terça-feira, 22 de outubro de 2013

Poesia e técnica – Poesia Concreta



Poesia e técnica – Poesia Concreta

 [notícia bibliográfica ao final]


               Os anos finais do Império e as duas primeiras décadas da República (proclamada em 1889) foram o momento de esplendor da poesia parnasiana no Brasil.
               Dá-se, nessa época, um fenômeno sem precedentes a história cultural do país: o escritor profissionaliza-se, principalmente por meio do trabalho nos jornais, e ganha estatuto de figura pública de relevo; a vida literária se torna centro de atenção mundana e, mesmo, de definição da moda; a norma linguística, a construção de um padrão culto de língua, especialmente depois da República, ganha o centro das atenções e dos debates, como instrumento de civilização e unidade nacional; ao mesmo tempo, a literatura institucionaliza-se, processo que, sob a liderança de Machado de Assis, conduz à fundação, em 1897, da Academia Brasileira de Letras, da qual o grande romancista seria o presidente vitalício. De modo que, se quiséssemos retomar os termos em que Antonio Candido narrou a história da literatura brasileira, teríamos de celebrar o momento parnasiano como aquele no qual essa literatura já estaria plenamente constituída como um sistema no qual se integram o autor e o público, por meio de um estilo e de uma temática amplamente difundidos e aceitos como ideal de cultura.[1]
                Logo após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, com a eclosão do movimento modernista que teria como marco a Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, a prosa e a poesia do momento parnasiano e realista – e especialmente a poesia –, passam a ser objeto de ataques por parte dos novos escritores, identificados com os ideais da vanguarda europeia. O momento emblemático do Modernismo, a Semana, pode ser visto também como aquele no qual se inaugura, depois da integração parnasiana, uma nova fase na cultura nacional, a das vanguardas, cuja característica mais evidente, do ponto de vista da recepção, é o divórcio entre o escritor e o público. As vaias que ali se produziram são, sem dúvida, uma recusa ou resistência estética ao novo; mas são ainda o protesto contra o rompimento do que a pequena burguesia talvez visse como um pacto cultural, na medida que os jovens vanguardistas abandonavam e desqualificavam ruidosamente os ideais e valores literários apresentados como caminho de civilização nos primeiros anos da república. Daí que esse público em grande parte se mantivesse fiel aos autores parnasianos e hostil ou indiferente aos modernistas da primeira geração. E daí também que as ressurgências parnasianas marquem a história da poesia brasileira até os dias de hoje.
              A partir de 1930, com o que, no Brasil, se convencionou denominar Geração de 30, a literatura modernista conquista maior público. É o momento no qual ganha terreno o romance nordestino e a poesia em verso livre. O momento de Jorge Amado e Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, para só mencionar os mais conhecidos.
             Já em 1945, com o final da Segunda Grande Guerra, de certa forma encerra-se o período modernista, ganhando a cultura brasileira uma nova configuração, na qual a literatura não parece mais ocupar lugar privilegiado na definição dos rumos da cultura nacional.
            No campo literário, a nova geração que por essa época começa a afirmar-se – denominando-se justamente, para marcar o período pós-guerra, “Geração de 45” – apresenta clara nostalgia classicizante – de acordo, aliás, com uma tendência mundial no segundo pós-guerra – e promove uma espécie de revival parnasiano, no tom do discurso e no renovado interesse pelas formas fixas da tradição poética de língua portuguesa. Mas já não há sombra do momento de esplendor do sistema cultural dos primeiros tempos republicanos, e a sensação geral, que será aprofundada dramaticamente nos anos de 1950, é a de que a característica do novo tempo é o desaparecimento de um público amplo interessado na literatura.
            Esse tema percorre de tal forma a reflexão sobre a poesia na segunda metade do século XX, especialmente a reflexão desenvolvida pelos poetas, que parece difícil apreender o real movimento da recente literatura brasileira – especialmente o da poesia – sem dar a ele a devida importância.
            É esse o foco do presente artigo, que começa pela consideração das proposições do mais significativo dos poetas surgidos em 1945, João Cabral de Melo Neto e prossegue com a análise da resposta da Poesia Concreta aos desafios do tempo, com foco na questão da especificidade e lugar da poesia no mundo dominado pela tecnologia e pela indústria cultural



I. Cabral e a função da poesia moderna


             Em 1954, como parte das comemorações do aniversário de 400 anos da cidade, reuniu-se em São Paulo um grande Congresso Internacional de Escritores, promovido pela Comissão dos festejos e patrocinado pela UNESCO.
             Na seção consagrada à discussão da poesia, o balanço do momento foi feito por Aderbal Jurema, numa comunicação lida no dia 11 de agosto, intitulada “Apontamentos sobre a niponização da poesia”, na qual afirmava que a novíssima geração reagia mal aos desafios do tempo moderno. Segundo ele, os novos adoravam uma atitude reativa: ao invés de viverem plenamente o “drama nas fronteiras da técnica”, refugiavam-se num “artesanato suicida”, que distanciava a poesia do público e só lhe reservava um lugar na “camaradagem do suplemento dominical”.
O tema da perda do público percorre a maior parte das falas do Congresso dedicadas à poesia, independente da nacionalidade do orador. O que dá cor específica à fala dos brasileiros é a ênfase na relação causal entre o divórcio autor/público e o crescimento dos novos meios de comunicação de massa, a percepção de que existe uma feroz concorrência entre a cultura erudita e cultura de massas, com desvantagem notória da primeira:

Será normal que o artista atual, porque não deseja imiscuir-se com as formas inferiores, ou porque receia que os novos métodos de difusão comprometam a sua dignidade, será normal ao artista eximir-se de participar, fugir à realização, silenciar, não concorrer? Parece-me que não e o seu dever é adaptar-se às novas condições, salvaguardando naturalmente a sua integridade e a qualidade dos seus padrões... Se os novos meios se considerarem obras diabólicas, fugir, isolar-se deles, é abandoná-los ao diabo. Não é esse o dever do espírito, mas sim vencer o príncipe das trevas.[2]

             Assim se expressava, a propósito, Afrânio Coutinho, um dos mais reconhecidos homens de letras do país.
Na mesma época, a concorrência entre as artes e a indústria cultural mereceu a atenção analítica, de outro crítico de grande expressão, Antonio Candido, que abordou o problema num texto publicado em duas partes – uma no ano anterior e outra no ano seguinte ao Congresso – e que se intitulou “Literatura e cultura de 1900 a 1945”[3].
Nesse texto bem conhecido, Candido afirmava que, a partir de 1930, tinha sido sensível o aumento do público de literatura, devido à melhora da educação e à diminuição do analfabetismo. Entretanto, dizia, “esse novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação”, entre os quais nomeava o rádio, o cinema e as histórias em quadrinhos.
E continuava:

            Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram, graças à palavra oral, à imagem, ao som (que superam aquilo que no texto escrito são limitações para quem não se enquadrou numa certa tradição), que um número sempre maior de pessoas participassem de maneira mais fácil dessa quota de sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro.[4]

Por fim, apontava o crítico as respostas extremas à situação: a tentação da busca de comunicação com o público por meio da aproximação da literatura com o relato direto da vida, para concorrer com o rádio ou o jornal, ou o aprofundamento da singularidade do literário, restringindo ainda mais o acesso a ela por parte do público geral.
O problema da expansão e conquista do público estava na ordem do dia. Desde 1952, tinha merecido a atenção do poeta mais significativo dentre os que estrearam na década de 1940, João Cabral de Melo Neto.  Naquele ano, numa conferência intitulada “Poesia e composição”, proferida na Biblioteca Municipal de São Paulo – local emblemático do Modernismo –, Cabral tinha também se ocupado do problema da comunicação na literatura do pós-guerra, centrando-se na questão da poesia.
Nessa conferência, Cabral começa por opor os modos de composição que denomina “inspirado” e “construtivo”, dos quais derivariam duas famílias de poetas. Para os da família da inspiração, a poesia seria um achado, algo que acontecia ao poeta; já para os da família da construção, a poesia seria o resultado de uma busca, de uma elaboração.
O que dinamiza essa oposição, que em certo sentido retoma a tipologia de Schiller, é o quadro contrastivo que Cabral traça entre a condição moderna e a “época feliz” dos tempos não modernos. Naquelas “épocas de equilíbrio”, a espontaneidade é “identificação com a comunidade”, “o trabalho de arte inclui a inspiração”, as regras da composição são explícitas e universalmente aceitas, “a exigência da sociedade em relação aos autores é grande” e, por isso tudo, a comunicação é objetivo central da prática literária. Na modernidade, em contraposição, as condições são opostas: o que a define é a perda do leitor (e da crítica, epítome do leitor) como “contraparte indispensável do escritor”.  Sem esse fator de controle, as duas formas de composição se extremam em oposição radical, gerando famílias poéticas distintas e distantes, condenadas entretanto a se encontrarem, após o desenvolvimento de sua inclinação (isto é, depois de os inspirados esgotarem-se no “balbucio” incapaz de apreender o inefável e depois de arrastados os “construtores” ao artesanato furioso que conduz ao “suicídio da intimidade absoluta”), no isolamento solipsista, decorrente da “morte da comunicação”.
No quadro dessa modernidade descrita quase como beco sem saída, Cabral optava, contra o espontâneo, pelo polo construtivo. E o fazia, a rigor, como confirmação e último desenvolvimento da condição moderna, pois entendia que o poeta construtivo levava às derradeiras conseqüências o individualismo, na medida em que afirmava como referencial último da sua escrita “a consciência das dicções de outros poetas que ele quer evitar, a consciência aguda do que nele é eco e que é preciso eliminar a qualquer preço”.
 É esse o problema que Cabral retoma na tese que leu no Congresso de 1954, e na qual aborda especificamente a relação da poesia com os novos meios de comunicação de massa.
Nesse texto, embora ainda afirme o caráter multiforme da ‘poesia moderna’, Cabral acredita ser possível achar um denominador comum às práticas contemporâneas: o “espírito de pesquisa formal”. Em continuidade ao que apresentara na Biblioteca, dois anos antes, opera com a oposição entre as “duas famílias de poetas”. Mas já agora o que lhe importa é que nenhuma das famílias se teria empenhado em promover o “ajustamento do poema à sua possível função”, disso tendo resultado o caráter intransitivo e inócuo da poesia contemporânea em relação às necessidades do tempo. A tarefa urgente, afirma, é buscar para o poema uma função na vida do leitor moderno, seja pela adaptação aos novos meios de comunicação (o rádio, o cinema e a televisão), seja pelo retorno a formas que pudessem aumentar a comunicação com o leitor, como a poesia narrativa, as aucas catalãs (que ele considera as antepassadas das histórias em quadrinhos), a fábula, a poesia satírica e a letra de canção. Tendo em vista a urgência da tarefa, o seu texto termina por conclamar os poetas a combater “o abismo que separa hoje em dia o poeta do seu leitor”, por meio do abandono dos temas intimistas e individualistas e pela conquista de formas mais funcionais, que permitam “levar a poesia à porta do homem moderno”.

II. A Poesia Concreta


Quando as atas do Congresso Internacional foram finamente publicadas, em 1957, as preocupações de Cabral já tinham encontrado uma resposta programática de grande envergadura e radical aposta na integração da poesia no quotidiano da vida moderna.
Uma resposta cuja apresentação, ajuste e transformação constituiriam o centro de energia da poesia brasileira ao longo dos 50 anos seguintes: a Poesia Concreta.
Para compreender a especificidade do movimento, é preciso considerar com atenção dois textos que Augusto de Campos publicou em 1955.[5] Neles, Augusto afirma a existência de uma linha mestra evolutiva da poesia moderna à qual responde e se filia a Poesia Concreta:

            A verdade é que as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA.[6]

             Nesse primeiro momento do projeto, portanto, a nova poesia não se apresentava como uma tentativa de superar o abismo entre o autor e o público. Na verdade, situava-se no pólo oposto, exigindo do leitor um esforço de obtenção de referências eruditas, de modo a poder aferir a arte de vanguarda como resultado de “uma ferrenha ânsia de superação culturmorfológica”[7]. Daí que a nova poesia demandasse, do autor tanto como do leitor, trabalho árduo e aplicação, sendo a ressurgência das formas tradicionais, que caracterizava a Geração de 45, duramente condenada por Haroldo.[8]
O passo seguinte da formulação do projeto constitui um dos pontos de maior interesse e tensão do programa da Poesia Concreta, tal como se delineará por ocasião do lançamento nacional do movimento: fazer coincidir a necessidade da evolução “culturmofológica” com as necessidades do mundo moderno, marcado pela técnica e dominado pelos meios de comunicação de massa. Isto é, fazer com que uma poesia elaborada a partir do pólo maior da negatividade, da recusa do leitor, como a poesia de Mallarmé, e articulada a partir do exemplo do artesanato joyciano, seja também um caminho para a positiva integração do poema no mundo industrial. Ou ainda: fazer com que a poesia que se reclama a origem mais erudita seja simultaneamente a poesia mais adequada à comunicação imediata com o leitor leigo e despreparado culturalmente.
Nesse quadro, a crise do verso e o abismo autor/público se explicam pela inadaptação do verso aos tempos modernos. À poesia não parece mais bastar a situação correta e conseqüente, face à evolução das formas. A evolução das formas deve ser agora valorizada e entendida em função da apropriação e aproveitamento dos recursos tecnológicos disponíveis, que são, ao mesmo tempo, o caminho para afirmar a poesia no mundo dos objetos industriais.[9]

É a retomada da questão enunciada por João Cabral de Melo Neto, no Congresso de 1954. Em relação às suas preocupações há aqui, entretanto, diferenças de fundo e de ênfase. A primeira delas é a recusa do verso – isto é, de todo o arsenal de formas tradicionais – como estratégia para recuperar a comunicabilidade da poesia nos tempos modernos. Essa estratégia se resume, agora, à integração da poesia aos meios de comunicação de massa e aos princípios que os estruturam. A oposição cabralina entre “expressão” e “construção” se acirra, com a desqualificação do primeiro pólo e absolutização do segundo como único adequado aos novos tempos. Economia, objetividade e rapidez são as palavras-chave desse momento da Poesia Concreta para conseguir a integração da poesia na vida quotidiana, como objeto industrial de consumo.[10]
Nos anos que se seguem imediatamente à Exposição Nacional de Arte Concreta, a ênfase no caráter racional, econômico e integrado do poema tenderá a ser substituída por uma modalização da forma de entender a poesia nova nos primeiros textos dos integrantes do grupo Noigandres. Passado o momento inicial, já não se ressaltará a utilidade, o poema como veículo de propaganda comercial ou objeto decorativo integrado à moderna arquitetura. Como dizia Haroldo já em maio de 1957, o poema concreto se vai valer de uma “linguagem afeita a comunicar o mais rápida, clara e eficazmente o mundo das coisas” para “criar uma forma”, criar “um mundo paralelo ao mundo das coisas – o poema”[11].
Na mesma linha, Augusto de Campos escrevia, assinalando uma mudança significativa de perspectiva, quanto à integração da poesia na vida quotidiana e conquista do público:

Mesmo quando circunstancialmente divorciada do grande público, como hoje, (e nesse caso a missão social da poesia estaria limitada a um plano mais alegórico do que factivo) é de crer-se que a poesia possa intervir, ainda que a posteriori, à medida que o tempo vá permitindo a absorção das novas formas, no sentido de pelo menos compensar o atrofiamento da linguagem relegada à função meramente comunicativa.[12]

           A questão da técnica, assim, é de importância central para o projeto concretista. Bem como a questão da comunicação. O que sofre alteração drástica, nos primeiros tempos de elaboração do projeto da Poesia Concreta, é a natureza e o lugar da técnica, por um lado; por outro, aquilo que se comunica com a técnica.
            Nesse segundo momento, o poema concreto, objeto autônomo, “paralelo ao mundo das coisas” comunicaria imediatamente a sua própria forma nova. E apenas ela.
             A introdução de uma formulação alegórica é o ponto de virada.
             A relação entre a poesia concreta e a tradição e entre a poesia concreta e o mundo contemporâneo – e essa é a resposta, portanto, à questão angustiosa de como fazer coincidir a vanguarda erudita com a arte adequada ao mundo dos mass media – passa a ser uma relação regida por um “como se”.
            O poema concreto é produzido como se fosse um produto industrial; ao mesmo tempo deve ser lido como aquilo que afirma ser: o herdeiro erudito da principal linha evolutiva da literatura ocidental.
Cabe ao leitor – a um leitor por suposto bem aparelhado culturalmente – juntar os elementos indicativos dessas vinculações para compor “a provável estrutura conteudística relacionada com o conteúdo-estrutura do poema concreto”.
Assim concebido, o poema concreto é proposto simultaneamente como a “fisiognomia de nossa época” e como esperança de futuro, na medida em que, incompreendido pelo grande público, seria comunicativo a posteriori, quando, absorvido, pudesse ser um antídoto ao atrofiamento da linguagem meramente comunicativa.



III. A poesia como cena tecnológica e utopia erudita


           Mas a base do argumento pela propriedade da linha evolutiva de que a Poesia Concreta representa o último passo permanece sendo a adequação ao tempo. Daí que se acentuem as homologias entre a técnica poética (a espacialização de Mallarmé e Cummings, os caligramas de Símias e Apollinaire, a palavra-valise de Carroll e Joyce, a paronomásia) e a técnica dos mass media e dos novos recursos tecnológicos (a visualidade do jornal e do cartaz, as possibilidades tipográficas da letra set e do computador, a visualidade da holografia e da tv). [13]
O que vem para primeiro plano, uma vez que é a “estrutura” o que se comunica, é a técnica. O poema não comunica algo valendo-se de uma determinada técnica. É a própria técnica – a técnica literária – o que o poema comunica, traz presente para o leitor.
O que define a técnica como literária e a opõe à técnica meramente industrial – que, neste segundo momento, a poesia concreta não mais se propõe a imitar ou incorporar, mas a antecipar – é a sua inserção num vetor de evolução, construído pelo discurso crítico e teórico. Um vetor propriamente literário, que corre paralelo ao vetor da determinação histórica das formas da comunicação industrial.
Por conta dessa necessidade de distinção, que implica a afirmação do caráter autônomo do desenvolvimento literário, nos manifestos e nos textos teóricos, a ‘explicação’ concreta do poema reduz-se à exposição da sua base técnica, à análise do funcionamento técnico do poema e à definição dessa base e dessa forma específica de atualização num quadro de evolução dos procedimentos na prática literária erudita.
Ou seja, na conjugação ou na afirmação da homologia das duas vertentes técnicas, o que ressalta é a vertente erudita, pois a Poesia Concreta não só se propõe “poesia” – e não objeto do mundo industrial –, mas ainda reclama para si o título de única poesia conseqüente na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, essa afirmação de que é única poesia realmente contemporânea do presente implica afirmar uma equivalência dos vários presentes, ao longo do eixo temporal: em cada momento, seria possível distinguir qual seria a “poesia concreta” do seu tempo, isto é, a poesia que, em relação a ele, ocupava o mesmo lugar que a Poesia Concreta ocupa no presente. A afirmação dessa equivalência se faz não só pelo discurso teórico que define os “precursores”, mas, principalmente, por meio da tradução, que faz equivaler os vários momentos do passado ao presente da poesia concreta.
A polêmica da Poesia Concreta, assim, é sempre dupla e envolve uma questão de legitimidade ou de direito: a reivindicação do direito de um objeto que promove a superposição do erudito e do industrial reivindicar o nome e a tradição da poesia; e também envolve uma questão de exclusividade: a reivindicação de que só é poesia contemporânea e válida a que opera essa superposição
Daí resultam a proposição e a reivindicação simultâneas de que: a) a Poesia Concreta é a atualização radical e autoconsciente de uma experiência antiga: a experiência da invenção poética, ou seja, a experiência da poesia; e b) a afirmação da radical diferença entre o passado e o presente, porque a técnica que se dá como espetáculo já não é apenas a erudita, mas principalmente a tecnologia.
Dessa última proposição deriva a principal aporia da prática concretista.
Para expor essa aporia, deve-se considerar que a “técnica tecnológica”, pela sua natureza, muda mais rapidamente que a “técnica tradicional” da poesia. Ao mesmo tempo, o processo de avanço da técnica é freado pelo controle da autoria, da qual não abdica o poema concreto.
Ora, a “técnica tecnológica” é avessa ou alheia à noção de autoria. Por isso mesmo, o valor de espetáculo da “técnica tecnológica” tende a reduzir-se rapidamente a zero, com o passar do tempo. Da atualidade mais atual ao museu de velharias é um passo muito rápido no mundo da cibernética e dos mass media. Na verdade, esse passo é a mola secreta que movimenta não só a percepção e a satisfação da modernidade exasperada, mas também a indústria e o comércio dos aparelhos e dos conteúdos culturais.

Dessa necessidade de autoria, e da postulação de que pode e deve existir uma coincidência da técnica literária e da técnica tecnológica – e ainda mais: que a tradição, o repositório da evolução das formas da literatura ocidental, deva estar presente no momento da decodificação do poema concreto – resulta o caráter cediço e meramente histórico de experiências mais radicais, como poemas com hologramas, cartões perfurados de computador e sons sintetizados, cujo caráter “conservador”, do ponto de vista técnico, salta aos olhos de qualquer pessoa familiarizada com o mundo da técnica (e a familiaridade com esse universo propriamente técnico se torna universal a partir do momento em que se populariza o microcomputador, nos anos de 1980, e a internet, nos anos 1990).
Resulta ainda outro aspecto relevante e muito perturbador, que é o fato de que os poemas concretos mais diretamente vinculados à tecnologia informática guardam hoje interesse apenas como documentos históricos, pois o seu caráter antigo ou antiquado, do ponto de vista técnico, torna-os mais interessantes no quadro de um museu da ciência e da tecnologia, do que numa antologia poética.
Por outro lado, os que não são lidos apenas ou principalmente como testemunhos de um passado tecnológico morto são aqueles nos quais a tipografia ou a tipologia vem para primeiro plano (os da fase ortodoxa, os ideogramas de Décio, os “poemas embalagens” de Augusto), aqueles nos quais o caráter artesanal (e anti-industrial) é mais sensível (como o Poetamenos; os Poemóbiles; ou a Caixa preta) e aqueles nos quais a “técnica erudita” sobrepuja a “técnica tecnológica” (como A máquina do mundo e Crisantempo).
Sendo assim, o ponto de honra do programa concretista que era a absorção da técnica no quadro de referências da cultura erudita se revela cada vez mais uma missão impossível, um desafio perdido.
Daí decorre não só a eleição do lugar da recusa pelo poeta concreto (toda a obra madura de Augusto de Campos gira em torno da ideia de resistência, negação, subtração às demandas do presente[14]), mas ainda um tom algo nostálgico e melancólico que percorre toda a última fase da poesia concreta.
Nesse sentido, a experiência decisiva é a contemplação das animações por computador, das versões informáticas dos poemas concretos. O ritmo lento dá a esses exercícios uma solenidade estranha, porque jogada a sério, sem nada de jocoso ou de paródico.
Ao lado dos videoclipes de música, por exemplo, caracterizados pela sua enorme rapidez, e das anônimas animações das páginas da internet, o poema concreto padece simultaneamente da precariedade dos meios e recursos técnicos (o que é uma condição fatal, pois, sendo poema, pretende perdurar na sua forma “artística” de realização) e do deslocamento do sentido que essa precariedade opera sobre o seu próprio cerne, isto é, o seu caráter de vanguarda, de objeto situado no futuro, de modo a organizar a percepção do presente.
           Na época da disseminação da visualidade digital, a Poesia Concreta não consegue reproduzir a aliança entre técnica literária de vanguarda e técnica tecnológica de ponta. Em algum momento, essa aliança se configurou como possível. Hoje, ao que tudo indica, já não é. E a própria Poesia Concreta aparece, cada vez mais, não como a negação do humanismo – tal como ela se via e como a viam os contemporâneos –, mas justamente, pelo contrário, como um dos últimos suspiros do humanismo utópico, um momento de esplendor otimista da modernidade que findava.




Referências bibliográficas:

CAMPOS, Augusto et allii. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.
CAMPOS, Augusto et allii. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
CAMPOS, Augusto. Despoesia (1979-1993). São Paulo: Perspectiva, 1994.
CAMPOS, Augusto. Expoemas (1980­85), serigrafias de Omar Guedes. São Paulo: Entretempo, 1985.
CAMPOS, Augusto. Não, com CD-Rom CLIP-POEMAS. São Paulo: Perspectiva, 2003.
CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CAMPOS, Augusto. Viva vaia (Poesia 1949­79). São Paulo: Duas Cidades, 1979.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, 4.ª ed.
Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, São Paulo, Editora Anhembi Limitada, 1957.


Sítios eletrônicos:

Augusto de Campos – Site oficial: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/
Haroldo de Campos – Site oficial: http://www2.uol.com.br/haroldodecampos/
Poesia Concreta – http://www.poesiaconcreta.com.br/



Notícia bibliográfica:

Esta é a reprodução do texto publicado na revista eletrônica Sibila, em 2009. Foi a primeira publicação em português. A versão inglesa veio em Portuguese Studies, Londres, March 22, 2008. Há uma versão on line em inglês em http://www.thefreelibrary.com/Poetry+and+technique:+concrete+poetry+in+Brazil.-a0177830242 . Como o texto não estivesse mais disponível no site da revista, decidi republicá-lo aqui.

Uma palestra sobre o mesmo tema: https://www.youtube.com/watch?v=pHtVgoLuYP8 



[1] Ver, a respeito, “Olavo Bilac e a unidade do Brasil republicano”. In Earle, T. F (org.) Actas do V Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. Oxford-Coimbra: Associação Internacional de Lusitanistas, 1998, vol. II, p. 697-706.

[2] Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, São Paulo, Editora Anhembi Limitada, 1957, pp. 150-1.
[3] Reproduzido em Literatura e sociedade.
[4] Literatura e sociedade, p. 137.
[5] Trata-se de “Poesia, estrutura” e “Poema, ideograma”, publicados em 20 e 27 de março, no jornal Diário de São Paulo. Ambos os textos se encontram reproduzidos em Augusto de Campos et alii, Mallarmé.
[6] “Poema, estrutura”. In Mallarmé, cit., p. 186.
[7] Haroldo de Campos, “Poesia e paraíso perdido”, Diário de São Paulo, 5 de junho de 1955; reproduzido em Augusto Campos et alii, Teoria da poesia concreta, pp. 26-30.
[8] Ibidem, pp. 27-8.
[9] o verso: crise. obriga o leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude postiça. não consegue libertar-se dos liames lógicos da linguagem: ao tentar fazê-lo, discursa adjetivos. não dá mais conta do espaço como condição de nova realidade rítmica, utilizando-o apenas como veículo passivo, lombar, e não como elemento relacional de estrutura. anti-econômico, não se concentra, não se comunica rapidamente. destruiu-se na dialética da necessidade e uso históricos. [...]
uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.
a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até às histórias em quadrinhos. [...]
contra a poesia de expressão, subjetiva. por uma poesia de criação, objetiva. concreta, substantiva
Décio Pignatari, “nova poesia: concreta”. Publicado na revista ad – arquitetura e decoração (São Paulo, novembro/dezembro de 1956) e republicado, em maio do ano seguinte, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Reproduzido em Augusto Campos et alii, Teoria da Poesia Concreta.
[10] a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea
permite a comunicação em seu grau + rápido / prefigura para o poema uma reintegração na vida quotidiana semelhante à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial (jornais, cartazes, TV, cinema, etc.), quer como objeto de pura fruição (funcionando na arquitetura, p. ex.), com campo de possibilidades análogo ao do objeto plástico / substitui o mágico, o místico e o “maudit” pelo ÚTIL.
Haroldo de Campos, “olho por olho a olho nu”, manifesto publicado conjuntamente com o de Décio Pignatari, há pouco referido. Encontra-se reproduzido no mesmo volume.
[11] Haroldo de Campos, “Poesia concreta – linguagem – comunicação”; reproduzido em Augusto Campos et alii,  Teoria da poesia concreta, pp. 70-85.
[12] Augusto de Campos, “A moeda concreta da fala”, texto publicado em 1/9/1957; reproduzido em Augusto Campos et alii,  Teoria da poesia concreta, pp. 111-122.
[13] Um conjunto significativo de poemas de Augusto de Campos, incluindo não só a reprodução de algumas de suas obras iniciais, mas também um ótimo exemplário das suas experiências com animação computacional, encontra-se no site oficial do autor: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/ . Há poucos poemas de Haroldo de Campos e de Décio Pignatari on line e não é possível reproduzi-los aqui. Recomendo fortemente, por isso, que o leitor menos familiarizado com a Poesia Concreta brasileira visite o endereço acima, pois assim não só poderá uma visão de conjunto das várias fases do movimento, mas ainda adquirir elementos para melhor avaliar a reflexão apresentada neste artigo.
[14] Basta observar a seqüência dos títulos dos últimos livros: Viva vaia (1979); Expoemas (1985); Despoesia (1994); Não (2003); e a eles juntar o da sua última antologia de traduções: Poesia da recusa (2006).

sábado, 31 de agosto de 2013

A edição da poesia de Camilo Pessanha



SOBRE UMA PROPOSTA DE PUBLICAÇÃO DOS POEMAS DE CAMILO PESSANHA


[Este texto foi escrito para ser apresentado no I Colóquio Colóquio Internacional do LIA: 500 anos Portugal-China: contrastes, mudanças e desafios, realizado na USP nos dias 26 a 30 de agosto de 2013 – motivos de ordem pessoal me impediram de estar presente]


            Em primeiro lugar, quero apresentar as minhas desculpas e a minha tristeza por não poder integrar esta mesa e rever amigos queridos e colegas que ainda não conheço pessoalmente, mas cujo trabalho admiro de longa data.
            Se eu aqui estivesse, teria muito gosto em ouvir as comunicações e, principalmente, aprender com os debates que certamente ocorrerão.
            Entretanto, do ponto de vista da minha própria participação na primeira parte dos trabalhos, não creio que farei falta, pois apenas repetiria aqui o que tenho dito em tantos outros momentos, seja sobre os critérios da edição que fiz em tempos, seja sobre as críticas que recebi. Nesse particular – e mais exatamente no que diz respeito à falta de honestidade intelectual de uma professora italiana, Barbara Spaggiari, e um seu acólito português, António Barahona – publiquei também há tempos um longo texto, disponível no meu blog, ao qual remeto algum eventual interessado no bas-fond da vida intelectual.[1]
            Mas talvez deva dizer ainda uma vez algumas palavras, principalmente porque talvez haja estudantes presentes, para os quais o estado da matéria possa ainda ser desconhecido.
            E então, começando pelo começo, gostaria de dizer que nunca pretendi, nem fiz, uma “edição crítica” no sentido comum dessa expressão.
            Isso porque nunca pretendi “fixar” um texto, no sentido de afirmar que aquela era a versão a ser lida, e não outras.
            Pelo contrário, percebendo logo que seria impossível dar uma forma fixa ao conjunto dos poemas de Pessanha e me recusando, desde o princípio, a arvorar-me em reorganizador da sua obra segundo algum desenho temático ou formal que me parecesse mais sedutor, decidi pela forma mais radical de trabalho, que passo a expor.
            A palavra radical, aqui, está sendo usada quase no sentido botânico: interessou-me sobretudo observar a história de cada um dos poemas de Pessanha, tanto do ponto de vista da sua elaboração (isto é: datação, identificação – quando possível – da primeira versão e descrição das sucessivas alterações até a última forma comprovadamente autoral), quanto do ponto de vista da sua história pública (isto é: cópias por terceiros, publicações esparsas a partir de fontes várias, publicações em volume).
            Sendo assim, meu trabalho tinha uma direção oposta à dos trabalhos de edição crítica, que traçam uma árvore que permita chegar à raiz mais segura ou indubitável. Minha preocupação, pelo contrário, foi descrever o processo de transformação, a partir dos muitos autógrafos e publicações desse poeta que absurdamente alguns julgaram avesso ao registro escrito.
            Muito longe de querer estabelecer “o texto”, o que eu quis foi apresentar ao leitor eventual a maior quantidade possível de informações para que ele pudesse se decidir pelo texto – ou o momento textual, por assim dizer – que lhe parecesse melhor.
            Para poder anotar as várias campanhas, os vários gestos de escrita de Pessanha, eu precisava de um ponto de referência, de um momento congelado no tempo, a partir do qual os leitores pudessem percorrer o caminho de elaboração e as várias versões sucessivas (quando identificáveis temporalmente) de cada verso.
            Fiz isso, como disse há pouco e repeti exaustivamente no aparato, considerando apenas como referência a última versão comprovadamente autoral. É certo que há casos muito difíceis, pois a autoridade do autor que escreve “limpa” numa versão num dado momento, é contrariada pela autoridade do mesmo autor que publica uma versão diferente em um momento posterior. E há vários textos nos quais não se consegue discernir com segurança se as correções terminaram por configurar uma nova versão (quando não há indicação “limpa” no autógrafo ou ao lado do texto impresso emendado) ou apenas anotações inacabadas para ajustes futuros.
            Expor claramente os pontos de dúvida e de risco foi, assim, um objetivo importante na redação das muitas notas que compõem o aparato da edição que organizei.
            Tomando taticamente a última versão comprovadamente autoral como ponto de referência para anotar as variações, restava fazer um cuidadoso e difícil trabalho de reconstituição da história de cada poema, para que as anotações se fizessem em ordem o mais possível cronológica. Aqui também houve momentos de dúvida angustiosa, mas sempre me pareceu melhor enfrentá-la e expô-la claramente, do que eludi-la, escudando-me em argumento sobre “o método adotado”. Afinal, o método foi construído para abordar o objeto na sua dimensão mais ampla e não para amputá-lo de sua complexidade.
            Ao mesmo tempo, os autógrafos disponíveis nem sempre eram de fácil leitura ou estavam bem reproduzidos. Por isso, desenvolvi um sistema de anotação dos gestos de escrita, marcando ordem, natureza e lugar de alteração ou inserção, de modo que os leitores, com a minha edição em mãos, pudessem decifrar com menos dificuldade os autógrafos disponíveis, cuja localização em arquivos ou bibliotecas mapeei minuciosamente.
            Para deixar completamente claro o meu objetivo, na hora de distribuir espacialmente os textos em volume – o que implica ordenação sequencial – renunciei a qualquer desenho temático ou formal (como disse) e, registrando isso na introdução, escolhi o critério mais abstrato possível: a ordem cronológica. Mas não a ordem cronológica da composição do poema – que seria um objetivo impossível, dada a natureza do material e da informação disponível – mas a ordem cronológica do primeiro registro autógrafo ou primeira publicação. O que é muito diferente, pois num caso teríamos uma aposta na ordenação, digamos, “evolutiva” e no outro um simples registro de ocorrência.
            Renunciei também à escolha do que incluir no livro. Poemas ou mesmo fragmentos: tudo aí teria lugar, pois minha única ambição era constituir o mais amplo e completo (naquele momento) repositório de informações e versos de Camilo Pessanha.
             É certo que fiz três concessões. Duas delas de livre vontade e outra de menos livre vontade.
            A primeira que fiz de livre vontade foi abrir o conjunto com a quadra “eu vi a luz...”, porque, num autógrafo que consultei na casa de Carlos Amaro, Pessanha escreveu que aquele era para ser o primeiro poema de seu livro, “em tempos delineado”. A segunda foi fechar o volume com o poema que começa “ó cores virtuais”, como nas edições dos Osórios, aceitando o argumento deles de que o poema fora escrito para encerrar o volume. Ou seja, como sempre fiz desde que não tivesse indícios ou elementos de contradição, aceitei nesse ponto o testemunho dos Osórios.
            A concessão que fiz de menos livre vontade foram na verdade duas: intitular o conjunto “Clepsidra” e deixar escrever “edição crítica” na ficha do volume. Ambas foram exigências do editor, a que me dobrei – talvez feliz por poder assim justificar o belo título e certamente infeliz por meu trabalho ser apresentado como o que não era, ou seja, uma edição crítica.
            Esse foi, em linhas gerais, o meu trabalho. E talvez agora deva encerrar dizendo alguma coisa sobre o que não se percebeu dele e também sobre uma discordância que tenho com relação a algumas das edições dos poemas de Pessanha que foram feitas posteriormente a ele.
            O que não se percebeu foi que, do ponto de vista da aproximação à obra de Pessanha, a minha edição propunha um trabalho com o universo textual do autor, no qual não necessariamente a última versão de um poema era a mais importante ou a mais significativa do ponto de vista da leitura ou da interpretação.
            Ou seja: o que não se percebeu é que, ao contrário do que também se busca fazer atualmente no campo da edição de autores contemporâneos, meu interesse não era afirmar uma versão mais próxima ou fiel à suposta ou real intenção do autor. O que pretendi foi, isso sim, afirmar o caráter inacabado e inacabável do que teria sido o livro de Pessanha, tornando as várias versões disponíveis equivalentes, do ponto de vista do interesse da leitura.
            E foi justamente o rendimento dessa hipótese o que tentei mostrar no estudo que fiz a seguir sobre os versos de Pessanha – o ensaio Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha –, no qual trabalho em vários momentos a história dos textos e as suas versões, confrontando versos com cartas, declarações, texto em prosa, na tentativa de refletir o caráter movente da poesia do autor e identificar o que me parecem dois modos, duas poéticas que organizam as imagens, símbolos e temas dispersos ao longo do universo textual que chamamos de Camilo Pessanha.
            No que diz respeito à discordância, a questão é a seguinte. Clepsidra é o título que Pessanha, comprovadamente, em algum momento, imaginou para a publicação em volume de um conjunto de seus poemas. Mas não temos nenhum registro seguro de quais poemas integrariam esse livro, nem como nele seriam dispostos.
            Assim, só me parece haver dois usos razoáveis para esse título. O primeiro é quando se trata de reproduzir a edição de 1920. Não porque essa edição seja uma edição autoral. Como julgo ter demonstrado, a edição de 1920 foi a recolha possível dos versos disponíveis de Pessanha naquele momento e para aquela editora, arranjados em partes e sequência segundo um critério que nada indica (pelo contrário) terem sido de autoria de Pessanha – e ainda utilizando versões problemáticas, recolhidas de publicações precárias e não autorizadas. Ou seja: o uso apenas documental, diplomático. O segundo, menos razoável – mas mais defensável –, é o que fiz dele: já que não se sabe o que iria no livro, abrigam-se sob esse título todos os poemas hoje encontráveis.
            O terceiro uso já me parece problemático. É o que fazem os editores que tomam por base a última edição de João de Castro Osório e o que fez o meu querido amigo Gustavo Rubim, ao denominar Clepsidra a uma antologia de poemas. Sei que ele vai falar sobre isso, pois no título da sua fala comparece a palavra “sobranceria” e foi como essa palavra que qualifiquei – invejável sobranceria, eu disse – a forma como organizou, sem justificativas e escudado apenas no seu (quanto a mim, indubitável) gosto, uma antologia, que apresentou sob o nome do livro perdido ou nunca conseguido por Pessanha.
            Mas a discordância com Rubim não diz respeito ao ato sobranceiro da escolha. Quanto a isso, desde o começo estou de acordo e o trabalho que fiz de edição teve por objetivo permitir que leitores de Pessanha pudessem escolher sobranceiramente, no banco de dados textual, o que melhor lhes parecesse representar a poesia do autor.
            Minha discordância diz respeito apenas à redução – por conta da aplicação restritiva do título, sem a informação modalizadora de que se trata de uma antologia, no sentido próprio da palavra – do livro inexistente a esse livro particular. Denominasse ele a sua seleção “antologia”, ou registrasse que se tratava de seleta, nenhuma discordância haveria entre nós quanto ao direito de fazer – apenas divergências quanto à escolha, pois creio que ele deixou de fora poemas muito notáveis sob qualquer ponto de vista.
            E aqui devo registrar que sinto imensamente não poder participar do colóquio também porque gostaria muito de ouvir o que esse crítico notável tem a dizer sobre as nossas diferenças.
            Enfim, era isso o que eu diria se aqui estivesse.
            E mais uma vez me desculpando pela ausência, deixo aqui os meus cumprimentos à organização do congresso e aos colegas que não pude, desta vez, rever.

Campinas, agosto de 2013

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Entrevista a Osvaldo Silvestre

publicação original:

http://tantaspaginas.wordpress.com/2012/02/07/paulo-franchetti-director-da-editora-da-unicamp-o-acordo-ortografico-e-um-aleijao/

 

Paulo Franchetti, director da editora da Unicamp: «O acordo ortográfico é um aleijão»


Paulo Franchetti é crítico literário, escritor e professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicou, no Brasil, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (2001), Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007), e organizou o volume Haikai – antologia e história (1990). Preparou edições comentadas de Coração, Cabeça e Estômago (2003) e, para a Ateliê Editorial, O Primo Basílio (1998), Iracema (2007), A cidade e as serras (2007), Dom Casmurro (2008), Clepsidra (2009) e O cortiço (2012, no prelo). Publicou ainda, em Portugal, a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam – a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (2008). É também autor da novela O sangue dos dias transparentes (2003), da coletânea de haicais Oeste/Nishi (2008), do livro de sátiras Escarnho (2009) e do livro de poemas Memória futura (2010).
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp, tendo neste período conseguido 6 prémios Jabuti e colocado, no ranking de 2010, a Unicamp no 5º lugar das melhores editoras do Brasil, apenas com a Editora da UFMG melhor colocada, em 4º, de entre as editoras universitárias. De notar que, de acordo com esse ranking, entre as 19 melhores editoras do Brasil, 4 são universitárias, ou seja, um pouco mais de 20%. Situação rara, em muitos países, a começar por Portugal, e uma razão mais para ouvirmos Paulo Franchetti, que junta às suas facetas de professor, orientalista, crítico, poeta, ficcionista e editor (e motoqueiro…) a de conhecedor profundo da literatura portuguesa, sobretudo das obras de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Camilo Pessanha (cuja edição fixou, laminando uma série de lendas de longo curso sobre o poeta e a obra) e Fernando Pessoa.
Agradecemos a Paulo Franchetti a disponibilidade revelada e o empenho colocado na resposta, desassombrada como sempre, às nossas perguntas.
TP: Pode dar-nos algumas informações prévias sobre a Editora da Unicamp? Qual é o seu orçamento anual? Quantos funcionários trabalham na editora e nas livrarias do campus? Quantos livros publica a editora em média por ano?
PF. A Editora recebe um apoio de cerca de R$ 300.000,00 por ano. Isso constitui o seu fundo editorial e se destina a cobrir principalmente a tradução e a impressão de obras que, apesar de importantes para o público universitário, não produzem retorno de vendas, por se dirigirem a um público muito restrito. Anualmente, com base em projetos específicos e planilhas de custos, a reitoria pode suplementar esse valor. O faturamento bruto da Editora da Unicamp gira em torno de R$ 1.500.000,00.
Na Editora trabalham 25 funcionários, e nas duas livrarias, 4. Desses, apenas 8 são funcionários públicos; os demais são contratados pela Fundação e têm seus salários e direitos pagos com o resultado da venda de livros. De modo que a Editora da Unicamp funciona mais ou menos como uma pequena empresa.
O número relativamente elevado de funcionários se deve a uma estratégia definida pela direção: fazemos internamente a revisão e a diagramação da maior parte dos livros, tendo para isso quatro revisoras contratadas em período integral e duas diagramadoras. Quando há excesso de trabalho, alguns serviços de revisão e diagramação são terceirizados. Os funcionários, então, promovem leitura aleatória do trabalho realizado, para controle de qualidade. Isso tem garantido à Editora um excelente nível de correção nas suas publicações, muito acima do padrão nacional.
A Editora publica em média 40 títulos novos por ano e 6 em segunda edição. Desse total, todos os anos são feitas cerca de 24 reimpressões. De modo que a Editora põe na praça, anualmente, cerca de 70 tiragens.
TP. Quais são as áreas mais fortes do catálogo da editora? Quais aquelas que gostaria de reforçar?
PF. As áreas mais fortes são as humanidades de modo geral: história, antropologia, filosofia, linguística e teoria e crítica literárias. Creio que serão sempre as mais fortes e mais importantes, por conta inclusive da forma de circulação do saber na Universidade: enquanto as áreas de exatas e tecnológicas têm a revista científica como veículo do conhecimento novo, nas humanidades é ainda o livro o veículo privilegiado. Temos feito, nos últimos anos, um esforço no sentido de ampliar o número de livros de divulgação científica, para atingir um público mais amplo.
TP. No campo da literatura, a Editora da Unicamp publica sobretudo clássicos, dos gregos e latinos a Machado de Assis, mas ao mesmo tempo publica as traduções de Augusto de Campos, a poesia de Décio Pignatari ou os ensaios de Paulo Leminski. Esta conciliação é pacífica ou controversa dentro da editora e na Unicamp?
PF. Creio que é pacífica. A missão da Editora da Unicamp é publicar textos que sejam importantes para o trabalho acadêmico, textos que sejam utilizados em cursos de graduação e pós-graduação, bem como textos que sejam referência de pesquisa nas várias áreas do saber. Nesse sentido, uma edição bem cuidada da poesia de Décio Pignatari e dos ensaios de Leminski tem tanta pertinência acadêmica quanto a publicação de uma nova tradução da Divina Comédia, uma edição bilíngue dos hinos homéricos a Apolo ou a primeira tradução para o português de um livro do Paul Ricoeur.
 
TP. Como funciona o processo de selecção de títulos na editora?
PF. Há três formas de seleção. A primeira é a que provém da oferta espontânea feita por autores ou editores, que preenchem um formulário on-line e remetem para que o conselho examine e decida pelo interesse em avaliar os originais. Os projetos selecionados pelo conselho são submetidos à análise de dois assessores, escolhidos entre os especialistas mais reputados no área de conhecimento do trabalho. Uma vez aprovado pelo conselho, com base nos pareceres da assessoria, o livro é encaminhado para publicação. A segunda forma é a indicação de qualquer dos integrantes do conselho. Um livro indicado por um conselheiro segue o mesmo trâmite de um livro oferecido espontaneamente, isto é, segue também para parecer de mérito de dois assessores. A terceira forma de seleção é a que é feita por uma comissão de especialistas designada pelo conselho. Trata-se de uma nova maneira de trabalhar na Editora da Unicamp e que tem dado ótimos resultados. Funciona assim: o conselho recebe, formuladas por docentes da Unicamp, propostas de criação de coleções específicas, de caráter temático, que visem suprir deficiências na bibliografia brasileira. Normalmente, são coleções de textos relevantes escritos em outras línguas. Uma vez aprovada a proposta, o conselho designa a comissão científica da coleção, que passa a ser delegada do conselho, selecionando títulos a serem produzidos pela Editora.
TP. Qual é o seu grau de autonomia na definição da política editorial, enquanto director?
PF. Não creio que eu tenha autonomia, nem gostaria de tê-la. Como presidente do conselho, posso, além de propor linhas de atuação, argumentar com base nos fundos editoriais e nos compromissos já assumidos para o ano. Mas é só. A política é sempre decidida em plenário no conselho. O que tenho de decidir sozinho, junto com as gerências comercial, editorial e administrativa, uma vez aprovado um título pelo conselho, é a escala e a ordem de publicação dos livros.
TP. Qual a proporção de traduções e de produção própria no catálogo da editora?
PF. Nos últimos anos, cerca de 40% dos nossos títulos são traduções.
TP. O facto de os critérios de avaliação da carreira de um professor universitário no Brasil estipularem que uma tradução de um livro de referência é um item de grande relevância curricular ajuda a encontrar universitários disponíveis para a tarefa sempre árdua da tradução?
PF. Não creio. Normalmente preferimos utilizar tradutores profissionais, deixando a cargo de professores o acompanhamento da tradução e sua revisão técnica – itens que não contam muito na avaliação da carreira. É certo que temos alguns livros traduzidos por professores, mas isso se deve principalmente ao interesse do docente no assunto e naquele título específico, para utilizar nas suas aulas. Por outro lado, temos publicado muitas traduções que foram apresentadas originalmente como trabalhos de mestrado ou doutorado, especialmente no caso de textos clássicos gregos e latinos.
TP. A Editora da Unicamp tem uma significativa política de coedições (com a Edusp ou a Ateliê, para dar dois exemplos de referência). A que se deve essa política?
PF. Também temos livros em coedição com a UFMG, a Unifesp, a Uerj e outras, embora a Edusp seja nossa maior parceira, de fato, dentre as universitárias. No caso da Edusp, a associação é natural, pois reflete a ampla cooperação acadêmica que as duas universidades têm em todas as áreas. Com a Ateliê temos publicado de modo sistemático uma coleção, intitulada Clássicos Comentados, cuja proposta agradou ao conselho por corresponder plenamente aos objetivos da Editora da Unicamp.
Na definição de uma política de coedição com editoras comerciais há dois fatores muito importantes a levar em conta. O primeiro é, claro, o catálogo: a Editora da Unicamp só publica em coedição com editoras comerciais de catálogo universitário de alto nível. O segundo, não menos relevante, é o tamanho e a capacidade de distribuição da editora de mercado que nos propõe parceria. Desde que assumi, fomos gradativamente deixando de fazer coedições com editoras de grande porte, como Moderna e Cortez, por exemplo (e recusando propostas de outras, como a Globo), porque a distribuição universitária é mais lenta e o que tendia a acontecer, na prática, é que acabávamos por financiar a produção, estocar por breve tempo os exemplares que nos cabiam e logo vendê-los, com os descontos de praxe, ao coeditor. Assim a definição de um coeditor se pauta, no caso das universitárias, pela qualidade do catálogo – e, no caso das de mercado, pela qualidade do catálogo mais a dimensão relativa da empresa e sua presença no mercado. As vantagens da coedição são evidentes: maior visibilidade do livro e melhor retorno comercial, pois a coedição permite aumentar a tiragem, diminuindo assim o preço de custo unitário.
 
TP. Pode dizer-nos quais são os principais problemas que uma editora universitária enfrenta no mercado brasileiro do livro?
PF. O maior problema de mercado é o poder de barganha dos distribuidores e das grandes redes de livrarias. Como se trata de um país gigantesco, os custos das distribuidoras são altos – ou, pelo menos, isso é o que elas alegam. Já as livrarias grandes não têm o argumento do custo alto de operação, mas têm um mercado cativo e grande poder de vendas pela internet. Assim, o desconto exigido por elas é normalmente de 50% sobre o preço de capa – quando não de 55%! Isso faz aumentar muito o preço de venda ao público, o que torna ainda menores as vendas de livros universitários, que são, em princípio, adquiridos por estudantes. Outro problema grave é que as bibliotecas brasileiras, em geral, não adquirem livros. Se cada biblioteca universitária do país, em vez de nos enviar ofícios solicitando doações (não só dos livros, mas também do frete para enviá-los), comprasse os livros em que tem interesse, as editoras universitárias teriam condições de aumentar as tiragens, dispensar os intermediários e abastecer o mercado com livros mais baratos e de melhor qualidade.
TP. Existe um circuito de vendas específico da rede de editoras universitárias brasileiras, ou as livrarias existentes nos campi regem-se pelos princípios universais do mercado?
PF. Existe um circuito específico, que são as feiras universitárias. A pioneira, a maior e mais interessante comercialmente é a promovida anualmente pela Edusp. Nela vendemos mais em três dias do que para distribuidores em 30. A feira da USP foi idealizada pelo atual presidente da Editora, Plínio Martins Filho, que se propôs a demonstrar que o livro universitário tem público, mas um público que não pode adquirir os livros pelo preço que as formas de circulação de mercado exigem que o livro tenha (a questão do custo de distribuição, que expus na resposta anterior). Assim, a Edusp convida todas as editoras de catálogo universitário do país a vender livros no campus de Pinheiros, no final do ano. Não há custo para os vendedores, mas há uma condição, que é decisiva: os livros têm de ser vendidos com um desconto mínimo de 50%, ou seja, têm de ser vendidos pelo preço que são entregues aos distribuidores ou redes livreiras. O resultado é eloquente. Basta visitar a feira uma vez para compreender onde está um dos principais gargalos do mercado do livro universitário.
TP. Com que apoios contribui o Estado brasileiro para a edição? A política brasileira do livro parece-lhe consistente?
PF. A Editora da Unicamp tem recebido algum auxílio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Mas não se trata de apoio à editora, e sim aos autores: eles apresentam pedido individual à Fundação, que lhes concede um certo montante, que poderão entregar a qualquer editora. Como a Editora da Unicamp goza de prestígio, por conta de seu catálogo e sua seletiva política editorial, muitos desses autores preferem publicar conosco, de modo que conseguimos apoio para a edição de vários livros. Quanto à política federal, não tenho muito a dizer, porque nos afeta pouco, já que o governo não tem uma política específica para o livro universitário. Em geral não dependemos de vendas governamentais.
TP. O Paulo é um crítico com uma intervenção pública frequente. Como vê a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil? Que análise faz da evolução da situação desde os seus tempos de estudante até os dias de hoje?
PF. Penso que não vivemos um momento muito bom, no que diz respeito à mídia impressa. Mas não conto entre os saudosistas. Creio que o que vem no jornal é, em geral, de pouco interesse. Mesmo quando críticos notáveis, inteligentes e cultos são convidados para escrever – o que não é tão raro quanto se diz – o espaço físico destinado à literatura não permite mais do que a informação ou a avaliação sumária.
No geral, porém, a crítica de livros é uma modalidade do marketing ou da coluna social. É, na melhor hipótese, atividade jornalística. Mas há outros espaços interessantes, nos quais a crítica se pode fazer de modo menos apressado ou menos condicionado pela pauta imediata, pelo “gancho”. O mais rico é ainda a revista. Impressa ou eletrônica, é na revista que bons críticos têm espaço e liberdade para refletir sobre a literatura de agora e de antes. Mas há também espaços alternativos e interessantes, pelo nível muito variado das colaborações, como o jornal Rascunho e o portal Cronópios.
TP. Do que conhece, a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil parece-lhe diferente da portuguesa? Em que aspectos?
PF. Creio que em Portugal o exercício da crítica é mais efetivo. A discordância, a frontalidade, o exame rigoroso têm mais espaço na crítica de livros em Portugal do que no Brasil. Mas pode ser que seja apenas a idealização de quem está do lado de fora.
TP. Que ideia tem do estado actual da edição em Portugal e da evolução verificada na última década?
PF. Uma coisa que sempre me impressiona em Portugal, a cada viagem, é a quantidade de livros produzida todos os anos. É um país pequeno, com uma população menor do que a da cidade de São Paulo, que conta com poucas universidades e, ao que me dizem, poucas livrarias – aí, como aqui, a capilarização da distribuição dos livros parece ter regredido bastante. No entanto, Portugal tem uma produção enorme de livros, em geral bem editados. Não tenho ideia de quais são as tiragens, nem qual é o real público comprador e/ou leitor de literatura. Mas me parece um prodígio que a quantidade de títulos novos cresça na proporção direta da queixa quanto à diminuição dos espaços de venda e à diminuição do público leitor.
TP. Em termos comparativos, como vê a situação da edição brasileira em relação à portuguesa, da universitária à generalista?
PF. Creio que em Portugal não há nada que se compare à edição universitária brasileira. Não só pela quantidade de editoras, mas também pelo papel central que as editoras universitárias representam na vida intelectual do país. Isso pode ser aferido de várias formas: da presença maciça nas bibliografias especializadas à referência constante na grande imprensa, passando pelos prêmios literários em que se galardoam textos de investigação. No que diz respeito às publicações de mercado, também é difícil comparar, dada a diferente dimensão dos países. Proporcionalmente, a indústria editorial portuguesa é muito mais poderosa. Quero dizer: se considerarmos a dimensão dos países e a produção livreira. O que me parece curioso é que haja em Portugal potentados editoriais, que inclusive atravessam o Atlântico e vêm estabelecer-se no Brasil.
TP. O mundo da edição no Brasil tem formas institucionalizadas de recompensa do mérito, inter pares: prémios, classificação das melhores editoras, etc. Pode falar-nos disso e dizer-nos como se processam essas avaliações, que em Portugal primam pela inexistência?
PF. No Brasil há grande empenho na avaliação e na classificação da produção intelectual na universidade. O regime do publish or perish se impôs decisivamente no país. Assim, a publicação de revistas e livros universitários cresceu muito e muitos programas de pós-graduação e grupos de pesquisa dispõem de verbas que podem ser investidas no financiamento de eventos e publicações. Por conta disso, o sistema federal de avaliação dos cursos de pós-graduação tem vindo a implementar critérios de avaliação de revistas universitárias e de livros. As revistas acadêmicas brasileiras são todas distribuídas em categorias hierárquicas que lembram a nota das agências de investimento… E também se fala em ranking de Editoras, uma vez que a avaliação de livros que hoje se faz é evidentemente impossível, dado o volume dos títulos produzidos a cada ano. Além disso, hoje não há nenhum professor de curso de pós-graduação brasileiro (nem mesmo de graduação) que não tenha on-line o seu curriculum. Trata-se de um sistema federal, aberto à consulta pública (lattes.cnpq.br), no qual os docentes são compelidos a registrar suas atividades acadêmicas e, principalmente, a sua produção científica. Os currículos dos docentes e dos estudantes são elementos importantes para a avaliação federal dos vários cursos de pós-graduação – cujo resultado é muito relevante, pois a situação de cada curso na escala de excelência lhes determina o tipo e o volume de verbas federais para custeio dos cursos de pós-graduação, bem como o número de bolsas de estudos para alunos de pós-graduação. A mesma base pública fornece os dados sobre os quais os comitês de avaliação se baseiam para aferir os currículos dos pretendentes a apoios federais (dos quais o mais notável é a Bolsa de Pesquisa do CNPq, que garante aos pesquisadores de destaque um apoio mensal, por três ou cinco anos, dependendo da categoria). Assim, não é de espantar que os dados sobre publicações, editoras, revistas, coletâneas etc. sejam muito valorizados. Prêmios literários que contemplam modalidades de investigação – como o da APCA e o Jabuti – entram no sistema de avaliação geral, e por isso terminam por ser valorizados dentro da academia. Além disso, há universidades que têm o seu próprio sistema interno de avaliação da produção científica dos docentes. Na Unicamp, por exemplo, os docentes (mesmo os catedráticos) somos obrigados (de três em três ou de cinco em cinco anos, conforme o nível) a apresentar relatórios de atividades, de cuja aprovação depende a manutenção do seu regime de trabalho em tempo integral (ou seja, se a produção não for a esperada, o salário do professor pode ser cortado pela metade). Ainda na Unicamp, com base nesses relatórios se atribui anualmente a cada instituto um prêmio em dinheiro (equivalente a um mês de salário de um professor catedrático) para que seja, com base em avaliação objetiva e externa, atribuído a quem mais produziu. Não é difícil compreender, nesse quadro, a importância, para nós, dos rankings e da produção de papers e livros. Nem como a preocupação com índices que parecem indicar a qualidade relativa não só das editoras universitárias, mas ainda das próprias universidades, tem crescido.
TP. A crise dramática que Portugal atravessa tem levado as editoras portuguesas de maior dimensão a apostar no mercado brasileiro. Há uma presença visível das editoras portuguesas no Brasil ou trata-se de uma ilusão de óptica?
PF. Sim. Há uma presença visível das editoras portuguesas entre nós. Ainda esta semana saíram publicados os primeiros títulos da recém-instalada Babel. O mercado brasileiro tem crescido em todos os campos. Oxalá que a aposta esteja certa e que o mercado brasileiro de livros cresça tanto quanto o de automóveis!
TP. Em poucos anos, o Prémio Portugal Telecom ganhou no Brasil mais impacto do que o Prémio Camões. Pode tentar ajudar-nos a perceber as razões do fenómeno?
PF. O Prêmio Camões é invisível no Brasil. Pouca gente sabe de sua existência e dos seus resultados. Eu mesmo quase nada sei. Nem quando se realiza, nem quem já o recebeu (sinal eloquente: tive de ir agora mesmo à internet para saber quem foi contemplado em 2011…). E pouca gente sabe ou se interessa por saber quem é o júri ou como ele é composto e por quem é designado. Não há envolvimento da comunidade intelectual brasileira no Prêmio Camões, que termina por ter um caráter de coisa fechada, oficialesca, com sabor a comenda ou homenagem pré-póstuma. Aliás, nesta pesquisa que acabo de fazer para saber quem recebeu o prêmio no ano passado deparei com um resumo da reunião que é bem instrutivo, pois nele se lê que a decisão do júri foi premiar alguém de um dado país (dentro do sistema de rodízio aparentemente), e que, decidido esse ponto, a escolha foi natural, pois o nome fora já aventado antes. Isso embora membros do júri declarassem candidamente conhecer apenas parcialmente a obra do galardoado. Ou seja, foi tudo feito ali mesmo… Já o Portugal Telecom é dinâmico e tem estrutura abrangente: todos os anos um enorme grupo de pessoas ligadas à vida intelectual e universitária recebe convite para compor o júri inicial – aquele que indicará os livros dos quais sairão os finalistas. Isso dá ao Prêmio Portugal Telecom uma natureza pública, inclusiva – democrática, pode-se dizer. A segunda fase é também muito transparente, pois o júri que elaborará a lista dos dez finalistas é constituído por votação do amplo júri inicial. Quando se divulgam os resultados, divulgam-se primeiro os 50 finalistas, depois os 10 e, finalmente, no dia da entrega, os escolhidos. Isso tudo gera não só envolvimento, mas também grande divulgação. E há um outro elemento que torna o Portugal Telecom mais “nosso”, isto é, brasileiro: ele premia majoritariamente obras brasileiras. Assim, não há sequer como comparar os dois prêmios em termos de percepção pública de importância no Brasil.
TP. Pode falar-nos dos autores portugueses que integram o catálogo da Editora da Unicamp? O seu interesse pela literatura e cultura portuguesas tem alguma responsabilidade nessa presença?
PF. Não temos tantos autores portugueses no catálogo. Recentemente, publicamos apenas três livros do Abel Barros Baptista, dois do Arnaldo Saraiva, um do Diogo Ramada Curto e um da Clara Rowland. Temos, sim, muitos livros sobre autores portugueses. É possível que meu interesse pela cultura portuguesa tenha algo a ver com essa presença. Mas não apenas o meu. Meu parceiro de trabalho há 30 anos, que integra inclusive o conselho editorial da Editora da Unicamp, Alcir Pécora, é um estudioso da cultura e da literatura portuguesa. Juntos temos tido, talvez, por conta de conhecermos mais a fundo o que se publica em nossas áreas de trabalho, contato com autores que não tinham espaço no Brasil. E ambos produzimos livros, publicados antes de eu estar na direção da Editora, sobre autores portugueses: ele sobre Vieira e eu sobre Oliveira Martins e Camilo Pessanha.
TP. O que acha do acordo ortográfico? Acha mesmo que, como dizem os editores portugueses (e muitos intelectuais), o acordo foi uma gigantesca maquinação brasileira para permitir que os livros brasileiros entrem livremente no mercado português e no africano, acabando com a indústria portuguesa do livro?
PF. O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o governo apressadamente o impôs como lei, fazendo com que um acordo para unificar a ortografia vigorasse apenas aqui, antes de vigorar em Portugal. O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de eficácia duvidosa. Não sei a quem o acordo interessa de fato. A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos. E se os livros brasileiros não entram em Portugal (e vice-versa) não é por conta da ortografia, mas de barreiras burocráticas e problemas de câmbio que tornam os livros ainda mais caros do que já são no país de origem. E duvido que a ortografia seja uma barreira comercial maior do que a sintaxe e o ai-meu-deus da colocação pronominal. Mas o acordo interessa, é claro, a gente poderosa. Ou não teria sido implementado contra tudo e todos. No Brasil, creio que sobretudo interessa às grandes editoras que publicam dicionários e livros de referência, bem como didáticos. Se cada casa brasileira que tem um exemplar do Houaiss, por exemplo, adquirir um novo, dada a obsolescência do que possui, não há dúvida que haverá benefícios comerciais para a editora e para a Fundação Houaiss – Antonio Houaiss, como se sabe, foi um dos idealizadores e o maior negociador do acordo. O mesmo vale para os autores de gramáticas e livros didáticos – entre os quais se encontram também outros entusiastas da nova ortografia. E não é de espantar que tenham sido justamente esses – e não os linguistas e filólogos vinculados à universidade – os que elaboraram o texto e os termos do acordo. Nem vale a pena referir mais uma vez o custo social de tal negócio: treinamento de docentes, obsolescência súbita de material didático adquirido pelas famílias, adequação de programas de computador, cursos necessários para aprender as abstrusas regras do hífen e outras miuçalhas. De meu ponto de vista, o acordo só interessa a uns poucos e nada à nação brasileira, como um todo. Já Portugal deu uma prova inequívoca de fraqueza ao se submeter ao interesse localista brasileiro, apesar da oposição muito forte de notáveis intelectuais, que, muito mais do que aqui, argumentaram com brilho contra o texto e os objetivos (ou falta de objetivos legítimos) do acordo.
TP. Tem um iPad? E um Kindle? Como vê o futuro do livro em papel num mundo tomado de assalto pela revolução digital e pelo download pirata?
PF. Tenho um iPad. Não tenho um Kindle. Sou um entusiasta da informática, mas acho que o livro em papel terá ainda um longo futuro, por uma razão simples: é uma tecnologia perfeita para a preservação da informação, que não fica antiquada, não depende de atualizações periódicas do sistema operacional, não custa muito caro, não é sujeita a roubo, nem a irremediáveis avarias por queda, vírus ou descuido de armazenamento. É evidente, porém, que a forma digital ganhará cada vez mais espaço, pelo custo baixo dos livros eletrônicos, pela sua portabilidade (leva-se uma biblioteca pessoal num iPad hoje – um dia talvez levemos o equivalente a todas as bibliotecas do mundo) e pela rapidez de acesso à informação. A médio prazo, é provável que o livro impresso, tal como já começa a acontecer, venha a ser preferencialmente ou um objeto de arte, ou o lugar de materialização do valor intelectual, no sentido que é fácil e barato publicar na internet, mas caro e complicado publicar em papel – o que pode ser lido como: “o que vale a pena incontestavelmente resulta num livro de papel”.
Quanto ao download pirata, creio que é inevitável, por enquanto. Mas hoje, com os scanners e câmeras digitais (além da velha máquina de fotocópia), o livro de papel tampouco está protegido do download pirata. Creio que, desse ponto de vista, o livro eletrônico seguirá o rumo aberto pelo interesse da indústria fonográfica, desenvolvendo mecanismos de controle de cópias e preservação do direito autoral. Mas como os valores envolvidos são menores, não acredito que o controle será eficaz. E devo confessar que, como professor, me valho muito das bibliotecas digitais, inclusive da do Google – e gosto muito quando encontro disponível um livro de que preciso.
Não é, porém, no download do livro novo que se processará a mudança mais interessante no mercado livreiro. É no que toca ao download de livros clássicos ou em domínio público. Aquela parte do catálogo das editoras que consistia na republicação, sem aparatos e notas novas, de textos clássicos sofrerá grandes golpes. E isso – veja como sou otimista – é bom, pois só fará sentido, em breve, publicar em papel um livro clássico se essa publicação apresentar um diferencial, uma novidade, seja no apuro gráfico, na preparação do texto ou no aparato crítico.
TP. Pode indicar alguns dos livros que mais gosto lhe deu editar até hoje?
PF. Um dos livros que mais gostei de editar foi A formação do nome – duas interrogações sobre Machado de Assis, de Abel Barros Baptista. O livro, que em Portugal se chamava Em nome do apelo do nome, nunca foi distribuído. A editora que o produziu morreu antes de o dar à luz. Fiquei muito feliz, assim, por poder, assim que assumi a Editora, publicar esse livro notável, que existia apenas na casa do seu autor, e que estava destinado a alterar a leitura brasileira de um dos textos mais referidos aqui, que é ensaio sobre o instinto de nacionalidade, de Machado.
 
Também me deu grande alegria publicar a segunda edição de O teatro do sacramento, de Alcir Pécora. Esse livro, que estabeleceu novos parâmetros de leitura do barroco brasileiro, estava esgotado havia tempos. No aniversário de 10 anos da primeira publicação, tive oportunidade de fazer nova edição, tendo eu mesmo cuidado de lhe desenhar a capa e de dirigir a diagramação.
Muito me alegrou também poder publicar, pelos mesmos motivos, o livro A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen.
 
Por fim, eis alguns outros motivos de satisfação pessoal: Poesia pois é poesia, de Décio Pignatari; O livro agreste, de Abel Barros Baptista; A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em tradução de João Trentino Ziller e com as ilustrações originais de Botticelli; O modernismo brasileiro e o modernismo português, de Arnaldo Saraiva; O conceito de universidade no projeto da Unicamp, de Fausto Castilho; e Poesia e crise, de Marcos Siscar. Também gostei muito de poder publicar as traduções de Augusto de Campos e o livro de ensaios de Paulo Leminski – especialmente este último, que reuniu textos até há pouco de muito difícil acesso.
 
TP. Em que situação gostaria de deixar a Editora da Unicamp quando chegar a hora de abraçar outros desafios?
PF. Gostaria de a deixar muito profissionalizada. O que estou conseguindo fazer por meio não só da constituição de um corpo de funcionários de rara competência, mas principalmente com o trabalho em equipe de três gerentes notáveis, que se encarregam da produção, das vendas e da administração, bem como de um assistente técnico administrativo que faz todos os contratos, contatos e acordos internacionais. Como a Unicamp prima pela qualidade acadêmica, penso que o próximo conselho editorial será tão rigoroso e participante como o atual. Assim, tendo publicado boa parte do catálogo hoje disponível e tendo constituído essa equipe, creio que já posso dar por encerrada esta etapa da minha vida profissional, com a sensação do dever cumprido.
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Febre de Eça

Febre de Eça


[Publicado na Folha de São Paulo, em 13/8/2000. Em formato original em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200008.htm]


Há um século, no dia 16 de agosto de 1900, Eça de Queirós morria em Paris, com 55 anos. A notícia repercutiu fortemente no Brasil. É que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso. Era já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira, quando o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias", em 1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para usar o termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou paixão intensa por Eça de Queirós, que vai atravessar, sem perder a força, pelo menos as duas primeiras décadas deste século.
A especial afeição brasileira por Eça de Queirós, porém, parece ser ainda anterior aos anos 80 e deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado, o romancista não aparecia ao público apenas como o autor de umas tantas obras-primas. Era uma presença muito mais próxima: um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos brasileiros, opinando sobre os mais diversos assuntos.
De fato, só na "Gazeta de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia do atraso político, moral e científico das nações ibéricas: era um dos representantes da já mítica Geração de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das "Farpas" (1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil, d. Pedro 2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se o republicanismo no país.
Por tudo isso, no ambiente encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império e de propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça podia ser visto como um aliado progressista: um equivalente, para a vida portuguesa sua contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins para o passado dessa mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar não apenas que o naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo e à ideologia republicana, mas também que o pensamento de Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base de um livro tão importante quanto o "América Latina -Males de Origem", de Manuel Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queirós era, sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português havia pouco desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para a maioria dos escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento corretor da linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além disso, o romancista da predileção da grande colônia portuguesa, que nele via o seu escritor por excelência: o que dispunha suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente lusitanas. Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos e estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez, pelos parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou de Varela, essa linguagem simples e ágil não recuava tampouco ante o bom-senso ou as conveniências e descrevia de modo muito "realista" os vícios que os primeiros romances do autor visavam a denunciar. "Sórdido como uma página de Eça de Queirós!" -era assim que um moralista do tempo insultava um poema que julgava pernicioso. E foi graças a "O Primo Basílio" que "realista" e "naturalista" durante um bom tempo foram sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo, indecente ou obsceno. Por tudo isso, Eça de Queirós era, de modo convincente, muito moderno e muito cosmopolita. Mas a substância mais ativa na promoção da "ecite" não foi nenhuma dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O Primo Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus romances, tanto na construção da frase, quanto na composição das personagens. Diferente da ironia romântica que, tal como aparece em Camilo e mesmo em Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça supõe uma atitude de espírito de luminosidade constante, um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a crítica dos costumes e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases simples como, por exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão sobre rochedos enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático olhar analítico, tingido de humor e de ceticismo, que se deve o fato de não haver heróis positivos no elenco dos protagonistas queirosianos. São sempre ou francamente negativos, como a Luísa, de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A Relíquia", ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre Casa de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens secundárias, por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte, ou para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma síntese caricatural, reveladora do ambiente da época retratada no romance.
Esse procedimento produziu tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico Alencar, a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João da Ega, entre outros. Desses, a criação mais popular é, sem dúvida, o Conselheiro de "O Primo Basílio", que passou a integrar o patrimônio da mitologia e do vocabulário comum, pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de qualquer figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é uma figura "acaciana".
Estruturada a partir desse olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar o desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência psicológica das personagens ou nas determinações fatais à sua liberdade. Pelo contrário, uma tendência forte do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou menos alegórico, composto a partir da construção muito realista de situações particulares. Disso resulta uma narrativa cuja unidade não provém da verossimilhança realista do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção dos episódios, das cenas e das personagens. Resulta também uma voz narrativa que nunca deixa de enfatizar os aspectos sensórios de cada um deles, destacando o que é mais ridículo, mais sedutor ou apenas mais plástico em cada momento da romance.
Esse conjunto de características da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre Amaro", rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo, em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".
Esse afastamento já é bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo Basílio". O primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio escritor, que, assim que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga e fez um longo ato de contrição por não ter feito um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o livro foi publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas personagens careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem internas ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir de uma série de acidentes, de casualidades. A autocrítica de Eça era claramente defensiva e por isso apresentava como defeito tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista. Já a avaliação de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva marcadamente romântica. Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova forma de composição, que só ganhará força desse momento em diante na obra do autor.
Dois anos depois, em 1880, vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da maneira naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica "Os Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno domínio de uma maneira própria, e é, também, o ápice da "ecite" no Brasil.
Os dois grandes livros seguintes já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico e o distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro vai ser objeto de graves reparos por parte dos críticos mais fiéis ao paradigma romântico/realista, calcado na verossimilhança psicológica e na construção orgânica da narrativa. A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois defeitos principais de "A Ilustre Casa" são que a personagem central é um títere (é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que o livro todo "é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício".
De fato, desde "O Primo Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura que, sem ser naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta afinada com a evolução do romance europeu, principalmente com o esteticismo de um Huysmans, para não mencionar ainda outros escritores de grande voga na virada do século e pouco depois, como Oscar Wilde e Anatole France.
Assim, não é de estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo do 20, Eça tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade; que tivesse representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo, em língua portuguesa, do esforço para superar o velho mundo romântico (que no Brasil se confundia com o país monárquico, rural e escravocrata) e construir uma nova cultura: citadina, burguesa e republicana, fundada na instrução e no discernimento do cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título de um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica, que Eça publicou originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro: "Civilização".