Em todos os livros, impressionou-me o lirismo intenso. Pensei e ainda penso, sem ter retornado a elas, que muitas dessas crônicas são maravilhosos poemas em prosa. O notável era o tom, o jeito de quem nunca perdia de vista o leitor, a figura mais ampla e variada de leitor, o da imprensa cotidiana. Seus textos nunca eram poesia pura, nesse sentido. Eram poesia contaminada pela presença do leitor, pela dimensão da coluna e pela atualidade, ou melhor, pela afirmação do interesse no presente. A liberdade da crônica, sua versatilidade e descompromisso de registro fazia com que a leitura de um livro se assemelhasse muito à de um volume de poemas, melhor dizendo, daquele tipo de livro de poemas que chamávamos de álbum, em contraposição ao livro organizado como livro, com começo, desenvolvimento e fim. Essa versatilidade permitia extrair muitos poemas de notícias de jornal, e, na direção contrária, transformar muitos momentos líricos em um tipo de notícia: a crônica, o relato do tempo que passa ou já passou. O mais corriqueiro se elevava a símbolo, o mais alto símbolo podia ser trazido ao nível literal do chão e fazer rir ou enternecer. Ainda hoje me ocorre que a crônica, entendida dessa forma, é a poesia de fato integrada aos meios de comunicação de massa. E também me ocorre algo que ainda preciso pensar melhor: que há um momento na obra do genial cronista que foi Machado em que a enorme liberdade de que ele dispunha nesse gênero invade o domínio do romance, onde ele até então era um comportado senhor, bem diferente do afiado e imprevisível cronista de jornal. Mas isso foi uma divagação dentro de outra. A que importava e me desviava repetidamente a tenção, enquanto a conversa voltava ao rumo da crítica às homenagens e títulos acadêmicos honoríficos, era a que me trazia à lembrança o impacto que teve a leitura sequencial das crônicas que Braga julgou por bem ajuntar e publicar em livro.


Autoplágio



A manhã já vai a meio. Faço uma pausa para um café e divago. E me vem à cabeça o conceito de autoplágio, que só existe porque o produto do pensamento passa a ser tratado cruamente como mercadoria. Creio que o conceito e sua aplicação têm origem dupla: por um lado, a lógica perversa do sistema de revistas científicas internacionais, que vivem de vender assinaturas. O intelectual ali aliena o produto do seu pensamento, mas sem remuneração. Sua instituição ou uma agência de fomento paga a ele para estudar e pesquisar, e sem seguida os resultados de seu trabalho é cedido aos periódicos. Mas a cessão não é gratuita nem remunerada ao pesquisador ou instituição: trata-se de uma inaudita cessão na qual o cedente paga ao cessionário pelo direito que lhe transfere. Para maior estranhamento, uma vez cedido o direito, a instituição, num circuito perverso, paga para ter acesso a ele por intermédio do periódico. Também nessa categoria de negócio ficam as editoras, mas com dignidade na maior parte dos casos, pois o editor de fato investe capital e trabalho na produção do livro e paga os direitos autorais. Dessa forma, ocorre uma relação clara e limpa entre o produtor, o intermediário e o público. Entretanto, há também muitas editoras caça-níqueis, que no Brasil se apresentam como Qualis A ou B, e que só publicam mediante pagamento dos custos de produção. Nesse caso, como os periódicos, se apropriam gratuitamente do produto intelectual, mas ao menos em geral pagam os direitos autorais em exemplares ou, mais raramente, em pecúnia. De outro lado fica a cultura do produtivismo, que se dispensa de verificar o mérito ou o caráter de cada publicação. Como não se lê nada nem se verifica a situação e o lugar de publicação, e como se traduz tudo em números, o posterior uso do produto pelo produtor, isto é, do texto pelo seu autor, fica alienado assim que publicado, sendo a republicação, no todo ou em parte, considerada uma fraude.
Entretanto, ao menos na nossa área, alguns trabalhos fundamentais, que atravessam os anos, poderiam ser banidos da produção do professor ou pesquisador sob alegação de autoplágio. Refiro-me aos livros que reúnem artigos publicados em periódicos ou na imprensa de massa. Mas não é só o caso de clássicos como os livros de Antonio Candido, que são reuniões de artigos e conferências. Ocorre também na escala miúda. Eu mesmo sou um autoplagiador. Por exemplo, no livro que resultou da minha livre-docência, o primeiro capítulo tinha sido publicado um ano antes num livro de homenagem a Óscar Lopes. E em uma conferência sobre Pessanha utilizei esse mesmo capítulo para exposição oral. Creio que utilizei ao menos uma parte dele em algum lugar. Um trabalho sobre I-Juca Pirama saiu num livro da Edusp e depois foi incluído numa coletânea de trabalhos, junto com artigos de jornal e outros textos já publicados. Na verdade, quase nada há inédito em “Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa”. Ou seja, esse é um livro que deveria pontuar 0, se algum metrificador o lesse e visse nele a referência da publicação anterior de cada parte. Além disso, um programa que algumas editoras usam para verificar se alguma parte de um livro já foi publicada certamente encontraria nos capítulos de livros e artigos de periódicos rastros e trechos mais ou menos longos de publicações que fiz no meu blog. Tanto é que uma editora recente, para publicar um livro, condicionou a publicação à retirada do ar de textos em que o programa encontrou partes idênticas ou quase idênticas. O que, sendo uma relação comercial clara, não me pareceu absurdo. E cumpri.
Voltando ao ponto: a origem dessa polícia é fácil de entender. É a pressão para os professores e pesquisadores produzirem muito. Uma pressão irracional, que produz forte distorção em algumas áreas, como a dos estudos literários, que demandam tempo de amadurecimento e redação (porque o estilo é parte importante e porque dificilmente tem interesse a publicação apressada e precoce de resultados parciais de uma reflexão em curso). Mas não só. Nas áreas “duras”, essa pressão resulta em oportunismo: dados falsificados, conceitos errados e resultados fantasiosos. Se a origem é essa, a função dessa polícia é ratificar a alienação promovida pelos periódicos internacionais e pelo sistema de avaliação matemática da produção da pesquisa.
Uma consequência grave da visada produtivista é o desprestígio da docência. Um bom professor que não publica muito passa a ser condenado. Mas não um péssimo docente que publica um artigo após o outro. É que a docência não se mede numericamente. Na situação atual, dar 10 aulas ruins pode parecer melhor do que dar 4 aulas fundamentadas. Além disso, a docência é cheia de autoplágio: de outras aulas e de artigos e ensaios que o professor publicou. A docência, assim, não é mensurável, a não ser quantitativamente ou, pior, por questionários aos alunos. Daí que as pessoas sejam contratadas nas universidades como “professores”, mas que a sua valorização para auxílios, bolsas e promoção na carreira seja basicamente pela divulgação de sua produção de pesquisa. E na avaliação do pesquisador não se incluem os ganhos intelectuais obtidos na preparação e no desenvolvimento dos cursos. 
Um amigo a quem envio estes textos esparsos me diz sempre que é perda de tempo. Estamos depois do fim. O fim já aconteceu. É, portanto, irreversível. Escrever sobre isso é como desenhar na água ou num pote de geleia. Talvez ele esteja certo. Mas Anchieta não o fazia na areia? Então, com predecessor tão ilustre, não me sinto mal rabiscando no nosso pote de geleia, enquanto a brisa forte da manhã vai amenizando o calor neste final de um estranho inverno.

Periódicos - a máfia

Acabo de responder a um questionário de pesquisa do CNPq sobre publicações. As perguntas eram de dois tipos: por que eu escolheria um determinado periódico para publicar? – e: o que acho da cobrança para publicação? Da minha confortável posição de aposentado, posso dizer com ainda mais ênfase o que sempre disse quando militava na Unicamp. À primeira pergunta respondi que escolho por dois critérios: sem cobrança de taxa alguma tanto para o autor quanto para o leitor (um terceiro critério, que não vem ao caso por ser cada vez mais raro é: receber pela publicação); a relevância que uma dada revista tem na minha área, independente dessa bobagem matemática chamada índice de impacto. O segundo critério tem a ver com a área, mas não só. Em Literatura, a gente sabe quais são as boas revistas, e sabe também da farsa frequente que são os conselhos editoriais, inchados de pessoas ilustres, e o registro fictício das datas de recebimento e aprovação. Creio que isso seja apenas uma cedência à imposição de outras áreas, nas quais não posso dizer que tais dados tenham relevância (a não ser para registro de precedência), embora desconfie que não é tanto quanto a propaganda dos editores acabou por nos fazer crer. A primeira pergunta tem a ver diretamente com a máfia das revistas: cobram uma alta taxa das universidades ou dos órgãos financiadores para publicar artigos e depois vendem para essas mesmas universidades as assinaturas de suas revistas a peso de ouro. E é bem-feito: as universidades se tornaram presa fácil, na medida em que delegaram às revistas o filtro para contratar docentes e avaliar a produção dos já contratados. A CAPES, assistindo ao que se passa e por imposição das ciências duras, estabeleceu a escala do Qualis. Mas sinceramente nunca fui verificar o Qualis de uma revista para publicar nela. Se meu artigo for bom, será encontrado por quem se interesse pelo assunto, se não for ficará merecidamente no limbo, seja em que tipo de revista estiver. Além disso eu tenho um blog. E se comparar o acesso a artigos em revistas especializadas e no blog, tendo a pensar que deveria publicar mais ali do que em qualquer periódico. Essas coisas estão todas ligadas e é fácil compreender. Por exemplo, um dirigente de órgão de financiamento à pesquisa, fortemente convicto da importância da matemática na mensuração da qualidade, passa a integrar a diretoria da que é talvez a maior editora dos periódicos que toda universidade se vê obrigada a assinar, por conta da roda-viva produtivista. Dizer não a esse esquema é difícil para os jovens professores. Principalmente porque já vêm desde o início da carreira colonizados pelos ditames da produção desenfreada e do papel dos periódicos na avaliação da qualidade. Para os mais velhos, creio que é mais fácil, embora nem todos estejam dispostos a comprar a briga. Para encerrar, li que uma colega recentemente disse que as editoras e os financiadores são elementos importantes do ecossistema de pesquisa. No tal sistema, universidades e agências financiadoras pagariam o processo todo da pesquisa, e as editoras entrariam no final. É verdade. O que faltou dizer é que nesse tal ecossistema o segundo elemento é um predador voraz do primeiro.