terça-feira, 22 de outubro de 2013

Poesia e técnica – Poesia Concreta



Poesia e técnica – Poesia Concreta

 [notícia bibliográfica ao final]


               Os anos finais do Império e as duas primeiras décadas da República (proclamada em 1889) foram o momento de esplendor da poesia parnasiana no Brasil.
               Dá-se, nessa época, um fenômeno sem precedentes a história cultural do país: o escritor profissionaliza-se, principalmente por meio do trabalho nos jornais, e ganha estatuto de figura pública de relevo; a vida literária se torna centro de atenção mundana e, mesmo, de definição da moda; a norma linguística, a construção de um padrão culto de língua, especialmente depois da República, ganha o centro das atenções e dos debates, como instrumento de civilização e unidade nacional; ao mesmo tempo, a literatura institucionaliza-se, processo que, sob a liderança de Machado de Assis, conduz à fundação, em 1897, da Academia Brasileira de Letras, da qual o grande romancista seria o presidente vitalício. De modo que, se quiséssemos retomar os termos em que Antonio Candido narrou a história da literatura brasileira, teríamos de celebrar o momento parnasiano como aquele no qual essa literatura já estaria plenamente constituída como um sistema no qual se integram o autor e o público, por meio de um estilo e de uma temática amplamente difundidos e aceitos como ideal de cultura.[1]
                Logo após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, com a eclosão do movimento modernista que teria como marco a Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, a prosa e a poesia do momento parnasiano e realista – e especialmente a poesia –, passam a ser objeto de ataques por parte dos novos escritores, identificados com os ideais da vanguarda europeia. O momento emblemático do Modernismo, a Semana, pode ser visto também como aquele no qual se inaugura, depois da integração parnasiana, uma nova fase na cultura nacional, a das vanguardas, cuja característica mais evidente, do ponto de vista da recepção, é o divórcio entre o escritor e o público. As vaias que ali se produziram são, sem dúvida, uma recusa ou resistência estética ao novo; mas são ainda o protesto contra o rompimento do que a pequena burguesia talvez visse como um pacto cultural, na medida que os jovens vanguardistas abandonavam e desqualificavam ruidosamente os ideais e valores literários apresentados como caminho de civilização nos primeiros anos da república. Daí que esse público em grande parte se mantivesse fiel aos autores parnasianos e hostil ou indiferente aos modernistas da primeira geração. E daí também que as ressurgências parnasianas marquem a história da poesia brasileira até os dias de hoje.
              A partir de 1930, com o que, no Brasil, se convencionou denominar Geração de 30, a literatura modernista conquista maior público. É o momento no qual ganha terreno o romance nordestino e a poesia em verso livre. O momento de Jorge Amado e Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, para só mencionar os mais conhecidos.
             Já em 1945, com o final da Segunda Grande Guerra, de certa forma encerra-se o período modernista, ganhando a cultura brasileira uma nova configuração, na qual a literatura não parece mais ocupar lugar privilegiado na definição dos rumos da cultura nacional.
            No campo literário, a nova geração que por essa época começa a afirmar-se – denominando-se justamente, para marcar o período pós-guerra, “Geração de 45” – apresenta clara nostalgia classicizante – de acordo, aliás, com uma tendência mundial no segundo pós-guerra – e promove uma espécie de revival parnasiano, no tom do discurso e no renovado interesse pelas formas fixas da tradição poética de língua portuguesa. Mas já não há sombra do momento de esplendor do sistema cultural dos primeiros tempos republicanos, e a sensação geral, que será aprofundada dramaticamente nos anos de 1950, é a de que a característica do novo tempo é o desaparecimento de um público amplo interessado na literatura.
            Esse tema percorre de tal forma a reflexão sobre a poesia na segunda metade do século XX, especialmente a reflexão desenvolvida pelos poetas, que parece difícil apreender o real movimento da recente literatura brasileira – especialmente o da poesia – sem dar a ele a devida importância.
            É esse o foco do presente artigo, que começa pela consideração das proposições do mais significativo dos poetas surgidos em 1945, João Cabral de Melo Neto e prossegue com a análise da resposta da Poesia Concreta aos desafios do tempo, com foco na questão da especificidade e lugar da poesia no mundo dominado pela tecnologia e pela indústria cultural



I. Cabral e a função da poesia moderna


             Em 1954, como parte das comemorações do aniversário de 400 anos da cidade, reuniu-se em São Paulo um grande Congresso Internacional de Escritores, promovido pela Comissão dos festejos e patrocinado pela UNESCO.
             Na seção consagrada à discussão da poesia, o balanço do momento foi feito por Aderbal Jurema, numa comunicação lida no dia 11 de agosto, intitulada “Apontamentos sobre a niponização da poesia”, na qual afirmava que a novíssima geração reagia mal aos desafios do tempo moderno. Segundo ele, os novos adoravam uma atitude reativa: ao invés de viverem plenamente o “drama nas fronteiras da técnica”, refugiavam-se num “artesanato suicida”, que distanciava a poesia do público e só lhe reservava um lugar na “camaradagem do suplemento dominical”.
O tema da perda do público percorre a maior parte das falas do Congresso dedicadas à poesia, independente da nacionalidade do orador. O que dá cor específica à fala dos brasileiros é a ênfase na relação causal entre o divórcio autor/público e o crescimento dos novos meios de comunicação de massa, a percepção de que existe uma feroz concorrência entre a cultura erudita e cultura de massas, com desvantagem notória da primeira:

Será normal que o artista atual, porque não deseja imiscuir-se com as formas inferiores, ou porque receia que os novos métodos de difusão comprometam a sua dignidade, será normal ao artista eximir-se de participar, fugir à realização, silenciar, não concorrer? Parece-me que não e o seu dever é adaptar-se às novas condições, salvaguardando naturalmente a sua integridade e a qualidade dos seus padrões... Se os novos meios se considerarem obras diabólicas, fugir, isolar-se deles, é abandoná-los ao diabo. Não é esse o dever do espírito, mas sim vencer o príncipe das trevas.[2]

             Assim se expressava, a propósito, Afrânio Coutinho, um dos mais reconhecidos homens de letras do país.
Na mesma época, a concorrência entre as artes e a indústria cultural mereceu a atenção analítica, de outro crítico de grande expressão, Antonio Candido, que abordou o problema num texto publicado em duas partes – uma no ano anterior e outra no ano seguinte ao Congresso – e que se intitulou “Literatura e cultura de 1900 a 1945”[3].
Nesse texto bem conhecido, Candido afirmava que, a partir de 1930, tinha sido sensível o aumento do público de literatura, devido à melhora da educação e à diminuição do analfabetismo. Entretanto, dizia, “esse novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação”, entre os quais nomeava o rádio, o cinema e as histórias em quadrinhos.
E continuava:

            Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram, graças à palavra oral, à imagem, ao som (que superam aquilo que no texto escrito são limitações para quem não se enquadrou numa certa tradição), que um número sempre maior de pessoas participassem de maneira mais fácil dessa quota de sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro.[4]

Por fim, apontava o crítico as respostas extremas à situação: a tentação da busca de comunicação com o público por meio da aproximação da literatura com o relato direto da vida, para concorrer com o rádio ou o jornal, ou o aprofundamento da singularidade do literário, restringindo ainda mais o acesso a ela por parte do público geral.
O problema da expansão e conquista do público estava na ordem do dia. Desde 1952, tinha merecido a atenção do poeta mais significativo dentre os que estrearam na década de 1940, João Cabral de Melo Neto.  Naquele ano, numa conferência intitulada “Poesia e composição”, proferida na Biblioteca Municipal de São Paulo – local emblemático do Modernismo –, Cabral tinha também se ocupado do problema da comunicação na literatura do pós-guerra, centrando-se na questão da poesia.
Nessa conferência, Cabral começa por opor os modos de composição que denomina “inspirado” e “construtivo”, dos quais derivariam duas famílias de poetas. Para os da família da inspiração, a poesia seria um achado, algo que acontecia ao poeta; já para os da família da construção, a poesia seria o resultado de uma busca, de uma elaboração.
O que dinamiza essa oposição, que em certo sentido retoma a tipologia de Schiller, é o quadro contrastivo que Cabral traça entre a condição moderna e a “época feliz” dos tempos não modernos. Naquelas “épocas de equilíbrio”, a espontaneidade é “identificação com a comunidade”, “o trabalho de arte inclui a inspiração”, as regras da composição são explícitas e universalmente aceitas, “a exigência da sociedade em relação aos autores é grande” e, por isso tudo, a comunicação é objetivo central da prática literária. Na modernidade, em contraposição, as condições são opostas: o que a define é a perda do leitor (e da crítica, epítome do leitor) como “contraparte indispensável do escritor”.  Sem esse fator de controle, as duas formas de composição se extremam em oposição radical, gerando famílias poéticas distintas e distantes, condenadas entretanto a se encontrarem, após o desenvolvimento de sua inclinação (isto é, depois de os inspirados esgotarem-se no “balbucio” incapaz de apreender o inefável e depois de arrastados os “construtores” ao artesanato furioso que conduz ao “suicídio da intimidade absoluta”), no isolamento solipsista, decorrente da “morte da comunicação”.
No quadro dessa modernidade descrita quase como beco sem saída, Cabral optava, contra o espontâneo, pelo polo construtivo. E o fazia, a rigor, como confirmação e último desenvolvimento da condição moderna, pois entendia que o poeta construtivo levava às derradeiras conseqüências o individualismo, na medida em que afirmava como referencial último da sua escrita “a consciência das dicções de outros poetas que ele quer evitar, a consciência aguda do que nele é eco e que é preciso eliminar a qualquer preço”.
 É esse o problema que Cabral retoma na tese que leu no Congresso de 1954, e na qual aborda especificamente a relação da poesia com os novos meios de comunicação de massa.
Nesse texto, embora ainda afirme o caráter multiforme da ‘poesia moderna’, Cabral acredita ser possível achar um denominador comum às práticas contemporâneas: o “espírito de pesquisa formal”. Em continuidade ao que apresentara na Biblioteca, dois anos antes, opera com a oposição entre as “duas famílias de poetas”. Mas já agora o que lhe importa é que nenhuma das famílias se teria empenhado em promover o “ajustamento do poema à sua possível função”, disso tendo resultado o caráter intransitivo e inócuo da poesia contemporânea em relação às necessidades do tempo. A tarefa urgente, afirma, é buscar para o poema uma função na vida do leitor moderno, seja pela adaptação aos novos meios de comunicação (o rádio, o cinema e a televisão), seja pelo retorno a formas que pudessem aumentar a comunicação com o leitor, como a poesia narrativa, as aucas catalãs (que ele considera as antepassadas das histórias em quadrinhos), a fábula, a poesia satírica e a letra de canção. Tendo em vista a urgência da tarefa, o seu texto termina por conclamar os poetas a combater “o abismo que separa hoje em dia o poeta do seu leitor”, por meio do abandono dos temas intimistas e individualistas e pela conquista de formas mais funcionais, que permitam “levar a poesia à porta do homem moderno”.

II. A Poesia Concreta


Quando as atas do Congresso Internacional foram finamente publicadas, em 1957, as preocupações de Cabral já tinham encontrado uma resposta programática de grande envergadura e radical aposta na integração da poesia no quotidiano da vida moderna.
Uma resposta cuja apresentação, ajuste e transformação constituiriam o centro de energia da poesia brasileira ao longo dos 50 anos seguintes: a Poesia Concreta.
Para compreender a especificidade do movimento, é preciso considerar com atenção dois textos que Augusto de Campos publicou em 1955.[5] Neles, Augusto afirma a existência de uma linha mestra evolutiva da poesia moderna à qual responde e se filia a Poesia Concreta:

            A verdade é que as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA.[6]

             Nesse primeiro momento do projeto, portanto, a nova poesia não se apresentava como uma tentativa de superar o abismo entre o autor e o público. Na verdade, situava-se no pólo oposto, exigindo do leitor um esforço de obtenção de referências eruditas, de modo a poder aferir a arte de vanguarda como resultado de “uma ferrenha ânsia de superação culturmorfológica”[7]. Daí que a nova poesia demandasse, do autor tanto como do leitor, trabalho árduo e aplicação, sendo a ressurgência das formas tradicionais, que caracterizava a Geração de 45, duramente condenada por Haroldo.[8]
O passo seguinte da formulação do projeto constitui um dos pontos de maior interesse e tensão do programa da Poesia Concreta, tal como se delineará por ocasião do lançamento nacional do movimento: fazer coincidir a necessidade da evolução “culturmofológica” com as necessidades do mundo moderno, marcado pela técnica e dominado pelos meios de comunicação de massa. Isto é, fazer com que uma poesia elaborada a partir do pólo maior da negatividade, da recusa do leitor, como a poesia de Mallarmé, e articulada a partir do exemplo do artesanato joyciano, seja também um caminho para a positiva integração do poema no mundo industrial. Ou ainda: fazer com que a poesia que se reclama a origem mais erudita seja simultaneamente a poesia mais adequada à comunicação imediata com o leitor leigo e despreparado culturalmente.
Nesse quadro, a crise do verso e o abismo autor/público se explicam pela inadaptação do verso aos tempos modernos. À poesia não parece mais bastar a situação correta e conseqüente, face à evolução das formas. A evolução das formas deve ser agora valorizada e entendida em função da apropriação e aproveitamento dos recursos tecnológicos disponíveis, que são, ao mesmo tempo, o caminho para afirmar a poesia no mundo dos objetos industriais.[9]

É a retomada da questão enunciada por João Cabral de Melo Neto, no Congresso de 1954. Em relação às suas preocupações há aqui, entretanto, diferenças de fundo e de ênfase. A primeira delas é a recusa do verso – isto é, de todo o arsenal de formas tradicionais – como estratégia para recuperar a comunicabilidade da poesia nos tempos modernos. Essa estratégia se resume, agora, à integração da poesia aos meios de comunicação de massa e aos princípios que os estruturam. A oposição cabralina entre “expressão” e “construção” se acirra, com a desqualificação do primeiro pólo e absolutização do segundo como único adequado aos novos tempos. Economia, objetividade e rapidez são as palavras-chave desse momento da Poesia Concreta para conseguir a integração da poesia na vida quotidiana, como objeto industrial de consumo.[10]
Nos anos que se seguem imediatamente à Exposição Nacional de Arte Concreta, a ênfase no caráter racional, econômico e integrado do poema tenderá a ser substituída por uma modalização da forma de entender a poesia nova nos primeiros textos dos integrantes do grupo Noigandres. Passado o momento inicial, já não se ressaltará a utilidade, o poema como veículo de propaganda comercial ou objeto decorativo integrado à moderna arquitetura. Como dizia Haroldo já em maio de 1957, o poema concreto se vai valer de uma “linguagem afeita a comunicar o mais rápida, clara e eficazmente o mundo das coisas” para “criar uma forma”, criar “um mundo paralelo ao mundo das coisas – o poema”[11].
Na mesma linha, Augusto de Campos escrevia, assinalando uma mudança significativa de perspectiva, quanto à integração da poesia na vida quotidiana e conquista do público:

Mesmo quando circunstancialmente divorciada do grande público, como hoje, (e nesse caso a missão social da poesia estaria limitada a um plano mais alegórico do que factivo) é de crer-se que a poesia possa intervir, ainda que a posteriori, à medida que o tempo vá permitindo a absorção das novas formas, no sentido de pelo menos compensar o atrofiamento da linguagem relegada à função meramente comunicativa.[12]

           A questão da técnica, assim, é de importância central para o projeto concretista. Bem como a questão da comunicação. O que sofre alteração drástica, nos primeiros tempos de elaboração do projeto da Poesia Concreta, é a natureza e o lugar da técnica, por um lado; por outro, aquilo que se comunica com a técnica.
            Nesse segundo momento, o poema concreto, objeto autônomo, “paralelo ao mundo das coisas” comunicaria imediatamente a sua própria forma nova. E apenas ela.
             A introdução de uma formulação alegórica é o ponto de virada.
             A relação entre a poesia concreta e a tradição e entre a poesia concreta e o mundo contemporâneo – e essa é a resposta, portanto, à questão angustiosa de como fazer coincidir a vanguarda erudita com a arte adequada ao mundo dos mass media – passa a ser uma relação regida por um “como se”.
            O poema concreto é produzido como se fosse um produto industrial; ao mesmo tempo deve ser lido como aquilo que afirma ser: o herdeiro erudito da principal linha evolutiva da literatura ocidental.
Cabe ao leitor – a um leitor por suposto bem aparelhado culturalmente – juntar os elementos indicativos dessas vinculações para compor “a provável estrutura conteudística relacionada com o conteúdo-estrutura do poema concreto”.
Assim concebido, o poema concreto é proposto simultaneamente como a “fisiognomia de nossa época” e como esperança de futuro, na medida em que, incompreendido pelo grande público, seria comunicativo a posteriori, quando, absorvido, pudesse ser um antídoto ao atrofiamento da linguagem meramente comunicativa.



III. A poesia como cena tecnológica e utopia erudita


           Mas a base do argumento pela propriedade da linha evolutiva de que a Poesia Concreta representa o último passo permanece sendo a adequação ao tempo. Daí que se acentuem as homologias entre a técnica poética (a espacialização de Mallarmé e Cummings, os caligramas de Símias e Apollinaire, a palavra-valise de Carroll e Joyce, a paronomásia) e a técnica dos mass media e dos novos recursos tecnológicos (a visualidade do jornal e do cartaz, as possibilidades tipográficas da letra set e do computador, a visualidade da holografia e da tv). [13]
O que vem para primeiro plano, uma vez que é a “estrutura” o que se comunica, é a técnica. O poema não comunica algo valendo-se de uma determinada técnica. É a própria técnica – a técnica literária – o que o poema comunica, traz presente para o leitor.
O que define a técnica como literária e a opõe à técnica meramente industrial – que, neste segundo momento, a poesia concreta não mais se propõe a imitar ou incorporar, mas a antecipar – é a sua inserção num vetor de evolução, construído pelo discurso crítico e teórico. Um vetor propriamente literário, que corre paralelo ao vetor da determinação histórica das formas da comunicação industrial.
Por conta dessa necessidade de distinção, que implica a afirmação do caráter autônomo do desenvolvimento literário, nos manifestos e nos textos teóricos, a ‘explicação’ concreta do poema reduz-se à exposição da sua base técnica, à análise do funcionamento técnico do poema e à definição dessa base e dessa forma específica de atualização num quadro de evolução dos procedimentos na prática literária erudita.
Ou seja, na conjugação ou na afirmação da homologia das duas vertentes técnicas, o que ressalta é a vertente erudita, pois a Poesia Concreta não só se propõe “poesia” – e não objeto do mundo industrial –, mas ainda reclama para si o título de única poesia conseqüente na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, essa afirmação de que é única poesia realmente contemporânea do presente implica afirmar uma equivalência dos vários presentes, ao longo do eixo temporal: em cada momento, seria possível distinguir qual seria a “poesia concreta” do seu tempo, isto é, a poesia que, em relação a ele, ocupava o mesmo lugar que a Poesia Concreta ocupa no presente. A afirmação dessa equivalência se faz não só pelo discurso teórico que define os “precursores”, mas, principalmente, por meio da tradução, que faz equivaler os vários momentos do passado ao presente da poesia concreta.
A polêmica da Poesia Concreta, assim, é sempre dupla e envolve uma questão de legitimidade ou de direito: a reivindicação do direito de um objeto que promove a superposição do erudito e do industrial reivindicar o nome e a tradição da poesia; e também envolve uma questão de exclusividade: a reivindicação de que só é poesia contemporânea e válida a que opera essa superposição
Daí resultam a proposição e a reivindicação simultâneas de que: a) a Poesia Concreta é a atualização radical e autoconsciente de uma experiência antiga: a experiência da invenção poética, ou seja, a experiência da poesia; e b) a afirmação da radical diferença entre o passado e o presente, porque a técnica que se dá como espetáculo já não é apenas a erudita, mas principalmente a tecnologia.
Dessa última proposição deriva a principal aporia da prática concretista.
Para expor essa aporia, deve-se considerar que a “técnica tecnológica”, pela sua natureza, muda mais rapidamente que a “técnica tradicional” da poesia. Ao mesmo tempo, o processo de avanço da técnica é freado pelo controle da autoria, da qual não abdica o poema concreto.
Ora, a “técnica tecnológica” é avessa ou alheia à noção de autoria. Por isso mesmo, o valor de espetáculo da “técnica tecnológica” tende a reduzir-se rapidamente a zero, com o passar do tempo. Da atualidade mais atual ao museu de velharias é um passo muito rápido no mundo da cibernética e dos mass media. Na verdade, esse passo é a mola secreta que movimenta não só a percepção e a satisfação da modernidade exasperada, mas também a indústria e o comércio dos aparelhos e dos conteúdos culturais.

Dessa necessidade de autoria, e da postulação de que pode e deve existir uma coincidência da técnica literária e da técnica tecnológica – e ainda mais: que a tradição, o repositório da evolução das formas da literatura ocidental, deva estar presente no momento da decodificação do poema concreto – resulta o caráter cediço e meramente histórico de experiências mais radicais, como poemas com hologramas, cartões perfurados de computador e sons sintetizados, cujo caráter “conservador”, do ponto de vista técnico, salta aos olhos de qualquer pessoa familiarizada com o mundo da técnica (e a familiaridade com esse universo propriamente técnico se torna universal a partir do momento em que se populariza o microcomputador, nos anos de 1980, e a internet, nos anos 1990).
Resulta ainda outro aspecto relevante e muito perturbador, que é o fato de que os poemas concretos mais diretamente vinculados à tecnologia informática guardam hoje interesse apenas como documentos históricos, pois o seu caráter antigo ou antiquado, do ponto de vista técnico, torna-os mais interessantes no quadro de um museu da ciência e da tecnologia, do que numa antologia poética.
Por outro lado, os que não são lidos apenas ou principalmente como testemunhos de um passado tecnológico morto são aqueles nos quais a tipografia ou a tipologia vem para primeiro plano (os da fase ortodoxa, os ideogramas de Décio, os “poemas embalagens” de Augusto), aqueles nos quais o caráter artesanal (e anti-industrial) é mais sensível (como o Poetamenos; os Poemóbiles; ou a Caixa preta) e aqueles nos quais a “técnica erudita” sobrepuja a “técnica tecnológica” (como A máquina do mundo e Crisantempo).
Sendo assim, o ponto de honra do programa concretista que era a absorção da técnica no quadro de referências da cultura erudita se revela cada vez mais uma missão impossível, um desafio perdido.
Daí decorre não só a eleição do lugar da recusa pelo poeta concreto (toda a obra madura de Augusto de Campos gira em torno da ideia de resistência, negação, subtração às demandas do presente[14]), mas ainda um tom algo nostálgico e melancólico que percorre toda a última fase da poesia concreta.
Nesse sentido, a experiência decisiva é a contemplação das animações por computador, das versões informáticas dos poemas concretos. O ritmo lento dá a esses exercícios uma solenidade estranha, porque jogada a sério, sem nada de jocoso ou de paródico.
Ao lado dos videoclipes de música, por exemplo, caracterizados pela sua enorme rapidez, e das anônimas animações das páginas da internet, o poema concreto padece simultaneamente da precariedade dos meios e recursos técnicos (o que é uma condição fatal, pois, sendo poema, pretende perdurar na sua forma “artística” de realização) e do deslocamento do sentido que essa precariedade opera sobre o seu próprio cerne, isto é, o seu caráter de vanguarda, de objeto situado no futuro, de modo a organizar a percepção do presente.
           Na época da disseminação da visualidade digital, a Poesia Concreta não consegue reproduzir a aliança entre técnica literária de vanguarda e técnica tecnológica de ponta. Em algum momento, essa aliança se configurou como possível. Hoje, ao que tudo indica, já não é. E a própria Poesia Concreta aparece, cada vez mais, não como a negação do humanismo – tal como ela se via e como a viam os contemporâneos –, mas justamente, pelo contrário, como um dos últimos suspiros do humanismo utópico, um momento de esplendor otimista da modernidade que findava.




Referências bibliográficas:

CAMPOS, Augusto et allii. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.
CAMPOS, Augusto et allii. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
CAMPOS, Augusto. Despoesia (1979-1993). São Paulo: Perspectiva, 1994.
CAMPOS, Augusto. Expoemas (1980­85), serigrafias de Omar Guedes. São Paulo: Entretempo, 1985.
CAMPOS, Augusto. Não, com CD-Rom CLIP-POEMAS. São Paulo: Perspectiva, 2003.
CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CAMPOS, Augusto. Viva vaia (Poesia 1949­79). São Paulo: Duas Cidades, 1979.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, 4.ª ed.
Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, São Paulo, Editora Anhembi Limitada, 1957.


Sítios eletrônicos:

Augusto de Campos – Site oficial: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/
Haroldo de Campos – Site oficial: http://www2.uol.com.br/haroldodecampos/
Poesia Concreta – http://www.poesiaconcreta.com.br/



Notícia bibliográfica:

Esta é a reprodução do texto publicado na revista eletrônica Sibila, em 2009. Foi a primeira publicação em português. A versão inglesa veio em Portuguese Studies, Londres, March 22, 2008. Há uma versão on line em inglês em http://www.thefreelibrary.com/Poetry+and+technique:+concrete+poetry+in+Brazil.-a0177830242 . Como o texto não estivesse mais disponível no site da revista, decidi republicá-lo aqui.

Uma palestra sobre o mesmo tema: https://www.youtube.com/watch?v=pHtVgoLuYP8 



[1] Ver, a respeito, “Olavo Bilac e a unidade do Brasil republicano”. In Earle, T. F (org.) Actas do V Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. Oxford-Coimbra: Associação Internacional de Lusitanistas, 1998, vol. II, p. 697-706.

[2] Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, São Paulo, Editora Anhembi Limitada, 1957, pp. 150-1.
[3] Reproduzido em Literatura e sociedade.
[4] Literatura e sociedade, p. 137.
[5] Trata-se de “Poesia, estrutura” e “Poema, ideograma”, publicados em 20 e 27 de março, no jornal Diário de São Paulo. Ambos os textos se encontram reproduzidos em Augusto de Campos et alii, Mallarmé.
[6] “Poema, estrutura”. In Mallarmé, cit., p. 186.
[7] Haroldo de Campos, “Poesia e paraíso perdido”, Diário de São Paulo, 5 de junho de 1955; reproduzido em Augusto Campos et alii, Teoria da poesia concreta, pp. 26-30.
[8] Ibidem, pp. 27-8.
[9] o verso: crise. obriga o leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude postiça. não consegue libertar-se dos liames lógicos da linguagem: ao tentar fazê-lo, discursa adjetivos. não dá mais conta do espaço como condição de nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo, lombar, e não como elemento relacional de estrutura. anti-econômico, não se concentra, não se comunica rapidamente. destruiu-se na dialética da necessidade e uso históricos. [...]
uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.
a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até às histórias em quadrinhos. [...]
contra a poesia de expressão, subjetiva. por uma poesia de criação, objetiva. concreta, substantiva
Décio Pignatari, “nova poesia: concreta”. Publicado na revista ad – arquitetura e decoração (São Paulo, novembro/dezembro de 1956) e republicado, em maio do ano seguinte, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Reproduzido em Augusto Campos et alii, Teoria da Poesia Concreta.
[10] a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea
permite a comunicação em seu grau + rápido / prefigura para o poema uma reintegração na vida quotidiana semelhante à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial (jornais, cartazes, TV, cinema, etc.), quer como objeto de pura fruição (funcionando na arquitetura, p. ex.), com campo de possibilidades análogo ao do objeto plástico / substitui o mágico, o místico e o “maudit” pelo ÚTIL.
Haroldo de Campos, “olho por olho a olho nu”, manifesto publicado conjuntamente com o de Décio Pignatari, há pouco referido. Encontra-se reproduzido no mesmo volume.
[11] Haroldo de Campos, “Poesia concreta – linguagem – comunicação”; reproduzido em Augusto Campos et alii,  Teoria da poesia concreta, pp. 70-85.
[12] Augusto de Campos, “A moeda concreta da fala”, texto publicado em 1/9/1957; reproduzido em Augusto Campos et alii,  Teoria da poesia concreta, pp. 111-122.
[13] Um conjunto significativo de poemas de Augusto de Campos, incluindo não só a reprodução de algumas de suas obras iniciais, mas também um ótimo exemplário das suas experiências com animação computacional, encontra-se no site oficial do autor: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/ . Há poucos poemas de Haroldo de Campos e de Décio Pignatari on line e não é possível reproduzi-los aqui. Recomendo fortemente, por isso, que o leitor menos familiarizado com a Poesia Concreta brasileira visite o endereço acima, pois assim não só poderá uma visão de conjunto das várias fases do movimento, mas ainda adquirir elementos para melhor avaliar a reflexão apresentada neste artigo.
[14] Basta observar a seqüência dos títulos dos últimos livros: Viva vaia (1979); Expoemas (1985); Despoesia (1994); Não (2003); e a eles juntar o da sua última antologia de traduções: Poesia da recusa (2006).

sábado, 31 de agosto de 2013

A edição da poesia de Camilo Pessanha



SOBRE UMA PROPOSTA DE PUBLICAÇÃO DOS POEMAS DE CAMILO PESSANHA


[Este texto foi escrito para ser apresentado no I Colóquio Colóquio Internacional do LIA: 500 anos Portugal-China: contrastes, mudanças e desafios, realizado na USP nos dias 26 a 30 de agosto de 2013 – motivos de ordem pessoal me impediram de estar presente]


            Em primeiro lugar, quero apresentar as minhas desculpas e a minha tristeza por não poder integrar esta mesa e rever amigos queridos e colegas que ainda não conheço pessoalmente, mas cujo trabalho admiro de longa data.
            Se eu aqui estivesse, teria muito gosto em ouvir as comunicações e, principalmente, aprender com os debates que certamente ocorrerão.
            Entretanto, do ponto de vista da minha própria participação na primeira parte dos trabalhos, não creio que farei falta, pois apenas repetiria aqui o que tenho dito em tantos outros momentos, seja sobre os critérios da edição que fiz em tempos, seja sobre as críticas que recebi. Nesse particular – e mais exatamente no que diz respeito à falta de honestidade intelectual de uma professora italiana, Barbara Spaggiari, e um seu acólito português, António Barahona – publiquei também há tempos um longo texto, disponível no meu blog, ao qual remeto algum eventual interessado no bas-fond da vida intelectual.[1]
            Mas talvez deva dizer ainda uma vez algumas palavras, principalmente porque talvez haja estudantes presentes, para os quais o estado da matéria possa ainda ser desconhecido.
            E então, começando pelo começo, gostaria de dizer que nunca pretendi, nem fiz, uma “edição crítica” no sentido comum dessa expressão.
            Isso porque nunca pretendi “fixar” um texto, no sentido de afirmar que aquela era a versão a ser lida, e não outras.
            Pelo contrário, percebendo logo que seria impossível dar uma forma fixa ao conjunto dos poemas de Pessanha e me recusando, desde o princípio, a arvorar-me em reorganizador da sua obra segundo algum desenho temático ou formal que me parecesse mais sedutor, decidi pela forma mais radical de trabalho, que passo a expor.
            A palavra radical, aqui, está sendo usada quase no sentido botânico: interessou-me sobretudo observar a história de cada um dos poemas de Pessanha, tanto do ponto de vista da sua elaboração (isto é: datação, identificação – quando possível – da primeira versão e descrição das sucessivas alterações até a última forma comprovadamente autoral), quanto do ponto de vista da sua história pública (isto é: cópias por terceiros, publicações esparsas a partir de fontes várias, publicações em volume).
            Sendo assim, meu trabalho tinha uma direção oposta à dos trabalhos de edição crítica, que traçam uma árvore que permita chegar à raiz mais segura ou indubitável. Minha preocupação, pelo contrário, foi descrever o processo de transformação, a partir dos muitos autógrafos e publicações desse poeta que absurdamente alguns julgaram avesso ao registro escrito.
            Muito longe de querer estabelecer “o texto”, o que eu quis foi apresentar ao leitor eventual a maior quantidade possível de informações para que ele pudesse se decidir pelo texto – ou o momento textual, por assim dizer – que lhe parecesse melhor.
            Para poder anotar as várias campanhas, os vários gestos de escrita de Pessanha, eu precisava de um ponto de referência, de um momento congelado no tempo, a partir do qual os leitores pudessem percorrer o caminho de elaboração e as várias versões sucessivas (quando identificáveis temporalmente) de cada verso.
            Fiz isso, como disse há pouco e repeti exaustivamente no aparato, considerando apenas como referência a última versão comprovadamente autoral. É certo que há casos muito difíceis, pois a autoridade do autor que escreve “limpa” numa versão num dado momento, é contrariada pela autoridade do mesmo autor que publica uma versão diferente em um momento posterior. E há vários textos nos quais não se consegue discernir com segurança se as correções terminaram por configurar uma nova versão (quando não há indicação “limpa” no autógrafo ou ao lado do texto impresso emendado) ou apenas anotações inacabadas para ajustes futuros.
            Expor claramente os pontos de dúvida e de risco foi, assim, um objetivo importante na redação das muitas notas que compõem o aparato da edição que organizei.
            Tomando taticamente a última versão comprovadamente autoral como ponto de referência para anotar as variações, restava fazer um cuidadoso e difícil trabalho de reconstituição da história de cada poema, para que as anotações se fizessem em ordem o mais possível cronológica. Aqui também houve momentos de dúvida angustiosa, mas sempre me pareceu melhor enfrentá-la e expô-la claramente, do que eludi-la, escudando-me em argumento sobre “o método adotado”. Afinal, o método foi construído para abordar o objeto na sua dimensão mais ampla e não para amputá-lo de sua complexidade.
            Ao mesmo tempo, os autógrafos disponíveis nem sempre eram de fácil leitura ou estavam bem reproduzidos. Por isso, desenvolvi um sistema de anotação dos gestos de escrita, marcando ordem, natureza e lugar de alteração ou inserção, de modo que os leitores, com a minha edição em mãos, pudessem decifrar com menos dificuldade os autógrafos disponíveis, cuja localização em arquivos ou bibliotecas mapeei minuciosamente.
            Para deixar completamente claro o meu objetivo, na hora de distribuir espacialmente os textos em volume – o que implica ordenação sequencial – renunciei a qualquer desenho temático ou formal (como disse) e, registrando isso na introdução, escolhi o critério mais abstrato possível: a ordem cronológica. Mas não a ordem cronológica da composição do poema – que seria um objetivo impossível, dada a natureza do material e da informação disponível – mas a ordem cronológica do primeiro registro autógrafo ou primeira publicação. O que é muito diferente, pois num caso teríamos uma aposta na ordenação, digamos, “evolutiva” e no outro um simples registro de ocorrência.
            Renunciei também à escolha do que incluir no livro. Poemas ou mesmo fragmentos: tudo aí teria lugar, pois minha única ambição era constituir o mais amplo e completo (naquele momento) repositório de informações e versos de Camilo Pessanha.
             É certo que fiz três concessões. Duas delas de livre vontade e outra de menos livre vontade.
            A primeira que fiz de livre vontade foi abrir o conjunto com a quadra “eu vi a luz...”, porque, num autógrafo que consultei na casa de Carlos Amaro, Pessanha escreveu que aquele era para ser o primeiro poema de seu livro, “em tempos delineado”. A segunda foi fechar o volume com o poema que começa “ó cores virtuais”, como nas edições dos Osórios, aceitando o argumento deles de que o poema fora escrito para encerrar o volume. Ou seja, como sempre fiz desde que não tivesse indícios ou elementos de contradição, aceitei nesse ponto o testemunho dos Osórios.
            A concessão que fiz de menos livre vontade foram na verdade duas: intitular o conjunto “Clepsidra” e deixar escrever “edição crítica” na ficha do volume. Ambas foram exigências do editor, a que me dobrei – talvez feliz por poder assim justificar o belo título e certamente infeliz por meu trabalho ser apresentado como o que não era, ou seja, uma edição crítica.
            Esse foi, em linhas gerais, o meu trabalho. E talvez agora deva encerrar dizendo alguma coisa sobre o que não se percebeu dele e também sobre uma discordância que tenho com relação a algumas das edições dos poemas de Pessanha que foram feitas posteriormente a ele.
            O que não se percebeu foi que, do ponto de vista da aproximação à obra de Pessanha, a minha edição propunha um trabalho com o universo textual do autor, no qual não necessariamente a última versão de um poema era a mais importante ou a mais significativa do ponto de vista da leitura ou da interpretação.
            Ou seja: o que não se percebeu é que, ao contrário do que também se busca fazer atualmente no campo da edição de autores contemporâneos, meu interesse não era afirmar uma versão mais próxima ou fiel à suposta ou real intenção do autor. O que pretendi foi, isso sim, afirmar o caráter inacabado e inacabável do que teria sido o livro de Pessanha, tornando as várias versões disponíveis equivalentes, do ponto de vista do interesse da leitura.
            E foi justamente o rendimento dessa hipótese o que tentei mostrar no estudo que fiz a seguir sobre os versos de Pessanha – o ensaio Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha –, no qual trabalho em vários momentos a história dos textos e as suas versões, confrontando versos com cartas, declarações, texto em prosa, na tentativa de refletir o caráter movente da poesia do autor e identificar o que me parecem dois modos, duas poéticas que organizam as imagens, símbolos e temas dispersos ao longo do universo textual que chamamos de Camilo Pessanha.
            No que diz respeito à discordância, a questão é a seguinte. Clepsidra é o título que Pessanha, comprovadamente, em algum momento, imaginou para a publicação em volume de um conjunto de seus poemas. Mas não temos nenhum registro seguro de quais poemas integrariam esse livro, nem como nele seriam dispostos.
            Assim, só me parece haver dois usos razoáveis para esse título. O primeiro é quando se trata de reproduzir a edição de 1920. Não porque essa edição seja uma edição autoral. Como julgo ter demonstrado, a edição de 1920 foi a recolha possível dos versos disponíveis de Pessanha naquele momento e para aquela editora, arranjados em partes e sequência segundo um critério que nada indica (pelo contrário) terem sido de autoria de Pessanha – e ainda utilizando versões problemáticas, recolhidas de publicações precárias e não autorizadas. Ou seja: o uso apenas documental, diplomático. O segundo, menos razoável – mas mais defensável –, é o que fiz dele: já que não se sabe o que iria no livro, abrigam-se sob esse título todos os poemas hoje encontráveis.
            O terceiro uso já me parece problemático. É o que fazem os editores que tomam por base a última edição de João de Castro Osório e o que fez o meu querido amigo Gustavo Rubim, ao denominar Clepsidra a uma antologia de poemas. Sei que ele vai falar sobre isso, pois no título da sua fala comparece a palavra “sobranceria” e foi como essa palavra que qualifiquei – invejável sobranceria, eu disse – a forma como organizou, sem justificativas e escudado apenas no seu (quanto a mim, indubitável) gosto, uma antologia, que apresentou sob o nome do livro perdido ou nunca conseguido por Pessanha.
            Mas a discordância com Rubim não diz respeito ao ato sobranceiro da escolha. Quanto a isso, desde o começo estou de acordo e o trabalho que fiz de edição teve por objetivo permitir que leitores de Pessanha pudessem escolher sobranceiramente, no banco de dados textual, o que melhor lhes parecesse representar a poesia do autor.
            Minha discordância diz respeito apenas à redução – por conta da aplicação restritiva do título, sem a informação modalizadora de que se trata de uma antologia, no sentido próprio da palavra – do livro inexistente a esse livro particular. Denominasse ele a sua seleção “antologia”, ou registrasse que se tratava de seleta, nenhuma discordância haveria entre nós quanto ao direito de fazer – apenas divergências quanto à escolha, pois creio que ele deixou de fora poemas muito notáveis sob qualquer ponto de vista.
            E aqui devo registrar que sinto imensamente não poder participar do colóquio também porque gostaria muito de ouvir o que esse crítico notável tem a dizer sobre as nossas diferenças.
            Enfim, era isso o que eu diria se aqui estivesse.
            E mais uma vez me desculpando pela ausência, deixo aqui os meus cumprimentos à organização do congresso e aos colegas que não pude, desta vez, rever.

Campinas, agosto de 2013