sexta-feira, 18 de maio de 2012

Editar Camilo Pessanha (contra a barbárie e a barafunda)


Editar Camilo Pessanha
Questões de método e de princípios

                                                       



A primeira versão deste artigo foi redigida em 1999. Destinava-se a um número especial da revista Colóquio/Letras, dedicado a Macau, que nunca aconteceu. Foi finalmente publicado na Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, v. 8, p. 215-243, 2007.




No final do ano de 1995, quando foi lançada a edição portuguesa dos versos de Pessanha por mim ­organizada, iniciei a apresentação afirmando que Clepsy­dra é o nome de um livro que não existe.[1] Não existe como desenho seqüencial significativo, e nem sequer existe como conjunto avalizado por uma clara assunção autoral. Essa é a tese defendida ao longo das setenta páginas de introdução ao volume então apresentado ao público, e fundamentada também ao longo das outras setenta em que nele vêm dispostas as variantes e as considerações sobre o texto escolhido como base para o registro das anotações.
Em decorrência, os critérios para a ordenação seqüencial dos poemas e fragmentos nessa edição são propositadamente fluidos, já que não pretendi dotar o conjunto dos textos de uma ordem significativa. Daí que os tenha alinhado apenas de forma cronológica, segundo a data da primeira notícia que temos deles, seja autógrafo datado, referências de terceiros ou primeira versão impressa.
Já no que diz respeito ao texto de cada um dos poemas, o procedimento adotado, em consonância com esses princípios gerais, foi apresentar no corpo do volume, como referência para a anotação das variantes, a versão que parecesse representar a última intervenção consistente do autor. Isto é: escolhi como textos-base, além do conjunto mais recente de autógrafos, que é o de 1916, os que traziam a indicação “limpa” ou “definitiva”, com que o poeta marcou várias versões existentes em seu caderno de trabalho. O objetivo desse procedimento não era, está claro, o de fixar um texto, mas apenas o de eliminar, tanto quanto possível, dos textos que até então  líamos como canônicos, as variantes introduzidas pelos editores. Por outro lado, assumindo que o texto de Pessanha é melhor compreendido quando entendido como work in progress, tratei de listar, no aparato crítico, todas as versões correntes dos poemas de Pessanha ao longo do tempo da sua vida, bem como todas as intervenções do poeta, nos vários manuscritos e recortes de jornal, facultando ao leitor a escolha de versões e leituras que melhores lhe parecessem.
No que diz respeito à adoção do nome Clepsydra para denominar o conjunto dos textos recolhidos no livro, as considerações foram de outra ordem. O mais simples seria denominar o conjunto apenas de modo geral: versos ou poemas de Camilo Pessanha. Duas considerações me levaram a utilizar o nome para todo o conjunto. A primeira foi a de que a edição de 20 de forma alguma me parece ter sido concebida, supervisionada ou mesmo claramente sancionada por Camilo Pessanha. Por isso, não parecia razoável denominar Clepsydra apenas aquele conjunto e ajuntar os demais sob a denominação ‘outros’. Não vou repetir aqui todos argumentos que desenvolvi na introdução ao volume há pouco mencionado, embora mais adiante os deva retomar de modo sumário. Registro, por agora, apenas que as primeiras edições foram feitas com material de vária procedência, e que o conjunto dos autógrafos que serviu de base à edição de 1920 continha apenas dezoito dos trinta poemas que integraram o volume. O próprio João de Castro Osório reconheceu o caráter precário da primeira edição, afirmando, em momentos vários, que o editor reuniu, para compor a Clepsydra, tudo o que havia disponível em jornais e em cópias de autógrafos, nos arquivos da família, e que desde a primeira edição era claro que outros textos deveriam ter integrado o limitado conjunto de 1920. Foi por assim o reconhecer que ele continuou a denominar Clepsydra ao conjunto dos poemas de Pessanha; e quando, em 1969, intitulou o volume Clepsydra e outros poemas, o fez apenas para poder dispor à parte uns poucos textos que julgou não estarem à altura (por incompletude ou pequena realização estética) ou não terem o mesmo tom dos demais.[2] Quanto à propriedade de incluir no conjunto principal dos poemas de Pessanha outros textos que não os que vieram na edição de 20, concordei, pois, plenamente com João de Castro Osório. Já no que diz respeito aos outros pontos, não pude concordar inteiramente com aquele editor. Não existindo àquela época (como até hoje não existem) testemunhos textuais que indicassem que o arranjo dos poemas na edição de 1920 fosse de autoria de Pessanha, é claro que tampouco poderia reconhecer a propriedade dos sucessivos rearranjos do próprio Castro Osório, segundo desenhos temáticos que ele atribuía a indicações orais de Pessanha; nem poderia concordar com a exclusão de alguns textos do corpo principal do volume, conforme o seu presumível acabamento formal ou estético.[3]
A segunda consideração foi esta: não podendo, por tudo que acabo de dizer, denominar Clepsydra apenas uma parte dos versos de Pessanha, e sendo o nome tradicionalmente, por obra das edições sucessivas, associado ao conjunto dos seus versos, e uma vez que não parecia advir daí maior mal, pareceu-me razoável manter o título e explicar, como o fiz, que ele não indicava qualquer desejo de ordenação temática ou formal na apresentação dos poemas. Não escapou essa oscilação à inteligência de Gustavo Rubim, que numa recensão anotou que só uma outra lógica, que ele chamou “poética”, me levava a denominar ainda Clepsydra ao conjunto dos textos que ali ajuntava. E não lhe escapou porque percebeu claramente o objetivo mais interpretativo do trabalho, que era “dar a reler na Clepsy­dra’ o corpo necessariamente espectral de um livro que aceita no seu próprio título o emblema anacrônico do tempo medido pelo correr da água”.[4]
As razões que me levaram a esse esforço de restituir aos versos de Pessanha e ao conjunto tradicionalmente denominado Clepsydra o seu caráter movente, fluido e incerto, estão dadas na já referida “Introdução” e também numa história breve da construção da imagem de Pessanha como poeta e como personagem literária, publicada em 1993, numa revista acadêmica brasileira.[5] Consistem, basicamente, no desejo de desmontar uma certa tradição de autoria e de eliminar, mesmo que em prejuízo eventual do acabamento do texto corrente de alguns poemas, as interferências dos primeiros editores da Clepsydra, Ana e João de Castro Osório. De fato, a leitura da grande quantidade de comentários que João de Castro Osório foi produzindo a cada nova edição da sua Clepsydra traz indicações suficientes, como julgo ter demonstrado, para que não aceitemos facilmente as sucessivas alterações por que passou o texto de vários poemas e o desenho geral do seu conjunto. Freqüentemente contraditório sobre a origem das fontes de que se valeram ele e a editora de 1920, João de Castro Osório honestamente admite, em vários momentos, que interferiu nos poemas, corrigindo a pontuação, a métrica e a eufonia, e também acrescentando títulos. Além disso, como referi há pouco, esse editor alterou, de edição para edição, o número e a seqüência dos poemas, sempre em nome de um desenho significativo que alegava ter sido sugerido ou indicado verbalmente por Pessanha nos idos de 1915 ou 1916.
Uma primeira tarefa que urgia realizar era, assim, a eliminação dessas interferências. E como elas fossem muitas e os argumentos que as embasassem fossem precários, e também porque o editor disputava ferrenhamente a outros estudiosos o direito exclusivo de publicação e decisão sobre versões concorrentes de poemas ou versos, produzindo argumentos ad hoc e ad hominem, o princípio que me impus foi a dúvida metódica: a menos que outros testemunhos corroborassem, não aceitaria o simples argumento de autoridade, que é o mais freqüente na maior parte das disputas que atravessam as dúzias de páginas introdutórias e de comentários presentes nas suas edições. Isso não significa, é claro, desmerecer o papel de João de Castro Osório como preservador e editor de poemas de Camilo Pessanha. Significa apenas que, ao invés da conveniência da homenagem cega a um membro de uma família ilustre de intelectuais, até hoje notável na cena cultural portuguesa, preferi a homenagem mais honesta que lhe podia prestar, vivendo nos anos de 1990: a continuação do seu trabalho com o maior rigor analítico de que era capaz.
Para atender ao mesmo objetivo de rigor, e para permitir aos interessados o acesso a todas as fontes de que dispus graças à pesquisa realizada em Lisboa, no Porto e em Macau, e graças especialmente à ajuda de amigos que me auxiliaram com fotocópias e transcrições de documentos que não estavam disponíveis para a consulta direta, tratei de colocar ao al­cance do lei­tor, de forma clara e organizada, a maior soma pos­sí­vel de in­for­mações sobre a produção poética de Camilo Pessanha. Nos co­men­tá­rios extensos que constituem a terceira parte do volu­me, apresentei, assim, ­todas as informações textuais disponíveis so­bre cada poe­ma: autógrafos existentes, publicações, tre­chos de cartas e ou­tros escritos de Pessa­nha que pode­riam iluminar de alguma forma a gênese de algumas passagens etc. No registro das variantes, além das impressas, apresentei ainda a leitura de todas as versões autógrafas que pude compulsar, transcrevendo os trechos cancelados e os trechos substitutos, anotando ainda os gestos textuais do poeta, principalmente os que dizem respeito à forma e à ordem das substituições. Nesse trabalho, a não ser no caso de evidente má leitura de autógrafos que eu mesmo pude consultar (como se dá, por exemplo com os fragmentos que Castro Osório denominou “Roteiro da vida”), ou no caso de comprovada interferência do editor, não propus, por todas as razões que acabo de apresentar, que o texto oferecido à leitura no corpo principal do volume fosse exclusivo em relação a outras versões, ou mesmo o único aceitável em publicações com outro escopo ou outros pressupostos. Já no que diz respeito à apresentação dos poemas em ordem cronológica, e não segundo a ordem em que apareceram na edição de 1920 ou na de 1969, julguei mesmo necessário registrar: “A partir deste trabalho poder-se-á proceder, na leitura ou em publicações de diferente natureza, a novas ordenações e seleções, temática ou formalmente mais significativas, que pessoalmente não me julgo capaz de fazer, nem me sinto tentado a experimentar”.[6]
Causou-me, pois, algum espanto a leitura da edição crítica que dos mesmos textos – sem acrescentar qualquer informação nova ou documento que já não estivesse  ali relacionado – fez, dois anos depois, Barbara Spaggiari.[7] Proveio esse espanto de ver a autora referir-se à minha escolha do texto-base de alguns poemas como “erro grosseiro” e às divergências entre os critérios dela e os meus como erros “nem sempre veniais” em que eu teria incorrido. De fato, da apresentação do volume às notas aos poemas, esse é o tom com que se refere às divergências editoriais: uma opção entre o certo, que é o que ela propõe, e o errado, que é o que eu propus ou ela julga que eu propus. Mesmo que os dois trabalhos tivessem os mesmos pressupostos, o mesmo objetivo e os mesmos critérios, como não temos a mesma avaliação do valor dos testemunhos, nem da confiabilidade de alguns deles, creio que sempre sobraria margem para divergências e para escolhas diferentes, sem que essas divergências e escolhas tivessem de ser submetidas a uma dicotomia primária de certo ou errado. Não têm, entretanto, de modo algum, nem os mesmos pressupostos, nem os mesmos critérios, nem o mesmo objetivo; e isso torna ainda mais inaceitável que o olhar crítico e a apresentação de argumentos cedam lugar a postulações dogmáticas, ou ao furor religioso que se vaza na linguagem do pecado e da salvação.
Antes de passar ao exame das afirmações da editora italiana, devo referir que, em tudo o que vai abaixo, fez ela escola em Portugal. Se não escola, ao menos um aluno, o Sr. António Barahona.[8] Trata-se de uma figura curiosa. Epígono deslumbrado e autoproclamado editor crítico, levou ao paroxismo não só o vezo religioso da sua mestra, mas ainda a sua fé de ser o escolhido – por, como Pessanha, também ele publicar versos – para a tarefa de edição. Tarefa essa, diga-se, para a qual lhe parecem faltar, em doses iguais, o preparo e a seriedade intelectual, além de discernimento. Por isso mesmo a sua edição é uma espécie de tributo cego à de Barbara Spaggiari. Tributo fatal, é certo, dadas as suas qualificações; mas tributo também conveniente, pois o andar colado à sombra da mestra lhe poupou a ele, como antes poupara a ela, quando andou colada a mim, o duro trato com os autógrafos de Pessanha e com quaisquer questões que exigissem reflexão e raciocínio aturado. Sendo assim, tudo o que eu poderia dizer sobre o seu trabalho fica dito ao tratar da sua fonte e matriz. E ganhamos todos: ele por apanhar menos, e o leitor – especialmente o português – por não ter de contemplar a que tem descido o rigor crítico no campo da edição de um dos principais poetas da língua e o que tem podido o oportunismo, mesmo em editoras sérias e de expressão no mercado livreiro, na área da poesia.
Vejamos agora em que consistem os vários tipos de diferença entre a edição de Barbara Spaggiari e a minha, e qual a importância dessas diferenças. Em primeiro lugar, há uma divergência de fundo: Spaggiari acredita que errei redondamente ao considerar que a edição de 1920 não pode ser tomada como definitiva e consoante à vontade do autor. Segundo ela, é possível afirmar que sim por um conjunto de razões de ordem diversa, que podem agrupar-se em dois arrazoados, que passo a expor.
O primeiro começa com uma argumentação de fundo psicológico. Camilo Pessanha pertenceria a um “tipo de poeta desistente”. Poetas dessa espécie “não conseguem vigiar totalmente a edição da sua obra; nem mostram interesse bastante por esse aspecto da própria actividade poética, que consideram ao mesmo tempo com indiferença e aborreci­mento. O texto continua vivendo com o poeta, e modificando-se no tempo, como se, depois da composição, os poemas nunca acabassem de obsidiar o seu autor.” Por isso mesmo, o texto de Pessanha “é um continuum, em que a fluidez da matéria poética tarda a fixar-se na sua forma definitiva”. Nesse quadro, que me abstenho de comentar, a publicação em livro vai aparecer como uma necessidade ou quase como um alívio: “Nesse sentido, a primeira publicação dos poemas em volume orgânico, com a autorização do autor, constitui a etapa fundamental da sua história, pois interrompe o fluxo da elaboração e confere, enfim, autonomia aos textos”.[9] A notar apenas que aqui ainda não se afirma, antes pelo contrário, que Pessanha supervisionou a preparação do volume. A “autorização” a que se refere a autora é ou a de publicarem-se os seus poemas ou a sanção posterior, em carta de 1921, na qual Pessanha agradece a edição e os “cuidados da disposição ( que é como eu próprio a faria)”. Spaggiari conclui, entretanto, que a carta de 1921 “equivale ao imprimatur do autor” à edição de 1920. Até aqui não há, como se vê, qualquer postulação de que a escolha dos poemas, ou o texto com que vieram em 20 ou ainda a sua divisão em “sonetos” e “poesias” possam ser atribuídos a Pessanha. A idéia é que, mesmo que não o sejam, podem ser tomados como tal, já que acredita que o poeta tenha concordado com a idéia da recolha e já que ele sancionou posteriormente a edição. O que não está dito aqui é, primeiro, que Pessanha fez questão de anotar, nos autógrafos datados de 1916, que eram transcritos “de memória”; segundo, que o editor recolheu no livro, a partir de publicações várias em jornais, uma dúzia de outros textos; terceiro, que os autógrafos traziam indicações claras de que alguns sonetos formavam conjuntos e que essas indicações não foram respeitadas pelo editor; quarto, que não há qualquer indicação, nem nos autógrafos, nem em qualquer outro documento, de que os poemas deviam ser divididos, na publicação em livro, em dois blocos, conforme fossem sonetos ou textos de forma variada; quinto, que a própria Ana de Castro Osório assumiu, em entrevista por ocasião do lançamento da edição de 1920, ter sido ela quem, de fato, realizara a edição e que o fez a partir de textos soltos e não de um conjunto organizado seqüencial e significativamente: “Há tem­pos, tendo eu ouvido alguém recitar versos seus, detur­pando-os e truncando-os sem pieda­de, pensei que era absolu­tamente neces­sário reunir num volume al­gumas das suas melho­res poesias. Então, sem dizer ao poeta os meus planos, pedi-lhe que fosse ditando versos seus, pois queria guardá-los num cader­no. Camilo Pessanha ditou-me algumas belas poesias. E foi assim que nasceu a Clepsydra.”[10] Spaggiari não refere este trecho da entrevista, muito menos o transcreve. Mas deveria ser a aceitação desta versão a decorrência lógica dos argumentos com que ela começa o seu arrazoado psicologizante sobre o tipo do poeta desistente. E já que a autora aceita como boa a informação de Castro Osório de que Pessanha ficara de enviar de Macau alguns poemas para completar o livro (entre eles, um soneto que completaria o díptico Vénus, o soneto que começa “Ó Madalena, ó cabelos de rastos”, e mais outros sete), e que só não o fez por causa da mesma “abulia”, se quisesse pensar consistentemente teria de concluir que a Clepsydra de 1920 não é, nem no conjunto textual, nem na sua ordenação, de responsabilidade de Pessanha. Não só porque o considera assim abúlico e desistente, mas também e principalmente porque aceita que não eram só aqueles os textos que o poeta planejara incluir no volume. Como não leva até o fim o raciocínio, o resultado é um argumento contraditório, logicamente insubsistente. E porque toma posição sem expor e considerar criticamente todos os testemunhos existentes, acaba por produzir uma tese incongruente, cujas conseqüências para o trabalho de edição trataremos de apontar logo mais.
Resta, assim, desse primeiro arrazoado, um único ponto de apoio para a afirmação de que a primeira edição da Clepsydra é um “volume orgânico”: a carta de Camilo Pessanha de 1921. É um apoio frágil. Considerando os dados acima e também a relação entre o poeta e a família Osório, considerando atentamente o tom do texto e ainda o fato de que é apenas no bojo de uma carta de apresentação de um companheiro de maçonaria que o poeta dedica dois parágrafos à edição do volume , e considerando, acima de tudo, que Pessanha ali declara não só a sua “comoção” – que tanto se refere à publicação, quanto à notícia que teve de uma conferência realizada por João de Castro Osório –, mas também a sua “surpresa” com a publicação, não posso reconhecer nesse documento, de forma alguma, o equivalente de um imprimatur.[11]
O segundo arrazoado de Spaggiari pode ser resumido assim: a escolha e a ordem dos poemas são de autoria de Pessanha, porque ele transcreveu um conjunto de 18 poemas expressamente para a publicação do livro – são os autógrafos da Biblioteca Nacional, em que se lê a data “janeiro, 15, 916"; porque “a lista autógrafa, encontrada por Franchetti no mesmo espólio [...] contém os primeiros versos de 10 poemas, todos incluídos na edição de 1920"; e porque “uma análise da estrutura do livro revela que a Clepsydra de 1920 é construída segundo parâmetros comuns às teorias literárias da época, que ficam evidentes e estruturam solidamente o livro”.[12] Quanto ao primeiro argumento, o que importa registrar, além do que já foi há pouco arrolado, é que mesmo esse conjunto, embora seja a versão mais recente que nos restou desses poemas, não tem o caráter que lhe quer atribuir a autora, pois ali se lê claramente a indicação “de memória”, como em tantos outros documentos distribuídos por Pessanha a amigos de Lisboa; isto é: o registro impede que atribuamos a esses textos o mesmo estatuto daqueles que, no seu caderno de Macau, o poeta identificava como versão “Limpa” ou “definitiva” e impede também que consideremos outras versões concorrentes, anotadas da mesma maneira, como versões abandonadas em favor de uma versão “definitiva”, produzida expressamente para a publicação do livro.[13] Isso é tudo o que se pode concluir objetivamente. Não imagino como se possa, da sua consideração, extrair a prova de que eles sancionam a edição de 20 seja na escolha dos poemas, seja na ordem em que eles ali vêm. Quanto ao segundo argumento, a lista por mim encontrada, devo dizer que sequer entendo que a tenha mencionado em apoio às suas teses. Só a pôde mencionar, na verdade, porque não a transcreveu. Se o tivesse feito, o leitor veria claramente que os poemas aparecem ordenados de forma muito diferente daquela em que vieram na edição de 20, que a sucessão dos poemas não parece ter ali nenhum desenho e, por fim, que a lista alterna, de modo assistemático, sonetos e poemas de forma variada. Já quanto ao terceiro argumento, depois de tudo o que vem aqui exposto, faz ainda menos sentido, porque o que ele diz é: o livro foi publicado em 1920 e apresenta uma dada divisão e ordem interna; a análise do livro demonstra que ele, de fato, corresponde à época em que foi publicado. Creio que esse volteio tautológico é uma resposta a um passo em que escrevi que “com exceção de Castro Osório, a crítica não tem achado muito sentido na divisão do livro em duas partes. Na verdade, não tenho conhecimento de qualquer trabalho que demonstre convincentemente o caráter de livro – isto é, conjunto de poemas organizado seqüencialmente segundo algum princípio significativo – da Clepsydra de 1920".[14] No entanto, já em 1996, num texto apresentado num colóquio brasileiro de que também participou Barbara Spaggiari, atentei para a finura do desenho significativo da primeira parte da edição de 20, que os documentos existentes só me permitem atribuir a Ana de Castro Osório.[15] Ou seja, o problema não é saber se existe um desenho temático em cada parte do livro de 1920, mas se se justificam as duas partes e – o mais importante – se temos alguma indicação segura de que o desenho possa ser atribuído a Pessanha. Eu julgo que não pode. Spaggiari julga que tem de atribuí-lo, mesmo que para isso tenha de fazer as provas dizerem o que, positivamente, não dizem ou, como é o caso da lista por mim encontrada, dizerem exatamente o contrário do que dizem.
Até aqui, discuti as divergências reais, de princípio, entre as duas edições, e os argumentos que as embasam. Outras há, e, embora não sejam muitas, dividem-se em duas espécies, que merecem comentários separados.
Um primeiro bloco, que é pequeno, contém as divergências que são justas achegas à minha edição e fico feliz de poder consignar aqui. Spaggiari notou que transcrevi incorretamente uma palavra no verso 12 do soneto “Quando voltei encontrei os meus passos” transcrevi “esta”, por “essa”; notou também que, na segunda vez que me referi ao ano de publicação do poema que começa “Não sei se é amor...”, enganei-me e grafei 1899 por 1889; finalmente, notou que me escapou uma variante em relação ao texto, por mim adotado, do poema “Na cadeia os bandidos presos”. Por elas só posso agradecer e garantir que esses problemas serão eliminados numa futura edição.[16]
Já o segundo bloco é aparentemente mais numeroso, e diz respeito a divergências na leitura dos autógrafos e na escolha do texto-base de um poema importante.
Na escolha do texto-base, encontramos o que Spaggiari considera o meu erro maior – “um dos erros mais grosseiros”, escreve ela, na p. 128 – que julga seu dever “corrigir”: o caso do Violoncelo. Ao invés de anotar as variantes a partir da versão que veio na Clepsydra de 1920, eu o fiz a partir do autógrafo que julguei mais recente, que é o que pertence ao espólio de Carlos Amaro. Spaggiari anota que se trataria de uma versão mais antiga do que a da Clepsydra e que a inversão da rima nos últimos versos “apenas sugere que Pessanha, como lhe era freqüente, escreveu de memória o texto dedicado ao seu amigo Carlos Amaro, equivocando-se no final do poema, cujo esquema é bastante artificioso para ser facilmente retido”. No afã de corrigir o meu “erro”, por fim, escreve que aceito a versão Carlos Amaro “como texto ‘definitivo’”.
Em primeiro lugar, é preciso registrar que o texto não traz a anotação “de memória” com que Pessanha de regra marcou os poemas que assim transcreveu; inclusive, como vimos, os autógrafos produzidos em casa de Ana de Castro Osório e que foram utilizados na primeira edição da Clepsydra. Essa ‘sugestão’ não tem, portanto, nenhum solo firme em que se apóie. Por outro lado, é curioso que Spaggiari tente diminuir a importância do manuscrito Carlos Amaro com a alegação que ele é transcrito “de memória”, quando aceita sem qualquer problema os textos da Biblioteca Nacional, que trazem a indicação “de memória” do próprio punho do poeta. Também é preciso corrigir a afirmação de que postulei a versão do manuscrito Carlos Amaro como “definitivo”. Não o fiz nem neste caso, nem em outro qualquer. As aspas com que a autora marcou a palavra (atribuindo o termo ao meu discurso) são, portanto, falsas, bem como a sua afirmação geral. Um terceiro ponto a destacar é o argumento de que o esquema do poema é “bastante artificioso para ser facilmente retido”. Não vou comentar a distinção de cariz romântico entre o que seja “artificioso” ou não-artificioso em poesia; tampouco me disponho a discutir a postulação, decorrente dessa distinção, de que é difícil decorar um texto “artificioso”. Mas, mesmo que aceitasse esses parâmetros, ainda assim chegaria a conclusão diversa daquela a que chegou Spaggiari, pois seria justamente a preservação do mesmo esquema rímico em todas as estrofes o mais fácil artifício mnemônico de que se poderia valer o poeta, para o reproduzir. Isto é: mesmo que aceitasse escolher o texto-base a partir de considerações e conceitos desse nível, julgaria que o mais plausível seria que o poeta mantivesse a constância rímica das estrofes, e não que a abandonasse, como faz na versão Carlos Amaro. Donde concluiria que, se alterou a estrutura rímica, alterou-a voluntariamente. Mas essas questões, de fato, não me parecem pertinentes. Ainda que o fossem, não se aplicariam ao caso presente, pois, como já vimos, não há, no texto do manuscrito Carlos Amaro, nenhuma indicação de que tenha sido produzido de memória.
Uma última consideração se faz necessária, no que diz respeito a esse poema: já chamei a atenção, tanto na edição brasileira, quanto na portuguesa, para o fato de que a ortografia adotada no autógrafo pertencente ao espólio de Carlos Amaro é já moderna, sem consoantes dobradas. Spaggiari não parece avaliar corretamente esse dado, que a impediria de supor que está frente a uma versão muito antiga do poema. De fato, a ortografia indica que o texto é posterior a 1911, pois é de setembro desse ano a portaria governamental que atualiza o sistema ortográfico. Como sabemos que Pessanha deixou Portugal em fevereiro de 1909 e só retornou a esse país no final de 1915, temos três situações possíveis: ou o poeta, entre 1911 e 1915, remeteu o poema a Carlos Amaro, de Macau, onde tinha o caderno e por isso não o anotou como transcrito “de memória”; ou lhe deu o autógrafo quando estava em Lisboa, na mesma ocasião em que produziu os autógrafos hoje depositados na Biblioteca Nacional; ou o enviou de Macau, depois de chegar de Portugal, em maio de 1916. A hipótese do envio desde Macau é a mais forte, não só pela falta da anotação “de memória” presente nos documentos produzidos em Lisboa em 1915/1916, mas também pelo papel azul pautado e pelas marcas de dobra, no autógrafo, que reforçam a idéia de envio postal. Não temos outro autógrafo desse poema, senão o que pertenceu a Danilo Barreiros e está vazado na velha ortografia. Portanto, é o autógrafo Carlos Amaro o documento mais recente e fidedigno hoje disponível. Para contestar a minha escolha, Spaggiari aposta em que a versão que veio na Clepsydra de 1920 foi feita sobre algum documento que se perdeu, porém mais atualizado e, sobretudo, mais correto do que o que eu usei. Ora, só há aqui duas hipóteses plausíveis, dentro do seu quadro de referências: ou o poema foi anotado por Pessanha, juntamente com os demais, em casa de Ana de Castro Osório, ou foi ditado naquela ocasião. Mas se no autógrafo do espólio de Carlos Amaro, que não traz a indicação “de memória”, o poema vem assim, como eu poderia preteri-lo em nome de outra versão, de que não há testemunho autógrafo, e que, se foi registrada pelo poeta, o foi numa situação em que ele teve o cuidado de anotar que estava transcrevendo de memória, isto é, sem poder consultar os seus registros escritos? Só para encerrar a discussão deste caso, queria sugerir que, mantendo a versão da Clepsydra de 1920, Spaggiari, como fez em outros poemas que saíram com problemas nessa edição, ao menos considere a possibilidade de acertar, pelos dois documentos autógrafos, a pontuação da primeira estrofe, pois ambos trazem ponto depois de “convulsionadas”, fazendo com que esse adjetivo se refira imediatamente a “arcadas” e não a “pontes”, como veio na primeira edição.
No que toca à leitura do caderno de Macau, temos poucos desacordos, e é fácil verificar que os reparos agressivos de Spaggiari se devem menos a uma real divergência do que a uma estratégia de  valorização do seu trabalho, e de diferenciação em relação ao meu, pois é claro à análise que Spaggiari dele se vale todo o tempo, inclusive e principalmente quando não o confessa, o que várias vezes me fez passar do estado de espanto inicial para outro, de indignação. Para que se possa aferir a qualidade científica do trabalho da autora – que, na “Nota introdutória”, o opõe ao meu com a justificativa que o dela “reclama a sua origem na escola filológica italiana” –, basta verificar que Spaggiari não teve acesso aos autógrafos de Macau em reprodução decente. Que não os consultou em Macau, ela mesma o declara. Mas que se valeu das minhas transcrições, poucas vezes admite, afirmando que fez as suas a partir de uma reprodução fotográfica do caderno. Se alegasse que utilizou a reprodução que veio na Revista de Cultura (Maca­u:1990), seus argumentos mereceriam, em princípio, maior consideração. Afinal, é essa uma bela edição e os documentos ali se lêem tão bem quanto se pode ler, quando não se dispõe dos originais. Mas não foi essa a fonte de que se utilizou a autora. Aliás, se fosse, as divergências provavelmente não existiriam. Mas ela nem mesmo refere a Revista de Cultura. “Leu” os autógrafos, como vemos na p. 42, na reprodução publicada pela Biblioteca Nacional de Macau, em 1986. Ora, essa reprodução é de péssima qualidade e fica imediatamente claro, para quem a consultar, que é impossível que Spaggiari tenha podido anotar as variantes todas que anota a partir dela. Se ao menos calasse sobre a fonte, poderia ter sido mais convincente. Não o fez, porém, e, tendo em mãos apenas esse borrão que é a publicação de 1986, tenta escorar com ele as objeções insustentáveis que faz à minha leitura dos originais de Pessanha. Isso se dá, por exemplo, na p. 284, nota 246; na p. 124; na p. 290, nota 287; e nas páginas 166-7.
Na p. 284 o caso é simples: fiando-se numa reprodução muito ruim, anota simplesmente “a segunda palavra fica ilegível; PF, p. 198, propõe ‘constellação’. Nem seria preciso ir ao original. Bastaria aqui a consulta à Revista de Cultura para ver que a palavra se lê nitidamente. Um pouco mais grave é o segundo caso, o da p. 124. Trata-se da leitura de um recorte de jornal, em que veio o poema intitulado Queda e que tem por primeiro verso “O meu coração desce,”. Quando lê o verso 10, anota: “não é visível no recorte, devida [sic] a uma mancha de tinta, a eventual vírgula depois de Atono”. Ora, não há mancha de tinta no original e nem na reprodução da Revista de Cultura e em ambos a vírgula tipográfica é limpidamente visível.[17] O que há é um empastelamento na reprodução que a autora utilizou. Mas esse caso serve para demonstrar ainda outro ponto: de que tipo de argumento se vale a autora, quando quer consertar um dos meus “erros”. No caso, a leitura “Atono, miserando.”, que propus como texto-base. Da vírgula invisível, Spaggiari passa a outro argumento, que reproduzo: “A variante Atono, impressa em A e não corrigida por Pessanha no Caderno, pode ter gerado, na forma manuscrita, a leitura Atomo, tendo em conta que faltava o acento na vogal inicial (pois Pessanha escrevia Atomo, e não Áto­mo).[...] A lição Atomo é, aliás, muito mais conforme quer ao tom geral do poema, quer à sua estrutura formal: o ritmo e os acentos do verso correspondem, de facto, aos vv. 6 e 14 [...] Todos têm acento inicial na primeira sílaba, destacando-se dos restantes, que têm um ritmo ascendente, com uma sílaba átona no começo.” Este argumento se divide em três partes, que são os motivos de a autora ter fixado a versão da Clepsydra e não a do jornal. A primeira consideração é que “atono” pode ser, afinal, apenas um erro tipográfico. Essa parte do argumento é a menos importante e é um bocado confusa. Mas como a autora parece mover-se num universo de pura suposição com vistas à defesa da versão Osório, creio que poderia ser mais persuasiva se invertesse o raciocínio: Pessanha teria escrito “atomo” e o tipógrafo do jornal teria lido “atono”.[18] A segunda parte do argumento é uma consideração de caráter estilístico: “átomo miserando” seria “muito mais conforme ao tom geral do poema”. Absolutamente não concordo, e continuo com a opinião de Alfredo Margarido, que, depois da reprodução dos manuscritos e recortes do Caderno, na revista Persona, n° 10, escreveu, no número seguinte do mesmo periódico: “O recorte de Macau diz: Átono, miserando, enquanto a lição da Clepsidra compilada por João de Castro Osório ensina: Átomo miserando. A primeira versão, a do caderno, está mais de acordo com o ritmo e o sentido do poema e elimina sobretudo o junqueirianismo involuntário que assim lhe foi inculcado.” (p. 81). Mas o ponto que vale a pena frisar aqui é a terceira parte do argumento, aquela em que Spaggiari nos diz que “átomo” é preferível porque corresponde melhor ao ritmo de outros versos que começam por uma tônica. Na sua leitura, assim, “átomo” é uma palavra proparoxítona, enquanto a outra seria paroxítona. Isso numa frase em que, em português, ela mesma ou o revisor da Lello, escreveu com a tonicidade correta a forma feminina do adjetivo: átona. Não só pelas ilações a que conduz na “fixação do texto”, enganos desse tipo são preocupantes numa obra dessa natureza. As dificuldades da autora com a tonicidade, a classificação e divisão silábica das palavras portuguesas não são, porém, recentes. Já na sua edição de 1983, entre outras passagens que mereceriam citação, encontramos esta: “Le rime sono in prevalenza piane, ma Pessanha no rinuncia anche in questa sede alla sua predilezione per i proparossitoni: cf. ad es. fráguas:águas (55,11:14), inválidos:pálidos (51,13:16), vário:aviário (15,9:10), aquário:tumultuário (29,6:8), solitário:calvário (32,9:10), antipático:aquático (7,2:3), liquescência:transparência (44,15:18), propício: sacrifício (41,26:28), cómico:anatómico (42,9:11).” E esta outra: “In Poema final” (v. 2 fulgurações / azuis, vermelhos de hemoptise), [nota: a barra oblíqua não indica aqui, como poderia parecer, divisão de verso: todas a palavras ocorrem na mesma linha] la sequenza Sost. + Agg. o Sost. + Compl. viene alterata dalla presenza di vermelhos, che dal punto di vista grammaticale è sì un sostantivo, ma posto qui a diretto contatto con l’aggettivo azuis, indicante and’esso un colore. La disposizione chiastica degli elementi [...] conferisce a vermelhos un valore incerto, a metà fra sostantivo e aggetivo. Quasi che le fulgurações (unico vero sostantivo su cui gravita il resto del verso) fossero lampi intermittenti, ora di un azzurro freddo e metallico, ora invece rossi come il sangue che macchia il fazzoletto di un tisico”.[19] Ora, tanto pelo material utilizado para consulta e leitura de autógrafos, quanto pelo tipo de considerações tecidas pela autora, em 1983 como em 1997, devo aqui dizer que sai injustamente maltratada a nobre tradição da filologia italiana de que se reclama ostensivamente a autora para opor-se ao “brasileiro”, que é como se refere a este autor.
Como também sai maltratada a mesma tradição, quando se evidencia –  nos dois últimos casos daquela  série exemplar de divergências  (p. 290, nota 287; e 166-7) –  o procedimento pouco ortodoxo dessa sua autoproclamada representante, que consiste em fazer de conta que leu o que não pôde ler e que julgou com propriedade o que não tinha elementos para poder avaliar. De fato, não é preciso aqui longa demonstração: basta que o leitor compare, no tocante aos poemas que comparecem nessas páginas, as leituras que vêm nas duas edições e que verifique depois a ilegibilidade da reprodução utilizada por Spaggiari. Desmascarar-se-á, com este simples recurso às fontes, o artifício e revelar-se-ão afinal ridículas as passagens em que a autora, sobranceiramente, ajuíza e sentencia sobre a exatidão ou a propriedade das minhas leituras.
O caso mais grave de má utilização de anotações de terceiros e de leviandade ao fazê-lo ainda não é nenhum desses, mas o da anotação do aparato genético e dos comentários estilísticos ao soneto que começa “Quando voltei encontrei os meus passos”.
Já na edição de 1983, Spaggiari se confundira totalmente na análise das versões deste texto. O caso é o seguinte: temos três versões do soneto. A primeira é o texto do jornal  O Progresso, de 22/1/1898; a segunda é uma versão manuscrita que resulta de uma série de intervenções do poeta sobre o texto do jornal; a terceira integra o conjunto de manuscritos de 1916, depositados hoje na Biblioteca Nacional. Quando João de Castro Osório consultou as fotocópias do Caderno, para preparar a sua edição de 1969, anotou as variantes de uma forma inexplicável: apesar de a versão manuscrita ser a transcrição das intervenções sobre o recorte de O Progresso, Castro Osório afirmou que ela lhe era anterior. Fez, assim, uma anotação de variantes que apresentava uma evolução em direção ao texto de 1916. Ou seja, ao invés de mostrar que Pessanha redigiu uma primeira versão que era mais próxima da de 1916, e que no entretempo fez modificações que depois não manteve, preferiu, decerto para fortalecer o seu argumento habitual – qual seja, o de que as versões que possuía eram as mais recentes e definitivas – ir contra aquilo que, mesmo em fotocópias, era evidente: que houve três versões do soneto e que a do autógrafo de 1916 recupera em vários pontos a primeira versão, abandonando modificações manuscritas sobre o texto do jornal.
Pois bem, Spaggiari, que realizou a sua primeira edição contando exclusivamente com as informações de Castro Osório, incorre no mesmo engano. De fato, naquela época não tinha como não o fazer, uma vez que os autógrafos não estavam disponíveis e ela, por princípio, em 1983 como em 1997, não duvidava das informações de Castro Osório. Como Spaggiari, além de buscar a fixação do texto, também procedeu à análise estilística das variantes, acabou produzindo uma análise equivocada do sentido das alterações, cuja leitura é hoje divertida. Foi por compreender as contingências daquele seu primeiro trabalho de edição de Pessanha que não fiz menção direta, nem na edição brasileira, nem na portuguesa, a esses e outros enganos da autora. Mas agora a situação é muito diferente. Depois de acessíveis os autógrafos, e depois da leitura que eu mesmo fiz do caderno de Macau, não é aceitável que enganos desse tipo continuem a ocorrer. Principalmente não é aceitável que o aparato crítico seja correto, as leituras das correções autógrafas e do manuscrito sejam registradas na ordem em que de fato ocorreram e que, na análise estilística, os comentários da autora reproduzam, com pequenas modificações, os da edição de 1983, invertendo a ordem das versões e procedendo como se o registro das variantes e versões já não estivesse corrigido. Nesse sentido, a leitura da p. 100 do volume de 1997, é um tanto desnorteante: contra as próprias anotações a autora sistematicamente entende que a ordem das versões é ainda a que consignou, em 1983, segundo a informação distorcida de João de Castro Osório. Produz assim um texto incongruente, e que revela, mais uma vez, a livre incorporação de leituras mais modernas dos documentos, sem a correspondente aceitação das modificações que elas acarretariam para o seu próprio discurso analítico e interpretativo.
Não vou me deter em todos os exemplos, mas creio que é necessário fazer uma análise deste caso, já que é bastante ilustrativo do nível de rigor analítico da autora, bem como da natureza e embasamento dos seus argumentos filológicos.
Vamos considerar aqui, portanto, apenas um pequeno conjunto: a primeira quadra do soneto, com as sucessivas versões autógrafas dos três últimos versos dela, e, por fim, os comentários de Spaggiari. Na primeira versão, a do jornal, vinha:

1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos sobre a húmida areia.
3 A fugitiva hora – encontrei-a
4 E reviveu sob os meus olhos baços.

Na segunda versão, que é uma intervenção manuscrita sobre o texto do jornal, lemos:

1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos sobre a humida areia.
3 A fugitiva hora reencontrei-a
4 Tão rediviva, em fugitivos traços.

Essa versão do v. 3 foi cancelada, e uma nova foi escrita à direita do texto impresso: 3 A tão antiga hora! Reevoquei-a /. É essa que é passada a limpo, na cópia manuscrita, com uma modificação de pontuação:

1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos, sobre a húmida areia.
3 A tão antiga hora, – reevoquei-a,
4 Tão rediviva, em fugitivos traços,.

Finalmente, no manuscrito de 1916, lemos:

1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda frescos sobre a húmida areia.
3 A fugitiva hora, reevoquei-a,
4 – Tão rediviva!, nos meus olhos baços...

Spaggiari comenta assim: “No v. 3, tão antiga é abandonado em favor de fugitiva, conforme a tendência usual em Pessanha para substituir tão + adjetivo por uma só forma adjetival, de medida silábica equivalente (aqui Tão  + adj. trissilábico ® um só adjetivo quadrissilábico). No caso vertente, o quadrissílabo fugitiva é extraído do v. 4 da redação mais antiga (em fugitivos traços) e produz, no v. 2, a forma aliterante frescos em lugar de vivos. Ainda no v. 3, a palavra em rima reencontrei-a da versão intermédia, conflitual em relação com encontrei no primeiro verso, é então substituída pela lição original (reevoquei-a). Igualmente, e reviveu (v. 4) representa uma tentativa, logo abandonada, para suprir tão rediviva no começo do verso: finalmente o poeta prefere o adjetivo ao verbo, pois consegue mais uma correspondência com fugitiva do v. 3, e até uma rima interna”.[20]
Esse comentário é, em linhas gerais, o mesmo que encontramos na edição de 1983 (p. 321-2), quando a autora ainda acreditava que a ordem das versões era outra. É fácil ver a confusão. Só invertendo a ordem dos testemunhos é possível dizer que “fugitiva” vem substituir “tão antiga”, quando só a versão intermediária traz essa última forma. E só a ignorância da ordem das intervenções poderia permitir a formulação da hipótese de que nestes versos e versões se constata uma tendência estilística de Pessanha, que consistiria em evitar a forma tão+adjetiv­o, quando é justamente essa forma que é introduzida no verso 4 da segunda versão para persistir até a de 1916. É porque ainda está lendo na cronologia inversa, e desprezando uma versão intermediária, que pode pensar que o adjetivo fugitiva “é extraído do v. 4 da versão mais antiga” (que é: “E reviveu sob os meus olhos baços”), ou que seja a sua introdução que tenha “produzido” a forma aliterante frescos (sem entrar no mérito das questões implicadas por essa forma de conceber a composição poética), quando, na verdade o adjetivo já está nessa posição nas duas primeiras versões. É também por julgar que a cópia manuscrita é a primeira versão, como o fazia em 1983, que pode dizer que reevoquei-a é a lição original. E é também por isso que pode, finalmente, pensar que e reviveu foi uma versão intermediária, isto é, que veio depois de tão rediviva, talvez consoante à lei, por ela descoberta, de eliminação da forma tão+adj. Dessa trapalhada, creio que só se pode concluir que, embora na edição de 1997, Spaggiari transcreva no aparato genético as minhas leituras dos autógrafos, nem por isso dá conta de que essa transcrição invalida a sua análise da ordem e do sentido das intervenções de Pessanha.[21]
Se Spaggiari, assim, contra a evidência dos dados que ela mesma aceita, exibe conclusões tão disparatadas, o que dizer dos casos em que raciocina apenas a partir das anotações de Castro Osório, ou daqueles em que a pesquisa não revelou ainda elementos que permitam invalidar as fortes indicações de que os primeiros editores da Clepsydra se valeram de fontes não confiáveis ou introduziram alterações significativas no texto dos poemas? Nesses momentos, seu discurso abandona mais decididamente o registro analítico e se transforma em protesto de fé e afirmação de escolhas fundamentadas apenas por algum tipo de convicção íntima. É o caso da opção por manter, no soneto que começa “Ó meu coração, torna para trás.” a pontuação deficiente e a hipometria do verso 4, “Queimou... Voltai horas de paz.” sem que haja nenhum autógrafo que embase a sua opção, e ainda contra o próprio Castro Osório, que o corrigiu nas edições posteriores. Que o faça, considerado o conjunto dos seus procedimentos, não causa espécie. Mas não deixa de ser interessante observar como, mesmo dispondo já das minhas anotações do caderno, e sem dispor de documento autógrafo que confirme o texto de 20, tenha tanta certeza dos desígnios do poeta: “o poeta tem, aparentemente, dificuldade na construção da similitude: ‘cismai, meus olhos, como [cismam] os velhinhos / como os [olhos] dos velhinhos’; e propõe várias soluções, para fluidificar o nexo sintático. [...] Na versão final, porém, insatisfeito com o resultado, Pessanha prefere manter a hipometria.” (p. 83) Devo ser um empedernido e frio racionalista, pois nem sequer compreendo que grande comunhão anímica com o poeta poderia produzir uma certeza assim inabalável sobre quais seriam as suas dificuldades e escolhas, mesmo quando não haja nenhum documento que as fundamente (muito pelo contrário). A autora, que anuncia a sua edição como o “signo tangível de uma longue fidelité” (p. 5), parece acreditar que daí lhe advém alguma especial identificação com a vontade inexpressa do poeta. Talvez por isso sinta ser sua missão empreender o ataque frontal a qualquer heresia, a cavaleiro da filologia italiana, e brandindo as suas certezas e as edições canônicas da Clepsydra. Principalmente quando julga que o herético não tem a mesma fidelidade ao poeta ou não percebe tão bem a sua psicologia. Nesse sentido, é realmente uma herdeira à altura da tradição editorial da Clepsydra. E também, por ironia, daqueles “lidadores”, que no poema Quando?, Pessanha nos apresenta envoltos “nas prolixas e vãs contendas,/ lançando juras, impropérios,/ pelas divisas e legendas”.
Não creio que seja útil continuar a desenvolver outras reflexões que mostrem pontos em que, afinal, a utilização dos dados da minha edição não produziu divergências, mas apenas incoerência no discurso da autora.[22] Mas há, por outro lado, que comentar, mesmo brevemente, algumas questões de método e de princípio que produzem as restantes diferenças entre as edições, e com elas creio que será possível encerrar estas notas.
Trata-se de dois procedimentos, de duas opções práticas que contrariam frontalmente os princípios de edição que a autora estabelece na sua Introdução.
O primeiro diz respeito ao texto de poemas publicados sob a supervisão do autor e que têm versão diferente em alguma das edições póstumas, organizadas por Castro Osório. Na p. 28, quando estabelece os princípios que deveriam guiar a escolha do texto-base dos poemas que não figuraram na Clepsydra de 1920, escreve Spaggiari: “Faltando indicações específicas, o ‘original’ coincide ali com a versão mais recente publicada pelo poeta, ou em vida dele, e não – como pretende Franchetti – com a última versão conhecida, manuscrita ou impressa que seja”. E completa, mais abaixo: “Portanto, a prudência exige aceitarmos, como definitiva, apenas a versão mais recente que tenha sido publicada pelo poeta, ou em vida do poeta” (grifos da autora). Registrando, mais uma vez, que nunca pretendi estabelecer o “original” , e muito menos afirmei que a última versão impressa (postumamente, subentende-se, eu creio) tivesse prevalência sobre autógrafos ou versões publicadas pelo poeta, e, finalmente, que por certo têm estatuto diferente as publicações feitas pelo poeta e as feitas em vida do poeta, sem a sua participação efetiva, examinemos um caso específico em que Spaggiari discorda da minha leitura. Trata-se do díptico San Gabriel, publicado por Pessanha no Jornal Único, de Macau, em 1898. Esses sonetos não vieram na primeira edição. Foram introduzidos na Clépsidra de 1945, isto é: 19 anos depois da morte do poeta, que não os publicou em outro local. Tampouco temos deles versão manuscrita. No texto que vem na edição de 45, os versos 9 e 10 do segundo soneto, que no jornal eram “San Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa / Que do horizonte vapora, luminosa”, apareceram assim: “Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa / Que do além vapora, luminosa”. Escolhi, para texto-base, o que veio no jornal, e era o que a autora, se seguisse o princípio há pouco enunciado, que me acusa de não seguir, teria obrigatoriamente de consignar. Não o faz, porém, mantendo a versão de Castro Osório, que alega ter tido acesso a um autógrafo de Pessanha –  de que nunca se teve, até agora, outra notícia – em que o poeta teria corrigido o texto publicado em vida em Macau. No mínimo, faltou-lhe aqui a prudência que defende na Introdução, pois o texto do Jornal Único é justamente, a versão mais recente (porque única) e foi, sem dúvida, publicada pelo poeta, que parece ter escrito o díptico expressa­mente para a publicação comemorativa da viagem para a Índia.
O segundo princípio violado pela autora é o que se encontra expresso na p. 16, quando ela se pergunta, à guisa de síntese da seção 2 da sua Introdução: “Aqui se detém o filólogo, enfrentando a eterna questão: será preciso perseguir um original que nunca existiu, senão na imaginação, e até na potencialidade do autor (Ur-Text)? Ou será melhor editar o texto que realmente existe (Text), procurando eliminar apenas as intervenções alheias (do editor, neste caso)?”. Ora, a resposta a esta pergunta, além de valer para o caso de San Gabriel e de Paisagens de Inverno, por exemplo, também vale, sem dúvida, para os títulos dos poemas, acrescentados ou suprimidos pelo editor. Aliás, apresso-me a declarar que, do meu ponto de vista, o melhor é mesmo seguir o segundo princípio, que é o que autora professa: editar o texto, eliminando as intervenções dos editores. Foi o que tratei de fazer, no que diz respeito à totalidade dos poemas. Daí que não apresentasse, no texto-base, os títulos acrescentados pelo editor, e daí também que os repusesse, quando o editor os eliminara.
Spaggiari dedica uma seção da Introdução ao problema dos títulos, e ali registra, na p. 31: “Os títulos com certeza atribuídos por Castro Osório são os seguintes: 11 No claustro de Celas, 17 Castelo de Óbidos, 18 Interrogação, 29 Na cadeia, 37 Olvido, 39-44-45 Roteiro da vida, 42 Madalena, 46 Água morrente, 52 Numa despedida, 53 Fragmento de um hino, 54 Imagem noturna da cidade, vista do alto.” Creio que há outros, mas não vem ao caso discutir isto aqui.[23] Importa, sim, observar que, tanto na edição brasileira, quanto na portuguesa, por aceitar o critério de eliminar as intervenções de terceiros, não consignei nenhum dos títulos atribuídos por Castro Osório. E como se comportou Barbara Spaggiari?  Sem lógica. Suprimiu o título dos poemas acima identificados pelos números 11, 17, 18, 29, 37, 39-44-45; mas manteve o título dado por Castro Osório aos poemas 42, 46, 52, 53 e 54. O caso mais grave é o do soneto que, na sua edição, tem o número 42, porque aí Spaggiari infringe simultaneamente os dois critérios que defende, já que desse soneto não há autógrafo e ele foi publicado apenas uma vez, em vida do poeta, e sem título.[24] Por outro lado, julga que é “com certeza” de João de Castro Osório, na edição de 45, a atribuição do título Interrogação, e o consigna sem título, como veio na edição de 20. Diz, entretanto, no aparato, que está seguindo, na transcrição do poema, o texto da única publicação em vida do autor, que foi a fonte do editor de 20 e que é o do jornal O Novo Tempo de 1889. Ora, nem uma coisa nem outra: se seguisse de fato o texto do jornal, veria que lá o poema tem por título o sinal de pergunta –  ? – portanto, o que se pode atribuir a João de Castro Osório (que nasceu em 1899) é apenas a substituição do sinal tipográfico pela palavra “interrogação”.
Um último comentário deve ser dedicado aos famosos autógrafos de 1916, que serviram de base à edição de 1920, e que fornecem, segundo indicação de Spaggiari, o texto da sua edição. Duas questões merecem atenção aqui, além das que já implicaram referência a esses documentos. No tocante ao texto, quando há divergência entre o que neles vêm e o que veio na Clepsydra de 1920, a autora da edição de 97 oscila. Assim, adota, como fiz, o texto do autógrafo e não o do livro, no que diz respeito ao último verso do soneto “Quando voltei...”, mas não adota o texto do autógrafo no poema “Rufando...”. Pessanha escreveu “Amor’s te bafejem”, mantendo a isometria do verso, pois todos os outros são pentassílabos. O editor de 1920 transcreveu “Amores te bafejem”, acrescentando assim uma sílaba poética, e Spaggiari o seguiu. É só um pormenor, mas quando se argúem critérios, é preciso tê-los.
O caso mais grave dos autógrafos de 1916 é, porém, outro. Diz respeito às marcações claras de seqüência para a formação de três dípticos de sonetos, que não foram obedecidas pelo editor de 1920. É importante esse ponto, porque utilizei a existência dos dípticos como mais um argumento contra a tese de que a Clepsydra de 20 é um livro idealizado por Pessanha. A filóloga italiana reconhece que existe aí um problema, e dedica aos dípticos e trípticos uma seção do seu texto introdutório. Nela, as indicações de seqüência são encaradas em dois momentos e com duas funções argumentativas. Por um lado, são uma “prova ulterior da vontade de Pessanha para reunir, organizar e publicar os seus poemas” (p. 12-13) – ou seja, são indicações significativas e de autoria do poeta. Já em nota de rodapé a essa frase, Spaggiari afirma que essa mesma ordem poderia ter sido abandonada em função de uma ordenação mais ampla (nota 12, p. 256-7). Mas, pergunto, feita por quem? Spaggiari também se fez essa pergunta, e admite que, muito provavelmente, a ordenação foi feita pelos editores. Eis o que escreve  na p. 15:  “Concluindo, a Clepsidra de 1920 não corresponde, por certo, em todos os detalhes, à que ele próprio faria; nem é, tão-pouco, totalmente confiável, pois existe uma margem de intervenção (mais ou menos relevante) do editor”, acrescentando na respectiva nota de rodapé: “O que verosimilmente acontece na ordenação dos poemas dentro das duas seções SONETOS e POESIAS. Na Clepsidra de 1920, o critério adotado parece temático, buscando a analogia dos textos, enquanto, a partir da segunda edição, visa a uma ordem cronológica (ainda que aproximati­va)” (nota 16, p. 257). Ora, é justamente a ordenação dos poemas dentro das duas seções que fica afetada pelas indicações autógrafas de seqüência que não foram respeitadas pelo editor de 20, nem por Spaggiari, que desenvolve três argumentos para justificar-se por seguir novamente a intervenção do primeiro editor contra a indicação expressa nos autógrafos que diz reproduzir como texto. O primeiro é frágil: porque Pessanha, em dois sonetos satíricos, anotou a ordem de modo reversível (I ou II, escreveu num deles; II ou I, escreveu no outro), pretende que aqui também é possível a inversão efetuada pelo editor de 20; mas Pessanha num caso marcou a reversibilidade e, nos outros três, não. O segundo é de caráter metodológico, e faz apelo à prudência, critério que já vimos em pleno uso no caso do díptico San Gabriel: “quanto às indicações nos autógrafos do espólio da Biblioteca Nacional, também é preciso encará-las com muita prudência, antes de as aceitar como prova cabal da última vontade do autor”. O terceiro argumento é um desenvolvimento do segundo, e vem em nota, na p. 257: “Cumpre também precisar, após uma cuidadosa leitura dos autógrafos, que os sinais de seqüência foram acrescentados posteriormente, com tinta mais clara e traço mais grosseiro relativamente à caligrafia habitual de Pessanha”.  Quando comparamos essas marcações com as que vieram nos dois sonetos satíricos, não resta dúvida sobre a autoria; e a tinta mais clara e o traço mais grosseiro realmente não nos parecem existir. Nem parece a própria Spaggiari duvidar da sua autenticidade quando, além da passagem acima referida, também  na p. 34, ao notar que, num dos casos, a seqüência indicada por Pessanha é a mesma que foi seguida na edição de 1920, sem que se mantivesse, entretanto, a numeração, escreve: “A indicação de seqüência, presente nos autógrafos do espólio da BN, confirma agora a ordem de Cl1.” Resumindo: há indicações autógrafas que me parecem indubitáveis, e que Spaggiari ora reconhece como tais, ora parece não reconhecer, e que finalmente despreza em nome de uma assunção que ela mesma, em outro momento, põe em dúvida, a saber, que é de autoria de Pessanha, em momento posterior ao da produção dos autógrafos de 1916, o arranjo “vagamente temático” da primeira edição de 20. Quanto a mim, abdico inteiramente de especular sobre a última vontade íntima do autor ou sobre até que ponto a vontade dos primeiros editores coincidiu com essa vontade perdida ou não expressa materialmente pelo autor, por conta de alguma abulia crônica ou outro fator dessa espécie. Penso que os documentos disponíveis devem fornecer as versões que devemos consignar e que, nem por freqüentar continuamente o universo textual de Pessanha, um editor possa sentir-se ungido de algum poder ou faculdade especial, além dos limites da razão. É uma diferença em relação a João de Castro Osório e é também uma diferença de base com Barbara Spaggiari. É notável que esse princípio de respeito ao texto existente e de oposição às intervenções editoriais seja considerado, por Spaggiari, como não filológico, ou mesmo antifilológico. É, porém, ainda mais notável que, no trabalho de Spaggiari, os argumentos psicologizantes, as considerações estilísticas e os procedimentos de crítica textual que há pouco descrevi sempre convirjam para produzir, como resultado geral, mesmo quando há conflito explícito entre a opção dos primeiros editores e o testemunho textual do autor, a afirmação do direito de intervenção do editor, seja no título, na letra ou na ordem dos poemas. Se o conjunto dessas práticas procede, de fato, alguma tradição filológica, não sei. Se proceder, é evidente que não pretendo, de forma alguma, integrar-me nela.

Entretanto, em 2004 veio à luz uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, na qual se reproduzem documentos até então inéditos. Realizada por Carlos Morais José e Rui Cascais, incorpora, aos testemunhos que pude consultar até 1992, a leitura do exemplar da Centauro, que pertenceu a Camilo Pessanha.[25] Quando estive em Macau, em 1991, esse exemplar estava em restauro e não houve como ter acesso a ele. Entre a edição brasileira e a portuguesa, Daniel Pires conseguiu e facultou-me uma fotocópia não muito legível de uma página dessa publicação: a que trazia o poema “Fonógrafo”. Por ela anotei variantes na edição da Relógio d’Água.
Já agora, a publicação de Macau seguramente exigirá, além da anotação das variantes, reflexão sobre pontos mais importantes e, talvez, alterações maiores no meu texto, quando republicar a edição de 1995.

Existe, pois, um fato novo na história da edição dos versos de Pessanha. Há agora o que de fato debater. Para preparar o terreno, julguei que valia a pena afastar desde logo os empecilhos à reflexão séria e conseqüente que a revelação dos novos documentos exige. Daí que me tenha sentido na obrigação de me debruçar mais demoradamente sobre esses dois monumentos de intolerância, de presunção e de ausência de seriedade filológica ou boa-fé que precederam o livro simples e honesto de Macau. Este, reproduzindo franca e generosamente documentos de enorme interesse, por certo permitirá em breve que a bibliografia das edições de Camilo Pessanha e a discussão delas se descole de uma vez por todas do nível rasteiro e do trato bárbaro em que as lançaram o livro de Spaggiari e o de seu seguidor poeta.





[1] Pessanha, Camilo. Clepsydra (Estabelecimento de texto, notas e comentários por Paulo Franchetti). Lisboa: Relógio d’Água Editores Ltda., 1995.
[2] A seção “Outros poemas (não indicados para a Clepsydra)”, da edição de 1969, é composta pelos seguintes textos, agrupados em três subseções: a) “Poemas iniciais”, contendo Lúbrica (e a versão posterior, denominada Desejos), Madrigal e o Soneto de Gelo; b) “Poemas de ocasião e fragmentários”, contendo Rosas de Inverno, Numa despedida, “Fragmento de um hino” e “Imagem nocturna da cidade vista do alto”; e c) “Dois sonetos de satírica imitação”: A miragem e Transfiguração. O critério utilizado para a exclusão de alguns textos do corpo principal do volume revelará toda a sua inconsistência se considerarmos aqui unicamente dois casos: Lúbrica e Roteiro da Vida. Lúbrica aparecera, como parte do núcleo denominado Clépsidra, nas edições de 45 e 56, sendo daí excluído em 69; já o conjunto que Castro Osório denominou Roteiro da Vida e incluiu no núcleo denominado Clepsydra foi composto pelo editor, da seguinte forma: a primeira parte ficou sendo um poema já publicado na Clépsidra de 1945; a segunda e a terceira parte resultaram do agrupamento de três conjuntos encontrados no caderno de Macau, que não tinham indicação de seqüência, nem de formarem conjunto entre si ou com o poema já publicado em 1945, e que vinham, no mesmo caderno, numa ordem diferente daquela em que vieram na edição de Castro Osório.
[3] Julguei por bem, por outro lado, manter à parte dois fragmentos de poemas reproduzidos de memória por terceiros, dos quais não há autógrafo ou publicação em vida de Pessanha, e dois sonetos de declarado intuito paródico ou satírico, enviados em carta a Trindade Coelho.
[4] Rubim, Gustavo. O livro de água. In: O Público. Lisboa, 10/2/1996.
[5] Camilo Pessanha – algumas considerações em contributo à sua biografia. In: Estudos Portugueses e Africanos, n° 21. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem/Universidade Estadual de Campinas, 1993.
[6] Op. cit., p. 47.
[7] Pessanha, Camilo. Clepsidra e outros poemas. Edição crítica, fixação do texto, introdução e notas de Barbara Spaggiari. Porto: Lello Editores, 1997. Embora a autora escreva, na Advertência, que “são pela primeira vez aqui utilizados documentos inéditos da Biblioteca Nacional de Lisboa e da Biblioteca Pública Municipal do Porto”, isso não é verdade.
[8] Pessanha, Camilo. Clepsydra. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003.
[9] Op. cit., p. 10-11.
[10] A entrevista foi publicada no Diário de Lisboa, em 21 de abril de 1921, e reproduzida, um ano depois, num jornal de Macau: O Liberal, nº 34, de 30 de abril de 1922. Não temos registro da reação de Pessanha a tais afirmativas, e não há corres­pondência conhecida entre o poeta e Ana de Castro Osório datada de depois da publicação da entrevista. O texto encontra-se reproduzido a páginas 82-83 do volume Homenagem a Camilo Pessanha, organizado por Daniel Pires e publicado em Macau, em 1990, pelo Instituto Português do Oriente e Instituto Cultural de Macau.
[11] A reprodução completa da carta pode ser consultada em: Pessanha, C. Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório (recolha, transcrição e notas de Maria José de Lancastre). Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984, p. 83.
[12] Op. cit., p. 15.
[13] Ou seja, só o critério de consignar a última intervenção consistente do autor é que pode embasar rigorosamente a escolha desses textos como texto-base para a anotação das variantes. Foi por isso que assim o fiz.
[14] A frase vem na p. 42 da edição de 1995. Na seqüência, transcrevia este comentário de Esther de Lemos: ‘A Clepsidra não constitui um todo organizado; é, sob aquele título, uma colectânea de poemas de Camilo Pessanha [...]”.
[15] “Clepsydra: poemas de Camilo Pessanha - reflexões para uma história de leitura e uma proposta de edição.” Quinto Império - Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa, nº 7. Salvador: Gabinete Português de Leitura, agosto-dezembro de 1996.
[16] Os textos a retificar encontram-se nas p. 103, 93 e 153, respectivamente.
[17] Mesmo não tendo acesso aos autógrafos ou à reprodução deles na Revista de Cultura de Macau, a autora poderia fugir à afirmação enganosa: bastava-lhe olhar a reprodução do recorte do jornal que apareceu na revista Persona, que ela refere na sua bibliografia. Cf. Persona, n° 10. Porto: Centro de Estudos Pessoanos, Julho de 1984, p. 65. Além da reprodução da Revista de Cultura e da Persona, também estava disponível, desde 1991, uma reprodução bastante legível desse documento no catálogo da Exposição Bibliográfico Itinerante em Portugal: 70° aniversário da primeira edição da Clepsidra (org. por Daniel Pires). Lisboa/Macau: Instituto Português do Oriente, Fundação Oriente e Missão de Macau em Lisboa, p. 32.
[18] Este é um dos casos em que João de Castro Osório é contraditório sobre a fonte que utilizou (ele ora diz que foi esse um dos textos ditados pelo poeta em 1916, ora que utilizou uma cópia de autógrafo enviado por terceiro). Spaggiari parece reconhecer a contradição e deve ter percebido que ela enfraquece a defesa da versão da Clepsydra de 1920. Isso explicaria os seus comentários e especulações sobre a fonte do editor de 1920, pois ela postula que o editor seguiu uma cópia – e não um ditado –,  que essa cópia deveria ser de uma versão posterior à que está no Caderno, que essa cópia, por alguma razão, “tem probabilidade” de ser autêntica e, finalmente, que essa mesma cópia “tem fortes probabilidades de ser, efectivamente, a lição definitiva, escolhida pelo poeta por volta de 1908 ou 1916". Por outro lado, para a autora parece ter havido ainda uma outra cópia manuscrita, a que ela se refere quando aventa mais uma hipótese sobre a introdução da variante “átomo”, e que ficamos sem saber se seria a mesma de que se valeu o editor da Clepsidra de 1920, e se seria autógrafa ou apógrafa. Em suma: há aqui um imbroglio que não pode e talvez não deva ser decifrado, pois, ao que tudo indica, a estratégia argumentativa de Spaggiari consiste justamente em confundir os dados, lançar hipóteses não fundamentadas, progredir de uma para outra com forte gradação de adjetivos e advérbios e obter, assim, uma aparência de demonstração que reconduza à conformidade com o parti-pris, que é a aceitação da versão Osório e a recusa a fundamentalista a qualquer divergência.
[19] Tampouco parece muito precisa em outros aspectos, mais propriamente históricos, quanto à introdução ou origem do vocabulário poético em língua portuguesa, como se pode ver nesta afirmação, em comentário ao poema “Eu vi a luz em um país perdido.”: “il sintagma minha alma, calco del francese mon âme e imperversante nella poesia portoghese fim-do-século, [...]” In: Pessanha, Camilo. Clepsidra (a cura di Barbara Spaggiari). Bari: Adriatica Editrice, 1983, p. 64, p. 66 e p. 245, respectivamente.
[20] Op. cit., p. 100. A anotação das variantes e o “aparato genético” se encontram nas p. 98-99.
[21] A propósito das versões desse soneto e do seu sentido, consultar o meu ensaio “Uma poética da nostalgia - Notas sobre a temática do exílio na obra de Camilo Pessanha”. In VV.AA. Sentido que a vida faz - estudos para Óscar Lopes. Porto: Campo das Letras, 1997. Esse texto, algo desenvolvido, integra, junto com alguns outros ensaios, inéditos até então, o volume Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha, que publiquei em São Paulo, pela Editora da Universidade de São Paulo, em 2001.

[22] Fico, aqui, com apenas mais um, que se encontra nas suas notas e no texto que nos dá do poema que começa “Depois das bodas de oiro”. Lemos na p. 120: “Texto da presente edição: Cl1". Isto é: a autora estaria propondo, como texto-base, o da edição de 1920 e não o que eu propus. Quando cotejamos os textos, porém, vemos que ela simplesmente adotou, sem nenhum registro, a pontuação que eu transcrevera e que é diferente da edição de 1920. É claro que a editora sabe que não utilizou a versão de 1920, com a sua pontuação excessiva de reticências. Tanto que anota, contraditoriamente, no aparato de variantes, todas as diferenças entre o texto que nos apresenta como o de 1920 e o que efetivamente veio naquela publicação. Só se esqueceu de registrar que ele coincide exatamente com a minha leitura do autógrafo publicado no número 10 da revista Persona.
[23] Não temos nenhuma prova de que foi Pessanha que intitulou um tríptico de sonetos “Caminho”; tampouco temos por certa a atribuição do título “Inscrição” e do título “Final”, com que vêm identificados, nas edições Osório, o primeiro e o último poema do conjunto que os editores entenderam como o núcleo da Clepsydra. Na edição de 1920, aliás, “Inscrição” e “Final” não ocupam o lugar tipográfico de título de poema, mas de seções do livro, que, assim, teria quatro: “Inscrição”, “Sonetos”, “Poesias” e “Final”. Spaggiari, na edição de 83, incorporou os nomes “Inscrição” e “Final” (no caso, mais exatamente, seguindo as edições posteriores: “Poema final”) aos poemas, como títulos. Na edição de 97, esses nomes vêm como na edição de 1920, abrindo seções.
[24] Trata-se do soneto que começa: “Ó Madalena, ó cabelos de rastos,”. Spaggiari parece não perceber também que, neste caso específico, talvez mais até do que em outros, atribuir um título dirige fortemente a leitura do poema.
[25] Pessanha, Camilo. A poesia de Camilo Pessanha. Coordenação, lição e apresentação de Carlos Morais José e Rui Cascais. Macau: Instituto Internacional de Macau, 2004.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Carta a Victor Mateus


UMA CARTA

a Victor Mateus, sobre o seu livro Regresso (Amarante, 2010)

Prezado Victor,
Li o seu livro com prazer, renovando assim o que me deu o contato primeiro com a sua poesia.
Não sei bem, entretanto, como traduzir a percepção em poucas palavras. Muito menos como redigir algo que pudesse colocar em alguma parte da capa do seu livro.
Mas vou tentar, com muitas palavras e talvez confusas, dizer o que senti ou pensei ao ler a sua poesia, neste livro – mas não só.
O que mais me impressiona nessa poesia é a tensão constante entre o discurso e a forma do verso. Se é que de verso se trata. Temos de fazer algum esforço, colocar a linha entre parênteses, para ouvir mais próxima a cadência dos outros versos, que se escondem dentro e ao redor dos definidos pela tipografia. Ao mesmo tempo, os cortes trazem um princípio de medida. Muito além, entretanto, do limite das doze sílabas: bárbaros, como se dizia. Em alguns poemas, a persistência do número das sílabas (em extensões médias de catorze, por exemplo) cria como um discurso duplo. Há uma frase que se ergue pela força do sopro lírico – a direção entusiasta da frase, para aproveitar remotamente uma formulação de Mallarmé – e que se vaza num molde abstrato, que a rompe, sem a impedir de se afirmar no seu ritmo próprio. Lembrando versículos entranhados num corpo estranho, o fraseado impõe aos poucos os princípios da sua regularidade, de que resultam interessantes harmônicos de sentidos. Por qualquer ângulo que se olhe, o que este livro faz é expor uma percepção aguda de cambiantes e contrastes. Uma desproporção anima o embate dos opostos: interior e exterior, carência e  posse, olhar para o outro e olhar do outro, sensação de partida e anseio pelo regresso. O discurso constitui os temas. A forma do verso os cristaliza, por meio do corte violento e aparentemente arbitrário, dos blocos regulares de linhas que se sucedem além dos requisitos ou emblemas da sintaxe, nos quais de repente brilha uma frase repetida, modulada agora pela nova posição em que se encontra. O motivo do retorno dá o título e tom dos poemas. O poeta retorna pela memória, pela celebração do momento efêmero. Retorna a si mesmo, à história de si que repete à beira do momento do abismo. Mas as suas palavras recusam o retorno fundamental. Apenas como desenho abstrato e como injunção de leitura se define esse verso. A voz coletiva do pulsar antigo aparece como escolho, ponto de referência, tentação. Por isso talvez não sinta que há de fato um tu nesses versos. Ainda quando surja, é uma duplicação da voz, um espelho, um caminho ou uma fuga de si mesmo. Uma busca, afinal. Mas essa, apesar da intenção, nunca redunda retorno, nem se resolve em reencontro, mas apenas em viagem cujo fim só poderá ser também o fim do viajante. O que senti quando li este livro é que, para desígnio tal e tal concepção do tempo e dos limites da própria percepção, a vida é mesmo um milagre, o verso também e, maior que todos, seria o regresso, se pudesse acontecer.
E aí está o que lhe podia escrever assim de repente.
Um grande abraço,
Paulo

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Luiz Gama


Jornal (4) Luiz Gama

Este texto, como os demais que trazem a rubrica “Jornal”, foi publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular, de Campinas, no ano de 2000.


Orfeu de carapinha


Cinqüenta anos após a última edição em livro, lançamento repõe em circulação os versos satíricos do poeta negro que foi também um dos primeiros e mais famosos militantes do Abolicionismo no Brasil



Esteve à venda, na praça de Campinas, no final de 1840, um menino chamado Luiz Gama. Por ser baiano e os negros baianos terem fama de rebeldes, não houve comprador. O menino, que tinha dez anos e era mercadoria encalhada, acabou sendo escravo doméstico do comerciante de gente, em São Paulo. Essa seria apenas uma história comum, não tivesse Luiz Gama nascido livre, filho de africana e de português, e não tivesse sido vendido pelo próprio pai, que se encontrava cheio de dívidas de jogo.
Embora algo incomum, não seria essa uma história digna de nota neste país. O que a singulariza é o que veio depois: Luiz Gama teria aprendido a ler com 17 anos, quando ainda era escravo. Sabendo ler, teria conseguido provas de que era um homem livre, e, por isso, fugido do cativeiro e se alistado na Guarda Municipal de São Paulo, onde permaneceu até 1854. Após trabalhar algum tempo como escriturário, publicou, em 1859, um livro de poemas que fez sucesso, tornou-se maçom e obteve licença para advogar, passando a defender escravos em todo o Estado de São Paulo. Ainda criou escolas primárias gratuitas para crianças e cursos noturnos de alfabetização de adultos, participou da fundação do Partido Republicano Paulista (que depois abandonou), perdeu empregos por combater e denunciar arbitrariedades da Justiça, foi eleito venerável de uma loja maçônica, prestou serviços jurídicos gratuitos em questões relativas a escravos, fundou e dirigiu um jornal satírico ilustrado e morreu pobre, em 24 de agosto de 1882.
Essa é, em linhas gerais, a biografia aceita de Luiz Gama. Sobre a primeira parte (a história familiar e o período da escravidão) a única fonte da história é o testemunho do próprio Gama, de modo que não é preciso jurar que tudo tenha ocorrido como ele conta. Mas mesmo que não sejam completos ou verdadeiros os dados referentes ao primeiro período de sua vida (nunca se soube o nome do seu pai, por exemplo, nem como ele obteve as tais provas de que era livre), o resto da sua biografia continua sendo literária e politicamente muito singular.
A obra poética de Luiz Gama é pequena e o que há nela de melhor são os poemas que satirizam os costumes, as modas e, principalmente, os vícios de classe. O artifício principal do poeta, que se autodenominava "Orfeu de carapinha", é explicitar a sua condição de raça, aceitar o olhar preconceituoso do outro e depois torná-lo vítima do próprio preconceito, mostrando-lhe que o lugar que ocupam ambos, poeta e interlocutor, é semelhante. É o caso de "Sortimento de gorras para a gente do grande tom", "E não pôde negar ser meu parente" e "Quem sou eu?", mais conhecido como "Bodarrada". Também são muito interessantes os seus "bestialógicos" ou "disparates rimados" (isto é, poemas que produzem o riso pela apresentação de cenas ou pela construção de frases absurdas), como "O grande curador do mal das vinhas".
Ao todo são 51 poemas, a maior parte dos quais foi publicada pela primeira vez em 59, com o título Primeiras trovas burlescas. Em 1861 saiu uma segunda edição aumentada, que foi a última em vida do autor. Postumamente, em 1904 e em 1944 fizeram-se outras edições da sua poesia. Agora, 50 anos depois, voltam à circulação essas Primeiras Trovas Burlescas (Ed. Martins Fontes, 323 p., R$ 28), em volume organizado por Lígia F. Ferreira. Trata-se de um acontecimento que é preciso comemorar. Primeiro porque o leitor agora pode ler, em versão correta, poemas célebres em seu tempo, como "A pitada" e "O balão", além dos referidos há pouco. Segundo, porque a obra vem precedida de um texto introdutório inteligente e sereno, no qual a organizadora discute os principais pontos da fortuna crítica do autor e apresenta os principais momentos da sua conturbada biografia. Terceiro, porque a tudo isso se acresce um belo conjunto de fotografias, muitas das quais feitas para esta edição.
            Seria possível fazer alguns reparos ao texto introdutório de Lígia Ferreira. Na consideração da fortuna crítica, a autora identifica a principal questão cultural, que é: "qual o lugar, na estrutura social do Segundo Reinado, de um negro livre, escritor, político, contestador do status quo monarquista e escravocrata?". Identifica perfeitamente também o problema historiográfico: "analogamente, tem sido difícil propor uma classificação para a obra de Luiz Gama dentro da literatura brasileira" (p. LXII). Mas ao proceder à revisão da fortuna crítica, Lígia não aborda com a necessária firmeza os pontos cegos evidentes nos textos que estuda e transcreve. Aceitando, com eles, que o Modernismo de 22 é o desenlace lógico de toda a história da literatura brasileira, Lígia acaba por traçar um panorama literário um tanto descosido, no qual seu objeto não consegue se encaixar devidamente. Como, porém, a autora está elaborando um trabalho de grande fôlego sobre Luiz Gama, de que este livro é apenas a etapa preparatória, não vale a pena debater agora estas questões, que certamente serão objeto de reflexão mais aprofundada no novo trabalho já anunciado. De momento, o que importa é agradecer-lhe por tornar novamente disponíveis para leitura os poemas de Luiz Gama.
Ao leitor que quiser percorrer o livro, sugiro especialmente, além dos acima mencionados, que leia o poema "Minha mãe", "Farmacopéia" e, finalmente, "Meus amores", que celebra o erotismo da mulher negra. Já para o leitor que se restringirá à leitura desta página, transcrevo, como amostras, o soneto "Retrato" (que é, pelos seus ecos baianos seiscentistas, um dos meus favoritos) e alguns trechos de outros poemas maiores, bem como da famosa carta autobiográfica a Lúcio de Mendonça.



Retrato

É renga, magricela e presumida,
Com pele de muxiba engrouvinhada;
O corpo de sumaca desarmada,
A cara de muafa mal cosida;

A perna de forquilha retorcida,
Os ombros de cangalha um tanto usada;
A boca, de ratões grata morada,
Maçante na conversa e mal sofrida;

Senhora de um leproso cão rafeiro,
Que, querendo passar por mocetona,
Se besunta com sebo de carneiro;

Vestida é saracura de japona,
De feia catadura, e de mau cheiro,
Eis a choca perua da Amazona.



De "Quem sou eu?"

(...) Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
- Tudo marra, tudo berra -.
(...)


De "Sortimento de gorras para a gente do grande tom"

(...)
Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é preta-mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!
(...)






Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.
Este alferes Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província.
Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas.
Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu “baiano”.
Valeu-me a pecha!
O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:
“- Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
- Na Bahia, respondi eu.
- Baiano? – exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno.”
Repelido como “refugo”, com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio no. 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.


Trecho da carta autobiográfica enviada por Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, em 25 de julho de 1880.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Machado e Camilo


 Machado e Camilo


Resumo:

            É intrigante a quase nenhuma referência de Machado de Assis a Camilo Castelo Branco, escritor que era dos mais lidos no Brasil e pessoa das relações da família de Carolina, sua mulher. Ao mesmo tempo, são muitas, na obra de Machado, as referências a outros autores portugueses, entre as quais se destaca a feita a Garrett no prólogo da terceira edição das Memórias póstumas de Brás Cubas. Nesta comunicação, esse silêncio eloquente é pensado contra o pano de fundo do quadro mais amplo da situação de Machado no campo da prosa moderna em língua portuguesa.


Palavras-chave: Machado de Assis, Camilo Castelo Branco, realismo no Brasil

     Uma questão que parece pacífica é a divisão da obra de Machado em duas fases. A primeira compreendendo os 4 primeiros romances (Ressurreição, 1872; A mão e a Luva, 1874; Helena, 1876, e Iaiá Garcia, 1878); a segunda os outros 5 (Memórias póstumas, 1881; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1899; Esaú e Jacó, 1904; Memorial de Aires, 1908).
     A motivação para o corte e a mudança (se corte e mudança houve), tem sido motivo para alguma discussão. As hipóteses biográficas predominam, com a responsabilização da famosa crise de saúde que o teria levado a Friburgo, de onde retornaria com as Memórias. Logo mais retornarei a esse ponto. De momento, queria considerar a descrição geral das duas fases.
     À primeira se tem usualmente denominado “romântica” e à segunda “realista”.
     Mesmo os que, como BOSI (1994, p. 174), julgam inadequada a atribuição da denominação “romântica” à “primeira fase” (ele diz que a melhor maneira de a descrever seria como “de compromisso” ou “convencional”), não a descartam de todo, mas antes a transformam em etapas bem marcadas de uma evolução. Para só referir o mesmo autor, Bosi vê a segunda fase como uma intensificação e radicalização da primeira, do ponto de vista da narrativa, que aprofundaria o “desprezo às idealizações românticas”.
     Na descrição preferencial, a mudança se materializaria no abandono da perspectiva onisciente e na assunção da primeira pessoa narrativa. Bosi, a respeito, afirma que Machado teria ferido “no cerne o mito do narrador onisciente”. Isso conduziria Machado a um tipo superior de realismo, mas não ao realismo tal como era conhecido em seu tempo, que propunha justamente o ponto de vista neutro do “experimentador” como o meio técnico para a melhor realização do romance.
     Já Roberto Schwarz escreve, sob a questão do narrador em Brás Cubas:

                        Ao colocar na posição de sujeito narrativo o tipo social de Brás Cubas – o verdadeiro alvo da sátira – Machado tomava um rumo perverso e desnorteante. Camuflada pela primeira pessoa do singular, que a ninguém ocorreria usar em prejuízo próprio e com propósito infamante, a imitação ferina dos comportamentos da elite criava um quadro de alta mistificação: cabe ao leitor descobrir que não está diante de um exemplo de auto-exame e requintada franqueza, mas de uma denúncia devastadora. (SCHWARZ, 1990, 177-8)

     Entretanto, vale a pena olhar com mais atenção o desenho – não apenas do narrador, mas também do leitor ao longo das duas fases da obra machadiana, bem como ter em mente o momento preciso no qual se teria dado a virada.
     A leitura dos quatro primeiros romances de Machado mostra um desenho interessante, no que diz respeito à assunção da voz autoral e da representação do leitor.
            Em Ressurreição, 1872, há 3 momentos importantes nos quais o autor assume a voz autoral e dialoga diretamente com o leitor. O mais interessante deles é este:

            Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista. A convicção, porém, do médico, — sincera, decerto, — era menos sólida e pausada do que convinha. A alma dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias favoreciam e justificavam. (Cap. XXII)



     Já no livro seguinte, A mão e a luva, 1874,  são inúmeras as vezes nas quais o autor assume a voz autoral e interpela ou dialoga com o leitor. Das quais as mais notáveis são estas:

Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, — aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio. (Cap. VII)

Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, numa história, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa não se animaria a fazer; — não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estevão. (Cap. IX)

Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditórios, como é de razão em análogas situações. Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir à cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. (Cap. XI)

A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia neles uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmitir aos lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte. (Cap. XII)

Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baronesa não são os da leitora; ela só lhe via o lado bom, — que era realmente bom, — ainda que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via nem podia ver-lhe a frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto que se lhe gerava no coração. (Cap. XIII)

Não falo eu, leitor; transcrevo apenas fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que ele abria por esse espaço fora, única ventura que lhe era permitida. (Cap. XVI)




     Em Helena, 1876, as referências ao leitor são mínimas, sem especificidade nem digressão. E a voz autoral não se apresenta.
     Por fim, em Iaiá Garcia, 1878,  a narração transcorre totalmente neutra, sem assunção da voz e sem tematização do leitor ou do processo de escrita.
     Como se vê, o narrador machadiano evolui numa direção entre 1872 e 1874, mas muda de rumo entre 1876 e 1878. Apaga-se a figura autoral, a tematização do livro e do ato da escrita desaparecem, o narrador não se apresenta nem interage com o leitor. O ápice desse processo é Iaiá Garcia.
     Dir-se-ia que Machado caminhava numa direção precisa: abandonava o modelo da narração romântica, de narrador intrusivo, e adotava o narrador onisciente neutro. Ou seja, caminhava na direção do tempo, no que diz respeito à constituição do narrador realista.
     No entanto, após 1878, o rumo se alterou, como sabemos. E as Memórias póstumas exibirão, como lemos na apresentação do defunto autor, “a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre” (ASSIS, 2004A, 513).
     Não seria absurdo pensar, quando se observam todos os ecos da famosa polêmica que no Brasil se gerou em torno do livro O primo Basílio, que a mudança de rumos se deu também como uma recusa ao “realismo”.
     De fato, Machado reagiu duramente ao livro de Eça, lançado no mesmo ano do seu Iaiá Garcia, firmando posição como opositor do realismo e, por extensão, à forma moderna do romance, contra a qual aconselhava beber “aquelas águas sadias do Monge de Cister, do Arco de Sant'Ana e do Guarani.” (ASSIS, 2004B, 908)
     Os três livros referidos como exemplares formam um conjunto curioso. O que eles têm em comum, além do fato de serem romances históricos – e é difícil crer que Machado imaginasse que a oposição ao realismo passaria pela ressurreição da novela histórica –, é que são livros de linguagem e assunto elevados.
     Como escreveu Roberto Schwarz a propósito da posição de Machado nessa polêmica,
            a norma é antimoderna em toda a linha. A recusa da matéria baixa leva à procura do assunto elevado, quer dizer expurgado das finalidades práticas da vida contemporânea. (SCHWARZ, 1977, 65)

     Mas ao menos no que diz respeito ao Arco e ao Monge há um ponto comum que terá mais peso no desenvolvimento futuro da obra de Machado: a narrativa em que o diálogo com o leitor, tematizando as suas expectativas ou apenas utilizando-o como muleta para a passagem de uma a outra cena.
     De modo que é possível compreender o movimento de Machado, na oposição ao realismo, como um recuo para o tipo de narrador romântico que ele tão bem ensaiara em A mão e a luva. Como se o vetor rumo à modernidade do romance sofresse um abalo, e, face à impossível competição com o furor causado pela construção realista, o escritor se visse forçado a buscar novos rumos, a desenvolver nova estratégia.
     A pergunta que me fiz, quando pensei a questão nesses termos, foi: por que não houve, nos textos de debate, nem depois, menção à literatura de Camilo Castelo Branco?
     Afinal, não é Camilo o escritor em língua portuguesa que melhor trabalha (pelo menos até Machado começar a publicar os romances da “segunda fase”) o diálogo com o leitor? E não é Camilo quem mais duramente satiriza as expectativas do leitor romântico, chegando frequentemente às raias do insulto?
     A quase nenhuma referência de Machado a Camilo é de causar espécie. O levantamento completo está na tese de Marcelo SANDMANN (2004). Ali podemos constatar a exigüidade da referência: com exceção de uma alusão em 1889, a propósito da tentativa de substituição de palavras francesas por portuguesas, de um comentário de juventude e de um anúncio de publicação de romance em jornal, Camilo é uma ausência gritante na crítica ou na criação de Machado.
     Que o autor brasileiro conhecia bem a obra do português é certo. Não havia na intelectualidade brasileira do tempo que pudesse desconhecê-la.
     Tão boa era aqui a recepção de seus livros, que ele cogitou em vir ao país. E uma anedota permite ver que era mesmo idolatrado: no mesmo ano em que morreu Machado de Assis, o Real Gabinete Português de Leitura incluiu em seu acervo, como uma espécie de relíquia, um dente incisivo de Camilo, por ele dado a uma pessoa de sua amizade.
     Não bastasse a nomeada do escritor, Xavier de Novais, correspondente e amigo dileto de Camilo, era cunhado de Machado de Assis. E outro grande amigo de Camilo era António Feliciano de Castilho, que Machado tinha em altíssima conta, chamando-lhe, em elogio fúnebre, “poeta egrégio”, “mestre da língua” e “príncipe da forma” (ASSIS, 2004b, 979). Ora, ambos esses autores comparecem, por exemplo, num dos mais notáveis romances do escritor português, Coração, cabeça e estômago. Novais como destinatário da narração, no primeiro capítulo.
     Por todos esses motivos, era impossível que Machado não conhecesse bem a obra de Camilo, incluindo esse romance, que fora publicado no mesmo ano de Amor de perdição, isto é, 1862. E quando consideramos que Eça de Queirós, seu antagonista em 1878, fora um dos paladinos da Ideia Nova em Portugal, aliado portanto de Antero contra Castilho, e que Camilo tomara o partido do amigo – ou seja, considerando que Eça e Camilo estavam em campos opostos no que diz respeito à questão do realismo na arte, mais estranha ainda fica a ausência deste último na crítica de Machado.
     Minhas hipóteses para esse silêncio são duas, uma de foco externo, outra de foco interno.
     No que diz respeito ao foco externo, é preciso lembrar que Camilo sempre foi muito ácido em relação ao Brasil e aos brasileiros. E exatamente no ano em que se dava a “virada” machadiana, na qual Camilo poderia ter sido uma bandeira contra a Ideia Nova, desfecha-se a famosa polêmica sobre o Cancioneiro alegre – organizado por Camilo, no qual o tratamento dado a poetas brasileiros pareceu a muitos injusto e ofensivo.
     Desencadeada a polêmica, Camilo a conduziu como sempre: para ele importava certamente menos o embate de ideias do que a destruição do adversário, por meio de argumentos ad hoc e ad hominem. No caso da polêmica com os brasileiros, os argumentos de fundo racista e o preconceito colonial surgem a cada passo.
     No momento, pois, em que Machado, no desenvolvimento da sua obra na sequência ao embate com o realismo, busca o novo rumo romanesco por meio de uma retomada de um tipo de narrativa que, do ponto de vista dos procedimentos, poderia denominar-se romântica, Camilo não é autoridade a ser referida no Brasil.
     Já quanto ao foco interno, seria possível ver no apagamento do nome de Camilo por Machado uma manifestação daquilo que hoje se denomina, na esteira de Bloom, “angústia da influência”.
     De fato, dentro dos romances do autor português, bem como nos prefácios, encontraremos múltiplas ocorrências de reflexão sobre a ficcionalidade, o ato e os limites da escrita, e sobre as expectativas de leitura do leitor romântico, que depois vieram a ser postuladas como índice da modernidade inovadora de Machado. E em muitas das suas obras – mas especialmente nas Novelas do Minho, 1875-7 – deparamos com uma pletora de construções e torneios sintáticos semelhantes aos que depois seriam vistos como característicos do estilo machadiano.
     Vejamos alguns exemplos, que falarão mais claro do que qualquer descrição.
     De Novelas do Minho, "O filho natural", recolhem-se estas frases:

            como lhe faltasse a respiração e a gramática, o procurador tomou fôlego; eram as cinco jóias do Porto em delicadeza de espírito e de cintura;  um terceiro andar - altura onde os suspiros exalados desde a rua chegam em temperatura honesta;  saiu eleito... por novecentos mil-réis, trinta e nove cabritos, e 2 ½ pipas de vinho verde;  tão insuficientemente vestido, como o poderia estar o nosso primeiro avô, se fugisse do Paraíso depois de inventar o lençol. (BRANCO, 1988, 230, 185, 188, 193, 187)
           
     De Coração, cabeça e estômago:

            não tinha caligrafia, nem idéias; com uma pequena mesada e a esperança de ficarem pobres; dote quadrúpede;  (BRANCO, 2003, 15,17, 22)  

     Já em O que fazem mulheres - romance filosófico (1863), abundam os jogos metaficcionais e o jogo com as expectativas de leitura. Assim é que lemos, logo na abertura, um prólogo intitulado "A todos os que lerem":

É uma história que faz arrepiar os cabelos.
Há aqui bacamartes e pistolas, lágrimas e sangue, gemidos e berros, anjos e demônios.
É um arsenal, uma sarrabulhada, e um dia de juízo!
Isto sim que é romance! [...]
Há aí almas de pedra, corações de zinco, olhos de vidro, peitos de asfalto?
Que venham para cá.
Aqui há cebola para todos os olhos;
Broca para todas as almas;
Cadinhos de fundição metalúrgica para todos os peitos.
Não se resiste a isto.
Há-de chorar toda a gente, ou eu vou contar aos peixes, como o padre Vieira, este miserando conto. (BRANCO, 1983, 1231-2)

     A este segue-se um segundo prólogo, intitulado "A algum dos que lerem", no qual o autor discorre seriamente sobre as virtudes da heroína, e se defende antecipadamente da acusação de inverossimilhança.
Por fim, vem uma espécie de terceiro prólogo, porque destacado do corpo principal do romance, intitulado "Capítulo Avulso / para ser colocado onde o leitor quiser".  No interior do romance há outros jogos com a forma física do livro, como, por exemplo, um trecho digressivo entre os capítulos XIV e XV, sem numeração, identificado apenas como "Cinco páginas que é melhor não se lerem".
No romance A filha do Arcediago, de 1856, encontramos esta declaração:

            Sou o primeiro a confessar que o meu romance está caindo muito! [...] Ainda um casamento... passe! Mas dois casamentos!... É abusar dos dons da igreja, ou romantizar o fato mais prosaico desta vida! Isto em mim creio que é falta de imaginação, ou demasiado servilismo à verdade! (BRANCO, 1982, 1079)

 E, no final do capítulo XXVII, esta curiosa tabela:

Relação das pessoas que já morreram neste romance

O mestre de Latim .................................................        1
A Senhora Escolástica...........................................          1
O arcediago ..........................................................         1
Uma velha da Viela do Cirne, cujo nome me não lembro..  1
O Senhor António José da Silva......................................  1
Antónia Brites, amante de Augusto Leite.........................  1
Dous soldados de cavalaria..............................................  2
                                                                                        –  
Soma total.......................................................................  8
Continuarão a morrer convenientemente. (BRANCO, 1982, 1136)


     Em Coração, cabeça e estômago temos ainda os jogos com as instâncias autorais – que caracterizam o romance machadiano, especialmente os dois últimos –  e que conferem modernidade surpreendente ao texto camiliano, poucas vezes reconhecida pela crítica.
     E temos, por fim, em pleno vigor, aquele procedimento que Schwarz via como definidor da virada machadiana e que afirmava não ter ocorrido a ninguém, isto é, o uso da primeira pessoa do singular, “em prejuízo próprio e com propósito infamante”.
     Por fim, mesmo no nível temático há um elemento de proximidade – já registrado pela crítica – que chama a atenção: da mesma forma que Brás Cubas, Silvestre da Silva se dedica à quimera de criar um remédio universal. No caso, um que permitisse curar a melancolia. É o antepassado do emplastro de Brás Cubas, também aqui buscado por amor à nomeada.
     Não é evidentemente objetivo desta comunicação elevar Camilo ou rebaixar Machado. Apenas creio que esse é um problema curioso de história literária, que envolve, por um lado, a tradição camiliana consolidada, que pouca atenção deu à modernidade radical do seu autor – uma vez que, na visão hegemônica, Camilo é sempre o escritor do passado e cultor da língua castiça, enquanto Eça e a geração de 70 subsumem em si toda a modernidade da segunda metade do século XIX; e por outro, a tradição machadiana, que se construiu à volta da afirmação do realismo de Machado, ainda que os seus procedimentos mais ostensivos não se enquadrem no que, no resto do mundo, se compreende como a linhagem realista que vai de Flaubert a Zola.
     Conjugadas ambas as tradições com a grande tensão que, nos anos finais do Império brasileiro se vai criar, em termos literários, entre a antiga metrópole a o novo país, resultou a pouca atenção aos evidentes laços de família que unem Machado a Camilo. Em vez disso, a crítica reafirmou a descrição preferencial de Machado – ou melhor, de Brás Cubas, pois é ele o autor da nota Ao leitor, onde se afirma que a novidade do livro é a “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre”.
     A vinculação da nova maneira machadiana à obra pregressa do autor, bem como à tradição portuguesa – só lembrada, reativamente, no prólogo da terceira edição, em resposta a uma afirmação de Macedo Soares – ficou assim de alguma forma obscurecida. Não sei se a atenção às linhas de continuidade na chamada segunda fase permitiria alterar algo na configuração crítica da obra de Machado. Mas minha impressão é que a história literária, bem como a leitura do lugar de Machado na constituição da prosa de língua portuguesa ganham se as Memórias póstumas deixarem de ser vistas como um raio em céu azul e passarem a ser compreendidas como o momento de eclosão de um veio profundo da prosa de língua portuguesa, que talvez se possa mesmo explicar – e quem sabe em termos sociológicos não fosse uma explicação interessante? – pela constituição do público em países periféricos e fortemente estratificados, do ponto de vista social.

Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. Obra completa – Volume I. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004A, 1216 p.
ASSIS, Machado de. Obra completa – Volume III. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004B, 1200 p.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 32ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, 528 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Coração, cabeça e estômago. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 244 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras Completas – vol. I. Porto: Lello & Irmão, 1982, 1486 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras Completas – vol. II. Porto: Lello & Irmão, 1983, 1374 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras Completas – vol. VIII. Porto: Lello & Irmão, 1988, 1152 p.
SANDMANN, Marcelo. Aquém-além-mar : presenças portuguesas em Machado de Assis. Tese de doutoramento, cópia digital: www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000321444&fd=y
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, 172 p.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990, 228 p.


[Texto apresentado no congresso da Abralic, em 2011]