sábado, 9 de junho de 2012

Camilo Pessanha e a gruta de Camões


Pessanha e a gruta de Camões[1]


                                                                                                              



               Uma das últimas incursões de Pessanha na escrita foi uma conferência que pronunciou sobre Camões, por ocasião do dia nacional português, o 10 de junho, em 1924 – menos de dois anos, portanto, antes da sua morte, que ocorreria em 1o de março de 1926.
               Intitulada “Macau e a gruta de Camões”, aborda uma questão da maior relevância para o poeta: as condições de existência e manutenção da capacidade poética no exílio.
               Não são muitos os textos em prosa de Pessanha em que ele reflete sobre poesia. Reduzem-se basicamente a três: uma resenha de um livro de Alberto Osório de Castro, o resumo de uma conferência dedicada à estética chinesa, e esta.
               A resenha do livro de Alberto Osório de Castro mereceu já atenção crítica, num belo ensaio de Gustavo Rubim, intitulado Experiência da alucinação – Camilo Pessanha e a questão da poesia. Rubim também estudou a conferência sobre a estética chinesa. Mas o breve texto da conferência de 1924 (que tem apenas cinco páginas), talvez mesmo porque dele não se consiga extrair um perfil modernista para Camilo Pessanha, permaneceu praticamente sem comentário analítico, apesar de aí se encontrar uma curiosa e muito particular definição do que sejam lirismo e inspiração poética.
               A análise desse texto – precedida do comentário de poemas em que alguns tópicos relacionados com o seu tema são glosados – constituirá o cerne desta comunicação.


1


               Antes, porém, para melhor situar, no arco da vida e da reflexão de Camilo Pessanha, o texto que hoje nos interessa, devemos fazer um recuo de exatos 30 anos. Devemos voltar a abril de 1894. Pessanha acabara de chegar a Macau. Ainda deslumbrado com a diversidade oriental e esforçando-se por ambientar-se na colônia, escreve a Alberto Osório de Castro uma carta na qual expõe uma percepção da passagem do tempo e do deslocamento para longe da terra natal que permitirá melhor compreender o texto da conferência sobre Camões.
               Como não será possível alongar-me, destacarei apenas dois pequenos trechos da carta.
               Eis o primeiro deles:

               E eu, que tinha saudades de quanto ia deixando, até de Barcelona, onde estive cinco dias, até de Colombo onde estive duas horas. Porque a gente é bem um grumo de sangue, que por toda a parte se vai desfazen­do e vai ficando.[2]

               O afastamento impõe o esvaziamento, como a passagem do tempo também o impõe: ao longo do duplo percurso, temporal e espacial, esse coágulo que somos nós perde um pouco de si, impregna aquilo que nos impressionou ou nos seduziu: algo se desprende de nós e fica para trás, e nós nos vamos assim dissolvendo ao longo dos eixos do tempo e do espaço. É o sentimento decorrente dessa percepção que o poeta denomina genericamente de saudade e que tem, no contexto em que surge, uma forma específica: menos do que uma perspectiva de recuperação de um bem perdido, é a consciência de que não é possível apreender as experiências e mantê-las, não é possível incorporá-las à subjetividade. A noção básica que informa essa passagem é a da perda. A própria memória, vista pelo prisma da metáfora do grumo de sangue, se reduz assim a uma espécie de consciência dolorosa da perda inevitável. Ter memória das experiências, parece, é possuir ao mesmo tempo o desejo pela vida que se escoa e a consciência do desfazimento gradual implícito em toda experiência sensível e afetiva.
               Essa mesma percepção percorre boa parte dos poemas de Camilo Pessanha, e foi objeto de um estudo que em outro tempo realizei e que não cabe agora resumir.[3]
               Para o que nos interessa aqui, o importante é considerar esses trechos a partir da questão do exílio, do afastamento da terra natal – que era o tópico daquela carta em que a viagem para o Oriente fornece a matéria principal.
               Ora, enquanto experiência de exílio, não há aqui uma saudade indeterminada, e sim uma atualização muito concreta da nostalgia, que potencializa a sensação de deslocamento e o desejo de retorno.
               É em função da nostalgia que devemos observar o ­apego inesperado aos lugares pelos quais passa, pois o que aí vem para primeiro plano é sempre a percepção do afastamento. Como se quisesse reter o movimento de distanciamento da pátria, o poeta se agarra emocionalmente às escalas dessa navegação para o outro lado do mundo e assim sente saudades inexplicáveis. É, portanto, por uma espécie de contágio que a partida desses lugares sem conteúdo real afetivo lhe vai despertar o mesmo sentimento com que se afastara da terra natal, no começo do percurso.
               A segunda passagem da mesma carta permite completar o quadro:

               Ai, meu pobre amigo: eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza.[4]

               Alberto Osório de Castro é aí associado ao apetite, à vontade de posse e de conquista. É um contraponto perfeito a Pessanha, que se retrata como aquele que tenta desesperadamente acumular, guardar em si os afetos e as sensações, protegê-los inutilmente do desfazimento a que está fatalmente condenado o sujeito ao longo da vida e da viagem.
               A consideração do texto de 1924 permitirá dar um sentido mais amplo à metáfora da “avareza” como atitude do poeta frente ao mundo. Mas antes, para fazer comparecer aqui a grande poesia de Camilo Pessanha, vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.


2

               São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
               Comecemos por este último:

            Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, -- a perder de vista.

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
-- Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!

Quem vos desfez, formas inconsistentes,
 Por cujo amor escalei a muralha,
-- Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...


            Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da decepção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
               Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De fato, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
               Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
               Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:

Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?

               Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.

               Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
               Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
               O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
               E destaca-se, na leitura, o fato de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
               No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
               No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
               A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
               Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
               Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a percepção do destino individual do poeta.
               No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospectivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
               Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
               Do ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, “San Gabriel” representa uma continuação do movimento reflexivo presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado.
              
              
                        SAN GABRIEL

(No quarto centenário do
descobrimento da Índia)

I

Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram
Que tão altas nos topes tremularam,
-- Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar.
Vem‑nos guiar sobre a planície azul.

Vem‑nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!


                        II

Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir‑se‑ia
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar, não mais deixes de envolvê-las!

San Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa
Que do horizonte vapora, luminosa
E a noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
-- Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.


               Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, “San Gabriel” é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1498.
               Iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânia, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo.
               Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e imagens vão como que minando a leitura feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico, a se deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a se deixar ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é um ponto a destacar.
               Mas de momento, importa observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
               Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado:

Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

               Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: não mais se trata de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica.

               Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, próximo do soneto que comentamos anteriormente, é sensível que os dois poemas apresentam diferenças de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista.
               Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, aqui essa perspectiva se delineia: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista.
               Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projeta-se na distância infinita: é a nebulosa que é agora o destino dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado.
               É essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no “San Gabriel” de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização.
               O seu fim, o seu desígnio já não é senão o encontro com o passado. Mas não na forma da retomada ou transfiguração da energia perdida, e sim apenas na contemplação dos exemplos de resignação, tristeza e severidade. Nessa navegação para a desistência se afirma a perspectiva desesperançada de Pessanha, no limiar da modernidade portuguesa. E é essa perspectiva toda negativa, que não ensaia qualquer redenção, nem no nível pessoal, nem no coletivo, que distingue o tom específico de Pessanha dos vários tons modernistas que lhe são contemporâneos.


3

               Chegamos por fim ao texto no qual Pessanha se dedica explicitamente à memória de Camões, que começa por referir a tradição de que Camões esteve em Macau e ali escreveu Os Lusíadas. Observando que é da índole do tempo contestar as verdades tradicionais, Pessanha compara a tradição com uma planta viva, arraigada no sentimento popular, do qual tira a seiva que a mantém.
               A tradição é assim, para ele, mais do que um testemunho de verdade histórica, um símbolo vivo e adequado à expressão de um conceito. E por isso sua conferência se propõe não a discutir a sua procedência factual, mas sim a grandeza do objeto venerado e o equilíbrio e a adequação dos elementos que o acompanham e com ele compõem o quadro significativo.
               Para Pessanha, a grandeza de Camões é evidente. Cumpre-lhe, então, como primeiro passo de análise, verificar se os demais elementos – isto é, principalmente, Macau – prestam-se a formar, com a grandeza do poeta e dos feitos heróicos que ele cantou no seu poema, um conjunto coerente e significativo.
               Para afirmá-lo, Pessanha lança mão de dois argumentos. O primeiro é autodemonstrativo: o território português na China é o lugar mais remoto a que chegaram e em que se instalaram os portugueses – ou seja, a localização de Macau se harmoniza com o assunto do poema camoniano, que canta a epopéia marítima das descobertas orientais. Já o segundo tem complexidade maior e se embasa numa postulação surpreendente, de alcance amplo. É o que nos interessa mais de perto.
               Eis:

               [...] a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo: e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcadio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum.

               Para Pessanha, a inspiração não apenas radica na emotividade. É emotividade. Mas emotividade modalizada, moldada pela “educação”, que lhe dá uma direção, limitação ou pré-configuração específica. A forma dessa modalização da emotividade, que a transforma em capacidade de poesia, não é, porém, como a palavra “educada” poderia fazer supor, a inserção numa tradição literária. Não estamos aqui no mesmo universo em que se moverá, por essa época, a reflexão de T. S. Eliot ou de Ezra Pound. O que faz a inspiração poética, para Camilo Pessanha, é a sua determinação pela experiência coletiva sedimentada num dado espaço e enquadramento natural – e que comparece, no seu texto, na metáfora vegetal do profundo enraizamento no “húmus da terra natal”.
               O ponto é importante: para Pessanha, não é a simples integração na Natureza ou a sua contemplação embevecida a condição da poesia. Pelo contrário, seu texto caminha no sentido de reduzir a abrangência do “natural”. Primeiro, pela identificação do “natural” com o bucólico – isto é, limitando a natureza eficaz para a poesia aos elementos que caracterizam a forma de vida das populações agrícolas, num território delimitado; segundo, pela assimilação do bucolismo ao regionalismo – o que promove uma segunda particularização do natural, restringindo ainda mais a sua eficácia e determinando-o, no âmbito do texto, como lugar de origem.
               A postulação de que a poesia é regionalismo é ainda da maior importância porque é com base nela que Pessanha irá assentar, na seqüência, a especificidade da forma portuguesa de ser poeta. E ele o faz da seguinte maneira: se toda poesia se define, de alguma forma, como vivência do bucólico e do regional, e se a emoção poética em geral se orienta pelas mesmas forças que determinam a constituição de um caráter étnico específico, a inspiração poética portuguesa se vai caracterizar e distinguir por só vigorar em vinculação direta com o torrão natal.
               Para um português, assim, o afastamento da origem é uma ameaça concreta à permanência da inspiração poética, pois esta só pode vigorar se, por meio da evocação, a sensação de desenraizamento, de exílio e afastamento da terra natal for eliminada ou posta em suspenso.
               Daí procedem a importância e a singularidade de Macau, entre os territórios habitados pelos portugueses. Sendo ela a única possessão situada no hemisfério norte, é ela a única que tem as estações do ano sincrônicas com as da metrópole. Por conta disso, em Macau os eventos religiosos e culturais têm o mesmo enquadramento sazonal que em Portugal, o que teria, segundo Pessanha, uma importante conseqüência. Vejamos:

               [...] em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos freqüentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas [...], das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante [...], e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa.

               À primeira vista, nada pareceria mais difícil, já que Macau pouco tem de português senão as casas e o contorno dos telhados. Para produzir-se a ilusão de estar em Portugal, de fato, é preciso abstrair-se de tudo o que é chinês – de tudo o que, enfim, é Macau.  Ou seja, é preciso ser capaz de obliterar os dados dos sentidos – não ver as inscrições, não perceber os odores tropicais, não ouvir as falas e as vozes, não contemplar os barcos. Mas, ainda assim, ali é fácil – ou seja, é possível, por oposição às colônias outras, situadas no hemisfério sul – produzir a alucinação do retorno, porque o enquadramento sazonal do calendário afetivo e cultural é um potente estimulador da nostalgia, que acende a imaginação e produz a alucinação de retorno à terra natal – condição necessária para a inspiração poética portuguesa.
                Descobre-se, então, a primeira justificativa para a escolha de Macau como lugar de culto de Camões e do povo português. Ao afirmar que ele ali teria escrito o poema nacional português, a tradição celebra o gênio que, mesmo nas condições adversas do exílio prolongado, conseguiu manter viva, dentro de si, a pátria distante. Conseguiu, portanto, manter produtiva a sua inspiração.
               Retomando a metáfora vegetal com que explicara não só o vigor das tradições, mas a própria inspiração poética, Pessanha celebra nestes termos o poeta quinhentista:

               [...] o gênio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária –, teve pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia.

               Essa homenagem a Camões, ao fazer dele um símbolo da energia da nação no seu apogeu, levanta imediatamente a questão da continuidade – do império português e do sentimento poético português – isto é, a comparação entre o passado e o presente:

               [...] mas a terrível ação depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no, todavia, [...] para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta.

               A oposição está dada, e a explicitação do paralelo direto entre o orador e o homenageado, enquanto poetas, é, assim, inevitável:

               [...] quem estas linhas escreve – diz Pessanha – teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira-Alta, muito familiar à sua adolescência.
              
               Nos termos do quadro conceitual em que se move a conferência, o que Pessanha afirma é que, enquanto estava alimentado pela “seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história”, pudera ele próprio conseguir a ilusão indispensável à criação poética. Mas essa seiva, diferentemente do que ocorrera com Camões, se esvaíra. “Há quantos anos isso vai!” é a exclamação dolorosa que abre caminho à confissão do fracasso e ao paralelo do poeta moderno com o antigo.
               A contraposição com Camões não se traça apenas no nível individual. O poeta de outrora pudera manter-se espiritualmente, por anos a fio, apenas com as lembranças da pátria ausente porque vivera num outro tempo, no qual a “energia da raça” era tão exuberante a ponto de despender-se por “todo o imenso império português” que então se construía.  Já o tempo a partir do qual o poeta moderno dirige o olhar para o passado é visto sob o prisma da decadência, da ausência daquela energia que caracterizara os anos de 1500. Sente-se Pessanha num mundo e num momento em que nem a “raça” é pródiga de energias, nem (talvez por isso mesmo) o poeta é capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitam manter-se alimentado, quando desligado do ambiente e da paisagem portuguesas.
               Ao montar essa equação, na qual a cada momento na história da nação corresponde um tipo de poeta, Pessanha acaba por fazer, da sua obra quase inexistente, uma espécie de equivalente gorado da obra de Camões. É como se ele se representasse como um não-Camões, ou melhor, como o Camões possível nos tempos da decadência – para o qual até mesmo a evocação da grandeza do passado é um desafio.
                Se nos lembrarmos agora daquela carta de 1894, perceberemos que a conferência forma com ela um conjunto de coerência metafórica, contra o qual os poemas aqui rapidamente comentados ganham relevo e densidade.
               De fato, a metáfora da avareza já preludiava a formulação de 1924, segundo a qual a capacidade poética depende da manutenção da seiva haurida em contato com a terra natal; e a imagem do grumo de sangue a da esterilidade correspondente ao esvaziamento da seiva trazida do húmus da terra natal.
               Houvesse tempo e a leitura contrastiva dos textos de Pessanha sobre a China e dos poucos poemas nos quais ele glosa a paisagem exótica ou distante nos permitiria agora traçar outro quadro, que com esse faria conjunto: o da tentação e do perigo da entrega à sedução do diferente, por conta do amortecimento da capacidade de transfiguração nostálgica, imprescindível, segundo o poeta, à eclosão e à manutenção do sentimento poético português.


[1] Texto lido no colóquio “Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, na Universidade Paris Oeste/Nanterre, em novembro de 2008.
[2] Carta datada de 30 de abril de 1894, reproduzida em Camilo Pessanha, Cartas, transcrição e organização de Maria José de Lancastre. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 47.
[3] Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Edusp, 2001.
[4] Ib., p. 46.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil


Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil

[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]

Entre os patronos do haicai no Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas, Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando a escrevia.
Para compreender o papel de Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida". Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente (5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição, do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes, bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética, mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:

           Por que estás assim,               – – – – a
   violeta? Que borboleta           – b – – – – b
   morreu no jardim?                  – – – – a
 
Com esse recurso, Guilherme de Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima, temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas, cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de cinco e de duas sílabas:

Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates, nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão, de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku, praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção, e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo elucidativo. Este poema:

Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku. Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central, aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém, poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:

CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa, perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais, podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."

De novo, como no caso de "Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância", o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título, reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto, que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941, Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo de poesia no Brasil.

Lavoura arcaica - depoimento


BALIZA E FAROL



[Depoimento publicado no jornal Rascunho, de 15 jan. de 2006]





Li Lavoura arcaica assim que foi publicado, em 1975. Pareceu-me, de imediato, uma obra grandiosa e diferenciada do que então eu podia ler do que se publicava.

Impressionaram-me, em primeiro lugar, a potência e a riqueza das imagens, e o tônus daquele discurso torrencial, que se derramava intenso página, após página, mesclando a simbologia dos elementos básicos da vida rural e o acervo das parábolas bíblicas com um vocabulário organicista, quase naturalista, de gosto meio mórbido. Uma mistura que me lembrava, também por representar a irrupção do desejo carnal e profanatório no meio de um universo construído com as tintas violentas do sagrado, a leitura a que me dedicava com mais entusiasmo naquele último ano de faculdade: a poesia e a prosa confessional de Baudelaire.

Também me causou forte impacto a cerrada fatura da novela, com os vários planos nos quais se modulam a voz do narrador e a voz das personagens, principalmente a voz do pai, que é glosada, imitada, incorporada e, ainda assim, a cada passo, combatida pelas explosões de ira e de incontinência da voz da personagem narradora.

Quando li o livro, o país vivia ainda sob a ditadura. A leitura dos textos contemporâneos tendia, por costume e por desejo, ao registro alegórico. Nalguns, a denúncia alegórica era lida de modo mais explícito. Em outros, do que então se chamava “realismo mágico”, a operação era mais difícil e nem sempre bem sucedida. Ao mesmo tempo, era sensível certa desconfiança em relação a textos nos quais os dramas da consciência e das paixões aparecessem ostensivamente desvinculados da situação política pela qual o país passava. Talvez fosse possível ver na figura opressiva do pai e no isolamento da família, uma alegoria da situação do país, na qual mesmo o espaço privado era submetido a uma autoridade feroz, e a saída era a loucura ou o crime. Mas isso nada valia frente ao sentido “arcaico” do livro, isto é, face à sua força específica, que vinha de se apresentar como um texto fora do tempo, no qual o que contava eram as paixões humanas, uma espécie de revivescência de mitos, medos e anseios terríveis, isto é, uma espécie de tragédia.

Lavoura arcaica, naquele momento, assim, teve então para mim um sentido e um ar de família que não sei se hoje eu me atreveria a reconhecer. Mas na época em que li o livro recém-lançado, a minha impressão era a de que se tratava de um escritor que eu só podia aproximar, no momento, da forma de escrever de Clarice Lispetor.

Desde 1975, quando o li duas vezes em seguida, não tinha mais lido o livro.  Agora, para este depoimento, li-o pela terceira vez.

A impressão do poder verbal se renovou inteiramente. Mas já agora a impressão geral de potência e de beleza feroz se deixou em parte empanar pela evidenciação dos procedimentos narrativos. O desenvolvimento ternário das notações, em forma de amplificação, por exemplo, o paralelismo ostensivo entre as frases ao longo de um mesmo parágrafo, que me haviam passado despercebidos nas leituras juvenis, agora vieram para primeiro plano e tiveram um efeito de cansaço, de alguma monotonia, que estava ausente. Especialmente o processo de repetição ternária, para amplificar uma imagem ou registro, que se torna mais recorrente ainda no último terço do livro.

São, porém, passados 30 anos entre uma leitura e outra. E se esse foi todo o desgaste causado ao livro, tendo em vista os muitos textos que ele gerou, não creio que haverá outros mais, e que Lavoura arcaica terá ainda um longo tempo como baliza e farol para a escrita em prosa contemporânea no Brasil.

domingo, 3 de junho de 2012

Os sonetos do Só, de António Nobre


Os “Sonetos” do , de António Nobre



[texto apresentado  no colóquio Nobre/Nemésio, realizado na FFLCH/USP, em 2001]


Quando comecei a pensar nos sonetos de António Nobre, estava lendo o na segunda edição, a última em vida do autor.
            Minha primeira observação foi que, no conjunto de 8 seções que compõem o , apenas uma se nomeia aparentemente segundo a forma dos poemas nela dispostos: justamente a dos “sonetos”, integrada por 18 peças, sem título e numeradas seqüencialmente. As demais se nomeiam ou de acordo com o recorte temático (nesse caso, é ainda preciso separar as que levam o nome do poema único que encerram e as que englobam vários poemas e têm nome diferente de qualquer deles), ou de acordo com o tom, o registro genérico dos poemas, “elegias”.[1]
            Dessa constatação, decorre muito naturalmente uma questão crítica: seria “sonetos” uma designação apenas formal? Isto é: “sonetos” significa “o conjunto dos sonetos do Só?”. A questão se apresenta, durante a leitura, porque o penúltimo poema da seção imediatamente anterior é um soneto: o intitulado “Menino e moço”. Se “Menino e moço” é um soneto e não está no conjunto denominado “sonetos”, algo parece estranho. Assim também o percebeu Amorim de Carvalho, que no seu Tratado geral da versificação, tratou de descobrir uma explicação para a aparente contradição. De fato, observando que, “Menino e moço” sendo um soneto em versos alexandrinos, seu oitavo verso é decassílabo, especulou desta forma: “A anomalia dum só verso, fácil de corrigir, mas que António Nobre quis manter – era, ao tempo, já uma certa ousadia –, explicará por que o poeta colocou o soneto fora do conjunto dos seus sonetos do ?”.[2]
            Se tivesse estendido sua indagação à totalidade do , Amorim de Carvalho veria que essa explicação não funciona, pois na seção denominada “Elegias” existem dois outros sonetos alexandrinos sem qualquer problema de heterometria: “Santa Iria” e “Enterro de Ofélia”.[3]
Ou seja, são 3 os sonetos que não integram a seção “Sonetos”. Portanto, podemos já dar por certo que esse título não significa “o conjunto dos sonetos do ”. Ora, se não é uma marcação que indica uma constante formal, só resta buscar outra explicação para o título. Na minha opinião, ‘sonetos’ é uma referência ao livro mais prestigioso denominado de acordo com a forma, surgido nos anos de formação de Nobre: os Sonetos de Antero, concebido e divulgado como um livro de autobiografia intelectual. Nas palavras do seu autor: “Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência”. Ou, no dizer de Oliveira Martins, uma coleção de poemas que se organiza de forma simultaneamente “biográfica e cíclica”.
Entretanto, para compor essa “memória de um pensamento”, ou esse desenho “biográfico e cíclico”, a ordenação dos sonetos de Antero foi feita tendo como critério organizativo a suposta cronologia dos textos. O que parece muito razoável, num tempo em que poesia e vida, poesia e autobiografia, poesia e confissão eram termos que possuíam uma ampla faixa de sobreposição de sentido comum, embora hoje saibamos que, para não violentar nem a cronologia suposta, nem o desenho da evolução espiritual deseja, Antero e Oliveira Martins tiveram de proceder a “adaptações” na posição relativa de alguns sonetos.
Ora, se a leitura dos “sonetos” de Nobre revela um claro desenho temático, que é também um desenho, digamos assim, “biográfico”, a marcação das datas de composição dos poemas não permite nenhuma postulação semelhante à que se encontra no livro de Antero.[4] De fato, as datas oscilam sem ordem aparente entre 1884 e 1991, bem como os locais de composição, apostos ao poema. Isso me levou a pensar que já para Nobre autobiografia espiritual e autobiografia positiva não eram já a mesma coisa. Ou, dizendo de outra forma: que  para Nobre o desenho ideal da personalidade era uma construção a partir de experiências várias, vividas em momentos vários. O que não é sem importância para a compreensão da poesia de Nobre, tantas vezes entendida como pura confissão espontânea.
Isto posto, e mantida a distinção entre construção biográfica e autobiografia, voltando à ordenação da seção “Sonetos”, parece fácil identificar o desenho biográfico ali presente: o conjunto abre com um poema que apresenta o conjunto e que ocupa, na seção, o mesmo lugar que Memória na totalidade do livro, e a seguir prossegue tematizando o nascimento (soneto 2), a infância (soneto 3) e prossegue pela juventude, até a constatação do fracasso (soneto 13), o exílio voluntário (soneto 14) o terror da morte (sonetos 15 e 16), a constatação do caráter ilusório da vida (17)  e, por fim, da inutilidade de todos os esforços, com o conseqüente desejo de descanso, só possível na aniquilação. Em seguida, pude investigar a hipótese de que a seção dos “sonetos”, vindo ao final do livro, funcionava como uma espécie de recolletio, de retomada sintética, dos temas e motivos que constituem o Só. Nessa etapa de trabalho, pareceu-me bastante plausível que há uma homologia de estrutura entre “sonetos” e a totalidade do .
Nessa homologia, o primeiro soneto tem função muito parecida com Memória, traduzindo “o livro mais triste que há em Portugal” no “missal dum torturado” e no “talvez choreis, talvez vos faça pena”. Já o segundo soneto glosaria, em contraste irônico, o poema “Antonio”, pois em ambos se tematiza a origem heróica, os lobos-d’água, o ‘lusíada’. O terceiro, por sua vez, com a sua “idade em que se é conde assim” pareceu-me ecoar nitidamente o tempo evocado em “Lusitânia do Bairro Latino”, “menino e moço, tive uma Torre de leite, / Torre sem par!”. Prosseguindo a linha de leitura, a Purinha apareceria transfigurada nas virgens que passam ao sol poente, e assim por diante, até o soneto 18, cujo anseio pelo descanso proporcionado pela morte me parecia aproximar o final da seção do final do livro, com os “Males de Anto”.
Estava nesse ponto das minhas especulações, tentando levar adiante essa hipótese, quando me ocorreu verificar o que se tinha passado entre a primeira e a segunda edições, no que diz respeito ao conjunto que me interessava. Essa verificação acabou por alterar as minhas hipóteses de trabalho.
É certo que o cotejo de várias edições de um livro não nos deve iludir: a última edição tem autonomia completa e não depende, no que diz respeito ao seu sentido geral ou particular, daquilo que ela efetivamente substitui. Nesse sentido, é possível continuar a refletir na linha antes apontada: a leitura de “sonetos” como uma recollectio do . Ela não se enfraquece minimamente por conta do que vou dizer, como também não se enfraquece a leitura da seção dos sonetos como um tributo a Antero, na clave autobiográfica. Nesse caso, o distanciamento irônico do sujeito dos sonetos, em relação ao sujeito dos demais poemas do , pode mais facilmente entendido e motivado.
Mas o que me pareceu mais interessante, de momento – mais interessante do que desenvolver essas duas linhas de leitura seqüencial dos “sonetos” – foi pensar de outra forma, lançando uma terceira e mais radical hipótese de leitura, para que especulemos aqui sobre ela.
Vejamos, para formular essa última hipótese, a estrutura do livro nas duas edições em vida do autor. A listagem dos títulos já permite perceber as grandes alterações no desenho da obra:

Para ter uma idéia melhor das alterações de ordem, de título e de quantidade de peças entre uma edição e outra, basta considerar a seguinte tabela:

O que me chamou a atenção foi reconhecer o conjunto dos “sonetos” num agrupamento com título temático. Também me chamou a atenção que esse conjunto não era composto, na primeira edição, apenas de sonetos, mas que era encerrado por um poema em quintilhas.
“Terças-feiras” é um nome muito significativo, dentro do . De fato, no poema “António” lemos:

Ao mundo vim, em terça-feira
Um sino ouvia-se dobrar! [...]
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive já pra me matar.

A terça-feira, assim, no léxico de Nobre, é o dia aziago, a data marcante em que se revela e reitera um destino de eleição negativa. Na primeira edição, o conjunto vinha acrescido de alguns sonetos depois suprimidos e todos tinham título. O soneto que passou a ser o primeiro na segunda edição, o que nela começa com o verso “em horas que lá vão, molhei a pena”, antes se denominava “Prólogo” e tinha uma variante no primeiro verso, que se lia: “em horas de aflição, molhei a pena”. Esse título e esse primeiro verso, como se vê, reforçam a leitura do título: são horas de aflição as terças-feiras, são momentos de provação na via-crúcis que é a vida do autor/personagem do . Isto reforça a idéia de que os “sonetos” sejam uma autobiografia, nos moldes anterianos: um conjunto de poemas nos quais se sintetiza, em momentos cruciais, um percurso biográfico.
A relação entre o título do conjunto de poemas e a estrofe do poema “António” é clara e é reforçada pelo inusitado da denominação. Mas se fosse precisa uma prova de que ela existe, bastaria consultar as correções de Nobre à primeira edição do , com vistas à elaboração da segunda. Lá, vemos que ele, em algum momento, pensou em manter o conjunto denominado “Terças-feiras”, mudando-lhe apenas o nome para “Sextas-feiras”, provavelmente para acentuar o paradigma crístico que percorre o livro. Mas, quando pensou em fazer isso, tratou igualmente de corrigir, no poema “António”, os versos que falavam em terça-feira, mudando aí também o dia da semana. Ou seja, Nobre queria manter a relação entre os versos e o título da seção, o que reforça a associação entre as “Terças-feiras” e aquela estrofe de “António”. Também a reforça o fato de que, quando resolveu mudar de lugar as “Terças-feiras” e rebatizá-las de “Sonetos”, voltou atrás na correção dos versos de “António”, o que mostra que a correção se devia exclusivamente à alteração do título do conjunto dos sonetos.
No que diz respeito à ordenação, o conjunto das “Terças-feiras” é muito semelhante ao dos “Sonetos”, como se pode ver na tabela a seguir:



Ora, se a progressão dos sonetos era praticamente a mesma na primeira e na segunda edições, exceto por 3 textos, que foram suprimidos, vejamos que textos são esses. São dois sonetos que precediam o “Prólogo” e o que se intitulava “Ai de mim!” O primeiro deles era uma espécie de envoi: “Ao Alberto”. Sua supressão (embora possa ser explicada também pela razão privada do estremecimento da relação de Nobre com Alberto de Oliveira, a quem era dedicado o soneto e, assim, a seção inteira) contribui para integrar o conjunto “sonetos” no corpo do livro, bem como contribui para o mesmo fim a supressão dos títulos muito pontuais, quase todos exclamativos, que tinham sabor a registro em diário (gosto esse inconsistente, aliás, considerando a ordem das peças e as datas de composição). De modo que, na minha avaliação, a supressão do “envoi”, dos três sonetos e dos títulos de todos fez com que o conjunto ganhasse em força e em amplitude simbólica., reforçando, ao mesmo tempo, pela acentuação da linha temática e “cronológica”, a possibilidade de leitura do conjunto como autobiografia espiritual.
Julgando plausíveis as hipóteses de leitura que havia formulado sobre a seção “sonetos” da segunda edição do , comecei então a refletir sobre a posição relativa das seções “Terças-feiras” e “Sonetos”, no corpo dos dois volumes.
A primeira constatação a fazer é que o conjunto de sonetos sofreu uma mudança radical de posição: admitido o desenho temático acima esboçado (anotações de momentos fortes na vida do sujeito lírico do ), o deslocamento da posição inicial para a posição quase final, bem como a divisão de todo o volume em seções com subtítulo, parece claro que o sentido do conjunto adquire conotações muito diferentes em cada um dos livros.
Quanto à posição, é interessante considerar a relativa simetria inversa do lugar do grupo das “Terças-feiras”/“Sonetos”. O , na primeira edição era composto por 29 peças, além do conjunto “Terças-feiras”; na segunda edição, são já 34 peças, além do conjunto dos “Sonetos”. Na primeira edição, as “Terças-feiras” apareciam na oitava posição seqüencial, logo depois de “Memória”, “António”, “Menino e Moço”, “Os cavaleiros”, “Purinha”, “Elegia” e “Os sinos”. Na segunda edição, os “Sonetos” aparecem perto do final do livro, seguidos das sete elegias e do poema final “Males de Anto”.
Ou seja, se as “Terças-Feiras”/“Sonetos” reproduzem de alguma forma o desenho temático do , na primeira edição elas tem a função de um anúncio, uma espécie de mapa do caminho. Na segunda edição, como já assinalei acima, de recollectio, de retomada sintetizadora do trajeto desenhado ao longo do livro. Essa posição algo especular poderia ser justificada com outros argumentos, mas de momento julgo que o mais interessante é observar que “Elegia”, que na primeira edição vinha antes das “Terças-feiras”, na segunda vem após, vindo esse título a denominar todo o conjunto de poemas em que a antiga “Elegia”, agora renomeada “Na estrada da Beira”, passa a integrar.
 Feita essa constatação, ocorreu-me esta terceira hipótese de trabalho, que agora interpela não a segunda edição do , mas a gênese do livro, enquanto objeto articulado segundo um plano significativo. Essa hipótese constitui, na verdade, a negação daquela que expus logo no começo desta apresentação, e consiste no seguinte: se, lendo a segunda edição,  tive a impressão de que os “Sonetos” consistiam na síntese do desenvolvimento temático do livro, preparando o momento elegíaco e permitindo o gran finale dos “Males de Anto” (e aqui seria preciso lembrar os comentários de Paula Morão sobre a redução de António a Anto), agora, com o cotejo das edições, minha intuição é a de que os sonetos das “Terças-feiras”, isto é, o seu desenho temático, sua progressão, constituem a matriz da arrumação final dos poemas do na segunda edição.
Na primeira edição, vale lembrar, todos os poemas até o soneto número 3 (que é o que vai abrir o conjunto, na segunda edição), vêm datados de “Paris, 1891”. Isso dá a essa edição um movimento que já não está presente na segunda: o livro se estrutura a partir do exílio, sendo os sonetos o primeiro momento em que a data da composição está situada fora da perspectiva parisiense. E tão forte é essa perspectiva que, para não quebrá-la, Nobre, antes de alterar radicalmente a estrutura do livro, julgou dever explicitar esse ponto de vista, ensaiando interessantes subtítulos ao poema “Purinha”: Ideal cristão, Ideal dum poeta místico, Ideal dum parisiense, Ideal fim-de-século e, por fim, Ideal dum decadente. 
Não preparei muitas justificações para esta asserção de que as “Terças-feiras” constituem a matriz da rearrumação do , exceto as que podemos encontrar na observação do movimento dos poemas de uma edição para outra. Mas creio que é uma fecunda hipótese de trabalho, para quem se interessar pela estrutura do . E já que estou aqui expondo apenas hipóteses interpretativas, que ainda precisariam ser ensaiadas num texto mais longo, queria logo registrar que mesmo a substituição do poema “Memória” (que era um texto dedicado ao pai e à mãe, intimista e circunscrito ao domínio familiar) pelo poema homônimo (que agora ganha uma dimensão simbólica muito mais ampla) me parece ser um movimento no sentido de adequar todo o desenho do livro ao movimento expresso nos sonetos.
Tinha pensado e preparado, para esta fala, uma apresentação do movimento interno do núcleo dos “sonetos”, com especial atenção, nele, para o número quatro, que me parece um dos mais belos da língua portuguesa. Mas depois, pensando bem, julguei que, nesta reunião, seria mais interessante apenas dar forma a algumas intuições confusas de leitor. Já que não sou especialista no poeta, tentei assim fazer da deficiência uma vantagem; e da ingenuidade, um trunfo e uma bandeira na homenagem a este poeta que durante tantos anos passou pelo mais ingênuo e espontâneo, além de o mais triste que já houve em Portugal.



Bibliografia:

Morão, Paula. O de António Nobre – uma leitura do nome. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
Nobre, António. . Paris: Missão Permanente de Portugal Junto da Unesco, 1992 (repr. fac-similar do exemplar da primeira edição do , anotado pelo poeta)
Nobre, António. Só. Porto: s/e, 1939 (6.ª ed.)


Anexo – lista dos poemas e seções da segunda edição do :

Memória, s/d
ANTONIO
                Antonio                                  (Paris, 1891)
LUSITÂNIA NO BAIRRO-LATINO
                Lusitânia no Bairro-Latino      (Paris, 1891-2)
ENTRE-DOURO-E-MINHO
                Purinha                                   (Paris, 1891)
                Canção da felicidade               (Paris, 1892)
                Para as raparigas de Coimbra (Coimbra, 1890)
                Carta a manoel                        (Coimbra, 1888,89,90)
                Saudade                                  (Paris, 1894)
                Viagens na minha terra           (Paris, 1892)
                Os figos pretos                       (Coimbra, 1889)
                Os sinos                                 (Paris, 1891)
LUA CHEIA
                Da influência da lua                (Porto, 1886)
                D. Enguiço                              (Paris, 1893)
                O meu cachimbo                     (Coimbra, 1889)
                Balada do caixão                     (Paris, 1891)
                Febre vermelha                       (Leça, 1886)
                Poentes de França                   (Paris, 1891
                À toa                                       (Porto, 1885)
                Ao canto do lume                   (Paris, 1890-1)
LUA QUARTO-MINGUANTE
                Os cavaleiros                          (Paris, 1891)
                A vida                                     (Paris, 1891)
                Adeus!                                    (Paris, 1893)
                Ladainha                                                (Paris, 1894)
                Fala ao coração                       (Coimbra, 1888)
                Menino e moço                       (Leça, 1885)  /soneto/
                O sono de João                       (Paris, 1891)
SONETOS
I                                              (Coimbra, 89)
II                                            (Coimbra, 89)
III                                           (Porto, 87)
IV                                           (Porto, 86)
V                                            (Porto, 84)
VI                                           (Hamburgo, 91)
VII                                          (Porto, 89)
VIII                                        (Leça, 89)
IX                                           (Coimbra, 90)
X                                            (Coimbra, 89)
XI                                           (Coimbra, 88)
XII                                          (Colônia, 91)
XIII                                        (Coimbra, 89)
XIV                                        (Oceano Atlântico, 90)
XV                                          (Golfo de Biscaia, 91)
XVI                                        (Canal da Mancha, 91)
XVII                                       (Mar do Norte, 91)
XVIII                                      (Paris, 91)
ELEGIAS
                A sombra                                               (Coimbra, 1888)
                Pobre tísica                             (Leça, 1889)
                Santa Iria                                                (Leça, 1885) /soneto/
                Enterro de Ofélia                    (Leça, 1888) /soneto/
                Na estrada da Beira                                 (Paris, 1891)
                Ca (ro) da (ta) ver (mibus)      (Leça, 1885)
                Certa velhinha                         (Paris, 1891)
MALES DE ANTO
                Males de Anto
1.A ares numa aldeia;
2 Meses depois, no cemitério
(Paris, 1891)





[1] Seções compostas por poema único: “Antonio”, “Lusitânia no Bairro Latino” e “Males de Anto” (este em duas partes, que talvez possam também ser consideradas dois poemas); denominações temáticas: “Entre-Douro-e-Minho” (8 poemas), “Lua cheia” (7 poemas), “Lua quarto-minguante” (8 poemas); denominação genérica: “Elegias” (7 poemas).
[2] Amorim de Carvalho. Teoria geral da versificação. Lisboa: Editorial Império, 1987, vol. II, p. 102
[3] Ver, ao final deste texto, a tabela do Anexo, que apresenta a sucessão dos poemas na segunda edição. Nela, os sonetos que não integram o núcleo denominado “Sonetos” vêm identificados entre / /.
[4] Ver a tabela do Anexo 1, no final deste texto.