domingo, 14 de abril de 2013

Entre ser e nada: Augusto de Campos lê John Cage

Entre ser e nada

          Acabo de ver isto: http://www.erratica.com.br/opus/110/nada.html e, em seguida, isto: http://vimeo.com/29791907.
          A conferência sobre o nada na interpretação de Augusto de Campos (gravada por Vanderley Mendonça e, no primeiro link, editada por André Vallias) enfatiza o auditório vazio. Que é, evidentemente, uma alegoria. O auditório real está em outra parte: do outro lado da tela: o internet surfer que clica no item, dentro da revista eletrônica.
          Sendo assim, o que quer dizer a ênfase no auditório vazio? Ou melhor, a construção de um auditório vazio para a leitura filmada, pois neste momento e naquele lugar, o mais provável é que houvesse nele público significativo, não fosse a necessidade do cenário.
          É uma espécie de testemunho sobre a época (Cage, 1949)? Ou afirmação sobre a nossa própria época (Campos et al., 2011)? Um lamento por não haver já quem se interesse por ouvir uma conferência sobre o nada, isto é, uma conferência que se reduza a um ato performativo, que se desdobra numa pregação de silêncio? Ou um elogio do solitário ouvinte que contempla a leitura e contempla o auditório vazio (ao qual, por contemplar, já não pertence)?
          O pequeno filme configura o leitor/tradutor/intérprete, bem como aquele que assiste ao vídeo como figuras de exceção, irmanadas na recusa à suposta recusa de ouvir o que o poeta não tem a dizer.
          Mas o poeta que quer o silêncio e quer dizer nada, quer dizer que tem o direito de não ter nada para dizer, exceto a vontade ou o imperativo de dizer – e que identifica a poesia com esse não-dizer ou dizer-nada – mas esse poeta, perguntava, que lugar real configura para o público? E para si mesmo?
          Sem a afirmação negativa, isto é, sem a afirmação pela negação, onde está a poesia? Essa poesia, que se constrói como antipoesia, no sentido de ser uma declaração de ser o contrário do que a expectativa do suposto público (ausente da plateia filmada) teria do que fosse a poesia.
          Mas quando quem vê é reduzido à pessoa eleita a que o discurso se dirige (com ou sem a edição que alude a um determinado tipo ou momento da história da poesia), qual o sentido do silêncio, ou da afirmação negativa, se não há expectativa a contrariar? É que aqui a expectativa é plenamente satisfeita. Contrariá-la seria apresentar um poema expressivo, narrativo, lírico ou de versificação tradicional – enfim, tudo o que o leitor acostumado ao discurso negativo da vanguarda e suas descendências não vê ou não aceita como seu contemporâneo. Mas não foi esse o caminho escolhido. Não sendo, qual o sentido da negação? Para quem e por que o poeta/tradutor/intérprete diz “não”? O “não”, aqui, dada a expectativa confirmada, vale por um “sim”, ou por um “assim queríamos demonstrar”. Vigora, pois, como reiteração do esperado. E do lugar à margem em que supostamente se encontram tanto o poeta quanto o seu realizador e o seu espectador.
          Nesse caso, a intervenção tem um sentido apenas: reafirmar o acordo, revivificar o já ocorrido. Seu alcance, assim, é predominantemente histórico. Sua reflexividade ensaia, mais do que tudo, a afirmação do pertencimento e do lugar na série. Ou seja, a filiação – de olho na descendência. Reiteração, dogma, elogio, aceno cúmplice: é assim celebração, ou melhor, autocelebração (e eloquente) a coisa dita dessa forma e neste momento por meio da negação do dizer.

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originalmente publicado aqui: http://sibila.com.br/critica/entre-ser-e-nada/5194

Jorge de Sena e o haikai

Os haikais de JS

X
     Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
     A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero.
     Ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa.  Essa disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.
     O efeito de sentido é complexo. Trata-se de um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a ele.
     A forte personalidade do autor determina o afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.
     Para um leitor pouco familiarizado com o haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o texto mimetize a estrutura profunda do haikai.
     Dos poemas do autor, o que mais pareceria, pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de tempo, nenhum kigo.
     Já o que me parece ter mais espírito de haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa, muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e indiscutível.
     Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão o quis fazer.
     Como exercício, para mostrar as diferenças e as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir, mas dialogar divertidamente com o poeta.
     No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:

Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.

No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:

O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.

Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente poderiam ser assinados por ele.
X                   
                
HAI-KAIS
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.

HAI-KAI
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.
11-12/1/1974
In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192





Publicado origalmente em Ler Jorge de Sena
http://lerjorgedesena.wordpress.com/2013/04/09/jorge-de-sena-e-os-haikais-2/

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Plágio - entrevista a Ricardo Manini



Breve entrevista a Ricardo Manini – a propósito da noção de plágio – março, 2013

Manini:  Rousseau escreve, nas suas Confissões, o seguinte: "I know my heart, and have studied mankind; I am not made like any one I have been acquainted with, perhaps like no one in existence; if not better, I at least claim originality, and whether Nature did wisely in breaking the mould with which she formed me, can only be determined after having read this work". Alguns críticos literários colocam que o ideal da originalidade nasce, ou ao menos está ligado em grande parte, ao período Romântico. Isso está correto? O movimento romântico traz mesmo uma ideia de querer ser diferente, querer ser original, em relação a outros homens? Em que sentido isso se realiza?


Franchetti: Acho que o que nasce com o período romântico é nossa forma de compreender a originalidade. Mas basta percorrer a história da literatura para ver que as marcas originais foram valorizadas em várias épocas, de uma forma ou outra. Os líricos gregos mais conhecidos criaram inclusive formas estróficas próprias, que depois outros incorporaram. E até hoje falamos de verso sáfico, por exemplo. As escolas de pintura reforçavam, no trabalho coletivo, a maneira de um mestre. E os traços comuns a textos de autores diferentes foram ao longo dos anos reunidos sob um nome próprio (como Camões, por exemplo; ou Gregório de Matos), sendo a ele atribuída a autoria, isto é, a sua origem. A distinção entre invenção e cópia, entre propriedade e apropriação, tampouco é romântica. Já no Quixote nos deparamos com aquela passagem engraçada em que D. Quixote chega a um lugar por onde teria passado um falso Quixote, isto é, um Quixote herói de um livro não escrito por Cervantes. Ali aparece a questão da autoria, da autoridade do criador, que confere verdade à sua criação e desautoriza a existência da cópia, sem entretanto conseguir negá-la (isso é o mais notável, pois o falso Quixote também existe e sua existência não é questionada pelo verdadeiro).
Mas é evidente que, no período romântico, a originalidade ganha outro contorno e passa a ser valorizada e apreciada de outra maneira. Por um lado, pela razão que apontou na sua pergunta: parte importante da estética romântica é postular a ligação íntima da vida e da obra, com a consequente valorização da singularidade de uma vida. Assim, os traços mais individuais, quando expressos, garantem que a expressão é autêntica, que o que se tem ali é a expressão de um indivíduo concreto. Por outro lado, a originalidade passa a ser mais importante no momento em que os cânones clássicos se enfraquecem ou se dissolvem. Sem o quadro prescritivo do cânone, a justificação de uma obra passa a se dar por meio do apelo à fidelidade ao sentimento e à observação do real. E não podemos deixar de notar que o período romântico é justamente aquele no qual a literatura se torna mercadoria de grande consumo e, como consequência, o período no qual se define o direito à propriedade intelectual. Para ter uma ideia do quadro, basta considerar que dois dos maiores escritores portugueses, Garrett e Alexandre Herculano, tinham posição oposta com relação à remuneração da produção intelectual (os direitos de autoria): Garrett era favorável e Herculano era contrário. Creio que é a questão da quebra do quadro clássico dos gêneros literários aliada à ascensão da classe média, que permitiu que a literatura passasse a bem de consumo, que nos permite dizer que a originalidade (e a questão do plágio literário, tal como hoje a concebemos) tem origem romântica.


Manini: Se pensarmos em uma perspectiva histórica, a cópia de textos era muito praticada por monges na Idade Média, antes da invenção da prensa. A cópia, nesse caso, não poderia ter o sentido de plágio. Tinha, em realidade, a ideia de disseminação do conhecimento para aquele pequeno grupo de homens. Hoje, a cópia literal sem citação da fonte original é vista, muitas vezes, como uma coisa senão ilegal, ao menos imoral. Podemos dizer que há uma mudança de sentido do ato de copiar no decorrer da história?

Franchetti: O sentido do ato e da forma de copiar – ou melhor, de se apropriar dos textos de outros – mudou muito ao longo da história. Na China clássica, por exemplo, se você quisesse citar um texto canônico no interior do seu texto não tinha de colocar nenhuma marca como as nossas aspas e nem explicar de onde tirou a frase ou parágrafo ou estrofe. Seria um insulto à cultura e à inteligência do leitor. É um exemplo extremado, mas em vários períodos da nossa própria história percebemos comportamento semelhante. E ainda hoje, apesar das pressões das normalizações, é comum encontrar artigos sobre literatura em que os autores mais conhecidos são apenas referidos, sem a usual indicação de ano e página. Na literatura também a forma de avaliar a apropriação da autoria também sofreu mudanças importantes. Uma delas foi que a acusação de plágio passou a transcender o texto: Eça de Queirós, por exemplo, foi acusado de plágio, quando publicou O Crime do Padre Amaro, porque o enredo do livro lembrava o de um livro de Émile Zola. Outra é que ao longo do tempo, a recriação livre de um texto de outra língua – ainda muito comum entre os nossos românticos, por exemplo – passou a ser pouco praticada – até ser de novo valorizada na forma de uma tradução criativa. Nesses casos, o que se observa é não uma subtração da autoria, mas a afirmação de duas autorias concorrentes, o que é uma variável interessante para pensar na questão do plágio. Já na modernidade, vigoraram alguns procedimentos que, em outro tempo, poderiam ser vistos como plágios: a incorporação de textos de outros autores por Eliot, ou por Pound, por exemplo. De modo que, hoje, a questão da apropriação de textos de outros autores se tornou mais complexa, mais mediada. Ou seja, perdeu força no domínio literário, onde sobrevive apenas nos casos em que o que importa de fato é a mercadoria: nos best-sellers. A relevância da noção de plágio – a própria formulação ou acusação de plágio – tem a ver, portanto, com o valor econômico do produto. Ou do que o produto pode ou poderia render, ou do capital investido na sua produção. Por isso, a questão do plágio é hoje mais grave no domínio da ciência. Daí a vinculação com ilegalidade: o que está em questão não é a apropriação particular de um bem comum, como queria Alexandre Herculano ao negar o direito de autor, mas a apropriação indébita de um bem que se entende como privado, seja um resultado científico, um produto, uma sequência de palavras, frases musicais, enredos, etc.


Manini: É possível traçar uma relação entre a meta de originalidade e a meta de copiar? Uma ideia se contrapõe à outra? Há nuances nessa relação?

Como respondi acima, do meu ponto de vista, no domínio da literatura e da arte não há contraposição rígida, se considerarmos um amplo período de tempo.