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sábado, 1 de setembro de 2012
terça-feira, 10 de julho de 2012
Haicai - entrevista a Álvaro Kassab
Haicai – entrevista a Álvaro Kassab
[Jornal da Unicamp -
Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008]
O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelie), reunião de haicais traduzidos para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de vista sua dimensão transnacional.
-
Jornal da Unicamp – O haicai é um tema recorrente no conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti – Tenho trabalhado com o haicai desde o final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos, via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro Haikai – antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o ikebana, o origami, o chá, o sumiê – é simultaneamente uma forma de sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais, estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU – Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês, fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à obra?
Franchetti – Talvez existam outros livros de haicai, escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU – Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no Brasil?
Franchetti – Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da tradução desses poemas.
JU – Num dos primeiros registros sobre haicai feito no Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo, a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti – A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto, ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima. Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente a grande voga do haicai no Brasil.
JU – De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?
Franchetti – O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud (1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês, com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e japonesa). Desse momento em diante, o haicai passa a ser uma referência básica também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950, quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade, conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém, em certo sentido, de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em combinação variável.
JU – Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz” japonesa comporta – ou admite – esse tipo de abordagem?
Franchetti – Existe um tipo de poesia japonesa que se parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como todas, tem muitas modalizações.
JU – É possível afirmar que já existe um haicai genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti – Essa é uma questão difícil, a do haicai brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional, isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU – Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti – Penso que um bom haicai é aquele que tem a modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.
JU – Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente valorizada – e difundida – no Brasil?
Franchetti – Creio que tem sido bastante valorizada e difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de outras traduções.
JU – E o haicai, é devidamente contemplado pelos departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti – Não creio que seja muito contemplado. Nem o haicai, nem outras formas de poesia.
sábado, 30 de junho de 2012
O haicai de David Rodrigues
PREFÁCIO
a Respirar: 101 haiku, de David Rodrigues
Já se disse que
o haiku é a arte de dizer o máximo com o mínimo. Entretanto, a verdade é mais
sutil: haiku é a arte de, com o mínimo, obter apenas o suficiente.
O poeta de haiku
não busca obter um poema que se pareça com uma fórmula algébrica, um enigma ou
uma síntese fulgurante de idéias. Pelo contrário, sua arte consiste em colocar
na frente dos olhos ou entre as mãos do leitor, vivo e palpitante, um momento
único, concreto, de plenitude sensória e emotiva. Para fazê-lo, sabe que o
caminho mais seguro é renunciar ao brilho das palavras e à exibição de perícia
técnica.
Na sua brevidade,
o haiku apenas diz o que precisa ser dito, traz para o leitor uma pequena
constelação de palavras comuns, centrada numa sensação. Abre para a sua
imaginação um registro objetivo e freqüentemente lacunar, que se esgota em si
mesmo: uma folha que cai aos seus pés faz o poeta erguer os olhos para o
outono, as nuvens de primavera imprimem manchas de sombra sobre os campos
verdes, a sombra do avião atravessa o campo. Não é preciso explicar nada. Basta
imaginar, recompor a cena, a circunstância em que se produziu o registro. Por
isso já se disse do haiku (e do seu irmão mais velho, o tanka): são três linhas
em busca de um contexto.
A leitura e a
compreensão do haiku, assim, mantêm-se fácil e voluntariamente no nível mais
simples e raso. Na verdade, se a leitura não puder manter-se no nível da
denotatividade, do registro pontual e verdadeiro, não se pode falar com
propriedade em haiku. No entanto, isso não impede que algo se mova ali. Algo
mais amplo, pungente ou risível, doce ou
amargo. Não impede que a fragilidade humana, a piedade, a epifania sensória, o
desamparo, o êxtase perante a beleza do mundo, a esperança, a resignação e
tantos outros estados de espírito ou potências morais apareçam, em relance,
acima, abaixo, ou dançando entre as palavras simples. É essa oscilação entre o
solo banal de um registro direto e lacunar e a pressão que sobre esse registro
exerce a energia da vida do corpo e do espírito que dá o sabor especial do haiku.
Bashô definiu a
arte do haiku como um modo de estar no mundo. Quando esse modo é obtido, o
sentimento interior se funde com as coisas exteriores e o poema brota como um
registro direto da realidade pontual. Aí está o nervo e a especificidade do
haiku: se a fusão for perfeita, isto é, se o exercício espiritual resultou, o
sentimento interior e o objeto apreendido pela percepção formam uma unidade.
Tomar consciência de um é trazer junto o outro, ainda que não haja necessidade
de interpretar um pelo outro, de traduzir um no outro. Quando se consegue esse
estado de graça, em que o ‘eu’ desaparece, ou pelo menos sai do primeiro plano,
e a emoção se cristaliza à volta das palavras e ali fica vibrando, à espera do
leitor que possa abrir-se em disponibilidade para recebê-la, brilha, sem
alarde, a luz própria e a verdade do haiku.
Por isso mesmo,
Bashô advertia: “se o espírito, pelo
contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a
buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a
vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.” Entre
aquele objetivo e este perigo situa-se a dificuldade e a alegria do haiku.
Evitar o segundo para atingir o primeiro, não só na poesia, mas também no
exercício da vida diária, é o que se denomina “o caminho do haiku”.
David
Rodrigues o
tem buscado. Este é o segundo marco, o segundo padrão que ele planta nesta nova
terra da poesia breve à maneira japonesa. É certo que, para continuar no
registro metafórico, este poeta ensaia o equilíbrio entre o outro e o próprio, entre
o estranhamento e o compromisso, entre a praia conhecida e a ilha desejada. Neste
livro, a oscilação se insinua inclusive na divisão das partes. Uma busca a alteridade
maior propiciada pelo exercício do espírito do haiku, que exige a observação
objetiva e despida de atavios; outra intenta o aproveitamento solto da
forma da composição, deixando maior campo à reflexividade, apostando na
comparação e na metáfora. A primeira é o momento do haiku; a segunda é a hora do
epigrama lírico em forma de haiku, que ostenta uma beleza própria e só conserva
do haiku, quando muito, a maneira elegante e concisa do corte. Uma terceira
esboça o equilíbrio possível entre os pólos – e constitui a nota diferencial e
o sentido deste livro.
Não vou referir
aqui os momentos altos do volume. São vários e o leitor os descobrirá com
facilidade, de acordo com a sua inclinação. E ademais seria faltar ao desígnio
que presidiu à sua elaboração separar de um lado os haiku que me parecem
especialmente bem realizados como haiku, daqueles poemas que me soam fortes em
seu registro específico, ainda que outro. O que o poeta buscou aqui foi um
tempero delicado e eclético, em que a poesia é a base e a emotividade amorosa a
variação. Que seja, pois, assim a leitura. E que o prefácio apenas saúde o novo
livro, o poeta e o leitor que, por certo, fará no livro o seu próprio caminho e
dele sairá, como o poeta da luz do sol da primavera, uma pessoa diferente da
que nele entrou.
Campinas,
outubro de 2008
Ref: David Rodrigues. Respirar: 101 haiku. Vila Nova de Gaia: Corpos
Editora, 2008.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil
Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil
[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]
Entre os patronos do haicai no
Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de
introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores
dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com
Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu
um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que
desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de
um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas,
Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento
da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num
nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o
abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do
que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino
fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma
poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de
podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar
o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as
características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando
a escrevia.
Para compreender o papel de
Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a
forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos
meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao
fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou
uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil
vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num
segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como
exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração
da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo
e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse
de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse
momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via
francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São
Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste
livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida".
Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição
física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha
arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a
questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de
tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na
virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original
japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o
haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente
(5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto
de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e
assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa
distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por
isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma
de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição,
do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia
completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a
exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes,
bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um
bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou
logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética,
mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao
terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo
mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas
vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito
cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia
parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco
sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso,
e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um
exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:
Por que estás assim, – – – – a
Por que estás assim, – – – – a
violeta? Que borboleta –
b – – – – b
morreu
no jardim? – – – –
a
Com esse recurso, Guilherme de
Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima,
temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas,
cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um
andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e
um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos
poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das
rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a
alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem
destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no
seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de
cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de
cinco e de duas sílabas:
Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates,
nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é
uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira
à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo
virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão
exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é
uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia
técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku
japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão,
de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de
prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está
pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada
com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica
ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a
questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção
guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o
título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como
haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku,
praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos
de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica
preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os
títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor
poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a
explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a
função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é
a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção,
e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo
elucidativo. Este poema:
Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku.
Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um
haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a
uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E
também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa
se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso
está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central,
aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do
poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há
sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do
poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade:
dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde,
para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há
um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém,
poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não
fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por
intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:
CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso
extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois
determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto
que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de
Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é
transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra
língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de
estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa,
perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que
não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com
esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o
sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição
interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre
tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de
pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples
inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por
completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema
apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite
caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo
poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor
ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme
de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente
neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo
com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste
volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e
sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela
para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera
de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais
significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um
conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos
textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos
e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de
Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de
uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical
à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou
outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a
função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos
seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais,
podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do
haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas
cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."
De novo, como no caso de
"Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da
amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no
presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra
outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para
haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância",
o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental
e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido
funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o
poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título,
reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto,
que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941,
Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o
título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o
título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o
texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o
leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da
ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo
de poesia no Brasil.
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