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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Um haiga de Bashô

 Ainda revisitando o mundo do haicai me deparo com o desenho que Bashô fez para ilustrar um seu haicai famoso. Aquele que diz: um corvo pousado num ramo seco – entardecer de outono. Ou: um corvo acabou de pousar num galho seco - entardecer de outono. E me lembro: quando li esse haicai pela primeira vez eu não conhecia esse desenho, nem tinha visto como nele vem o haicai grafado quase todo em silabário. Minha imaginação, ao ler, pintou a cena: uma árvore sobre uma paisagem desolada, na qual a ave aparecia em posição de destaque. Talvez na origem dessa fantasia estivesse o corvo do Poe, com sua figura funesta dominando o busto de mármore, e eu apenas o tivesse transposto para um lugar ermo, mas em primeiro plano. Fosse como fosse, a verdade é compus mentalmente uma cena carregada. Algum tempo depois, quando preparava o livro sobre a história do haicai, deparei com o desenho que Bashô fez para acompanhar o haicai e fiquei um pouco perplexo. Então era isso? Aquele passarinho pousado num arbusto que mais parecia um bonsai? E o haicai vinha lá em cima, em duas linhas bem compridas, por conta da forma de escrita escolhida? Não havia dramatismo ali. Pelo menos, não do tipo que eu imaginava na minha cena quase fantasmagórica. Acredito que essa experiência, a princípio um pouco deceptiva, trouxe uma lição e orientou, dali por diante, a minha maneira de imaginar e interpretar as cenas pintadas apenas com palavras nos haicais.

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Maria Lúcia Outeiro Fernandes, Sandra Mara Franchetti e outras 29 pessoas
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terça-feira, 19 de outubro de 2021

Um livro involuntário - #1


Quando me iniciava na prática do haicai, enviei a Masuda Goga, pedindo sua avaliação, um conjunto de tercetos. Algum tempo depois, surpreso, recebi em casa alguns exemplares de um livrinho em que eles se juntavam. Era um objeto bem bonito, pequeno, quase uma caderneta, medindo 19x10 cm, com 76 páginas. A capa era linda: trazia Sabará, numa pintura de Alberto da Veiga Guignard que, a um olhar mais rápido, até poderia passar por japonesa, ou chinesa. Intitulava-se simplesmente haicais'.
Massao Ohno ou alguém a quem ele atribuiu a tarefa escolheu para texto de orelha um artigo publicado num dos dois jornais de Campinas da época, o Diário do Povo. Intitulado “Haicai: de gênero poético a filosofia”, vem datado de 8 de agosto de 1992 e não traz assinatura.. Eu não sabia e não sei ainda quem o escreveu, nem como chegou ele ao editor que, provavelmente, achou que o autor teria sido eu mesmo.
Na verdade, como já deve ter ficado claro, eu não fazia sequer ideia de como tinha nascido aquele livro e só fui descobrir quando deparei com uma página prefacial em japonês, sem tradução, assinada por Masuda Goga, que mencionava o trabalho que fiz com Elza Doi, Haikai – antologia e história, de 1990, bem como o haicai com que eu tinha ganho um concurso, naquele mesmo ano, acrescentando gentilmente que, embora o haicai (aquele em que os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo) pudesse fazer pensar que eu era velho, isso não era verdade.
Uma curiosidade a mais: em certo ponto do livro intrometia-se um tanka algo desequilibrado e brincalhão, que eu enviara como piada, junto com os haicais, ao Goga. Diz assim:
o peixe nadava
em círculos no barril.
Issa lhe compôs
um haikai bem dolorido
e o comeu depois, cozido.
Não faço ideia de por que Goga resolveu incluí-lo no livro. Nem por que motivo ele veio onde deveria vir o título do conjunto de haicais que se seguem, que integravam um dos dois diários de viagem de que, junto com os avulsos, se compunha o conjunto do material que lhe enviara... Mas confesso que não desgostei.
Vários anos depois, Masuda me enviou outra surpresa: esses mesmos haicais traduzidos por ele para o japonês, na forma tradicional, acrescidos de alguns outros, que lhe tinha enviado depois – mas agora sem o tanka brincalhão. Foram esses que utilizei na publicação de Oeste/Nishi (2008) pela Editora Ateliê, do que resultou que nesse segundo livro se encontrassem repetidos todos os do primeiro.
O que é compreensível, e talvez desculpável, frente ao fato de que haicais, publicado pela Massao Ohno com a Aliança Cultural Brasil-Japão em 1994, foi um livro de cuja preparação não participei, nem tive notícia. Uma surpresa. Um presente inesperado.
Não terminavam aí, porém, as novidades. Ao abrir o livro, vi que Goga escolhera um haicai de Bashô para figurar como epígrafe. A tradução deve ser dele. Diz assim:
Nestes arredores,
a vista sempre descobre
ambientes frescos.
Gostei muito dessa escolha. Fui imediatamente procurar o original e encontrei isto: kono atari me ni miyuru mono wa mina suzushi.
Recebi-o como um gesto de gentileza, um cumprimento generoso, um aceno do velho mestre.
Na verdade, era sobre essa epígrafe que eu gostaria de falar, antes que a memória me levasse para longe dela. Então falarei depois.

sábado, 25 de setembro de 2021

Um caminho de haicai


Faz tempo que não me dedico ao haicai. Mas acompanho de modo pouco sistemático o que se produz sob essa designação. 

Um dia desses, ocorreu-me a ideia de que talvez valesse a pena criar um grupo para aqueles que estão dispostos a percorrer um específico caminho de haicai. Um caminho entre outros, sem pretensão de ser o melhor, nem temor de ser o pior. 

Mas por que isso valeria a pena? Que tipo de prática seria essa e qual a sua necessidade ou função nos dias de hoje?

Bom, eu pensei numa atividade que se diferenciasse, por um lado, do haicai tradicional, tal como praticado no Brasil e em boa parte do mundo; e, por outro, também daquilo que se poderia chamar de haicai sem lei nem caminho, no sentido de uma prática indiscriminada, na qual cada um faz o que quer, usando a palavra haicai para designar qualquer arranjo de palavras que o seu autor ache ou queira que achem que é haicai.

Enquanto tentava esclarecer para mim mesmo essa proposta, comecei a pensar nas diferenças entre ela e o que se reconhece como haicai tradicional no Brasil, uma vez que não reconheço nenhuma relevância no outro tipo, isto é, no tipo de haicai banalizado como terceto espirituoso ou sentimental.


De imediato, creio que haveria duas diferenças principais entre o haicai que me interessa e o tradicional. Uma que diz respeito à forma do verso, outra que diz respeito a um elemento do seu “conteúdo”.



1. Quanto à forma


Por mera convenção, considera-se no Brasil que o haicai exige a métrica 5-7-5 sílabas, contadas à maneira moderna.

Talvez nem todos saibam que até 1851 a contagem das sílabas do verso português era como a do verso espanhol e do verso italiano.

Um verso como “uma rã mergulha” era denominado hexassílabo, porque se contavam todas as sílabas do verso. Como aliás é até hoje em espanhol. A partir de certo momento, por conta do Tratado, de Antonio Feliciano de Castilho, a maneira nova de contar os versos, mais próxima da francesa, torna-se dominante entre nós: contam-se as sílabas só até a última tônica.

Ora, em japonês, se não estou em erro, nem sequer se pode falar em sílabas para definir o verso. O que se conta são os tempos (moras). Assim, uma sílaba simples seguida de nasalização vale dois tempos: por exemplo, a palavra “livro”, que se diz “hon”, vale por duas moras em japonês. E a palavra Bashô, como tem a última sílaba longa, vale por 3 tempos e não dois como quando a utilizamos em português.

Então, do meu ponto de vista, não faz sentido o preciosismo de querer fazer haicai em versos contados à maneira moderna em português. Eles têm quase sempre uma sílaba a mais por linha, em relação a um haicai japonês, pois só podemos falar em esquema 5-7-5 se ignoramos as átonas após as tônicas. E a estrofe, dentro da nossa tradição, não parece sustentar-se (por isso mesmo Guilherme de Almeida tratou de lhe dar mais consistência, por meio da inclusão do esquema de rimas).

Então, pergunto, qual o sentido de nos esforçarmos para manter uma métrica que nada tem a ver com o original que nos inspira? Uma métrica que, na nossa própria tradição, não nos diz nada, pois sequer construímos uma estrofe regular?

Há outras coisas muito mais importantes no trabalho de aclimatação do haicai do que esse preciosismo algo desfocado.

Portanto: o número de 17 sílabas me parece apenas um parâmetro, uma baliza, jamais um ideal ou uma obrigação.

Já a estrutura, em si mesma, creio que deva ser a do haicai tradicional, porque é da justaposição que resulta o efeito particular desse tipo de arte da palavra.

Assim, compostos em 3 versos, estes são os parâmetros que vale apena observar: o verso intermediário mais longo e ligado sintaticamente a um dos versos externos menores, para permitir o balanço característico da forma, e – claro – a justaposição.



2. O “conteúdo”


Aqui quero falar do “kigo”, a palavra de estação. No Japão, país de clima temperado e pequena extensão longitudinal, as estações são bem definidas. O haicai é, pela origem, como todos sabem, o terceto que traz uma indicação sobre a estação em que foi composto. Essa indicação, por força da tradição, se cristalizou em palavras e expressões convencionais. Neblina implica primavera, frio indica inverno, lua sem qualificação é kigo de outono, e muitas atividades humanas típicas de determinada estação indicam o momento do ano em que ocorrem. 

O “kigo” é, assim, uma forma muito econômica e eficaz de despertar associações com um determinado momento e com a disposição de espírito que a ela se liga de alguma forma. É como um acorde, que define um tom e um clima, e abre um leque de possibilidades de harmonização.

No Brasil, país de enorme extensão em longitude e latitude, há poucos kigos unânimes. A maior parte deles associados ao calendário profano ou religioso (Carnaval, Natal, Dia de Finados, Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia do Trabalho...) ou à sazonalidade das frutas regionais. 

Não creio, por isso, que faça sentido nos apegarmos aos kigos e compormos os haicais a partir deles. Podemos, claro, criar com o tempo um repertório de kigos, mas não de modo abstrato. Não como ponto de partida para a composição do haicai.

Com isso quero dizer que temos de nos centrar numa experiência, numa sensação ou num estado de ânimo originado de uma percepção objetiva (de preferência sensória). Com o tempo, pela repetição da associação da experiência sensória com uma época do ano ou uma disposição do espírito, poderemos ter algo parecido com o kigo, no sentido japonês. Nem isso, porém, deve ser o objetivo principal da prática, do meu ponto de vista.


Parece-me, em suma, um engano compor o haicai a partir do kigo tradicional. Isto é, o haicaísta sair em busca do haicai que caiba no kigo. É ruim para a prática, para a aprendizagem e para a fruição, isto é, para a descoberta que o leitor faz do que vem naqueles poucos versos.

O contrário é mais produtivo: compor o haicai por impulso, a partir de uma sensação ou percepção. E depois ver se o que disparou o haicai encontrou uma palavra própria ou não. E não se apegar ao haicai assim produzido, pois ele é um registro, uma consequência e não um objetivo. Como experiência e exercício espiritual, apegar-se a ele, querer produzir um haicai brilhante ou então tentar salvar a todo custo um haicai mal formulado, isto é, tentar construir com palavras o que a intuição não cristalizou de imediato, é perder o caminho no momento mesmo em que se tenta trilhá-lo.


Portanto, resumindo: o mais importante para o tipo de haicai que julgo interessante é ele se apresentar como registro objetivo de uma sensação. É em volta dessa sensação ou percepção objetiva que se deve articular o haicai, é para isso que deve apontar, independente de qualquer outra ressonância que ele tenha. 

Sem sensação, sem haicai: eis o lema que acho mais profícuo. Haicai só feito de palavras e de abstrações não me parece digno de respeito (para parafrasear as palavras do mestre). O haicai que acho valer a pena é aquele centrado na verdade e na percepção objetiva.


Haveria muito a dizer ainda. Sobre a forma, sobre as tentações que lançam sombra no caminho. E também valeria a pena repisar um ponto: um tal haicai não deve pretender ser “literatura”, produto, mas vivência, prática, aprendizado, atitude. Um jeito de estar no mundo e na linguagem. A “visão própria”, a vaidade, o desejo de compor algo bonito ou brilhante, o desejo de explicar, de compor adivinhas e outras coisas fáceis, como jogos de linguagem, são os perigos e os entraves da prática. Mas isso seria discutido com vagar, na prática de cada dia, se eu fosse levar adiante este projeto.



quarta-feira, 16 de junho de 2021

Cesto de caquis

Acabo de ler o volume “Cesto de Caquis – notas sobre haicai”, de Edson Iura. O livro foi publicado há pouco pela Telecazu Edições, de Jundiaí.
Para todos os interessados no gênero, será por certo leitura recompensadora.
Edson Iura é um nome conhecido e respeitado no âmbito do haicai brasileiro. Desde antes da internet como a conhecemos hoje, mantém um fórum eletrônico de discussão, denominado Haikai-l. E desde o começo do predomínio da internet, um notável site dedicado ao estudo, à prática e à difusão do haicai no Brasil. Intitulado Kakinet, traz resenhas, textos fundamentais, poemas de colaboradores e notícias. Por fim, entre várias outras atividades relacionadas ao haicai, responde pela seleção dos poemas enviados para publicação no Jornal Nippak e na Revista Brasil Nikkei Bungaku.
Como sucede em geral nesse campo, o estudioso é praticante. Bom poeta, embora de pequena produção publicada em livro, Edson Iura durante vários anos integrou o Grêmio Haicai Ipê, venerável agrupamento que se reuniu à volta da figura do poeta japonês Masuda Goga, e que promoveu e ainda promove encontros regionais e nacionais de haicai.
O livro que acaba de ser publicado é um testemunho da dedicação de uma vida, pois reúne trabalhos dispersos ao longo das décadas. Não são muitos, entretanto. São seis textos relativamente breves, que vou apresentar sumariamente a seguir. 
        Os dois primeiros são justo e merecido resgate de duas postagens no fórum Haikai-l, datados de 2007 e 2009. Lendo-os tem-se um relance do que foi a atividade didática e erudita do autor naquele fórum. No primeiro deles, por exemplo, discute a atribuição de autoria de um haicai a Bashô. O aspecto mais interessante, entretanto, não é a questão da autoria, que ele revela não ser de Bashô, mas sim a maneira notável como, recorrendo ao texto japonês e às origens religiosas de uma expressão – que rastreia até o Sutra do Diamante –, nos dá a ver o haicai sob uma nova luz e nos põe, com delicadeza, face aos abismos de sentido que se apresentam como desafios ao tradutor. 
        Os três textos seguintes são conferências proferidas nos Encontros Brasileiros de Haicai de 2009, 2010 e 2011. Intitulam-se, respectivamente, “Mundanismo e transcendência”, “Nem tradição nem modernidade” e “Poesia das estações”. Neles encontramos, além da discussão segura de tópicos variados da história do haicai no Japão, a questão principal que percorre os vários capítulos deste livro: o que é ou o que tem sido ou o que pretende ser o haicai brasileiro. Num desses textos, os leitores encontrarão uma útil distinção entre o que o autor denomina “Haicai Tradicional Brasileiro” e “Haicai Sazonal Brasileiro”. Longe de ser uma questão menor, creio que se trata de uma discussão relevante para quem queira compreender a dinâmica da evolução do gênero no Brasil.
        Por fim, arremata o volume o trabalho mais extenso e sistemático, que resume, retoma e desenvolve as principais questões afloradas nos anteriores: “De haikai a haicai: uma jornada etimológica”. O título talvez não seja o mais feliz. É verdade que a questão inicial é etimológica: o autor vai rastrear a origem das três formas correntes em português, deste e do outro lado do Atlântico (haikai, haicai e haiku). E também é verdade que o fio etimológico não é abandonado até o fim. Mas talvez o melhor subtítulo fosse “uma jornada filológica”, pois o capítulo vai muito além da etimologia. Ao rastrear o uso dessas palavras ao longo do tempo, no Brasil e no exterior, o que resulta é uma muito concisa, mas nem por isso menos útil e bem feita, história da apropriação não só do nome, mas da forma e da prática desse tipo de poesia japonesa no Ocidente e, em particular, no Brasil.
        “Cesto de caquis”, assim, mimetiza o seu objeto: é breve, sua leitura é leve e seu sentido objetivo patenteia despojamento e modéstia (o subtítulo é apenas “notas...”); mas nele pulsa, embora com intensidade discreta, a história inteira do nascimento, crescimento e frutificação do haicai no Brasil, agora amorosamente recolhida em volume.


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Haicai - algumas reflexões


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Quando comecei a interessar-me pelo haicai, no final dos anos de 1980 e começo dos 90, meus primeiros guias foram os livros de R. H. Blyth. A princípio, os dois volumes de A history of haiku. Depois, os quatro de Haiku. Na sequência, o restante da sua obra que pude obter. Junto com Blyth, na esteira do orientalismo da contracultura, vieram Alan Watts  (com The way of Zen; Beat Zen, Square Zen, and Zen e, claro, This is it) e  D. T. Suzuki, cujo volume sobre o Zen e as artes tradicionais li com a mesma voracidade. E foi só depois dessa inflexão marcada pelo grande interesse pelo budismo zen no Ocidente que pude ter acesso aos livros-base da escola de Bashô: os textos de seus discípulos, dos quais era possível deduzir muita coisa que não estava nos anteriores. E foi numa tradução de René Sieffert (Le Haïkaï selon Bashô : propos recueillis par ses disciples) que os encontrei, enquanto me dedicava a aprender o pouco japonês que consegui aprender. E foram eles e outros tratados antigos japoneses que ampliaram um pouco mais o meu ponto de vista sobre o haicai, embora eu me mantivesse ainda dentro das balizas iniciais.
           Desse período resultou, em parceria com minha colega do IEL e professora de língua japonesa, Elza T. Doi, uma coleção de cento e poucos haicais traduzidos, que vinha precedida do que eu tinha podido aprender ao longo daqueles anos.
           Foi depois de publicado esse livro (Haikai: antologia e história) que conheci um grupo de praticantes de haicai em português. Na verdade, foi durante o lançamento do livro que encontrei alguns integrantes do Grêmio Haicai Ipê, que depois frequentaria esporadicamente.
           O Grêmio tinha, naquele momento, uma figura central: Masuda Goga, um imigrante japonês, que praticara o haicai em japonês, fora discípulo de Nempuku Sato, e há algum tempo se esforçava na promoção do haicai tradicional japonês em língua portuguesa. Junto com sua sobrinha Teruko Oda, desenvolveu sempre um magistério ativo e ambos se esforçaram para organizar (já que se tratava do haicai tradicional – cujas características e peculiaridades logo veremos) uma kigologia brasileira. Isto é, um catálogo de palavras indicativas da sucessão das estações do ano. Tarefa dificílima num país com a dimensão longitudinal que tem o nosso.
            Sempre simpatizei muito com o trabalho do Grêmio, com a sua seriedade e com o esforço de enraizar aqui uma tradição e uma prática que eram estranhas à nossa poesia. E embora aqui e ali, numa notação crítica talvez pouco piedosa, apontasse o que me parecia artificial na busca e no esforço de fixação do kigo – bem como na exigência de que todo haicai tivesse um kigo (e apenas um) claramente identificado – assim como na fixação na forma do terceto 5-7-5, que não me parecia razoável como novidade ou esforço – o certo é que acompanhei com o maior interesse o trabalho e os frutos e celebrei os bons resultados, principalmente os que vieram do ensino do haicai às crianças em fase escolar.
             Entretanto, na minha própria prática, apesar da simpatia pelo “tradicional” – tal como descrito no Grêmio e mesmo nos livros de Blyth – nunca me mantive nos limites. Na verdade, meu interesse no haicai pode estar na resposta a uma pergunta que me fiz várias vezes, inclusive no prefácio à coletânea Oeste, na qual reúno o pequeno número de haicais que não tive talvez o bom senso de desprezar: “o que se busca incorporar à nossa tradição, por meio do haicai?”
Porque pouco me interessava uma nova forma fixa. Fazer tercetos com duas redondilhas menores envolvendo uma redondilha maior não tem dificuldade, nem interesse especial. E fixar palavras de estação muitas vezes me pareceu artificialismo pouco razoável e nada estimulante. Já a forma de composição por justaposição, de modo que uma frase ocupe dois versos ou segmentos e uma frase outro verso ou segmento, pareceu sempre interessante e produtiva. Assim também a prescrição de renúncia ao brilho verbal, à metaforização fácil, à personificação. E, talvez mais que tudo, o caráter lacunar, inacabado, do conjunto. Isso me parecia merecer atenção, junto com um outro aspecto, que a mim pareceu sempre o mais importante e desafiador: fazer um impressivo registro “de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação”. E isso, para continuar usando as palavras do prefácio a Oeste, por meio de uma composição que é “uma recusa a dizer longamente, ou a dizer com muitas palavras”, uma composição que busca “com o mínimo, obter o suficiente”. Uma poética da modéstia e do fragmento, portanto.
              Por isso mesmo, a maior parte dos tercetos daquele livro não mantêm a métrica usual no haicai brasileiro e muitos deles não têm, a rigor, kigo, palavra de estação. E creio que nem por isso deixam de ser haicais. Embora, devo confessar, esse “desvio “do tradicional me incomodasse ainda na época, pois eu ainda conhecia pouco e – pior – do que conhecia tinha extraído apenas aquilo que me parecia mais familiar, mais simplificado.
               Juntei ali, em Oeste, sem o texto em prosa com que os compus, diários de viagem à terra natal, a lugares da infância, e também poemas soltos, escritos em casa ou na rua ou em passeios breves. E mesmo em concursos de haicai. E com eles fiz esse conjunto de tercetos que, nos moldes do que entendemos como haicai tradicional, talvez nem pudessem – a rigor – ser denominados haicais. Mas assim os senti e – curiosamente – assim também os sentiu, de certa forma, Masuda Goga. Ou melhor: tenha tentado senti-los, porque talvez o que tenha feito seja, na sua tradução, “haicaizar” um pouco mais os meus tercetos. Pelo menos foi essa a impressão de uma pessoa que os leu em japonês e me disse que, naquela língua, pareciam de fato muito mais “haicaísticos”. Do que não duvido.
Todas essas lembranças me vieram à mente por conta de dois acontecimentos desconectados entre si, mas cuja conjugação permitiu, como num bom haicai, uma visão mais ampla, a situação de um pequeno evento num campo amplo e profundo, sobre o qual o miúdo não parece tão insignificante.
Esses eventos foram: 1) o fato de eu estar retomando, para publicação, um conjunto de 50 tercetos que em tempos separei para publicar no Cronópios. Era para sair numa latinha virtual, como de sardinhas. E por isso o denominei provisoriamente TOX. Ou seja, algo tóxico talvez, mas ao mesmo tempo, um conjunto de “toques”, traços rápidos, como num desenho breve; 2) o recebimento, por e-mail, de um texto que, mostrando-me histórias inesperadas e curiosas, despertou velhas suspeitas, antigas intuições e terminou por me apresentar novamente, em toda a sua força, questões meio adormecidas. Esse texto, que me foi enviado por Carlos Roberto Bueno, trata de um episódio curioso: a perseguição aos poetas do moderno haiku pelo governo imperial. (O original está aqui: http://haikureality.theartofhaiku.com/esejeng145.htm).
                 Aparentemente, pouco poderia haver ali mais do que curiosidade e espanto com a ideia de prisão de poetas por excesso de modernismo. Entretanto, um ponto logo me chamou a atenção: o papel de Kyoshi Takahama, discípulo de Shiki, no combate pela ortodoxia haicaística, que era também ortodoxia política, patriotismo exacerbado. Ora, Takahama fora mestre de Nempuku Sato, que por sua vez fora mestre de Masuda Goga – que aqui no Brasil continuou a missão de Nempuku: semear um país de haicai. Agora em português.
                  Ao longo da entrevista, aqui e ali apareciam fantasmas meio indistintos ou com forma plena, com que me defrontei ao longo dos anos. E surgiam nomes e referências, que fui perseguindo como pude, por meio da internet e de livros digitais. Por fim, o quadro foi se fixando e fui percebendo algo que tinha intuído há tempos, mas de modo apenas parcial e fora das determinações históricas concretas.
                  O que percebi – além da sempre espantosa dimensão da minha ignorância – foi como a nossa visão do haicai tradicional japonês terminou por ser o reflexo de um movimento moderno no Japão. Mas moderno num sentido não modernista, se assim posso me expressar. É que eu já sabia, como todo estudioso do assunto, que Bashô e os antigos não escreveram “haiku”. Ou seja: nunca escreveram as dezessete sílabas concebendo-as como um conjunto autossuficiente, ou isolado de qualquer contexto verbal. Pelo contrário: produziram “hokku”, isto é, primeira estrofe de renga, e também tercetos em forma de hokku, inseridos em diários de viagem, pinturas e mesmo em folhas soltas, caligrafadas. Mas não com o sentido que tem “haiku”, palavra que eles não conheciam e foi formada por aglutinação de haikai+hokku, dando origem a uma forma literária (talvez mesmo um gênero) sistematizado por Masaoka Shiki. Uma forma literária mais ou menos no mesmo sentido que um soneto é uma forma literária. E ainda tendo como característica a obrigatoriedade de um kigo, uma palavra unívoca de estação.
                   Esse ponto já tinha sido um problema a resolver: como afirmar que o haicai é um terceto diretamente vinculado a uma experiência, se ele existia como gênero (haikai-renga) principalmente como parte de um poema coletivo. E o poema coletivo, evidentemente, ao tratar de percorrer as estações todas do ano, tinha de falar de outros momentos, outros espaços, outras experiências, que não as que delimitavam a sessão de haikai-renga.
                  A questão não é banal, porque dela decorre um conceito de poesia e uma postulação de prática de grande importância: a de que o haicai deve ser composto on site, isto é, deve ser composto a partir de uma experiência imediata, vivida quase em simultâneo à composição.
                   Essa postulação sempre me incomodou por uma questão pessoal. É que talvez o único bom haicai que eu tenha composto seja o primeiro, que produzi num concurso de haicai ao qual fui para apresentar o livro que fiz com a Elza. O tema era “grilo” e, ao me dispor a escrever, busquei na memória uma experiência real. E me ocorreu a mais significativa: eu tinha passado há anos uma madrugada inteira na casa de um amigo, preparando uma aula para um concurso. Um grilo cantava insistentemente do meu lado esquerdo. Levantei-me para o retirar da sala ou matar, mas quando me virei, ele continuou a cantar do mesmo lado. E era sempre assim, onde quer que eu estivesse na sala, o grilo estava sempre à esquerda. E então percebi que tinha perdido um pouco da audição do outro ouvido. Quando me lembrei disso, o haicai se formou sozinho: os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo, eu estava ficando velho. Ganhei o concurso com ele, e gosto ainda hoje do que escrevi. Porém, não foi composto on site. Aliás, naquele burburinho, dificilmente alguém encontraria algum grilo no grande auditório lotado do Centro Cultural São Paulo. De modo que todo mundo ali, inclusive os membros do Grêmio (que eu ainda não conhecia), fizeram haicais “falsos”, no sentido de não procederem a experiência imediata. E ainda hoje fazem, em qualquer concurso com tema revelado na hora...
                    À medida que ia lendo a entrevista de Itō Yūki, essas questões foram emergindo com força, o que me obrigou a fazer a busca de mais informações, a que já me referi.
                   Neste momento, estou traduzindo, do inglês, um texto de enorme interesse – no que me diz respeito e às questões que me importam mais –, de autoria de Haruo Shirane, professor da universidade de Columbia. Espero logo mais poder disponibilizá-lo no blog, porque creio que pode dar ensejo a algum debate, a um rumo novo a pesquisas que, como a minha, se fixaram muito nas definições de campo feitas por estudiosos como Blyth e Henderson, entre outros. Trata-se de um texto já um bocado antigo, e só o meu longo afastamento deste campo de estudo pode explicar que até agora não o tenha lido. Mas ainda bem que as circunstâncias se conjuraram para que eu pudesse encontra-lo, principalmente porque me ajuda a ter mais clareza sobre uma prática que tem, na minha vida, uma grande importância.
O link para o original é este: http://www.haikupoet.com/definitions/beyond_the_haiku_moment.html - e espero que os interessados possam acha-lo útil para o debate.
De imediato, o que me chama a atenção é a maneira como ele demonstra que aquilo que Shiki e Takahama propõem como o mais específico do haicai é, na verdade, um eco da enorme influência ocidental sobre a literatura japonesa. São “modernos”, nesse sentido, porque são mais ocidentalizados, num sentido determinado: promovem uma visão do haiku japonês de grande radicalidade, que ressalta, na verdade, características marcantes da poesia modernista ocidental – principalmente de língua inglesa. A imagem do Japão que nos enviam, apesar do seu patriotismo exacerbado e da crença na restauração da japonidade, é a que melhor nos cai, a que melhor combina com os nossos interesses de época.
Do nosso ponto de vista, isto é, de ocidentais, o haiku restaurado de Shiki e Takahama, relido e atualizado por meio da aproximação com o zen californiano, foi uma boa e feliz projeção de algo que alguma poesia ocidental buscava valorizar.
Creio que esse ponto foi decisivo na minha leitura. Foi um ponto de resolução de várias ponderações que me apresentei ao longo de vários anos.
Por isso, antes de desenvolver as consequências em um ensaio de mais fôlego, chego ao fim deste relato, que se destinava a criar o contexto para que eu pudesse, com proveito, transcrever este trecho do artigo de Itō Yūki:
              “Uma das principais razões para a ênfase no Japão moderno em observações pessoais diretas foi Masaoka Shiki (1867-1902), o pioneiro do haiku moderno do fim do século XIX, que enfatizou o esboço (shasei) baseado na observação direta do sujeito como chave para a composição do haiku moderno. Isso levou ao ginko, às viagens para compor haiku. Shiki denunciou a poesia encadeada como um jogo intelectual e entendeu o haiku como uma expressão do indivíduo. A este respeito, Shiki foi profundamente influenciado pelas noções ocidentais de literatura e poesia; primeiro, ao propor que a literatura deva ser realista e, segundo, que a literatura deva ser uma expressão do indivíduo. Em contraste, haikai, como Bashô o conheceu, tinha sido literatura amplamente imaginativa, e tinha sido uma atividade comunal, o produto de composição ou intercâmbio grupal. Shiki condenou o haikai tradicional por essas duas características. Mesmo que Shiki não tivesse existido, o resultado teria sido semelhante, já que a influência ocidental no Japão a partir do final do século XIX foi enorme. Os primeiros pioneiros americanos e britânicos de haiku de língua inglesa – como Basil Chamberlain, Harold Henderson, R.H. Blyth – tinham interesse limitado no haiku japonês moderno, mas compartilhavam os pressupostos de Shiki. A influência de Ezra Pound e do movimento de poesia modernista (anglo-americano) também foi significativa na formação de noções modernas de haiku. Em suma, o que muitos poetas norte-americanos de haiku pensaram ser exclusivamente japonês tinha, de fato, suas raízes no pensamento literário ocidental.”
É claro que agora, com tempo, tenderei a voltar a estudar, sob uma luz mais ampla, as questões que sempre me interessaram no haicai e na sua apropriação pelo Ocidente moderno. Mas pode ser que não. Que me contente com continuar a fazer os meus haicais de quando em quando. O que me valeu até agora a leitura foi algo simples, mas importante: a boa sensação de que, apesar da teoria e padrões a que me limitei, a prática poética sempre me apontou o caminho mais livre – que, quanto a mim, é o mais correto, desde que a direção seja mantida.