terça-feira, 26 de junho de 2012

Oliveira Martins e o Brasil


Oliveira Martins e o Brasil

[publicado na revista Remate de Males, 22 (2002), e reproduzido no volume Estudos de literatura brasileira e portuguesa (Ateliê, 2007)]

   Na história da cultura portuguesa do século XIX, um dos atores coletivos mais importantes é o que se convencionou chamar ‘Geração de 70’. Por esse nome, designa-se um conjunto de  intelectuais que são assim reunidos por neles se reconhecer o desejo de proceder a uma campanha de reforma da nação, a partir de ideais republicanos ou socialistas. Reforma essa que se apresenta primeiramente como um esforço de submeter a processo a história do país e da constituição do império ultramarino.
   O momento central de constituição pública do grupo, que reflete inclusive no rótulo atribuído à ‘Geração’, foram as Conferências Democráticas, de 1871. Do programa bastante amplo, como se sabe, apenas cinco foram proferidas: a de abertura, a de Antero, sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos; a de Augusto Soromenho, sobre A literatura portuguesa; a de Eça, sobre A nova literatura; e a de Adolfo Coelho, sobre O ensino em Portugal. Suspensas por ordem governamental, o que delas restou, além do programa ambicioso e revolucionário, foi a atitude comum que animava os vários textos: promover, pela denúncia do estado atual de estagnação e atraso da cultura portuguesa, os valores modernos, científicos e revolucionários. Nesse sentido, o texto que sintetiza o programa de revisão histórica das Conferências e da ‘Geração’ é mesmo o de Antero de Quental, e não creio que exagere ao dizer que é esse talvez o texto capital da cultura portuguesa no século XIX, pois representa, simultaneamente, um ponto de chegada e um ponto de partida. De chegada porque dá nova síntese, numa clave revolucionária, a temas e questões que já vinham de Herculano. De partida, porque é das teses polêmicas desse texto seminal que nascem, por decorrência ou por contradição, algumas das obras fundamentais para a definição da cultura portuguesa do final do século XIX e começo do XX.
   O texto de Antero desenvolve, de modo brilhante, o que depois se tornou o tema central do tempo: o diagnóstico da decadência portuguesa. Essa é a palavra‑chave no pensamento dessa época, e a história das várias modalizações do sentimento de decadência na segunda metade dos oitocentos já foi muito bem feita por António Machado Pires, num livro publicado em 1978.[1]
   Dentro do propósito crítico e revolucionário que se reconhece sob a denominação de ‘Geração de 70’ – e necessitando, portanto, desse enquadramento, para ser adequadamente compreendido –, avulta um conjunto de trabalhos que, pelo seu escopo, pela sua grandeza e pela presença decisiva que teve e ainda tem na cultura luso‑brasileira, atrai de imediato a atenção de quem quer que se interesse pelo estudo das coordenadas ideológicas do final do século XIX. Trata‑se da obra de Oliveira Martins.
   Com o mesmo objetivo com que foram pensadas as “Conferências”, isto é, com o objetivo de educar o público, de promover a sua atualização como estratégia para reformar a sociedade e reverter a decadência nacional, projetou e compôs Martins uma vasta “Biblioteca das Ciências Sociais”, em que os volumes se referem mutuamente e cobrem campos muito amplos, da antropologia à crematística, da etnologia à história do sistema colonial português, da história de Roma à crônica do Portugal seu contemporâneo.[2]
   No centro desse grande painel, como um eixo sobre o qual giram todas as questões maiores, está uma questão e um país. O país é Portugal; a questão é a decadência e a tentativa de discernir algum caminho possível para revertê‑la. A alicerçar o conjunto, fazendo de livros de divulgação (livremente adaptados dos autores mais prestigiosos do tempo) obras que apresentam interesse próprio, está o estilo poderoso de Oliveira Martins, a arte verbal que faz dele, na opinião de António Sérgio, o "mais rico e substancial de todos os prosadores da nossa língua".[3]
   É talvez ao estilo, à qualidade artística do texto de Martins que se deve atribuir parte do persistente interesse pelos seus livros em Portugal e, principalmente, no Brasil. A História de Portugal lê‑se como um romance emocionante, cheio de suspense, de presságios e de lances dramáticos e pitorescos. As suas biografias dos homens de Avis nada ficam a dever, em termos de arte verbal, às boas novelas históricas oitocentistas. Daí que, ainda em 1913, na resposta a um inquérito literário, um intelectual brasileiro, Dantas Barreto, listasse, entre os seus autores preferidos, Oliveira Martins, juntamente com Shakespeare, Goethe, Camões, Alexandre Herculano e Eça de Queirós...[4] Mas, não creio que seja só o estilo de Martins que responda pela sua permanência no centro do interesse da cultura brasileira do final do século XIX e início do XX. Penso que, além do estilo, interessa ao leitor brasileiro a sua peculiar visão dos rumos da cultura portuguesa e do que foi a colonização do Brasil.
   Hoje não são certamente muitos os que, no Brasil, tiveram a oportunidade de conhecer diretamente o texto e as ideias de Martins. Mas essas ideias são ainda parte da cultura brasileira de uma forma muito mais intrínseca do que se poderia parecer a uma primeira vista de olhos.
   Um episódio ocorrido quando do centenário de morte de Oliveira Martins pode servir aqui de exemplo.
   Em 1995, no âmbito das homenagens, foi publicado um volume reunindo a correspondência entre ele e seu amigo e companheiro de geração, Eça de Queirós.[5] A publicação, de caráter estritamente acadêmico, provocou uma inesperada resenha de Antonio Callado, na Folha de São Paulo. Inesperada porque poucos dias antes o jornal trouxera uma matéria sobre o livro, e porque a coluna do autor de Quarup pouco se ocupava de assuntos relativos à cultura portuguesa, e menos ainda de temas ou textos acadêmicos.
   O notável no texto de Callado era o tom: expunha aí o escritor brasileiro toda a sua calorosa admiração pela prosa de Martins, de que transcrevia várias passagens, deixando evidente seu fascínio. Mais do que isso, servia a resenha de pretexto para que apresentasse uma confissão de o quanto a obra do escritor português tinha marcado sua visão de Portugal e das raízes históricas da civilização brasileira: "talvez eu nunca tenha sentido tanto a ligação lusitana como quando li, no meu voluntário exílio em Londres, durante a guerra, a História de Portugal de Oliveira Martins", escreveu ele.
   Outro ponto interessante dessa resenha é que nela Callado atribuía à influência de Martins o tom galhofeiro com que, vez por outra, na sua coluna, tinha tratado Portugal, principalmente quando se ocupou de comentar o filme Carlota Joaquina (1995)
   Ora, além de nos dar um depoimento eloquente da persistência, no Brasil, da influência dos livros de Oliveira Martins, esse texto de Callado, ao referir o filme recentemente lançado, aliava ao testemunho pessoal um testemunho cultural, pois Carlota Joaquina era a mais recente atualização artística grandemente tributária da História de Portugal. De fato, quem quer que tenha lido as obras de Martins percebe imediatamente que, apesar do esforço enorme de Oliveira Lima para recuperar, numa clave mais positiva, o papel e a figura de D. João VI, Carlota Joaquina bebe em Martins todos os estereótipos sobre os quais monta a sátira da corte e da balofa figura do monarca e sua mulher ninfomaníaca.
   Para alguns intelectuais portugueses que visitam o Brasil, essa permanência das obras de Martins no horizonte da cultura brasileira causa sempre algum espanto. Um bom exemplo ocorreu nesta mesma ocasião: o Prof. João Medina, que por acaso estava em São Paulo quando Callado publicou a referida resenha, dirigiu‑lhe uma longa carta, manifestando seu espanto por Martins ser assim uma referência tão central para o intelectual brasileiro, e aproveitando a ocasião para lhe apresentar o que julgava ser de fato o lugar de Martins na historiografia portuguesa... Pondo de lado o caráter anedótico do episódio, não deixa de ser curiosa essa permanência do historiador português como presença ativa. Afinal, desde 1879, que é o ano da publicação da História, mudaram os paradigmas que regem o discurso histórico e aumentou muito o conhecimento documental sobre as várias épocas retratadas por Martins. Entretanto, basta observar as bibliografias dos programas de literatura portuguesa de várias universidades brasileiras no final do século XX para ver que em muitas ainda constam, como textos referenciais, os livros de Oliveira Martins. A que se deveria isso? Como explicar a persistência da visada histórica do escritor português ao longo de um século inteiro?
   Reservando sempre o recurso à força do estilo, à evidente qualidade literária de sua obra, há outras razões para que ele tenha sido tão lido e meditado, principalmente no Brasil. Uma delas é que, como se reconhece cada vez mais claramente nos dias de hoje, encontra‑se em Martins uma profunda e original interpretação da sociedade portuguesa.
   Malgrado o que possa haver de incorreto, de lacunar, do ponto de vista documental, e mesmo de apressado e tendencioso no julgamento dos dados de que dispunha, ainda parece plausível a afirmação de António José Saraiva, "ele entendeu que a realidade se processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que os historiadores comuns, julgando‑se cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual na análise científica, mas afastando‑se cada vez mais daquilo que pretendem explicar (...) É por isso – continua Saraiva – que, em comparação com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como sombras imperfeitas."[6]
   Por outro lado, em nenhum outro escritor português do século XIX se poderá encontrar uma crítica tão feroz, sistemática e radical do seu país e da sua cultura. Assim, ou porque os nossos escritores reconhecessem a propriedade da intuição martiniana sobre a constituição da sociedade portuguesa, ou porque Martins oferecesse, ao sentimento antilusitano exacerbado no período republicano, farto material de combate e embasamento crítico, – ou por essas duas razões combinadas, foi o escritor português aproveitado muito extensamente por pensadores que, no início do presente século, se dedicaram a refletir sobre o Brasil e sobre o significado, na nossa vida política e social, da herança da colonização portuguesa.
   Seja como for, do que não há dúvida é que boa parte da literatura de caráter reflexivo sobre a sociedade brasileira, no final do século XIX e começo do XX, tem como referência importante, a negar ou a afirmar, a obra histórica de Oliveira Martins. Suas teses, muitas vezes já desvinculadas de seus textos, formam uma espécie de solo comum de algumas das mais fortes interpretações do sentido da herança portuguesa na formação do Brasil. Dissolvidas, aclamadas ou contestadas, suas ideias parecem ter penetrado profundamente na cultura do país. E é por isso que a leitura de qualquer dos livros de Oliveira Martins provoca ainda hoje em qualquer brasileiro culto, como provocou em Antonio Callado, uma espécie de efeito de reconhecimento: está ali, sistematizado num conjunto coeso, muito do que no Brasil se foi pensando do que foi Portugal na história da civilização ocidental.
   Um comentário rápido de alguns textos e documentos da cultura brasileira do final do século XIX e começo do século XX permitirá aquilatar melhor a receptividade que tiveram no Brasil os livros de Oliveira Martins. Antes, porém, já que os seus livros não continuam talvez a ser tão lidos, vale a pena proceder a um resumo das suas ideias centrais sobre Portugal e, principalmente, sobre o Brasil.
   A História de Portugal é um livro de cuja leitura, nas palavras de António Sérgio, uma pessoa sai confusa e perturbada, com "cinco impressões essenciais" sobre o país: em primeiro lugar, um sentimento geral de desencanto, de incapacidade, de bolor, desde o século XVI até agora; depois, a ignomínia dos lauréis da Índia; e o [...] ingênito sebastianismo; e a negra educação dos jesuítas; e a série mofina dos reis de Bragança, desde D. João IV a D. João VI".[7]
   É verdade. De um modo geral, a História de Martins é mesmo um panorama triste e pessimista da vida da nação. Mas cheio de cores, de ação e lances romanescos. Forma a sua espinha dorsal, mais do que a narração objetiva dos acontecimentos dispostos em ordem cronológica, uma série de quadros impressivos, dramáticos, mais ou menos trágicos e relativamente completos em si mesmos. Do meu ponto de vista, além das que Sérgio assinalou há uma sexta "impressão essencial": a de que o fio condutor da narrativa é a exposição de uma persistente e equívoca loucura coletiva, que acaba por dirigir o fluxo dos acontecimentos marcantes na história pátria. Persistente, porque não é privativa de nenhuma das casas reinantes; e equívoca porque, de acordo com o momento, ora parece bastante desprezível, ora puramente trágica, ora sublime.
   A maior parte do livro, como já se depreende das impressões de Sérgio, gira à volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio depois de 1580 é visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutilmente um indivíduo condenado, um demorado e arrastado processo de decomposição de um corpo social já sem vida própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, a narração é cheia de prefigurações da desgraça, de que Alcácer‑Quibir é apenas o desenlace formidável.
   Outra tese fundamental que organiza a visada martiniana é a de que, inaugurado sem uma base rácica ou geográfica, Portugal se afirma como nação com a dinastia de Avis, quando encontra e realiza a sua vocação marítima.
   É no desenvolvimento da vida marítima, ou melhor, na transformação de Portugal de país agrário em país dedicado ao comércio por mar que Oliveira Martins vai radicar a própria sobrevivência da nação portuguesa, garantida pela Revolução de 1383: "Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular", diz ele na sua História e completa, no Portugal nos Mares: "Portugal é Lisboa, escrevi eu algures. Devia ter dito antes que Lisboa absorveu Portugal, pois esta expressão corresponde melhor à verdade histórica. (...) Desde que a vida marítima e ultramarina nos absorveu de todo, a capital e o seu porto, como um cérebro congestionado, mirraram as províncias. Portugal passou a ser Lisboa: uma cabeça de gigante num corpo de pigmeu".[8]
   Mas justamente nessa frase já se mostra o destino trágico da nação. Formado assim para o mar, sem corpo que sustentasse o desenvolvimento desproporcional da ciência e do comércio marítimo, Portugal duraria enquanto durasse o desígnio que o criou: a exploração e o domínio do oceano.
   É um curto período, esse da pujança da nação. Do ponto de vista de Oliveira Martins não vai além do reinado de D. João II. Já no tempo de D. Manuel, a tônica da sua narrativa é a senectude e a decadência. Tanto é assim que o livro V enfeixa sob o título de "A Catástrofe" os reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião. Na verdade, os três podem ser lidos como encarnação da tríade responsável pela decadência portuguesa, conforme fora descrita por Antero, no famoso texto das Conferências Democráticas: D. Manuel é o desfecho da aventura marítima, com a exploração criminosa da Índia; D. João III é o triunfo do catolicismo tridentino, jesuítico e inquisitorial; e D. Sebastião é a loucura, que só se torna realidade social, coletiva, devido ao regime político absolutista e ao fanatismo religioso que o embasaria.
   Desse ponto de vista, com a catástrofe de África acaba Portugal – isto é, acaba aquela primeira nação, no sentido que essa palavra tinha em seu pensamento. Portugal passa a ser, quando muito, uma nacionalidade.[9] A Restauração de 1640 produzirá um outro ser político, sobre o mesmo território e com o mesmo nome e língua. É o que lemos na Introdução à História, quando o Portugal restaurado é comparado à Bélgica, fruto artificial das necessidades do equilíbrio europeu, e reduzido às proporções de um protetorado inglês encravado na Europa, cujos feitores serão os reis da dinastia de Bragança.
   Uma das mais fortes influências de Oliveira Martins se exerceu justamente nessa assimilação da história de Portugal – nascimento, crescimento e morte – à história das dinastias de Borgonha e Avis, relegando para o domínio da farsa insubsistente a narração dos sucessos da época bragantina.
   A pergunta que, nesse quadro, se impõe imediatamente é: como se processou a colonização do Brasil? Como foi possível a construção da nova terra portuguesa no mesmo momento em que a metrópole morria, deixava de ser um organismo vivo? O que o Brasil herdou de Portugal e no que o superou ou ficou inferior? As respostas a essas perguntas, ou a algumas delas, são dadas, por Martins, em outro volume, que se intitula O Brasil e as colônias portuguesas e que foi publicado pela primeira vez em 1880.
   Para bem compreender as articulações centrais do pensamento de Martins sobre o Brasil, distingamos logo de início algumas questões de fundo. Em primeiro lugar, para o historiador Brasil e África formavam um verdadeiro sistema, em que o lugar determinante era ocupado pelo Brasil. O domínio africano foi, para ele, uma clara função dos interesses colonizadores da América: uma fonte de mão de obra, e pouco mais do que isso. A esse sistema de exploração colonial opunha‑se na economia portuguesa, com ele coexistindo, um outro: o Império da Índia, que Martins descreve como uma empresa anárquica, baseada na conquista, no saque e no comércio.
   Cada um desses sistemas representava um lado do gênio nacional português, uma face de um único ser bifronte. Portanto, não se pode entender perfeitamente a narrativa da colonização do Brasil, segundo Martins, se não tivermos em mente a sua narrativa do império da Índia. Num caso, o desastre, a tragédia; no outro, o sucesso e a obra imorredoura. Assim, enquanto na Índia tudo eram miragens e iniquidades, onde "os portugueses davam larga ao seu gênio guerreiro e mercantil; na África e na América obedeciam aos impulsos mais felizes do seu gênio indagador e audaz”.[10] Já aqui se detecta o problema principal dessa formulação, que se pode sintetizar nesta pergunta: nos termos da visão martiniana, como a mesma nação, que desaparecerá como tal em 1580, pôde encontrar a energia necessária à grande obra da colonização brasileira?
   No quadro conceitual da História de Portugal, o Brasil vai aparecer como uma espécie de persistência possível dos caracteres positivos que o autor atribuía aos homens do período de Avis. Tudo se passa como se, perdido o tônus nacional na metrópole, tivesse sido ele preservado na população portuguesa da América, que, afastada da fonte de corrupção que era a corte, manteve, dirigia para o sertão interior "a mesma tenacidade com que antes [os portugueses] tinham querido desvendar, e tinham desvendado, os segredos do mar". Era essa tenacidade, essa força do gênio lusitano "que os impelia agora a descobrir os segredos desses vastos e espessos sertões da África e da América austrais."
Essa idéia recorre em várias partes do livro. Por exemplo, quando trata do Nordeste brasileiro, escreve Martins esta frase, devidamente enfatizada cinqüenta anos depois por Gilberto Freyre: "a população, especialmente no Norte, constituiu‑se aristocraticamente: isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o Ultramar, e desde todo o princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das turbulentas imigrações dos castelhanos na América Central e Ocidental". Já quando trata do Sul, descobre sempre nos paulistas as qualidades mais destacadas do período áureo da nação portuguesa: nos habitantes de São Paulo, diz ele, "a semente do gênio descobridor dos portugueses pudera medrar livremente, à sombra de um clima benigno e de uma colonização naturalmente agrícola".
   Mas essa semente não germinaria, seria destruída pela atonia geral portuguesa, ao longo dos séculos – como o foi no Norte, do seu ponto de vista – não fosse um caso fortuito que mudou o rumo da história do Brasil: a descoberta das minas de ouro. Eis como descreve ele a vitória do paulista sobre o nortista, que conduzirá, ao longo do tempo, à constituição do Brasil como nação autônoma:

   Na riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força predominante, com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade, como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo gênio dos estadistas, e não a de uma nação nova existindo independente e autônoma, por virtude de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia.

   A nação brasileira, portanto, vai sobreviver graças à preservação, nos paulistas, do gênio descobridor português, fixado na terra e erguido a um lugar de poder pela descoberta fortuita das minas, no século XVIII.
   E por que São Paulo não se corrompeu, não integrou a corrente descendente em que Portugal mergulhou desde a segunda metade do século XVI? Perguntar isso é o mesmo que perguntar por que Martins pôde dizer que “o Brasil se salvou apesar dos Braganças reinarem em Portugal”.[11]
   Esse ponto não é devidamente esclarecido no texto. Em algumas passagens parece sugerir Martins que foi o caráter aventureiro de que logo se revestiu a vida paulista, com as entradas e bandeiras, que respondeu pela manutenção do gênio explorador português nessa parte do país, enquanto as demais o perdiam pela vida ociosa, apoiada na escravidão e dissolvida pelo luxo excessivo.
   De qualquer forma, o que importa notar é que, segundo Martins, "o espírito aventureiro dos paulistas foi a primeira alma da nação brasileira; e São Paulo, esse foco de lendas e tradições maravilhosas, o coração do país".[12] Graças a esse espírito aventureiro, haveria em São Paulo um germe de nação já no final do século XVI. Assim, para Martins, o Brasil se forma como nação forte na mesma época em que Portugal mergulha na mais profunda decadência. E se forma como tal por obra dos paulistas e por obra do acaso, que foi a descoberta das minas.
   Esse é o primeiro eixo, e o central, do livro sobre o Brasil: a narrativa da adaptação de uma das facetas do gênio português a um novo espaço geográfico, em que pôde sobreviver e desenvolver-se, preservado da decadência metropolitana. É por essa narrativa que O Brasil e as colônias portuguesas se integra no quadro mais amplo, de que também fazem parte a História de Portugal e a História da Civilização Ibérica.
   Um segundo eixo de articulação do texto de Martins é o que se dedica às circunstância particulares dessa adaptação, e que consiste na defesa da escravidão do negro e da guerra ao indígena. Dele decorre, em primeiro lugar, um sistemático combate à atividade jesuítica. Dele decorre também a parte menos legível do seu texto, que é a exposição reiterada de sua concepção da superioridade racial dos arianos e o esforço brutal para demonstrar, com base na literatura racista da época, o caráter pouco humano, ou inferiormente humano da raça negra.
   Quanto ao argumento racista, há pouco a dizer, mas a ele voltarei em breve. Já a concepção de que o índio representa um obstáculo à expansão ariana, que deveria ser assimilado ou simplesmente destruído, merece mais atenção, porque o combate ao jesuíta provém da concepção de que uma sociedade indígena "cretinizada" pelos padres representaria uma aberração histórica e a eliminação de qualquer possibilidade de o Brasil vir a ser uma nação civilizada.
   Isso, claro, porque, para Martins, civilizada significava, essencialmente, européia. De modo que o libelo anti‑jesuítico que perpassa toda a História de Portugal recebe aqui cor local e mais contundência, aliado à certeza de que a afirmação da igualdade essencial das raças humanas era apenas uma quimera do pensamento cristão, nada científica.
   Já no que diz respeito ao negro, o ponto interessante a notar é que, apesar das hoje revoltantes páginas racistas, há um momento no livro de Martins em que fala não o cientista social, não o ardoroso defensor das teorias da supremacia da raça branca, mas o historiador-artista. Trata‑se da descrição do quilombo de Palmares, página memorável em que, esquecendo‑se por instantes de todos os preconceitos, o escritor celebra a cidade negra.
   Afirmando que em Palmares temos o mais belo e heroico exemplo do protesto e da revolta dos escravos, chama‑lhe república, e diz que ali se tinha um agrupamento humano que bem merecia o nome de nação, e que se comparava, pela forma de organização, à Roma primitiva, e, pelo destino, à grandeza de Tróia.[13] Essa contradição entre os pressupostos teóricos e as necessidades da composição artística, tão fortemente assinalável nos vários livros de Oliveira Martins, embora extremamente interessante, não poderá ser investigada aqui. Basta, no momento, registrar que o darwinismo social adotado pelo historiador faz com que, tirante essa página, todo o seu livro possa ser lido como uma decidida defesa da escravidão do negro e do extermínio das populações indígenas como etapas necessárias à construção de uma sociedade civilizada, européia, no Novo Mundo.
   Um último ponto a ressaltar, na visão martiniana do Brasil, é a sua preocupação constante com o futuro da grande obra portuguesa. De duas formas essa preocupação se manifesta, no que diz respeito ao Brasil seu contemporâneo. Por um lado, Martins se preocupa com a falta de um passo necessário e decisivo para a plena constituição da nação brasileira: a diversificação da economia, que ele considera ainda de moldes coloniais, fundada na monocultura, primeiro do açúcar e então do café. Por outro lado, assusta‑o a possibilidade de fragmentação do vasto território, devido a uma política de imigração que ele considerava inadequada. Como o Império incentivasse a imigração dos países nórdicos, defende o incentivo à imigração de italianos e espanhóis, como forma de promover a homogeneização da população, reforçando o predomínio do caráter latino na nacionalidade brasileira. Mas esse é um aspecto da sua visada que não será enfocado aqui, pois não diz respeito à história pregressa do Brasil, e sim ao seu futuro e permanência enquanto unidade nacional.
   Tendo traçado o que julgo serem as teses fundamentais de Oliveira Martins, é o caso, agora, de passar à segunda parte do trabalho, isto é: de tentar observar algumas de suas repercussões e modalizações em textos brasileiros.
   Logo num primeiro momento, o diálogo com a obra de Martins sobre o Brasil encontra uma expressão muito eloquente na obra fragmentária de Eduardo Prado. Amigo pessoal de vários integrantes da Geração de 70, Prado teve longa e íntima convivência com Martins e com Eça de Queirós.
Monarquista, católico, patriota exaltado, Eduardo Prado não podia aceitar a condenação martiniana da Companhia de Jesus e da sua obra catequista. Como não podia também deixar de valorizar, na obra do amigo português, a exaltação dos paulistas como a base da nacionalidade brasileira e a melhor expressão do gênio português transplantado para a América. Assim, se dedicou boa parte de seu tempo a estudos sobre os jesuítas, no intuito de mostrar, contra a opinião de Martins, a importância da obra catequista para a definição da nacionalidade brasileira, também tratou de corrigir a opinião daquele escritor sobre a forma e o sentido da mestiçagem entre o europeu e o índio.
   Entre os vários trabalhos de Eduardo Prado, há um texto que interessa especialmente. Trata‑se de uma conferência pronunciada em 1896, intitulada "O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo".[14] Veem-se aí retomadas algumas teses de Martins: o heroísmo tingido de uma ponta de loucura, que levou Portugal a realizar uma tarefa desmedida para o seu tamanho e capacidade populacional, e a reafirmação do papel central de São Paulo para a constituição do Brasil. Mas o que é novo é a defesa intransigente da Companhia de Jesus, responsável, entre outras grandes obras por duas, que Prado destaca e que crê relacionadas: a fundação de São Paulo e a domesticação do índio, que permitiu a mestiçagem cabocla, por ele considerada a origem da força específica que o próprio Martins descobrira na população paulista.
   A tese mais interessante desse trabalho de Eduardo Prado é, porém, aquela que explica o que ficara mais ou menos inexplicado no texto de Oliveira Martins: porque em São Paulo, e apenas em São Paulo, pôde‑se preservar o antigo heroísmo português, desaparecido na pátria‑mãe depois da morte nacional simbolizada no desastre de Alcácer‑Quibir.
   A explicação de Eduardo Prado vai em duas direções: de um lado, tem-se o elogio da mestiçagem, em que o branco entra com o cérebro mais desenvolvido e o índio com "a agudeza da sensibilidade dos seus sentidos e a agilidade elástica dos seus músculos", formando assim um tipo, não inferior, mas superior e mais adaptado à empresa de desbravamento que foi a dos paulistas.[15] De outro – e este ponto é muito importante –, a afirmação de que o isolamento de São Paulo em relação à costa teve papel decisivo na formação da nova raça. Isso porque a localização geográfica teria permitido simultaneamente que a sua população se mantivesse fora do "contato imediato com a gente do mar, forasteiros e aventureiros", cujo convívio era "corruptor e fatal", e que ali predominasse o europeu, pois o clima não lhe era tão hostil quanto ao nível do mar. Foi essa convergência de circunstâncias que, segundo Eduardo Prado, permitiu que no planalto se formasse o tipo adequado à colonização dos trópicos: o cabloco paulista. São Paulo foi, assim, uma "oficina de homens", e o berço da que poderia ser chamada a raça brasileira.
   A tese de que o isolamento de São Paulo foi responsável pela manutenção de qualidades que se perderam ou nunca chegaram a existir no litoral fará fortuna crítica, pois permite separar os portugueses do Brasil (devidamente mestiçados com o índio, é verdade), dos decadentes portugueses dos períodos filipino e bragantino, estigmatizados por Oliveira Martins.
   Compõe‑se, dessa forma, um quadro muito interessante, que persistirá pelo menos até os anos trinta do século XX: uma singular mistura de anti‑lusitanismo e de elogio das virtudes portuguesas dos fundadores e propulsores do progresso brasileiro. Ainda em Eduardo Prado não há anti‑lusitanismo, mas já nas fileiras republicanas ele será o tom dominante, e Oliveira Martins será muito frequentemente a referência mais forte do discurso anti‑lusitano e anti‑bragantino.
   O desolado quadro da decadência portuguesa traçado por Martins, conjugado à tese de Eduardo Prado de que o isolamento foi a forma pela qual se mantiveram, em alguma população brasileira, as boas qualidades étnicas do período heróico vai reaparecer num dos textos mais importantes da literatura brasileira do começo deste século: Os Sertões, de Euclides da Cunha. Mas já aqui o isolamento das populações interioranas não terá sempre um valor positivo, pois tanto servirá para preservar as boas qualidades renascentistas, quanto para cristalizar os vícios da decadência, transplantados para o Brasil ao longo dos séculos coloniais.
   Assim, na mesma linha de Martins e Eduardo Prado, na tipologia do homem brasileiro distingue Euclides o habitante do litoral e o paulista, nome que designa "os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do sul", que resultaram da melhor aclimatação dos primeiros portugueses e da absorção, por eles, das populações indígenas. Com o mesmo entusiasmo de seus predecessores, vai chamar a esses paulistas "cruzados das conquistas sertanejas", definindo‑os racialmente como os "mamalucos audazes". Os paulistas de Euclides, como os de Martins e Eduardo Prado, são essencialmente os habitantes do planalto. O isolamento geográfico era simultaneamente uma proteção militar – "a disposição orográfica (diz Euclides) libertava‑o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro" – e moral, contra a degeneração operada pelo clima litorâneo, que "delia num clima enervante" "a força viva restante do temperamento dos que vinham de romper o mar imoto".
   Mas se o isolamento fora benéfico na construção da raça paulista, tivera efeito diverso sobre as populações sertanejas do Norte. Lá, a falta de contato com outros agrupamentos humanos produzira monstruosidades, entre as quais a religiosidade mestiça, cujos "fatores históricos" o autor vê como um "caso notável de atavismo, na história". Segundo Euclides, que se apoia expressamente em Oliveira Martins para traçar o quadro da decadência portuguesa e dos fatores que a explicariam, "o povoamento do Brasil fez‑se, intenso, com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando 'todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular'".[16] Por se manterem relativamente isoladas, as populações sertanejas apresentariam, ainda nos tempos modernos, cristalizados, os vários momentos da loucura e degenerescência coletiva que foi a história de Portugal desde o reinado faustoso e já decadente de D. Manuel: "Esta justaposição histórica – diz Euclides – calca‑se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do Sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do norte."
   Portanto, enquanto os isolados do Sul cristalizaram o que de melhor havia na índole do português descobridor, guardaram os do Norte apenas a herança negativa, os vícios da metrópole decadente. E se, no primeiro caso, o contato intenso com outros povos e culturas, poderia ser nocivo à manutenção do caráter heróico dos mamelucos, já no segundo poderia ter amenizado talvez as taras herdadas dos portugueses decadentes que continuaram a colonização do Brasil.
   A tese de que o isolamento preservou no Brasil os traços heroicos do caráter português e permitiu preservar da decadência geral um significativo segmento da população da colônia terá uma larga fortuna e muitas modalizações, que entretanto pouco lhe acrescentam em termos de novidade.  Muito mais importante do que os desenvolvimentos das ideias de Eduardo Prado ou de Euclides, do ponto de vista da história da influência de Oliveira Martins no pensamento brasileiro do começo do século XX, é o que veio num volume publicado quase ao mesmo tempo que Os Sertões, mas que, não obstante a qualidade de sua reflexão, ficou quase esquecido ao longo de oito décadas. Trata‑se do ensaio A América Latina – Males de Origem, de autoria de Manoel Bomfim.
   Manoel Bomfim talvez seja ainda hoje mais conhecido como o co‑autor de Através do Brasil, livro de leitura escolar escrito de parceria com Olavo Bilac. Sua obra principal, porém, é o referido ensaio, que foi publicado em 1905, em Paris, e republicado em 1938.[17]
   Nesse trabalho, Bomfim desenvolve a tese de que o mal de origem da América Latina é o parasitismo das metrópoles, perpetuado, depois, no parasitismo das classes dominantes. Como avalia e resume Darcy Ribeiro, "Manuel Bomfim surgia com um livro sábio e profundo (...) em que demonstra cabalmente, dizendo‑o com todas as letras (...) que nossos males não vêm do povo. São, isto sim, produto da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador, visto como uma mera fonte de energia produtiva".
   Pretendendo dar do Brasil uma visão real, e não coada pelos preconceitos da antropologia e das teorias políticas europeias, Bomfim produz um discurso profundamente nacionalista e, por isso mesmo, nos termos daquele momento, profundamente antilusitano.
   E aqui aparece uma questão muito interessante. Como organiza Bomfim o seu discurso antilusitano? Apoiando‑se inteira e extensamente nas obras de Oliveira Martins. Dizendo assim, é difícil fazer ideia real do aproveitamento de Martins por Bomfim. É preciso olhar para as páginas do volume, para poder bem avaliar a interação dos textos: praticamente todas as inúmeras citações destacadas do corpo do discurso são do historiador português. Sílvio Romero, numa crítica virulenta ao livro, teve a pachorra de contar as linhas escritas por Bomfim e as que foram transcritas de Martins. Na terceira parte do livro, chegou a estes números: das 2.276 linhas, 1.114 são do historiador português. "Mais da metade!", exclama Sílvio, que concentra então suas baterias em Oliveira Martins, chamando aos seus dois livros principais, História de Portugal e História da civilização ibérica "dois panfletos histórico‑políticos (...), livros perniciosíssimos, causadores de males incalculáveis entre diletantes".[18]
   Comentando a crítica de Romero, Darcy Ribeiro escreveu: "Pouco depois de publicada, ela foi objeto de todo um livro de contestação do genioso Sílvio Romero. Nesta polêmica, Sílvio desanca Manoel Bomfim procurando demonstrar que ele é um completo idiota. Idiota era Sílvio, coitado. Tão diligente no esforço de compreender o Brasil, mas tão habitado pelos pensadores europeus em moda, que só sabia papagaiá‑los." É curiosa a crítica, porque silencia sobre o ponto central: a acusão de Romero de que Bomfim papagaiava Oliveira Martins.
   Ora, sem qualquer juízo de valor, é justamente esse aproveitamento tão intenso dos livros de Martins o que aqui mais interessa. É verdade que Bomfim discorda profundamente de Martins em alguns aspectos fundamentais da sua interpretação do Brasil. Principalmente das teorias racistas sobre a inferioridade congênita do negro. Mas a visão martiniana do que foi a história portuguesa e de quais os males principais da organização da sociedade da metrópole que se teriam transmitido ao Brasil é o verdadeiro eixo desse livro excepcional.
   O diagnóstico dos males de origem das sociedades latino‑americanas se processa segundo duas linhas argumentativas. Em primeiro lugar, vem a tese do parasitismo das nações ibéricas. Em segundo, a de que os males da sociedade brasileira se explicam em grande parte pelo que chamou de os remanescentes do parasitismo metropolitano, cujo lugar de expressão é o Estado brasileiro, divorciado das necessidades populares, e cujo traço político é o conservadorismo das elites.
   Para o desenvolvimento dos dois argumentos, a obra de Oliveira Martins fornece a base ideológica, quando não o próprio vocabulário. Mesmo a idéia do parasitismo ocorre repetidamente em Martins, em passagens que são reproduzidas e, às vezes, repetidas em pontos diferentes do livro. Como esta: "Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados...(...) Portugal quase que se tornara um comunismo monástico, em que as classes privilegiadas, fruindo todos os rendimentos, distribuíam comedorias à nação sob a forma de empregos e outras." Essa passagem, por exemplo, comparece duas vezes no livro de Bomfim: primeiro para comprovar o caráter parasitário interno à própria sociedade metropolitana; e depois, quando trata do Estado brasileiro, vemo‑la novamente, agora como fragmento de uma colagem com um trecho de O Brasil e as colónias portuguesas, de modo a demonstrar a transferência da praga metropolitana para o Brasil, com a vinda da corte de D. João VI. O trecho com que vem montada é bastante forte: "Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o digerir mais à vontade..."[19]
   Demonstrado, dessa forma, o caráter parasitário das classes dominantes portuguesas com as citações de Martins, e assim apoiada a tese numa autoridade insuspeita, por portuguesa, Bomfim desenvolve o seu segundo argumento: o de que boa parte dos males nacionais são resultantes dos resíduos ou remanescentes da metrópole. Por esses termos, Bomfim entende os segmentos da sociedade que representam "diretamente os interesses parasitas", que constituem "uma parte da metrópole plantada na colônia". São eles que reprimiram os movimentos de emancipação real do país, pensa Bomfim, e foram eles que, conservadoramente, mantendo os privilégios parasitários, arranjaram a Independência, em acordos sem a participação popular. Na síntese do seu diagnóstico sobre os males das sociedades latino‑americanas, escreve Bomfim: "As classes dirigentes, herdeiras diretas, continuadoras indefectíveis das tradições governamentais, políticas e sociais do Estado‑metrópole, parecem incapazes de vencer o peso dessa herança; e tudo o que o parasitismo peninsular incrustou no caráter e na inteligência dos governantes de então, aqui se encontra nas novas classes dirigentes; qualquer que seja o indivíduo, qualquer que seja o seu ponto de partida e o seu programa, o traço ibérico lá está – o conservantismo, o formalismo, a ausência de vida, o tradicionalismo, a sensatez conselheiral, um horror instintivo ao progresso, ao novo, ao desconhecido, horror bem instintivo e inconsciente, pois que é herdado." Os resultados dessa herança eram muito semelhantes ao quadro traçado por Oliveira Martins, no Portugal finissecular. Apenas se atualizavam os termos: "O resultado desse passado recalcitrante é esta sociedade que aí está: pobre, esgotada, ignara, embrutecida, apática, sem noção do próprio valor, esperando dos céus remédio à sua miséria, pedindo fortuna ao azar -- loterias, jogo de bichos, romarias, 'ex‑votos'; analfabetismo, incompetência, falta de preparo para a vida, superstições e crendices, teias de aranha sobre inteligências abandonadas..."[20]
   Curiosamente, sucede com o texto de Bomfim o mesmo que com o de Martins: hoje já o estilo não é o nosso, nem as teses básicas parecem sustentáveis, nem os dados em que se apoiam muito confiáveis. Entretanto, muitos leitores brasileiros de hoje saem da leitura com uma forte impressão de realidade e adequação, e, pelo menos quanto a mim, parecem muito exatas estas palavras de Luís Paulino Bomfim, de 1993: "O grande drama do continente americano é que, nos dias de hoje, A América Latina de Manoel Bomfim, que deveria ser como um videotape em preto e branco do passado, se apresenta como uma reportagem a cores – e ao vivo – do presente."[21]
   Como se explica esse fenômeno? Tratar‑se‑ia de uma profunda intuição histórica, que se impõe até hoje apesar do instrumental analítico? Ou apenas de uma alta coerência estética na formação dos argumentos e na sua exposição literária? A resposta a estas questões constitui um desafio para a compreensão do sentido e do alcance de um certo discurso que foi o de Martins e também o de Bomfim. Mas o lugar de responder a esse desafio não é, decerto, este.
   Aqui, nos limites desta primeira aproximação, o importante é ressaltar que, por meio da incorporação das teses, do estilo acusatório e admoestativo e da visada central de Oliveira Martins sobre a decadência e o parasitismo estruturante das sociedades peninsulares, Bomfim vai compor um texto de alto poder de persuasão e grande consistência literária. Corrigindo o pendor racista dos trabalhos de Martins, abria ele também as portas a uma nova compreensão do sentido da mistura racial no Brasil, e foi realmente uma pena que o seu livro não criasse escola, nem fosse o início de uma nova corrente de pensamento brasileiro, como justamente lamenta Darcy Ribeiro.
Nos anos subseqüentes, há ainda dois momentos fortes em que Martins desempenha um papel importante no pensamento brasileiro, antes que sua presença se vá fazendo sentir cada vez menos e sua influência suplantada, nos meios eruditos, por outras interpretações da história de Portugal – principalmente a de António Sérgio e, depois, por efeito de sua estada prolongada no Brasil, a de Jaime Cortesão.
O primeiro é constituído, na década de 1920, por dois livros de Paulo Prado -- Paulística (1925) e Retrato do Brasil (1928) –, cuja reflexão etnológica e histórica se articulará sobre a oposição entre os brasileiros do litoral e os do planalto, conjugada a uma especulação sobre os vários tipos de mestiçagem e seus efeitos culturais. Mas não tratarei desse livros aqui, por dois motivos. Primeiro, porque a apresentação do que neles há de martiniano já foi feita.[22] Segundo, porque Paulo Prado parece apenas desenvolver, no tocante a Oliveira Martins, os mesmos tópicos que já identificamos no comentário dos textos de Eduardo Prado e de Euclides da Cunha.
   Mais importante, porque ainda por estudar, é a presença do pensamento de Oliveira Martins na obra de Gilberto Freyre. A consulta ao índice onomástico de alguns dos seus livros indicará a importância de Martins para o seu pensamento. Mas o lugar do historiador português na obra de Freyre é maior do que o ocupado pelo conjunto das várias citações, porque, mais do que de referência, é um lugar de método.
   Sei que a afirmativa parecerá estranha, sendo tão díspar a forma de organização textual. Mas penso que a forma de conceber a história tem em ambos notáveis semelhanças. No prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala, lêem-se estas palavras: “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo [...] O estudo da história íntima de um povo tem alguma cousa de instrospecção proustiana.” E mais, adiante:

No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’. Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.[23]

   Compare-se esta passagem com o que escrevia 50 anos antes Oliveira Martins, na Advertência da sua História de Portugal:

Nada disso , porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições sejam indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no sistema das instituições e nos sistemas das idéias coletivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada dos lugares e acessórios que forma o cenário do teatro histórico.[24]

   Ao que, na resposta aos críticos do seu livro, acrescenta ainda:

porque eu entendi que usando da reserva conveniente sempre que os fatos essenciais da história eram desconhecidos [...] para não cair em aventuras perigosas, devia por toda a parte construir a história íntima com os monumentos sinceros, confissões e memórias, sem o cunho da convenção banal das publicações oficiais ou propriamente literárias.[25]

   Foi a especificidade do ponto de vista martiniano, ao empenhar-se na reconstrução da história íntima da nação, que Antonio José Saraiva acabou por reconhecer como a grande conquista de Martins. E é curioso que, para descrever essa especificidade tenha utilizado a mesma expressão utilizada por Freyre para descrever o próprio texto: uma "história introspectiva”. E da mesma forma que, na reavaliação de Eduardo Lourenço, a História de Martins constitui o “imaginário coletivo” da modernidade portuguesa, cada vez mais nos apercebemos que a mesma função tem a obra de Freyre, no Brasil de hoje.
   Essa homologia de função era algo que o próprio Freyre parecia entrever e desejar. Pelo menos, é o que se depreende da leitura de um romance seu, pouco conhecido. Trata-se de O outro amor do Dr. Paulo, que é, nas suas próprias palavras, uma “seminovela”, um texto ficcional de intenção histórica.
   A personagem central é um brasileiro chamado Paulo, que passa longo tempo na Europa, onde convive, no final do século, com o Barão de Rio Branco, Eduardo Prado e Eça de Queirós, entre outros. As passagens que interessam aqui são duas. Numa delas, Paulo presencia uma cena em que outro brasileiro diz a Eça que o Brasil precisava ter um Eça de Queirós. Eça então responde: “Não, não precisa. [...] Precisa de um Oliveira Martins, historiador, sociólogo, pensador, ensaísta em profundidade. [...] Cada vez admiro mais Machado de Assis. E Portugal nada seria sem Oliveira Martins”.[26]
   No final do romance, a mesma afirmação é atribuída a Eça. Mas numa situação que revela com vigor a homologia entre Freyre e Martins. No texto, a frase aparece justamente depois de o narrador fazer uma digressão sobre o sistema patriarcal no Brasil, a que, justamente, Freyre consagrara suas obras principais. No romance, o tempo histórico é anterior, e assim surgem como profecias de si mesmo estas frases do narrador da seminovela:

Evidentemente esse sistema patriarcal de família – o brasileiro projetado sobre Portugal – com afinidades com o grego, não tivera ainda o seu analista. Eça de Queirós tinha alguma razão quando dissera uma vez, no apartamento de Eduardo Prado, em resposta ao reparo de um brasileiro de que o Brasil precisava de ter um Eça de Queirós: ‘O Brasil já tem um mestre nesse gênero de literatura que é Machado de Assis. O Brasil precisa é de grandes pensadores e historiadores que o analisem e interpretem. Precisa, tanto quanto Portugal precisou, de um Antero, de um Oliveira Martins, de um Ramalho Ortigão. Precisa muito de um Oliveira Martins.’ Mais ou menos o que dissera quando visitado por Paulo e seu grupo.[27]

   Assim, embora não seja o caso de desenvolver a reflexão sobre que pontos, de fato, Freyre incorporou da obra ou das ideias de Martins, registre-se esse seu testemunho, como mais uma prova de que, pela interpretação global do que foi a história da nação portuguesa – interpretação essa que a muitos brasileiros tem parecido a mais adequada e convincente –, parece fora de dúvida que a obra de Oliveira Martins vem organizando, em vários níveis, ao longo de mais de cem anos e quase até o presente, a visão brasileira do que foi e do que é Portugal e do que foi ou é o Brasil enquanto produto da pequena nação ibérica.
   Neste texto, que é apenas um balanço parcial dos resultados de um trabalho ainda inconcluso, contento‑me em apresentar este mapeamento sumário de um território pouco conhecido, mas que, pela importância do que pode revelar a respeito da história do pensamento brasileiro, sem dúvida merece e precisa ser mais bem explorado.


[1] Pires, A. Machado. A ideia de decadência na Geração de 70. Foi publicada recentemente uma segunda edição desse livro fundamental: Lisboa, Vega, 1992.
[2] Ver, a propósito da Biblioteca, AbdoolKarim Vakil: Leituras de Oliveira Martins: história, ciências sociais e modernidade económica. Comunicação apresentada ao 'Congresso Internacional Oliveira Martins: Literatura, história, política'. Coimbra, abril de 1995.
[3] A. Sérgio. "Oliveira Martins: impressões sobre o significado político da sua obra." In: Martins, J. P. Oliveira. Dispersos. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1923, p.xxxviii.
[4] Apud Martins, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. V. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1977‑78, p. 560.
                [5] Queirós, Eça de  e J. P. de Oliveira Martins. Correspondência. Estabelecimento de texto e notas de Beatriz Berrini, introdução de Paulo Franchetti. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
[6]A. J. Saraiva. A tertúlia ocidental. Lisboa, Gradiva, 1990.
[7] A. Sérgio. Op. cit., p. xxvii.
[8] Portugal nos Mares. Lisboa: Ulmeiro, 1984, p. 10.
[9] Ver, a propósito do conceito de nação e nacionalidade em Oliveira Martins, o meu texto "No centenário de morte de Oliveira Martins", de onde retomei, com algumas modificações, os parágrafos anteriores. In: Martins, J. P. de Oliveira & Queirós, J. M. Eça de. Correspon­dência. cit.
[10] O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa, Guimarães e Cia. Editores, 1953, p.2.
[11] O Brasil..., cit., p. 36.
[12] O Brasil..., pp. 80‑81.
[13] Manoel Bomfim, no livro A América Latina -- Males de origem, que comentarei a seguir, notou essa contradição do texto martiniano.
[14] In: Collectaneas, vol. IV. São Paulo, Escola Typographica Salesiana, 1906.
[15] Prado, E. Op. cit., p. 85.
[16] Todas as citações são do texto de Os Sertões. Euclides da Cunha. Obra Completa, vol. 2. Rio de Janeiro, Editora Aguilar, 1995, p. 155, 197 e 198.
[17] Cinqüenta e cinco anos depois, o livro foi relançado, com um prefácio acalorado de Darcy Ribeiro, no qual o autor se mostra revoltado por o livro não ter tido a repercussão que merecia e chama a Manoel Bomfim "o fundador da antropologia do Brasil e dos brasileiros": Manoel Bomfim. A América Latina -- Males de Origem. Rio de Janeiro, Topbooks, 1993, p. 18.
[18] Sylvio Romero. A América Latina. (Analyse do livro de igual título do Dr. M. Bomfim). Porto, Livraria Chardron, 1906, p. 50.
[19] Bomfim, Op. cit., p. 111 e p.227.
[20] Bomfim. Op. cit , pp. 327‑8.
[21] "Pequena biografia de Manoel Bomfim". In: Bomfim, Manoel. Op. cit., p. 358.
[22] Berriel, Carlos. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.
[23] “Prefácio à primeira edição”. In: Freyre, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1986, p. 26.
[24] Martins, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 1991, p. 8.
[25] A História de Portugal -- Os críticos da 1ª edição. Repr. in: Albuquerque, Isabel de Faria e (ed.). História de Portugal de J. P. Oliveira Martins. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988. O trecho citado está na p. 218.
[26] Freyre, Gilberto. O outro amor do Dr. Paulo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977, p. 91.
[27] Freyre, G. Ib. p. 193.

domingo, 24 de junho de 2012

Carta a Ricardo Lima




[O texto desta carta foi publicado no site Germina, em 2007.
Refere-se ao quinto livro de poemas de Ricardo Lima, Pétala de lamparina
que foi publicado pela Ateliê Editorial em 2010.]



Campinas, 26 de dezembro de 2006

Ricardo, caro,

Li e reli o Pétala de lamparina. Creio que é um belo livro, que faz uma espécie de balanço da obra anterior e anuncia o que talvez seja uma maneira ou caminho novo. Na primeira parte, deparei com o título do seu último livro, inserido no poema VII. Na página final, deparo com o título dos dois outros. Não encontrei o do primeiro. Se estiver em algum lugar, perdi-o.
Mas não é só isso que me dá idéia de balanço, ponto de mutação. Alguma coisa se move aqui que não me parecia mover-se nos livros anteriores. Ou melhor, não parecia ao menos mover-se com essa pressão que localizo agora sob as palavras, entre uma e outra, ao longo da sucessão dos poemas. Não sei bem o que é. Talvez seja um ultrapassar do laconismo dos livros anteriores que, mesmo sendo inerente ao projeto, acabava por ser muito de época, por solidarizar-se ostensivamente com a poética contemporânea brasileira dos círculos que buscam no Cabral lido pelos concretos o marco zero da poesia moderna.
Temos problemas, no Brasil, com o discursivo. E uma legião de poetas se formou e vicejou apenas por conta dessa recusa do discursivo, eu creio. Ficou fácil, em certo sentido, fazer poesia: dizer nada ou quase nada numa sintaxe indecisa, valorizando a paranomásia e alguma referência erudita ou meramente culta. Um oráculo de coisa alguma. Normalmente, um oráculo meio gago.
Nos seus livros anteriores, eu creio que é clara a força construtiva de um discurso próprio. Ao mesmo tempo, o resultado final precisava do livro – da ordenação do conjunto e da leitura conjunta dos poemas – para ser apreensível como projeto. Quero dizer, isolado, cada poema sofria mais com o peso da linguagem comum do tempo. Juntos, os poemas mostravam o projeto, que redimensionava os traços comuns, dando-lhes uma justificativa e um peso novo (de autenticidade, se a palavra ainda puder ser usada hoje em dia), por conta do desenho geral.
Neste livro, o que mais me chamou a atenção é que o discurso se individualiza. Muitos dos poemas podem ser lidos isolados, sem perder a marca que, nos anteriores, só advinha do conjunto. Foi o que tentei descrever com a imagem de uma pressão constante sob a superfície conhecida.
Quanto ao livro em si, tenho poucos comentários, neste momento. Li-o duas vezes de uma ponta a outra e reli trechos várias vezes. Ainda não tenho uma visão muito articulada, porém.
O que pensei foi que a estrutura do livro parece materialização de um desejo de ordem. Vinte poemas seguidos de outros vinte. O acordar e o final do dia. O preparar-se e o recolher-se.[1] O que ocorre entre um e outro momento apenas comparece como possibilidade, recolha ou sinal indecifrado.
A voz lírica apresenta momentos de preparação, alude a memórias que surgem tão fragmentárias que não se tornam presentes, celebra às vezes algum momento breve de epifania ameaçada, contempla os restos da luta quotidiana pela ordem.
É uma voz crepuscular a que me surgiu na leitura do livro. Uma voz que fala nos crepúsculos, nos intervalos entre o dia pleno e o sono, com um olhar atento às ameaças que não aparecem senão por meio da metonímia da roupa, do escritório, das cartas do banco, da rua que é espaço de crime. Índices da cidade que aparece pouco e quase sempre como lugar hostil, de lixo, perigo e compromissos. Mas não há espaço para o sono ou o sonho. Esse me parece um ponto alto. Não há anseio escapista. Somente uma espécie de prolongamento da vigília, mais ou menos inútil, com o perpetuar das ameaças lembradas ou pressentidas, no correr da noite.
Há algo de defensivo nessa estrutura e nessa voz. Mas da mesma forma que as ameaças são reduzidas a índices comuns, muitos deles até banais, do ponto de vista imagético (o que não quer dizer que não sejam próprios e funcionem), o espaço a preservar também o é. Daí que também não fique claro o que há para preservar, o que seria a epifania rala das manhãs e noites e do intervalo entre umas e outras.
O livro assim caminha na corda-bamba. Navega entre Cila-lugar-comum-da-felicidade da reclusão doméstica e Caribdes-lugar-comum-da-inabitabilidade do universo público. Ao mesmo tempo, a natureza não é idílica no livro. E a cidade não é totalmente demonizada.
O recolhimento possível é um lugar de vigília e as duas sombras que o perpassam são uma louca e uma suicida, duas mulheres, uma delas aludida apenas por meio da casa e dos afetos deixados para trás. A tarefa da observação e da escrita não tem atalho, nem simpatia, como se lê logo depois de uma dessas alusões. E o desamparo físico não é redimido pela sobrevivência do escrito ao escritor, como sugere a outra.
O título do livro, nesse quadro, é uma nota estranha e nostálgica. Talvez a única nesse conjunto ordenado de poemas meio descarnados, que flertam com a desordem, mas se contêm todos a tempo.
Pensando bem, há talvez uma vítima explícita no livro. Preciso refletir mais um pouco sobre isso, mas agora penso que talvez o tom de réquiem se deva à morte da nostalgia. Isso poderia explicar um pouco o que me pareceu o toque novo do livro. Mas não estou seguro.
Na nota final, de apresentação, o poeta não repetiu que vive em um lugar e sobrevive em outro. Talvez não tenha dito assim para não repetir o achado. Ou talvez por outra razão. Vive entre um lugar e outro. Mesmo para quem não conhece nem um nem outro, a afirmação é curiosa. Ainda mais num livro que se estrutura para apresentar uma voz intervalar e com a estrutura e os temas que este tem. Vive entre, vive em ambos, ou de um para outro.
É uma observação banal, mas pode fazer pender a interpretação para o lado da perda da ilusão da vida plena, da idealização de um espaço de vida verdadeira, contra um fundo de degradação. Seria talvez esse o sentido do balanço da obra pregressa.
A lamparina continua a brilhar, solitária, no título. Mas já é uma pista enganosa. O rural e o pré-industrial aparecem aqui corroídos. E de alguma forma desgastados, exauridos no seu potencial imagético ou redentor. E o efeito é interessante, quanto a mim. É novo.
Haveria algumas observações ainda mais miúdas a fazer. Há versos que penso que poderiam ser objeto de alguma intervenção. Há um ou outro poema também.
Mas queria logo lhe mandar estas impressões desordenadas, escritas para começar a conversa.


[1] A primeira parte se chama Caro Acordar; a segunda, Tarde Noite.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Poesia Vogon - a terceira pior do universo


A TERCEIRA PIOR

[texto publicado originalmente no site Germina Literatura, 
atualmente fora do ar, e por isso, a pedidos, republicado aqui]


            Acabo de ver um filme notável. Intitula-se O Guia do Mochileiro das Galáxias. Um dos mecanismos do cômico é a ficção de um gerador de improbabilidades, um gerador aleatório de cenários e situações, que age de tanto em tanto. Outro é gosto pelo ridículo das situações inverossímeis e pelo nonsense.

            Não há nele, por isso, realismo, e o riso se produz pelo inusitado, pela falta de lógica e sequência e pelo inesperado das situações.

       Apenas no final insinua-se algum traço de sentido. Mas essa é justamente a parte mais fraca do filme, embora permita amarrar o feixe de absurdos – que nem por ser feixe deixa de ser absurdo, está claro.

            Entretanto, como leitor contumaz (por algum imperativo moral cuja origem ainda não identifiquei com clareza) de poesia contemporânea, deparei, para minha surpresa, no meio do dilúvio de improbabilidades, com algo que me pareceu menos improvável: a poesia vogon.

            Tratei logo, portanto, de buscar a poesia tal como teria vindo no livro. E o que achei foi o seguinte.

            Em inglês, é assim:

               Oh freddled gruntbuggly thy micturations are to me
               As plurdled gabbleblotchits on a lurgid bee.
               Groop I implore thee, my foonting turlingdromes.
               And hooptiously drangle me with crinkly bindlewurdles,
               Or I will rend thee in the gobberwarts with my blurglecruncheon, see if I don't!

            Em português, na tradução de Paulo Henriques Britto e Carlos Irineu da Costa:

               Ó fragúndio bugalhostro tua micturição é para mim
               Qual manchimucos num lúrgido mastim.
               Frêmeo implochoro-o, ó meu perlíndromo exangue.
               Adrede não me apagianaste a crímidos dessartes?
               Ter-te-ei rabirrotos, raio que o parte!

            Li e reli os versos em ambas as línguas. Não tirei muitas conclusões sobre o original, e terminei por acreditar ter entendido melhor a versão portuguesa. Ou porque meu inglês não seja bom, ou porque o tradutor tenha procedido a um simpático trabalho de adaptação, no interesse do entendimento do leitor. O mais provável, porém, é que eu não tenha entendido tampouco a versão portuguesa. Apenas teria sentido algum conforto porque me soou algo familiar. Era como se essa poesia, embora de outra galáxia, fosse ainda próxima.

            Não soube explicar, num primeiro momento, tal sensação de familiaridade, provocada por um objeto não identificado e ininteligível. Mas logo percebi a razão do sentimento: basta percorrer blogs e páginas do Facebook e livros de poesia contemporânea, para constatar a disseminação da poesia vogon entre nós. Ou é um caso de homologia: universos paralelos encontram formas semelhantes de expressão; ou é um caso de influência a partir de uma matriz.

            Creio que ambas as coisas se conjugam. De qualquer maneira, há vários desses poemas vagando pelo ciberespaço, dotados de variado grau de complexidade e de feiura, e me parece que são mais louvados pelos pares ou tutores os que menos sentido fazem, ou que mais coincidem com a matriz intergaláctica.

            Impressionou-me também o fato de que, quaisquer que sejam as diferenças objetivas, de forma e de tema, eles têm, embora soprados por matriz estrangeira ou avatares autóctones do gênero transgaláctico, um fundo nacional, que ao mesmo tempo adoça e reveste de pompa cerimonial o nonsense – produzindo o que poderia, sem modéstia, intitular-se a derradeira floração da grandiloquência balofa.

            Seja como for – autóctone ou importada –, dada a precedência que lhe atribui o famoso Guia, é minha opinião que não faz sentido denominar as sobrevivências dessa antiga poesia segundo algum modelo para o qual o sentido tinha importância. Isso seria uma traição à própria matriz dessa espécie de arte, além de um trabalho inútil. O nome correto é fácil e preciso, além de constituir um tributo à forma pioneira e de mais pura manifestação: vogon.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Entrevista - Comunità Italiana

Entrevista  
[a Marco Lucchesi, publicada com o título "Campos de algodão sob o sol da tarde", na revista Comunità Italiana, em dezembro de 2004]
-          Caro Franchetti: Gostaria de saber de sua origem italiana, de alguma influência, nostalgia e paixão, desde o quotidiano às leituras e o mundo. 
Minha tia Ana, cujos olhos azuis eram tão intensos quanto o seu sotaque, pode sintetizar a parte mais sensível do lado italiano da minha vida: emoção à flor da pele, nostalgia da pátria que deixou ainda criança e que, por isso, se apresentava mais como conceito e forma interna de sentir, do que como realidade perdida ou a reconquistar. Depois, o orgulho familiar da origem e do sobrenome, o apego à tradição e à cultura. Outra imagem recorrente: meu avô, colono, reunindo os camponeses iletrados para ler-lhes, junto aos filhos, romances de cordel.
Depois, em minha casa, a bela edição da Comédia, ilustrada por Doré, que dividia a estima paterna com os grandes poetas românticos brasileiros elegantemente encadernados; o hábito da disciplina intelectual, do amor ao trabalho e da observância da mais estrita frugalidade, compensada pelo derramamento sentimental e culinário dos domingos e dias santos. Até a minha adolescência, esse foi o sabor da vida. Um sabor muito italiano, mas tão entranhado, na pequena cidade de Matão, no ambiente da família, que só quando de lá saí para começar a vida adulta pude perceber que era uma particular herança e um jeito muito especial de estar no mundo.
-          Sendo você um dos grandes ensaístas brasileiros, com uma vasta erudição e uma fina sensibilidade, como se processou a sua formação e a sede de conhecer as coisas com essa intensidade e descortínio?
Minha primeira juventude, para o bem e para o mal, foi pautada pelo anseio de completude renascentista, que sempre foi o de meu pai. O gosto pela literatura, a valorização extrema do conhecimento prático, o gosto da especulação filosófica, o fascínio pelo método científico, o estudo da história religiosa, o valor da educação matemática, o amor da correção lingüística: foram esses os valores e ideais que, dentro das possibilidades, pautaram a minha formação familiar. Nas condições precárias de uma vida passada quase toda em pequenas cidades do interior do Brasil, as muitas enciclopédias, os vários livros de divulgação científica, as obras completas de escritores brasileiros e portugueses vendidos de porta em porta, bem como a velha Coleção Saraiva e toda a coleção do Clube do Livro foram as peças do mosaico que foi a minha formação. O solo sobre o qual fui construindo como pude, até o período da faculdade, a imagem do mundo e de mim mesmo. Na faculdade, a descoberta de uma imensa biblioteca, na qual podia passar dias e dias, sem qualquer limite, foi experiência de puro deslumbramento. A partir daí, com todo o risco da dispersão, nunca mais deixei de seguir o impulso de leitura do momento.
-          Por outro lado, a poesia parece ter aberto em você um sem-número de portas e janelas, e de modo especialíssimo no campo do haicai, de que você se tornou, além de crítico e historiador, um fino poeta e tradutor. Como se deu esse percurso?
Também o gosto pela poesia tem origens familiares. Meu pai escrevia sonetos e crônicas em jornais. E muitos outros seus colegas também. Matão era uma cidade quase inteiramente italiana, na qual a habilidade poética, a oratória, a demonstração de cultura letrada de modo geral era algo muito valorizado.
O interesse pelo haicai provém de um segundo momento. Daquela cidade, depois de alguns anos, fomos para Guaíra, na fronteira com Minas Gerais. De uma cidade italiana para uma cidade de intensa colonização japonesa. Quase todos os meus amigos e amigas eram japoneses. As festas de colheita e casamento, o contato com os pais das namoradas, que mal falavam português (ou não falavam), os bailes no clube da colônia, tudo isso gerou, eu creio, uma simpatia que pôde, muitos anos depois, quando me dediquei seriamente ao estudo do japonês, abrir-me algumas portas para a compreensão dessa forma de poesia tão delicada e tradicional, à qual dediquei bons anos de vida. O haicai foi, para mim, mais ou menos como uma busca nostálgica de um período no qual a vida tinha o dourado das espigas maduras de arroz e o brilho dos campos de algodão sob o sol da tarde.
-          Camilo Pessanha. Antonio Nobre. Eça de Queiroz. Três nomes, dentre outros, de sua predileção, sobre os quais você vem dedicando boa parte de sua vida. Em que medida a literatura portuguesa também é uma de suas capitais afetivas...
Eça de Queirós era um dos autores da infância. Numa edição em três volumes, da Lello, a sua obra completa acompanhou a minha vida, na estante paterna, e ainda acompanha, agora na minha própria estante.
Camilo Pessanha, cujos versos difíceis e belos foram uma obsessão desde os primeiros anos de faculdade, atraiu-me também pela vida no Oriente, pelos escritos sobre a China e pelas especulações sobre a escrita ideográfica.
Se a porta de entrada na literatura portuguesa foi Eça de Queirós, Camilo Pessanha foi a torre desde a qual fui descobrindo outros pontos de interesse, com ele relacionados de alguma forma: Wenceslau de Moraes, o cronista do Japão, Antonio Nobre, Antonio Patrício, Eugênio de Castro e tantos outros.
Eça de Queirós também me conduziu ao encontro de outra paixão portuguesa, à qual dediquei vários anos de estudo: a imensa e magnífica obra do historiador Oliveira Martins.
-           Mas vejo, em sua obra, a recuperação de monumentos e documentos. Por exemplo, um nome pouco lembrado, o de B. Lopes, a quem você dedica um belo artigo, e o evoca na condição de dândi mulato...
Quando, no começo da minha carreira na Unicamp, retomei sistematicamente a leitura da infância, a dos poetas românticos brasileiros, deparei-me com um veio novo, ainda não descrito nem analisado: a poesia pornográfica, satírica e de nonsense da segunda geração romântica. Descrevi, num artigo que prezo muito, o maravilhamento pela pujança criativa de autores que, não fosse essa produção, seriam apenas medíocres: Bernardo Guimarães, Getulino e José Bonifácio, o Moço. Desse ponto de partida decorreu o meu interesse por todos os poetas de gosto irônico ou satírico, esquecidos nas histórias literárias mais conhecidas. Prosseguindo na pesquisa, deparei com B. Lopes, que é um gênio, um poeta de grande interesse, mal lido e pior avaliado. E como ele há outros, fora dos enredos principais das histórias nacionalistas, que aguardam um olhar aberto e desarmado.
-          É inevitável ouvir – ainda que  em breves palavras  - o que você definiu como sendo compaixão e nostalgia em certa prosa lusitana...
Quando me dediquei a estudar a obra de Camilo Pessanha, eu o fiz orientado pela leitura dos textos de Oliveira Martins, que pertenceu à geração anterior à sua e cuja visão da história de Portugal marcou profundamente os autores dos anos de 1890. Pessanha é já o nostálgico de lugar nenhum. A pátria, o espaço sagrado da origem lhe aparece como um grande bem perdido. Ao mesmo tempo, esse lugar perdido é um lugar idealmente construído a partir da distância, da percepção do deslocamento físico, temporal e afetivo. Não há retorno possível. Há idealização de retorno e há, constatada a sua impossibilidade, o exercício do furor frio e desagregador da melancolia. No livro que dediquei à obra do poeta, tentei verificar como essas duas atitudes líricas, a que chamei “poéticas” – a nostalgia e a melancolia – organizam os temas e as palavras do eu que nos fala nos poemas.
-          O que mais impressiona em seu trabalho é a multiplicidade dos saberes. Uma visão que se entende, ou que se busca, leonardiana, aberta, curiosa, inquieta. Como você explicaria essa espécie de sentimento-idéia que o anima?
A explicação, eu creio, está na formação familiar. Mas o que me alegra é poder ter me dedicado a tantas coisas importantes para mim e para as pessoas que me rodeavam. Nesse sentido, não sou, Marco, um acadêmico típico. Não passei a vida aprofundando o conhecimento sobre um tema ou um autor, como fazem tantos colegas eruditos que admiro muito. Fui mudando de objeto de estudo ao sabor da curiosidade, da paixão, do gosto ou da obsessão por resolver um problema cultural ou pessoal. O que não quer dizer que não me tenha dedicado intensamente a cada um desses objetos. Respondida, porém, a questão que me moveu ou esboçada de modo consistente a resposta que buscava, já me atraía um tema ou problema correlato ou remotamente ligado ao que me havia absorvido até ali. Se, do ponto de vista da academia, construí uma carreira que pode ser vista como algo diletante, do ponto de vista do prazer do estudo e da descoberta, que é o único que me importa, pude construir um percurso que esteve sempre colado à minha própria vida e à pulsação dos meus interesses intelectuais. É um privilégio, e creio que ter trabalhado esses anos todos numa universidade tão flexível e desburocratizada quanto a Unicamp foi uma grande sorte.
-          Acha que a Universidade está mudando, ou buscando mais intensamente e acolhendo esse caminho leonardiano, ou será preciso ter cuidado  com as tenazes do específico e do ultraespecializado. Ou as coisas devem e merecem coincidir?
Penso que a universidade tem deixado de ser universidade. O que se vê hoje é um processo perverso, que consiste em submeter todos os campos do saber às regras do campo dos saberes tecnológicos. Exigir, por exemplo, que um aluno de 21 anos faça uma tese de mestrado em literatura em 24 meses é um disparate. E fazer que um aluno de qualquer ciência humana se torne doutor em 36 meses é uma insanidade. Isso já produziu um rebaixamento notável da produção acadêmica em ciências humanas. Da mesma forma, a avaliação dos professores se faz hoje numericamente: quantos trabalhos publicados, quantos congressos, quantos estudantes. O resultado imediato é a perda de consistência dos trabalhos em ciências humanas. O resultado de médio prazo, que já é muito sensível, é a perda de poder das disciplinas humanísticas no interior da universidade. Sem um papel e um lugar predominante das ciências humanas não há universidades, há escolas de tecnologia, centros de formação de técnicos. É isso que a universidade está virando no Brasil. Para um professor que inicia hoje a vida universitária, um caminho como o meu, de amadurecimento lento e de múltiplos interesses, é a cada dia menos possível.
- Finalmente, no campo editorial, onde você milita há alguns anos,  gostaria de conhecer  sua atual, à frente Editora da Universidade de Campinas...
            Há dois anos fui designado para dirigir a Editora da Unicamp, que, depois de um período bastante notável, passara por quatro anos de rápida decadência. Durante esses anos dediquei todo o meu tempo à obra de reconstrução. Isso significou ter de aprender princípios de administração, contabilidade e comércio, bem como implicou um olhar por dentro do mercado editorial brasileiro. Se é verdade que pude aprender muito, nesse período, também é verdade que jamais tinha pensado em aprender tais coisas ou gerenciar os problemas que tive de gerenciar. Neste momento, felizmente, a Editora começa a caminhar pelas próprias pernas e posso gozar do que há de bom na atividade, que é o contato com os autores, a análise das obras e o planejamento de ações culturais.

Três livros de poesia - 2001


[Jornal 8]

Três livros de poesia - 2001


[texto publicado em 2001, no Suplemento Literário de Minas Gerais][1]



Três livros de poemas recém-lançados – Trívio, de Ricardo Aleixo, Zona Branca, de Ademir Assunção, e A Sombra do Leopardo, de Cláudio Daniel – permitem verificar o bom nível da produção poética brasileira atual. Ao menos, na vertente radicada na Poesia Concreta e no paideuma por ela construído no Brasil. São livros bastante diferentes entre si, mas que compartilham algumas características importantes.
Penso que as qualidades principais do primeiro deles, A Sombra do Leopardo (de Cláudio Daniel), são a unidade de dicção, o nível geral dos poemas e a estrutura em que se arrumam. Agrupados em oito seções, os 33 poemas do livro se organizam segundo um desenho sugestivo que inicia com a invocação de figuras tutelares, que são também caminhos, possibilidades de fazer frente ao desejo e à dor (Dante, Nagarjuna, Chuang-Tzu, Schopenhauer e outros), prossegue pela evocação de lugares exóticos, distantes no tempo e no espaço (Tibet, Grécia, Egito...), que parecem funcionar como espaços de plenitude sensória e de iluminação, e deságuam no desfecho nomeado com o título do livro dos mortos tibetano, o Bardo-Thödol.
Se tivesse de apontar apenas um poema que sintetizasse a poesia deste livro, o escolhido seria aquele que contém a expressão que dá nome ao conjunto. Trata-se de “Dante”, poema central para o entendimento do desenho do volume, pois, com muita distância, é uma glosa da passagem da Divina Comédia em que as três feras (a onça, entre elas) impedem o prosseguimento do caminho pela selva e obrigam à descida ao Inferno.
Trívio, de Ricardo Aleixo, é de todos o mais imune à “angústia da influência”, que Bloom vê como o motor do novo em poesia. Pelo contrário, o seu livro não só deixa evidente a filiação concretista, mas também a celebra. Por esse lado, os momentos mais fortes são aqueles em que adota, com competência emulativa, procedimentos que caracterizam a poesia de Augusto de Campos. É o caso do encarte “Brancos”, e é também o caso de “Canção noturna do fim dos peixes” e “Totem para Smetak”. Por isso mesmo, dispensaria o posfácio, que apenas declara, sem brilho nem acrescentamento, aquilo mesmo que o volume inteiro evidencia.
            Entremeada a essa parte ostensivamente concretista, em que a repetição dos processos e até da tipologia do mestre incomoda e acaba criando um clima retrô, temos os poemas que constituem o melhor do livro: aqueles em que a espacialização discreta se choca com as cadências regulares do verso português ou não é obstáculo à emergência de uma linguagem muito coloquial. “Loa da menina deusa”, “Numa festa”, “Mesmo esta, agora, é” e “Ela aquela” têm um ritmo cantante e visual, que cristaliza um momento de fala, uma cena, ou uma sensação. Neles brilha alguma coisa nova, distante da ecolalia que dá o tom de vasta parcela da produção atual, filiada na mesma vertente concreto-cabralina. São esses poemas, em minha opinião, que destacam o livro e singularizam a dicção do seu autor.
Zona Branca, de Ademir Assunção, parece-me o mais eclético dos três, tanto no que diz respeito ao leque de recursos compositivos, quanto ao elenco de referências culturais. Também me parece o mais irregular, no nível da realização individual dos textos, pois o livro oscila entre poemas de alta tensão poética e outros apenas sofríveis.
Herdeiro programático da antropofagia oswaldiana, o poeta declarou numa entrevista recente à revista eletrônica Balacobaco: “Minha dentição é boa: mastigo tudo  o  que  me interessa:  e  isto  vai de Dante Alighieri  a  histórias  em quadrinhos.” E os poemas também vão desde o tom (irônico?) de auto-ajuda de “Zensider”, até a estilização do velho poema de protesto, em “Anti-ode aos publicitários (de um guerrilheiro morto em combate)”, passando pelo poema concreto e pelo gosto kitsch de versos como estes, que encerram o poema “A lágrima de Van Gogh”: “& uma única lágrima / guardada / na caixinha de jóias”.
Dentre os resultados vários dessa mastigação generalizada, os poemas descritivos, compostos por montagens à maneira de haicai, me parecem o que há de melhor: “Assombro em branco e preto”, “A queda em preto e branco”, “Desocupado”, “try to see again...” e “vento da madrugada...”. Do mesmo alto nível me parecem “Peixes de luz” e “In a silent way” e, especialmente, “Espelho d’Água”, momento singular de concentração poética, no qual a composição justapositiva se faz por aglutinação em torno de uma imagem forte.
A capacidade de criar imagens impressivas e justapô-las em rápida sucessão responde, aliás, por alguns dos melhores momentos de Zona Branca. E também pelo fato de ser raro o poema do livro que não acabe redimido, ao menos parcialmente, pelo saldo final da construção imagética. É o caso, por exemplo, de “Olhos elétricos”, que consegue se manter em pé, mesmo contendo este dístico: “pássaros tristes entre cães aprisionados / enfim vivemos num cenário”.

Nascidos nos primeiros anos da década de 60, Aleixo, Assunção e Daniel publicaram pela primeira vez em volume no início dos anos 90. Não são, portanto, estreantes, mas sim poetas amadurecidos, em cujo texto já se podem avaliar as qualidades plenas e os eventuais limites da sua arte. O que é comum aos três diz respeito tanto a essas qualidades, quanto a esses limites. Em primeiro lugar, o caráter reflexivo e metapoético da sua prática literária; em segundo, a competência técnica, seja no domínio do corte do verso breve, seja na aplicação de recursos composicionais herdados da vanguarda concretista; por fim, é comum a todos a exibição de um eclético repertório de cultura.
Poetas-críticos, assinalam a procedência ou a inserção cultural de tópicos dos seus poemas em subtítulos ou notas de sabor acadêmico. Daniel, por exemplo, além de escrever frases como “a poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página, sítio de possíveis reflexos”, também esclarece, em subtítulos a natureza, o gênero ou a fonte do seu texto: “Tse-yang, pintor de leopardos (retrato apócrifo), “Simão do deserto (alegoria), “Dante (Inferno, I, 31-42). Aleixo é igualmente didático, em notas de final de volume: Marcial entre os kuikúro é uma adaptação mais-que-livre de um mito dos índios Kuikúro recolhido pela antropóloga Bruna Franchetto”; “Ñamandu baseia-se vagamente em um mito dos índios guaranis, do Paraguai, recolhido pelo antropólogo Pierre Clastres”...  E também o é Ademir Assunção, que anota ter sido “inspirado no filme Paris, Texas, de Wim Wenders” um determinado poema, e que um trecho de um outro “faz alusão ao seqüestro de Baco narrado por Ezra Pound no Canto 2 do livro The Cantos, correspondente a um episódio das Metamorfoses, de Ovídio”.
Tais indicações configuram uma tensão entre os escritores e o público previsto, que se biparte entre os leitores que poderão reconhecer e julgar a pertinência do referencial “erudito” e os que ainda precisam ser nele instruídos. Isto é, estes escritores, por um lado, já não se apropriam dos textos centrais da tradição ocidental como matéria comum, de conhecimento generalizado. Por outro lado, tampouco parecem acreditar que mitos e lendas sejam matéria a ser incorporada sem registro, por conta da sua significação universal. Pelo contrário, em qualquer caso, inclusive nas referências à cultura pop, é sensível o cuidado de indicar explicitamente a fonte, e, se for o caso, o grau de desvio em relação a ela. Por fim, não parece que elejam, como destinatário do seu discurso poético, o leitor visado pela lírica de extração romântica: o homem comum dotado de sensibilidade e de boa vontade. Dizendo de outra forma: as notas explicativas, os títulos e os nomes eruditos incorporados no texto dos poemas e os vários procedimentos de citação e alusão podem ser lidos alternada ou combinadamente como atestado de cultura, gesto de intuito educativo e celebração totêmica.


No prefácio ao livro de Claúdio Daniel, Eduardo Milán o define de uma maneira precisa, que me parece válida também para os dois outros autores. Diz que se trata de um “lírico cultural”. Por essa expressão, que utiliza como elogio, Milán entende uma relação “dinâmica e evidente” com a “cultura”, a ponto de fazer equivaler “impressões de leitura” e “intuições líricas”.
Quando li o conjunto dos três livros acima referidos, e em especial o de Daniel, foi justamente o caráter “evidente” dessa relação, bem como a ostensiva apresentação das “impressões de leitura” o que me incomodou.
Ademir Assunção, por sua vez, na entrevista já referida, declarou que “estamos sendo bombardeados por milhares de informações o tempo todo e nossa mente funciona cada vez mais como uma ilha de edição”. Também declarou, claro, que não sofre “aquela  neurose  da ‘angústia da influência’, que tanto preocupa um crítico  como Harold  Bloom.”
Para repetir nestes termos a parte da minha impressão de leitura que foi desfavorável, diria que a “ilha de edição” tem um funcionamento às vezes pouco sutil e que a ausência da “angústia da influência”, que ela supõe, faz com que uma porção significativa de cada um desses três livros se aproxime perigosamente do pastiche estilístico. Talvez por isso, às vezes me assaltasse a impressão desagradável de que partes dos três volumes pareciam escritas por um mesmo supra ou protopoeta, misto de João Cabral, irmãos Campos e Leminski, constituído por combinações variáveis desses elementos. O mesmo suprapoeta que também teria escrito muita da poesia reunida na antologia Esses poetas e alguma da que compõe Outras praias.
Entretanto, passado esse primeiro momento e o travo dessa constatação, o que fica mesmo na memória da leitura é o que cada um dos livros tem de melhor, de mais característico e bem realizado. E que, embora não seja muito, também não é pouco.


[1] Onze anos depois, relendo esse texto, percebo que minha percepção da qualidade relativa dos volumes se alterou. Mas não se alterou o essencial do que vai no corpo do artigo. Por isso achei que valia a pena transcrevê-lo neste espaço. E também porque se trata de uma resenha referida aqui e ali, e de difícil acesso nas páginas do jornal onde foi originalmente publicada.

domingo, 17 de junho de 2012

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, Marco Cremasco

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, de Marco Cremasco*
                     

   Marco Cremasco era já bem conhecido como poeta, tradutor e diretor de uma revista de poesia quando surpreendeu os seus amigos e leitores com um belo romance histórico, premiado pelo SESC em 2003 e finalista do Jabuti de 2005: Santo Reis da Luz Divina.
   Quatro anos depois, publica este volume, com 11 histórias intituladas “prováveis”.
   O que seriam histórias prováveis? perguntará o leitor – como eu mesmo me perguntei, quando tive notícia do livro.
   Como o autor é um cientista respeitado, autor de livros também na área da engenharia química, a primeira tentação é imaginar que se trata de um livro experimental. Não no sentido que se dá a essa palavra em arte, porque a arte experimental nada tem a ver com a ciência experimental, uma vez que os eventuais resultados que obtém só servem àquele livro no qual eles são experimentados ou à identificação do estilo do autor que os experimentou pela primeira vez. Mas experimental no sentido científico: histórias que podem ser provadas, histórias comprováveis.
   Basta, entretanto, que o leitor percorra as primeiras páginas para verificar que não deve ser esse o sentido da palavra que nomeia o volume e qualifica as narrativas, uma vez que o título do livro é também o título da primeira história, e nesta se juntam fragmentos escritos por um louco, redigidos talvez sob o impulso de notícias de jornal e tendo como método de escrita uma espécie de associação de palavras.
   Não sendo desde logo demonstráveis – pensa o leitor – talvez estas histórias se denominem “prováveis” no sentido de apresentarem situações ou enredos com possibilidade de acontecer. Mas essa suposição é também desmentida pelos fatos, ou melhor, pelos contos, pois “A paixão segundo qualquer pecado” é nada menos do que uma alegoria moral, no velho estilo.
   Se o leitor ainda não desistiu de procurar um sentido para o titulo, resta-lhe ainda uma possibilidade, antes de abandonar o dicionário e o desejo de interpretar.
   Nesse último sentido, as histórias seriam prováveis porque a sua inaceitabilidade ainda não foi cabalmente demonstrada. É uma das definições dicionarizadas. E daria conta de partes do livro, pois ainda não foi completamente demonstrado, por exemplo, que uma onça não possa viver despercebida na cidade grande, que um sujeito que se chama Cravo não possa relacionar-se exclusivamente com pessoas que tenham nomes também extraídos do reino vegetal, ou que os animais não possam organizar-se em assembléia e produzir longos discursos que se assemelhem a bem conhecidos discursos humanos.
   Mas já aqui estamos falando de outra coisa: seriam prováveis essas histórias porque especulariam sobre o funcionamento da sociedade e da psique humana? E seria ainda provável uma história na qual a lógica apanha da narrativa, porque ela traz, sobre os mesmos pontos do enredo, asserções que podem ser lidas como contrárias? Nesse caso, o que quereria dizer, então, “prováveis”? Seria somente uma provocação, forçando a leitura realista de textos ostensivamente não realistas? Ou seria um jogo irônico do autor com uma expectativa de leitura em alta nestes tempos nos quais o documento, o testemunho e o relato jornalístico ganham grande espaço no campo literário?
   E como o nome do livro é também o nome da primeira história, na qual o narrador afirma transcrever os fragmentos do caderno de um desvairado, talvez as histórias prováveis sejam apenas as histórias possíveis de escrever numa sociedade louca, por um louco.

   Sob a efígie ambígua da loucura, por conta do título do livro ser o da primeira história, movem-se as demais e se contaminam com a sua atmosfera, de modo que o leitor experimenta ali uma espécie de pesadelo da razão. Pensei primeiro em “sono da razão”, por conta da gravura de Goya, “O sono da razão cria monstros”, mas depois vi que o nome melhor seria o que Ernest Pawel usou para a biografia de Kakfa: o pesadelo da razão.
   Porque não se trata do adormecer da razão, e sim do seu funcionamento errático e exacerbado, que se manifesta como sensível desígnio de representação do mundo atual.
   O mundo das “histórias prováveis”, entre outras coisas, é como uma imagem refletida num espelho irregular: a distorção torna ridículos os traços, irreconhecíveis os detalhes, mas mantém identificado o objeto que está no reflexo.
   A “ratoria” invadida em “A invasão dos ratos” não só parece repercutir a penúltima invasão da reitoria da Unicamp (quando os estudantes estavam mascarados), mas prenuncia com a última, produzida depois do livro estar na praça (p. 68). A ficção burlesco-científica de “As leveduras” tem este trecho:

Toda área agriculturável destinada a feijão, arroz e outros gêneros alimentícios foi direcionada à plantação da cana-de-açúcar. No começo, houve aceitação; hoje vive-se em sua função. (...) A terra está explorada nos três cortes anuais de cana. Planta-se cana a todo custo. Vive-se por ela. Hoje é o dia de hoje; o amanhã será consumido na perspectiva do desemprego ou do trabalho forçado. Não há saída, pois o país está pobre e dominado por biomassa e destilarias de álcool. (p. 56)

   Essas palavras poderiam ter sido retiradas de um discurso de Fidel Castro contra o projeto do etanol. Ou poderiam ser ouvidas em uma viagem pelo interior do país. Ou ainda, ter sido colhidas diretamente num jornal qualquer.
   Mas ao mesmo tempo, e em contraposição a períodos graves como esse (no qual apenas um pequeno trecho rimado destoa da platitude discursiva), domina essas histórias o gosto (e talvez a obsessão) do livre jogo lingüístico, que em alguns casos faz com que o texto se aproxime da poesia, devido ao gosto da rima e da paronomásia, da enumeração exaustiva e algo caótica, do choque dos registros do discurso e da construção por palavra-puxa-palavra. Como neste trecho de “A onça-parda”:

Os homens reclamavam da má sorte, da morte do dia que não deu em bom para a pescaria. Nada havia nas caixas de surpresa naquela represa de insolação superficial. Na face descorada das putas, os garis varriam bitucas e sugavam salivas dos bordéis.

   Não se trata, porém, de livre-associação. Não há sombra de surrealismo, ou melhor, do método surrealista, que busca fazer aflorar aquilo que não tem controle ou razão.
   Pelo contrário, o controle da razão em pesadelo se afirma todo o tempo, principalmente por meio do caráter ostensivamente alegórico dos textos.
   A alegoria é uma forma da totalização do obscuro, do fragmentário. Ou é uma forma de fragmentar e obscurecer momentaneamente uma totalidade, para melhor revelar o conceito, quando a decifração se apresenta.
   A alegoria consiste em remeter um conjunto de elementos a outro, que funciona como a sua chave, que o totaliza num sentido pleno.
   As partes de um discurso alegórico que não remetem à chave são desprezadas na decifração. Assim, usualmente não importa a forma dos artelhos da estátua da justiça, nem as suas feições, nem o modelo da túnica.
   Ora, neste livro, os procedimentos mais perturbadores são os que, por dentro, corroem a alegoria. O primeiro consiste em tornar tudo plano, sem hierarquia, produzindo uma alegoria obscura, que, pela impossibilidade de totalização, namora o caos. O segundo consiste em chamar a atenção para aquilo que, na alegoria, não faz parte do sentido principal, produzindo rastros de sentido, que atravessam o texto e brilham em frases soltas, cenas esboçadas, para logo se perderem em non sense, ostentação de perícia, comprazimento na facilidade da composição e, principalmente, na ostensiva regressão às formas populares do apólogo e da fábula infantil que dominam o fluxo narrativo.
   A máquina de produção de sentido nessas histórias funciona do modo vário, mas o princípio da construção lingüística, que é o que dá o tom especial dessas onze histórias reunidas em volume, está sempre em evidência.
   O autor parece empenhado em construir fábulas, alegorias e apólogos que possam ser lidos como críticas de uma situação-limite a que chegou a humanidade, que explicitam mesmo o seu caráter de parábola. Mas essas parábolas terminam por se colorir, por força de um tom geral curiosamente infantil – que produz o humor pelo tratamento lúdico da linguagem e das situações narrativas –, de uma cor cambiante, entre a melancolia, a ironia resignada e o sarcasmo.
   De modo que, ao final do percurso da leitura, sobressai não o gesto alegórico ou efabulador, mas o quase agressivo trabalho de linguagem, que às vezes parece, de tão ostensivo, inconveniente.
   E é então que, ao fechar o livro e voltar a olhar para capa o leitor pode aventar  outra explicação para o título. Já não se trataria de uma afirmação, isto é, de dizer que as histórias são prováveis. Agora, um sentido dubitativo pode recobrir o título enigmático: são prováveis histórias. No sentido de que não é certo que sejam mesmo histórias.
   São, por um lado, histórias, os textos que o autor reuniu nesse livro. Mas também são, em medida vária, algo entre a poesia, a piada, a fábula infantil e o conto. Uma forma mutante, larvar, intermediária, que não é bem uma coisa, nem é bem a outra.
   É essa corrosão da forma que o livro afirma. E é nela que reside o seu caráter singular: ele nos traz quase-alegorias de quase-vidas; apresenta-nos, dissolvidas num riso amargo e regressivo, as efabulações possíveis num tempo e numa sociedade cada vez mais improváveis.


* Texto lido no lançamento do livro, no dia 24 de maio de 2007, na FNAC Campinas.

sábado, 16 de junho de 2012

Sete contos de fúria - resenha


[Jornal 7]

A fúria de Camões[1]


sobre Sete contos de fúria, de António Vieira (Ed. Globo, 2002)


           O título deste volume pode levar a engano sobre o que há nele. É que os conteúdos afetivos não aparecem ali em estado bruto. A racionalidade não parece prestes a ceder a um impulso que não pode suportar; nem a superfície da linguagem parece agitada por alguma intuição terrível. Pelo contrário, a razão é soberana ao longo do volume. O trabalho de escrita exibe cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que força às vezes a chave alegórica. Nas personagens tampouco há traços comuns de constituição associados à paixão que dá nome ao conjunto. E mesmo as epígrafes que abrem o volume e cada um dos contos sugerem uma escrita da espécie da glosa, isto é, do desenvolvimento exemplar de uma frase ou idéia alheia.
A fúria que denomina estas histórias é de outra ordem. Os contos são vaticínios, e a referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si, “grande e sonorosa”, contraposta à “frauta ruda” e à “agreste avena”. O épico, aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características desse livro, quais sejam a elevação da linguagem e o anseio de universalidade dos temas. Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser vista como um contraponto seja à “agreste avena” da narrativa centrada nas vicissitudes amorosas ou na apresentação de uma irredutível individualidade; seja à flauta rude do neo-realismo, que tem vendido bem em sua versão suburbana de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro, quase não há “interioridades”. Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da épica, e cada pormenor remete ao universo dos grandes textos e temas da tradição ocidental. E os nomes estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas, as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente trabalhada, para “desrealizar” as cenas e enredos. É certo que a presença de monstros e deuses materializam o tema do poder desmesurado e da opressão. Mas como não há, por princípio, representação realista da vida social, o foco de interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do volume não é, por isso mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é perturbadora a unidade da linguagem e o princípio compositivo, que é a repetição, em variações cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a situação narrativa, as frases são sempre cadenciadas (às vezes em metro regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas, abundantes.
Do ponto de vista temático, os contos são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio que os une. No primeiro deles, um cientista judeu descobre, por meio de um supertelescópio, a sombra do cadáver de Deus, morto ao criar o universo. No último, o falo decepado e indestrutível de Osíris é descoberto no deserto e, após a tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a integridade do deus, desaparece nas águas do Nilo. O nome do primeiro conto é “O Grande Luto”. O do último, “A Restituição”. Entre esses dois extremos, estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição do bem perdido.
Na maior parte das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a melhor me parece ser “Eôs”, uma versão da fábula grega. Como se sabe, apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do amante, Títonos, esquecendo-se, porém, de lhe garantir a eterna juventude. Com o passar do tempo, Títonos reduziu-se a uma forma encarquilhada e repulsiva, terminando por metamorfosear-se em cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é meloso, quase uma recriação olímpica de Hollywood. O que a redime é a destruição da verossimilhança. Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo telefone (um aparelho modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no conto se chama Suze, é um inescrupuloso industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como prostituta de luxo, servida por uma limusine. As quebras de expectativa não resultam, porém, numa adaptação modernizadora do mito grego, pois as tensões produzidas pelos anacronismos violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se assim um intuito de paródia cruel, que contamina a leitura e justifica o registro algo piegas.
Nos melhores momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva. Nos piores, a impotência da amargura vertida em simbologia mais ou menos evidente. O tom geral do livro talvez pudesse ser resumido no título da primeira história, “O Grande Luto”. Mas o desenho do volume, que termina na história do falo de Osíris, bem como o esgar de riso que se insinua em episódios como o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela que nasce o furor enunciado no título: o furor frio, lógico e estático, que dá força e justifica tanto a opacidade da linguagem ornada e alegórica, que flerta com o kitsch, quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista ou a ingenuidade reverencial.
Com vários pontos altos, os “Sete contos de fúria”, entretanto, formam um conjunto desigual. Se alguns são ótimos, como “Eôs”, outros são apenas razoáveis, como “Vida e morte de Argos”, que glosa, num enredo plano, o velho tema da relação homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação simples, gerando desinteresse.
Em suma, este livro de Antonio Vieira tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o leitor se aperceber da natureza da fúria específica que o organiza e atentar para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar o que há de novo e vivo no conjunto das histórias. Caso contrário, só lhe restará recusar a leitura, ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou menos fácil, que interpela diretamente uma “natureza humana” sem tempo nem espaço.


[1] texto publicado na Folha de São Paulo, em 14 set. 2002

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Nota: O voo noturno das galinhas


Nota de presentação do livro  
O voo noturno das galinhas
de Leila Guenther
publicado em 2006



       Os textos reunidos neste livro, mesmo os mais curtos, são histórias completas. Ou talvez fosse mais exato dizer que são gestos completos de linguagem, dotados da extensão apenas necessária para que se patenteie o seu sentido e se perceba o corpo do qual procedem e que os dinamiza.
       Não obstante, o leitor logo perceberá que não tem diante de si uma mera coletânea de contos e minicontos, mas sim um conjunto significativo, dotado de uma secreta arquitetura, que, sem prejuízo da autonomia de cada um deles, os reorganiza e ressignifica como momentos autônomos de um desenho amplo, cujo vetor e sentido só se percebem ao final da leitura.
      A coerência estilística também reforça a unidade do conjunto: moldados com mão leve, mas de grande firmeza, os vários textos aqui reunidos exibem todos uma escrita precisa, que não faz alarde do trabalho de depuração, nem exibição de pirotecnia narrativa.
     Contida e elegante, a linguagem de Leila Guenther não é, entretanto, despida de relevos e surpresas, que se manifestam a cada passo, sob a superfície polida do fluxo narrativo. Nesse universo minimalista, um torneio de frase, um advérbio ou a escolha precisa de um vocábulo bastam para testemunhar e trazer subitamente para primeiro plano a massa de energia e os movimentos profundos que se cristalizaram, em seqüência, nessas narrativas breves.
    A sensibilidade ao mesmo tempo delicada e agônica, combinada à linguagem correta e ao tom confessional, faz assim de cada história desse livro um momento tenso, no qual a energia aparece contida, mas prestes a estalar os limites que o narrador aceita ou taticamente se prescreve. Como se cada uma delas fosse uma mola, imóvel porque presa por um fio.