domingo, 16 de julho de 2023

Poesia, pontuação, minúsculas, corte

 Nesta manhã friorenta domingueira, vejo que me marcaram numa postagem do Facebook. E que há ali um enorme debate, por assim dizer. Na verdade, uma série de declarações, a maior parte profissões de fé. Vejo ainda que me marcaram em outra questão. Não me animei a responder ontem. Mas agora, enquanto não me animo a deixar cama, pensei no assunto.


Então: emprego ou ausência de pontuação em poesia; o corte do verso na poesia contemporânea; o uso ou não de maiúsculas em começo de verso ou frase. 
Uma resposta simples, considerando a maior parte dos casos, poderia ser: são marcas de “poesia”. Algo como uma reivindicação de pertencimento a uma categoria. Uma demanda de um modo de leitura: leia-me como poesia – é o que dizem esses procedimentos ostensivos. O que quer dizer, mais ou menos: leia devagar, interprete, faça um investimento de sentido. Ou seja: me leve a sério! 
Isso para a má poesia, alguém poderia dizer. Assim como a medida e a rima foram em outros tempos. E é certo também. 
Será verdade que hoje se produz muito mais má poesia do que em outros tempos? Talvez seja, num sentido específico: o de que as marcas de poesia se tornaram mais fáceis. Não é preciso dominar a contagem das sílabas, nem buscar palavras de final igual ou parecido. A mesma tolice pode ser dita num soneto ou num pseudo-haicai. E este tem, sobre aquele, a vantagem da brevidade. (O que favorece tanto o autor quanto o leitor, diga-se.) Mas sem dúvida é mais difícil fazer (e ler) um soneto do que um poema pequeno de 3 versos sem rima. É certo também que é mais fácil fazer um “poema moderno”, ou modernista, em “versos livres”, frases sem pontuação e sem maiúsculas, do que compor em terza rima, em quadras ou mesmo em estrofes livres, de mesmo metro. 
Má poesia, porém, sempre houve. Não fazemos ideia do que se acumulava nos “álbuns” que muitas pessoas mantinham no século XIX. Mas podemos facilmente ver que o próprio soneto não era barreira suficiente ao derramamento de banalidades. O que muda, eu acho, é que nos dias de hoje a visibilidade é maior, por conta não só do barateamento da produção em papel, mas principalmente porque a eletrônica permite a publicação imediata e praticamente sem custo. E o custo, social ou material, terminava por ser um filtro. De classe, poderiam logo gritar alguns. Sim, mas não só. De qualquer modo, a facilidade de publicação nas mídias sociais é um estímulo à produção, assim como a organização de comunidades de autores-leitores, em grupos, sites, blogs. Nesse sentido, pode ser, sim, que hoje haja muito mais má poesia (desde que se admita que o que se autodefine como poesia seja por isso mesmo poesia) circulando do que em qualquer outra época.
Na poesia clássica, o verso era definido pela medida. Por isso o enjambement, o terminar da ideia, da frase ou o fechamento do sintagma no verso seguinte era muito comum. Como nos primeiros versos da Eneida:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris 
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit
litora,

Fechando um pouco o foco: em português, o verso foi também por muito tempo definido pela medida. Não já baseada em compassos, mas em número de sílabas. Assim, completada a medida, percebia-se completo o verso. Nesse sentido, a rima era apenas um reforço, do ponto de vista métrico.
Dissolvido o metro como definidor do verso, sobra a rima. E, além dela, várias formas de acoplamento, paralelismos. E ainda, em certo tipo de verso livre, o simples término da frase ou do conceito.
Homero era para ser ouvido. Virgílio já era para ser lido, embora o metro implicasse a oralização, chamasse aquele tipo de cantilena que se pode imaginar como o modo de leitura da poesia antiga e que persistiu, por exemplo, na missa. Já Dante parece sentir a leitura como forma principal de recepção da sua obra épica, uma vez que ao longo da Comédia tematiza o leitor, dirige-se a alguém que lê, não a alguém que ouve. Não obstante, neles é a medida que define o verso. Assim como em Os Lusíadas ou em O Uraguai.
Voltando ao ponto: quando a medida deixa de ser requisito do verso, é preciso buscar outras formas de o definir. E em muitos casos reagir a qualquer definição, tematizar inclusive isso, é uma forma parasitária de verso, que se sustenta e define por oposição, negação da medida. Nesse caso, a marca formal, o mínimo múltiplo comum da variedade é o corte da linha – porque se trata, quase sempre, de escrita.
Até agora, nesta parte, não falei propriamente de poesia, só de verso. Verso que podia ser utilizado inclusive para escrever o que hoje não definimos como poesia.
Então voltando ao ponto: os procedimentos contemporâneos (falta de pontuação, falta de maiúsculas, corte violento e “arbitrário” dos sintagmas e dos vocábulos) são uma reivindicação de “poesia”, isto é, de pertencimento a um gênero. No limite, uma reivindicação de uma forma de leitura que invista no sentido, na necessidade da forma. Ainda quando a falta de sentido e a arbitrariedade da forma sejam ostensivamente buscadas. Porque o que parece definir o gênero, em termos modernos, é a necessidade. A não-arbitrariedade (repetindo: inclusive a não arbitrariedade da encenação de arbitrariedade). 
Na maior parte dos casos, esses jogos se processam no plano da escrita e da leitura silenciosa, atenta à tipografia e à distribuição no espaço do papel ou da tela. Daí que os recitais desse tipo de poesia, a leitura em saraus, sejam normalmente muito aborrecidos. Porque ali a reivindicação de “leia-me como poesia” não se sustenta no texto lido. Daí também o esforço de encontrar alguma diferença no tom de voz, ou de apoiar o texto no ambiente.
A dissociação entre poesia e verso chegou a ser total, em algum momento. Mas mesmo nesse caso, como mostra o fato de que nunca se abdicou da denominação “poesia” ou “poema”, persistiu a mesma reivindicação de pertencimento a um gênero, ou seja, de uma forma de leitura que faça no texto um decidido investimento de sentido. O que cria a necessidade de manifestos e, como eles não bastam, de um tipo de manual ou guia de leitura, que caracteriza alguma poesia de vanguarda e inclusive favorece a criação de uma especial linhagem de poetas-críticos. Muitas vezes, poetas-críticos-e-intérpretes-de-si-mesmos.
Creio, porém, que a divagação domingueira está se afastando muito do tópico daquela postagem. E é hora de ver o sol e aproveitar o dia.

sábado, 15 de julho de 2023

Memória: Rubem Braga

Encontrei-me com Rubem Braga duas vezes, e foi assim: Marisa Lajolo coordenava com Samira Campedelli uma coleção da Abril Cultural. Chamava-se “Literatura comentada” e apresentava, em livrinhos vendidos em banca de jornal, os principais autores das literaturas brasileira e portuguesa. Alcir e eu ainda fazíamos o mestrado, o que de alguma maneira combinava, pois a forma do assunto talvez aspirasse ao cânone como nós dois à formação acadêmica. Era nosso primeiro livro, e o fizemos da forma que foi a nossa sempre, desde a tradução até a composição de poesia de nonsense ou obscena: a quatro mãos.

A primeira vez que o vi foi logo que recebemos o convite. Eu estava no Rio, acompanhado do meu pai, em busca de material para a minha dissertação sobre poesia concreta. Eram tempos difíceis aqueles, sem internet nem máquinas digitais ou celulares. A Biblioteca Nacional era um caos. Por falta de pessoal ou competência, abriam andares ímpares e pares alternadamente. De modo que se por acaso o que você quisesse num dia ímpar estivesse num andar par, a consulta ficava para o dia seguinte, mas sem garantias, porque de repente a sequência podia ser quebrada por algum motivo. Além disso, não havia serviço disponível de microfilmes. E era aí que entrava o meu pai: fotógrafo amador, foi autorizado a fotografar com sua Pentax as páginas que me interessassem dos jornais dos anos de 1950.
Meu pai sempre foi um bom leitor, além de músico, poeta e cronista nos jornais do interior onde vivemos. Por isso, era grande fã de Rubem Braga. Bastava-lhe saber que o cronista estava num periódico para assiná-lo ou comprar na banca.
Não desperdicei a oportunidade, portanto. Telefonei ao velho Braga e lá fomos visitá-lo numa bela tarde ensolarada, após o trabalho na Biblioteca. Não me lembro nada do que falamos. Apenas me recordo claramente da expressão do meu pai, quando apertou a mão do escritor. Depois, ficamos ali conversando. Eu na verdade não tinha assunto, senão lhe dizer que eu e um amigo escreveríamos sobre ele.
Quando voltei a Campinas, organizamos as jornadas de trabalho. Lemos a obra de Braga de uma ponta a outra, selecionando cada um as crônicas que mais impressionavam. Em voz alta as relemos e depois as fotocopiamos, recortando os xerox para montar o conjunto.
Em seguida, redigimos uma apresentação crítica – ainda muito colada à bibliografia, vi agora –, o esboço biográfico e as notas. E então veio a notícia terrível: Rubem Braga não queria ser explorado pela Abril (não foi bem isso o que disseram, mas o que entendemos, e ele depois confirmou) e exigia que no livrinho houvesse tanto texto dele quanto sobre ele.
Foi então que fui pela segunda vez à sua casa, saindo de Campinas numa madrugada fria, de moto, para apanhar o avião da ponte-aérea e voltar no final do mesmo dia.
Isso explica que eu calçasse uma bota quase até o joelho e carregasse uma grande mochila, onde meti depois o casaco e as luvas, mas não as botas. E portanto em poucas horas lá estava eu, com aquelas botas e aquela mochila, andando pela praia de Ipanema, sob um sol de assar batata na rua.
É que Rubem Braga tinha ido a um enterro no horário matinal combinado. E só me receberia quando voltasse. Por isso nem me afastei muito do apartamento dele, nem fiquei muito por lá, com tal aparência suspeita.
Quando me recebeu, pude ver melhor o famoso apartamento de cobertura, com jardim de Burle Marx e um pequeno aquário rodeando a casa.
Vejo agora que não descrevi o escritor. Não era baixo nem alto, se me lembro bem. Nem gordo nem magro. Tinha cabelos brancos e um bigode esbranquiçado. Seu traço mais marcante eram os olhos. Bovinos, disse dele alguém. E não encontrei melhor palavra. Como o boi do poema de Drummond, talvez. Eram olhos ao mesmo tempo acolhedores e investigativos, nos quais também julguei perceber algum tédio, derivado da experiência. Assim devia ser o jeito de Aires, lembro-me que pensei.
Perguntei-lhe o que achara do nosso texto. Ele me disse algo vago, que não assegurava que tinha lido. Eu lhe disse que nossa ideia para cumprir a exigência era desenvolver a apresentação e acrescentar uma pequena fortuna crítica. E acrescentei que a sua biografia tinha saído tão breve porque havia muita inconsistência no que estava disponível. Por fim, que pretendia fazer com ele uma entrevista e acrescentá-la ao livro, para cumprir o necessário.
Ele mandou vir uma grande caixa. Abriu-a sobre a mesa e vi que nela havia de tudo: cartão de repórter de guerra, passaportes, salvo-condutos, muitas fotografias, cartas, recortes, registro de nascimento, carteira profissional. Juntos separamos a papelada e reconstruímos a vida dele, corrigindo os dados que eu trazia anotados a partir das leituras. Selecionei por fim os documentos mais relevantes, que a editora trataria de fotografar. E fiz a entrevista. Um dos trechos vem junto desta postagem.
Na saída, deu-me um exemplar do seu único volume de poesia, que tinha acabado de ser publicado em Recife, pelas Edições Pirata, mas com a condição de que os versos não seriam incluídos no livro que fazíamos.
Na volta, com base na conversa do Rio e atendendo à necessidade de espichar o texto, reforçamos as notas de rodapé, aumentamos a biografia e inventamos um diálogo. Essa foi a parte melhor, na verdade, a mais divertida e produtiva: submetemos o nosso texto primeiro à crítica, desdobrando-nos em duas figuras – o Mestre questionador e o Discípulo aplicado – e pudemos assim ser mais ousados, autoirônicos e agudos. Por fim, convocamos para a conversa o próprio Rubem Braga, atribuindo-lhe as palavras que me disseram no Rio.
Ele me dissera que uma prova da decadência da crônica era que a revista Manchete tivera outrora quatro bons cronistas, mas que agora só tinha o Adolfo Bloch, que só escrevia para um leitor, ele mesmo. Como ele me disse, publicamos.
Algum tempo depois, ele se referiu numa crônica aos rapazes de Campinas que colocaram aquelas palavras na sua boca. Disse que não se lembrava de tê-las dito, mas que, já que dissemos que ele disse, então estava dito.

sábado, 8 de julho de 2023

Enquanto espero…

Enquanto espero, por algum motivo me lembro de coisas que li em Ezra Pound. Mais exatamente no livro que entre nós se chamou “ABC da Literatura”. Não a abstrusa noção de paideuma. Essa, tal como ele a operacionaliza, não disfarça o caráter autoritário. Afinal, quem disse que o trabalho de uma geração é capaz de selecionar para a próxima o que é vivo, evitando que ela perca tempo com coisas obsoletas? Não é justamente o contrário? Que na modernidade uma geração digna do nome enterra a anterior, ao menos em parte, descobrindo a novidade ou o interesse onde aquela não punha o seu coração?  O que me ocorreu foram outras passagens, que refiro de memória. A primeira é aquela em que ele compara uma opinião a um cheque. É uma questão de fundos. Se ele, Pound, desse um cheque de um milhão de dólares, seria uma piada. Se Rockfeller o fizesse, não. Seria uma coisa séria. Assim também, com a opinião de um não-conhecedor de literatura e arte. A comparação é brutal e pode ser contestada em vários níveis, mas aponta para algo que é de fato importante: o conhecimento como padrão de julgamento (e de gosto, talvez), o valor da autoridade intelectual. Auctoritas. Não se trata de “sabe com quem está falando”, nem de “sabe quem está falando”, e sim a importância de constatar que “quem está falando sabe”. Mas a passagem que primeiro me ocorreu foi uma na qual Pound pergunta se o seu leitor se interessaria pela obra de um autor cuja visão de mundo (acho que ele diz percepção, mas não estou seguro) estivesse abaixo da média (creio que ele disse “não estivesse acima da média”). Confesso que, indagado, tenderia a responder que não. Talvez porque seja essa a base da minha recusa a continuar a leitura de poesia ou prosa na qual não perceba que o autor de fato tenha algo a dizer. Algo relevante, de algum ponto de vista, ainda que seja o puramente pessoal. Nesse ponto, me ocorre outra lembrança: a de que é bastante desfocada a repetição incessante da boutade de Mallarmé sobre a poesia não se fazer com ideias, mas com palavras. Porque a mim não interessa o contrário: a poesia feita com palavras sem ideias. Talvez porque me lembre de Bashô, quando dizia que as obras produzidas apenas com arranjos de palavras são o testemunho de um espírito que não se esforçou para atingir a verdade. Não são dignas de respeito, acrescentava ele. Mas voltando ao Pound: embora tenda a concordar, reconheço a dificuldade. Por exemplo, Fitzgerald. Em que medida poderia dizer que ele tinha uma visão de mundo acima da média? Eu acho que sim, mas não sei bem por que acho isso. Sei apenas que o “Grande Gatsby” me encantou desde a primeira leitura. E não só pelo enredo. Na verdade, não pelo enredo. Mas porque há ali, por exemplo, uma cena na qual a personagem adentra uma sala cheia de leveza e brisa. As mulheres, como tudo o mais, flutuam, se erguem no ar. Quando o dono da casa fecha brutalmente as janelas, tudo se assenta. Assisti às filmagens da obra. E gostei, eu creio. Mas essa cena me marcou a partir do livro, porque se fosse encenada ao pé da letra o resultado seria certamente ridículo. E assim muitas outras cenas e passagens, pelas quais eu avaliava, normalmente em clave deceptiva, as equivalentes nos filmes. Tudo isso para dizer que há mais coisas aí, entre a visão de mundo e o puro domínio das palavras. A mescla é variada e o resultado incerto, penso. Uma coisa parece transformar-se em outra. Ou gerar a outra. E agora, enquanto ainda espero, me lembro de algo que parece ter pouco a ver. A ideia marxista (ou terá sido Engels?) de que a determinação estética pode inclusive corrigir a crença de classe, a visão parcial pessoal do artista. Ou quase isso. Porque sempre vi ali uma postulação do valor de conhecimento, isto é, de análise e desvelamento da realidade, que a submissão à coerência estética acarreta. Como se o justo e o esteticamente ajustado fossem de alguma forma íntimos. Claro que a estética, no caso marxista, era a do realismo. Mas o ponto era esse. Neste momento, porém, acho que já esperei demais. E que há algo de desvario nisto tudo. Mesmo assim, que seja.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Ensaio

 Estive, desde ontem, para escrever uma nota sobre um artigo de Alcir Pécora. Era para ser um comentário a uma postagem que fiz a propósito do livro de Frederico Lourenço. 

Sucede que por ter compartilhado e endossado a crítica mordaz que ali (em Lourenço) encontrei sobre a “indústria universitária” logo me tornei alvo da bondade do bom-mocismo. Ora, me disseram em privado, você está subscrevendo uma atitude reacionária. Em público, em comentário desrespeitoso que apaguei, levei um sabão por compactuar com a arrogância e outros vícios, e também me disseram com condescendência que toda pesquisa é válida e sempre há contribuição original, por menor que seja etc. O ponto, entretanto, não estava em parte alguma dessas reações repletas de boas intenções, na maior parte.

Mas voltemos à ideia do comentário. Aconteceu que na sua visita semanal, Alcir me trouxe um número da revista “Miscelânea”, da Unesp. pois lá vinha um texto seu, de brilho característico, sobre aquilo que denominou “um tema que nos interessa”, acrescentando, agora com verdadeira generosidade, que eu já sabia daquilo tudo. O que pode ser verdade, num nível, mas não o era certamente em outro, ou seja, o da capacidade de exposição e síntese que ele tem em dose admirável. A começar pelo título: “O ensaio na época da morte do ensaio”.

Se eu quisesse de fato resenhar e debater o texto, não seria este o espaço. Mas basta-me chamar a atenção para o que nele vai, e realçar alguns pontos em que convergimos. Por fim, se a tanto me ajudasse engenho e arte, gostaria de glosar alguma coisa do texto, numa clave algo crítica, mostrando que os dois terços finais do título não permitem a redenção do primeiro. Mas temo que isso seria demais também, então basta indicar a leitura e transcrever algumas frases.

O primeiro ponto é que, listando uma bibliografia do maior interesse, conclui: “os autores que pensam a universidade ... acabam igualmente por entender o presente dela como um momento de declínio”.  Como ele mesmo reconhece, ao tratar do ensaio nesse quadro, seria fácil ceder à nostalgia e entoar um “ubi sunt?”. 

Alcir reflete sempre com um pé no chão do presente e outro no campo de combate. Nada de nostalgia, nem de lamento. A situação da universidade, diz, tem uma clivagem dupla: as implicações internacionais da ideia de universidade e as inovações tecnológicas. Ambas incidem diretamente sobre o tema do artigo, que é a escrita. Ou a atitude que preside à escrita, eu talvez pudesse dizer.

Haveria ainda uma terceira determinação presente do pensar a universidade, que é a hegemonia da sociedade de mercado, que lhe permite esta formulação provocativa, algo angustiante: “O quadro incrivelmente raivoso dos novos fundamentalismos que se apresentam como ‘antissistema’ – mas que, de fato, são basicamente antidemocráticos – sugere mesmo que não é impossível que, num futuro próximo, tenhamos saudade do cosmopolitismo laico do capital”.

 Ao traçar o quadro da crise das humanidades, Alcir continua com a faca afiada. Aqui, desnaturaliza o uso da palavra “pesquisa” no interior das humanidades, ali indica como, nos países centrais, a tendência é que sejam versadas por pessoas das classes ricas, já que não permitem retorno do capital investido (ele diz de modo mais refinado do que estou resumindo, claro), mais além fustiga a especialização precoce incentivada pelo sistema de bolsas, a começar pela IC. E ainda a “obrigação artificial de interdisciplinaridade”, criada pelas agências de fomento.

Nesse ponto, o autor percebe o risco da navegação e escreve: “Mas se é verdade que eu capitulo diante da determinação um tanto tristonha do gênero que pensa a Universidade, gostaria ao menos de evitar um segundo estágio da melancolia, o de viés catastrofista. Cair nele encerrar-nos-ia definitivamente num cômodo apertado entre a saudade dos bons tempos e a ansiedade do fim. Quando essas duas afecções se juntam, resta-nos apenas a nostalgia da extinção, que tudo devora e reduz a pós-.”

Mas será que ele consegue evitar esse segundo estágio terminal?

O caminho dá nesse ponto uma volta. A volta da definição do que seja o ensaio. E o faz chamando para o palco um texto de Abel Barros Baptista sobre um conto de Poe, de que extrai esta formulação: “O ensaio não é o conhecimento disfarçado de literatura – é a literatura disfarçada de reflexão, análise, conhecimento”.

E aqui chegamos à peripécia, por assim dizer. O que Alcir vai identificar, derivando essa proposição, é a definição de ensaio não como mapeamento do objeto, mas como conquista e/ou imposição do lugar do intérprete. 

Para mim, esta é uma percepção muito aguda e certeira: “o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo o alienaria da obra que pretende elucidar”.

E aqui a conclusão, da qual decorreria muita coisa: “Assim, um ensaio bem sucedido é menos a explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema”.

O artigo se encerra poucas linhas após essa frase. Por isso não faz uma amarração dela com o feixe dos problemas e argumentos anteriores.

Quando terminei a leitura, escrevi ao autor. Mas antes de contar o que lhe disse, vejo que me esqueci de ressaltar um ponto muito notável do seu artigo, aquele no qual define a nova forma de relação dos entes universitários. Eis: “Como detalha Collini, ..., o aluno comporta-se cada vez mais como um cliente que tem exigências a serem contempladas pelo professor. E o professor, por sua vez, ... aproxima-se da figura de um fornecedor.”

Pois bem, o que lhe disse primeiramente foi isto: “Você escapa por pouco do lamento pelas neves de outrora, se safa bem com a admissão da tentação e a superação por aquela atitude mesma que me sugere quando me vê resvalar pela encosta da melancolia abaixo.” Depois, provavelmente com algum dramatismo provocador, escrevi-lhe que no novo mundo da universidade, o ensaio, tal como ele o define, está mais para um tapa na cara. Algo do tipo, dito pelo fornecedor ao cliente: olhe aqui, você nunca vai conseguir fazer isso se insistir no que tem insistido! 

E claro que, ainda nesse registro chão e brutalista para o qual às vezes gosto de puxar o problema, pisando a questão material fiz as perguntas chãs, mas talvez decisivas: “quem está disposto a pagar pelo ensaio? Como ele atende aos clientes/alunos?” 

Claro que uma parte da resposta incômoda já estava lá, naquela parte do artigo em que mencionava o caráter cada vez mais elitista, ou melhor, elitizado das humanidades em algum tipo de instituição universitária. Mas achei que devia, para dar seguimento à conversa, formular claramente a questão. 

Por fim, retornado àquela frase do Abel, que ele cita para depois desenvolver, observei que o guizo no pescoço do gato ainda está por amarrar, isto é, ainda é preciso dizer para os financiadores (e convencê-los disso) que um texto literário disfarçado em estudo não é de forma alguma uma trapaça, mas aquilo mesmo que define (e também estou convencido disto) um dos núcleos mais importantes, se não o definidor, na ideia de universidade.

sábado, 1 de julho de 2023

Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna


Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso,  a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.

sábado, 10 de junho de 2023

Perfis 8 - Jesus Antônio Durigan

    Jesus baixou à Unicamp sem anúncio nem pompa, por via incerta. Veio com uma mala de viagem estruturalista, e fortes tatuagens da passagem de Greimas pelo Brasil. Se bem me lembro, era bom professor, sistemático, cumpridor. Depois, foi diretor do Instituto, na sequência do episódio da intervenção malufista que depôs Carlos Franchi. E foi, como nos cursos que ministrou, fiel cumpridor do que lhe cumpria pensar e fazer. As lembranças mais claras que dele tenho, porém, não são da sala de aula. Fui seu aluno e de tudo o que ali falamos ficou-me apenas a lembrança de uma ardida discussão sobre um texto de Edgar Morin. Recordo-me bem, isso sim, de seu livrinho sobre o erotismo, que teve destaque na época. Mas não só, para minha surpresa: quando comecei a pensar em fazer este perfil, percebi que havia mais, nalgum canto empoeirado da memória. Era algo sobre pecado e sobre narrativa. Abanando a mente com o Google, varrendo a internet por “pecado” + “Jesus” + “Greimas” surgiu-me logo na tela do notebook o artigo de 1984. Não vou dizer que o reli agora há pouco com grande interesse, embora a releitura não fosse desinteressante. Assim como o vestuário sofre com a passagem do tempo (pela época da redação, creio que ainda se teimasse nas calças boca-de-sino e nos sapatos de plataforma), as modas teóricas resistem mal ao progresso do calendário. Será que o guardei por conta do título algo pomposo, que à época não viria despido, para mim, de alguma comicidade? A “ciência do discurso”? Creio que não. Talvez então tenha sido por conta da nota, em que a personalidade do autor se revela junto com as tensões do tempo? Pode ser, porque embora os organizadores se esforçassem por registrar, com a honestidade devida da modalização, que “aparecem aqui lado a lado tanto trabalhos teóricos quanto estudos particularizados (...), num exemplo razoável de coexistência pacífica”, a verdade é que Jesus era um estranho no ninho candidiano e devia sentir-se todo o tempo como tal: “Escrito em 1975, este trabalho se propunha a participar das discussões que se realizavam na época. Muita coisa mudou de lá para cá. Curiosamente, o trabalho foi policopiado e lido por amigos e inimigos. Talvez ainda se preste a fofocas. Por isso, foi mantido na sua versão original.” Enquanto tentava retraçar o perfil moral do homem, o que se me impôs foi o seu perfil físico. Ou melhor, a sua silhueta, inconfundível para quem a tivesse divisado alguma vez no corredor das salas de docentes do IEL. Para quem não conheceu o velho pavilhão, devo dizer que era um pouco soturno. Escuro, atravessado por um corredor comprido, ladeado de salas quase sempre fechadas, com uma grande porta de vidro em cada extremidade, tinha a propriedade de nos acostumar às sombras, e de treinar a vista para reconhecer o desenho projetado do corpo de quem vinha por uma das pontas quando estávamos no meio. Jesus tinha longas pernas arqueadas, como de vaqueiro. Pernas de alicate, como se dizia na minha terra. Ver a sua sombra caminhar num tipo de gingado na nossa direção, na semiobscuridade daquela miúda caverna, gerava alguma tensão, e era fácil imaginar, emergindo do fundo da tela, uma das muitas memoráveis trilhas de Ennio Morricone. Creio que poderíamos ter sido amigos, apesar da diferença de estatuto e de idade. Afinal, éramos ambos caipiras do interior, tínhamos a mesma origem veneziana. O que nos garantia um sotaque comum e, mais do que o sotaque, aquela entonação de quem foi criado com macarronada e frango assado aos domingos, sob a dupla sombra do crucifixo e da Comédia. Mas a verdade é que nunca fomos próximos. Jesus parecia ter, por assim dizer, o physique du rôle para cavalgar a burocracia: logo, de diretor do Instituto passou à presidência (ou direção executiva, não estou seguro) da fundação da Unicamp. Creio que foi a saída que encontrou. Mas não continuou muito tempo nessa estrada e se recolheu. No final da sua temporada no IEL, ainda gostava de o encontrar, quando percorria semanalmente outra longa estrada, de Franca (eu acho que era Franca), para dar as últimas aulas necessárias à aposentadoria. De alguma forma me identificava muito vagamente com ele. Principalmente nos primeiros tempos, em que eu tinha a impressão de que não pertencia àquele ambiente, não conseguiria me mover ou crescer dentro das fronteiras demarcadas. Ambos ansiávamos, eu acho, pela largueza dos campos gerais, em vez do canteiro bem cercado. Com o tempo, devo ter me acostumado (ou talvez a horta tenha crescido e se multiplicado), embora até hoje suspeite que aquele não foi para mim o melhor terreno. Para ele, olhando desde este ponto do tempo, tenho cada vez maior convicção de que não foi. 

7 Perfis

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sexta-feira, 9 de junho de 2023

Memória: editora

 Alguém me pede que compartilhe mais memórias editoriais. Não tenho muitas. E as que tenho talvez não devesse contar. Não por razão obscura ou constrangedora, mas por insignificantes para quem não for do meio. Entretanto, quando pensava em dizer que não me veio à mente um episódio interessante, veio. E começa assim: quando assumi a Editora da Unicamp não tínhamos recursos para nada. Não que o catálogo fosse ruim. A parte melhor, porém, estava esgotada ou ainda por publicar. Sem recursos nem pessoal, parecia que o fim daquela jornada chegava junto com o seu começo. Foram dias em que o ditado se comprovou: a criatividade é filha da necessidade. Ou seria esta a mãe daquela. O que dá, rigorosamente no mesmo, sendo a diferença o grau de angústia ou de otimismo a presidir à construção da frase. O episódio em questão era que tínhamos uma coleção promissora, que andava a meio do caminho. Chamava-se “História do Marxismo no Brasil”. Sem julgamento de qualidade ou competência, devo dizer que na direção da Editora logo percebi que havia dois tipos de leitores abundantes ou persistentes: os marxistas e os linguistas. Então era urgente levar adiante a empreitada que se dirigia aos primeiros. Ocorre que os volumes já editados apresentavam problemas variados em qualidade e quantidade: desde a revisão até a capa, passando pela diagramação. Eram tempos difíceis, da Forma Composer e do fotolito. Redigitar e rediagramar parecia impossível, além de muito lento. Continuar a coleção com o projeto de capa e o design antigo estava além da minha resignação aos tormentos do cargo. Foi então que a filha surgiu da mãe, isto é, a criatividade nasceu da necessidade. Não de um salto, como Diana da coxa de Júpiter, mas aos poucos. Primeiro vi que eu tinha visto muito mais capas de livros do que os tinha lido. Depois, tirando por mim, leitor mediano, concluí que milhares de pessoas veriam os livros da Editora, enquanto só 1000 ou 1500, na melhor hipótese, os comprariam. Portanto, era urgente eliminar a velha capa e arrumar um vestuário mais adequado. A ideia foi cozinhada de uma perspectiva progressiva: era preciso garantir a inteireza da coleção. Não apenas por motivo estético, mas também comercial: uma coleção que se apresenta como tal parece nos induzir, a nós, leitores, a completá-la. Seriam muitos volumes, o que justificava ainda mais o pensamento na penúria. Por fim, abriu-se o ovo de Colombo e nasceu a ideia inteira, a piar de alegria: uma capa bem feita, chamativa sem ser escandalosa, como convinha ao assunto, mas capa de coleção, não de volumes. E já agora a ideia, como um galo, lançava o seu brado de alvorecer: quando a coleção se alinhasse na estante do comprador, ele teria uma surpresa – o rosto de Marx surgiria, indiscutido, da junção das lombadas. Pronto, pensei, quem se arriscaria a deixar de fora uma fatia de tal face? Restava ainda um problema: como fazer com os miolos antigos que iriam se enfeixar no rosto marxista? Não me lembro, ou é melhor que não me lembre, se imprimimos todos os volumes antigos, mesmo com a feia diagramação e com todas as gralhas, só alterando a capa. Ou , o que seria inconfessável e portanto não vou confessar aqui, se chegamos mesmo a desencapar os volumes não vendidos para os vender rapidamente com o novo rosto. Mas afirmo com a voz de testemunha confiável que a coleção foi um sucesso e com o tempo, se tivermos por acaso chegado ao absurdo de reencapar livros, todos os volumes foram corrigidos, rediagramados e refeitos. O que afinal desmente outro ditado, pois se é verdade que não há mal que sempre dure, não é certo – ao menos no caso dessa boa coleção - que não haja bem nunca se acabe.

*

 Este pequeno palco, dizem, está com os dias contados. Houve quem o comparasse certa vez a um privado outdoor. Não me lembro bem, mas creio que a ideia era que o dono o rabiscaria à noite e o poria no terreno na frente da casa. No dia seguinte, tomaria seu café e sairia para a varanda. O minúsculo grupo ou a pequena multidão aglomerada à frente ou apenas de passagem dava o tônus e a perspectiva do dia, antes da segunda xícara. Se não era assim, poderia ser dessa maneira. Pelo menos, é como o recordo agora. Mas  outras formas crescem ao lado, lançam sobre ele a sombra sufocante, pura imagem. Veja, me dizem: as folhas da grama ainda balançam no vento. Na planície ondulada cada uma é, olhando bem, um pequeno outdoor, o minúsculo palco individual! Mas quem as distingue ou repara nas que caem? Devo dizer que também eu, nesta floresta de teto baixo, gemo e aguardo os ecos dos gemidos, que de longe se confundem. Na mesma tenebrosa unidade, poderia sempre dizer: mas não a dos eleitos e malditos, na profundidade, apenas a dos comuns, no raso. Os que não têm onde respirar, os inconformados invisíveis, os graduados na escala solitária, conscientes em medida vária, ou amortecidos, adormecidos talvez em pesadelo. Nesse incessante debater-se, o pequeno palco suga e supre. Ainda assim, já parece que perde a força. Parece mesmo condenado a desaparecer.

sábado, 3 de junho de 2023

Racismo?

 Itamar Vieira Júnior escreveu um texto sobre Vini Júnior. Nele, o escritor, a pretexto de manifestar solidariedade ao jogador, contesta uma crítica ao seu novo romance. Diz ele:


“Acabei de colocar um romance na rua e nele mais uma vez segui meu propósito de narrar a história da minha gente, daqueles que me antecederam e daqueles que me cercam. Estou no meio literário há pouco tempo, mas já acumulei repertório suficiente para escrever uma etnografia desse grupo. É claro que eu esperava racismo por minha insubordinação de continuar a escrever. Esperava que alguém me lembrasse, como o professor branco, que meus pés jamais deveriam ter deixado a senzala.”

“Então vou contar para vocês os adjetivos que ganhei de uma professora branca em redes sociais simplesmente porque decidi ignorar a "cusparada": "sujeito" (alguém inferior que não pertence à sua classe e raça), "arrogante" (já vi o mesmo adjetivo destinado a outros corpos negros altivos, como Djamila Ribeiro, Luiza Bairros e Silvio Almeida) e "preguiçoso mental" (será que é um insulto xenófobo por eu ter nascido e ainda viver na Bahia?).”


Curioso, fui atrás do quiproquó. 


Li, primeiro, o texto de Lígia G. Diniz. E, nele, estes trechos que devem ter irritado sobremaneira o escritor:


“Talvez, no entanto, a literatura de Itamar Vieira Junior encarne, mais do que qualquer outra no país, o espírito do tempo, e isso as vendas mostrarão melhor do que uma resenha. É mesmo um mérito saber sintetizar assim uma tendência. Para a literatura brasileira, porém, esse sucesso aponta o status enfraquecido da ficção imaginativa e o triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.

Não se trata só de sucesso de público, no entanto, e é preciso refletir acerca das razões para que esse tipo de literatura obtenha tanto espaço institucional — dos prêmios à atenção recebida pela mídia, o que inclui esta longa resenha. É frustrante que essas razões apontem para o caminho do autoflagelo fácil, e nada produtivo, de uma elite ilustrada que, para expurgar a culpa por seus privilégios, celebra narrativas maniqueístas (e, ironicamente, muito cristãs) em que miséria é sinônimo de virtude, e a desigualdade brasileira se explica pelas ações de monstros muito, muito malvados.”


É verdade que a autora da crítica, a julgar pela foto dela numa rede social, é branca. Mais que branca, pelo que vi: é ruiva e tem olhos claros. O que talvez, de um certo ponto de vista, a desqualifique de uma vez por todas para tratar do texto de um homem pardo. (Penso agora que talvez eu mesmo, apesar de não ser totalmente branco na Europa por conta da costela árabe, sendo suficientemente branco aqui, devesse ser forçado a calar a boca nesse caso.)


Aliás, “calar a boca” foi o motivo da tal briga em rede social a que alude Itamar. E foi assim: ele bloqueou a crítica numa das suas redes, e ela reclamou disso em público. Foi aí que disse que a recusa dele à crítica era preguiça mental e que o bloqueio foi prova de arrogância. Ele, por sua vez, na Folha, equiparou essa reclamação aos insultos recebidos por Vini Jr. e logo traduziu tudo em clave identitária. Afinal, além de ela ser branca, o editor da Quatro Cinco Um (segundo Itamar, pois eu não conheço ninguém ali) é branco!


Ora, mesmo correndo o risco de também ser equiparado à torcida espanhola que xingava Vini Jr. de macaco, devo dizer que a crítica da Lígia me pareceu rigorosa, coerente e sem ponta de racismo. 


Por isso mesmo, creio que o Itamar, ao equipará-la aos torcedores espanhóis e ao se comparar ao Vini Jr. apenas reforça, confirma a propriedade da crítica que ela faz nos parágrafos transcritos. 


Ou seja, sem absorver a crítica, ele optou por bloquear a autora dela, tirar-lhe o direito de fala no perfil dele, o que deve parecer grave para os que frequentam esse universo fervente que são as redes sociais. Caindo ela na esparrela de reclamar, Itamar conseguiu a resposta mais fácil e lucrativa ao texto dela: tratou logo de se engatar no Vini Jr, surfar na onda e faturar. Com um ganho adicional, qual seja o de prevenir-se de futuras críticas de pessoas não-negras ou não-pardas. Como quem diz: - olha aqui, brancos e brancas: vocês podem ler os meus livros, mas a atitude correta que lhes cabe é fazer logo um ato de contrição e calar a boca sobre qualquer reparo que queiram fazer aos meus produtos, seus racistas!

terça-feira, 30 de maio de 2023

Memória - Teoria


Quando cursei Letras em Araraquara, de 1972 a 1975, o curso era anual e havia, se bem me recordo, duas disciplinas de Teoria da Literatura. No primeiro, tínhamos uma matéria de caráter introdutório; no quarto, um aprofundamento. Isso em princípio. O modelo em tudo era a USP.
Lá, no mesmo ano em que publicou Formação da literatura brasileira, Antonio Candido tinha proposto a criação de uma cadeira intitulada “Teoria Geral da Literatura”, que respondia por duas disciplinas com o perfil incorporado em Araraquara.
Observando os programas da disciplina de primeiro ano da USP em 1961 e 1964, percebe-se algo interessante, que tem a ver com esta memória. O de 1961, intitulado “Introdução ao Estudo da Literatura”, parece inspirado no livro de Wolfgang Kayser. Já o de 1964 se intitula “Introdução à Teoria Literária” e traz as marcas do livro de Wellek, inclusive na dicotomia de “fatores externos” e “fatores internos”. A mesma guinada apresentam os programas dos cursos de quarto ano, sendo o de 1961 intitulado “Análise crítica do romance”; e o de 1964, “Estudo analítico do poema”.
Em Araraquara, já na década seguinte, o primeiro ano era puro Wellek. Não de forma mediada, mas direta. O livro dele era como uma bíblia e durante todo o ano foi nossa única leitura, capítulo a capítulo, com atenção quase religiosa ao anátema dos vícios de atribuir protagonismo aos “fatores externos”. Já o quarto ano era outro testemunho eloquente dos novos tempos. Eu tive a esperança de cursar com Adolfo Casais Monteiro, mas essa esperança foi a primeira a morrer: ele se foi justamente em meados do ano em que ingressei. Coube então a um veterano professor, muito versado nos clássicos, a disciplina que coroaria os esforços de pensamento teórico, mas aqui vem o testemunho: o homem já se convertera às modas linguísticas e só havia fatores internos, de Jakobson, de Propp e já não me lembro quantos outros.
Na sequência de estudos, fui cursar mestrado na Unicamp, num departamento intitulado justamente “Teoria Literária”, fundado por Antonio Candido e habitado por seus orientandos. Com uma curiosidade: toda a componente literária do curso de Letras era abrigada sob essa rubrica, não havendo a tradicional divisão departamental entre letras vernáculas, clássicas e modernas. Nem mais enfoque comparativo, pois só estavam previstos cursos de literaturas vernáculas. Situação essa de proeminência absoluta, oposta à da USP, de onde nos vinha o fundador e seus discípulos, pois lá se mantinha a divisão tradicional e a Teoria Literária ficava numa posição engraçada, meio marginal, num departamento intitulado “Linguística e Línguas Orientais”. Situação essa oficialmente resolvida apenas em 1990, quando a disciplina finalmente deu nome a um departamento.
Veio esta memória por conta de ter recebido de meu amigo Osvaldo Silvestre o programa de um colóquio sobre a Teoria da Literatura no Brasil. Olhando-o não pude evitar refletir que por esse nome se pode aqui mais propriamente designar a disciplina escolar do que a atividade propriamente teórica, que sempre me pareceu rigorosamente derivada. A não ser que se possa esticar o uso da palavra ou expressão, por exemplo falando em teoria implícita na obra de um autor.
Mas voltando à memória, confesso que ela pode muito, mas não pode tudo. Para os detalhes, precisa do escrito. No caso, para preenchê-la no que diz respeito à USP, recorri a um artigo bem ilustrativo de Sandra Nitrini, publicado em “Literatura e Sociedade”, no segundo semestre de 2019.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

poema 2

 no ar seco do meio da tarde

enquanto as uvas esticavam sua casca rija
e o sol fazia as pedras cantarem
na voz das cigarras
quando o pão sobre a mesa endurecido
aguardava a fome da mão que o partisse
não era assim desta maneira que eu deveria
nesta ocasião nem mesmo
minha mãe me ajude
o sol escuro se pondo no meu coração
o rio de sangue escorrendo devagar
até que o beba a terra ou o dissolva a água
elas também mães
das coisas vivas e das coisas mortas
ou com a casca do hábito
o trigo que aguarda o segador que cego caminha
esmagando sob os pés estas espigas gordas
e ainda a água que ocupa o lugar humilde
o côncavo que triunfa ao recolher
e nesta altura dos meus anos
entenderia o que me é dado
e em paz repetiria
“retira-te logo que a tua tarefa tenha terminado”
por fim até os assassinos podem
como podem os cães ferozes
e as mulheres que mataram os seus filhos
ou o raspar da corda no poço seco
a geada que desfolha o sono
e o meu corpo em revolta
contra a morte
contra o decair da carne
a sobrevida da vontade -
tudo sempre apenas este
o que ao meu lado flutua sem esforço
desconjuntado
distraindo num esgar
velho comparsa na descida.

poema 1

 Do mesmo velho caderno, esta imitação (eu creio) de Cesário Verde. Mas também com rastros de António Nobre (ao que parece).

.
Paisagem agradável com mendigos
A rua já se enfeita e sobe um burburinho
de festa e de alegria, no cair do sol.
As lojas como ostras sentem a maré,
a igreja pacifica, regurgita, e fecha.
Um novo botequim depois do que faliu,
uma história depois de uma lembrança triste.
Boa noite, uma ajuda, doutor, uma ajuda...
Sentindo que se aviva uma paixão defunta,
vejo as calçadas, as fachadas, essas praças,
enquanto sigo, bêbado, na rua errada.
E quando chego ao largo, as árvores enormes
balançam docemente à brisa da manhã.

Sobre ensino - maio 2023

 Devendo preparar uma conversa sobre ensino, fiquei refletindo como quem pensa em voz alta, só que por escrito.

 

Notas sobre ensino – 1

 

Numa aula de xadrez, pressupõe-se que o professor tenha grande conhecimento da arte. Numa dada posição, seu olhar pode divisar mais rápida e profundamente os pontos fortes e as fraquezas de cada lado e com base nisso escolher a estratégia ou a tática mais eficaz. Sei bem como é. No meu tempo, em Matão, os dois jogadores mais experientes podiam me demonstrar sua capacidade de jogo facilmente, porque numa configuração qualquer, de algum equilíbrio podiam me vencer assumindo qualquer dos lados do tabuleiro. A mim competia tentar igualá-los. Para isso ia aos livros. Além dos clássicos de abertura, em que disputavam minha atenção os livros do Panov e os do Ludek Pachman, meu preferido era “Estratégia moderna do xadrez”, desse último autor. O teste do rendimento da aprendizagem era invariavelmente o mesmo: comparar a minha capacidade de análise com a dos meus mestres e, quando fosse o caso, enfrentá-los no tabuleiro. Talvez tenha vindo daí a ideia persistente de que a um excelente professor, como eram os dois Biavas, não basta o conhecimento abstrato e a exposição dele. O momento de espanto, que provocava o estudo e estimulava a vontade de aprender, era sempre o da demonstração, em que se materializavam o conhecimento teórico e as lições da experiência. Penso que é assim que sucede nas artes tradicionais japonesas. Um professor tem de saber fazer o que ensina. De seu desempenho provém sua autoridade real. Da sua capacidade de mostrar pelo exemplo o que deve ser feito. Talvez por conta disso eu só tenha ousado conduzir oficinas de haicai quando percebi que meu conhecimento teórico e minha experiência prática permitiam que, na maior parte dos casos, eu pudesse sugerir (ouvindo o relato da pessoa que compôs o haicai apresentado a mim) uma forma mais eficaz ou mais justa de dar conta da intenção. 

 

 

Notas sobre ensino – 2

 

Talvez por conta do que contei no post anterior, sempre me debati (e ainda me debato) com uma questão prévia a toda a reflexão, mas bem difícil: o que ensina quem ensina literatura? E também, como uma derivação desta: como ensina, quem ensina literatura? É talvez mais fácil responder a outra questão, menos frequentemente formulada: o que aprendeu (ou teve de aprender ou deveria ter aprendido) quem ensina literatura? Digo que é talvez mais fácil porque a resposta pode ser mais imediata: quem ensina literatura deve, em primeiro lugar, ter construído um bom repertório de leituras. Mas de que leituras? Do meu ponto de vista, não só de leituras literárias, embora essas sejam o elemento mais importante, os alicerces do edifício. Dependendo do objeto, o repertório precisa ser ampliado. Filosofia, história, antropologia, psicologia, filologia, que mais? Também é preciso um repertório musical, sem dúvida. E por que não de pintura, escultura, arquitetura? E o cinema? E o que mais pudermos incluir no conceito vago de “cultura”. Mas a pergunta incômoda é mesmo a primeira: o que ensina quem ensina literatura. Não é filosofia, por certo; nem sociologia ou antropologia. Nem história, esse guarda-chuva tentador, que tantas vezes oferece abrigo ao se juntar ao restritivo “literária”.  Professores de literatura que se põem a ensinar psicanálise tendem a fazer um mau trabalho, no que diz respeito à psicanálise. Idem os que se metem com a filosofia ou sua história. E assim por diante. Aliás, ouvi já de algum malvado que os departamentos de literatura são lugares a partir dos quais pessoas podem ensinar o que não sabem ou conhecem pela rama, uma área onde alguém pode explicar o que mal conhece pelo que ignora ainda mais. Opinião que não posso dizer que endosse, embora dela não discorde inteiramente.

 

 

 Notas sobre ensino – 3

 

Mas então o que ensina quem se propõe a ensinar literatura? Quando eu mesmo me pergunto isso, a resposta é sempre a mesma: um professor de literatura é sobretudo um professor de leitura. Creio de fato nisto: ensinar literatura é ensinar a ler textos literários; ou, se se preferir, é ensinar a ler literariamente. Nesta última formulação se podem abrigar todos os chamados “dados contextuais”. Porque ler “literariamente” é, em primeiro lugar, do meu ponto de vista, estar atento ao texto, mergulhar nele e na sua rede de sentidos; o que implica, em medida vária, retraçar as referências, as citações, os intertextos, as alusões e aquilo que poderia denominar “biografia pública” do autor. Vê-lo em diálogo com outros tempos do seu texto, para assim aquilatar o que nele há de novo ou de mais bem sistematizado, em relação à média. Ler textos literários é, quanto a mim, uma tarefa que implica uma boa dose de submissão ao objeto, um esforço para fazê-lo falar desde o seu tempo e lugar. Mas fazê-lo falar para nós. É certo que se pode usar os textos literários de outra forma: como exemplos de teoria ou campo de teste de hipóteses metodológicas; ou ainda, normalmente por meio de partes selecionadas, como elementos de prova de teorias ou ideias gerais sobre várias coisas. E também se pode fazer com que falem algo que não falaram ou que falem algo que hoje parece X e no tempo deles parecia Y. Tudo isso, nessa diversidade, faz sentido. E não duvido que em quase todos esses casos a prova da competência possa ser feita. Que um aluno possa trazer um texto ao professor e que este possa fazer como fazia o meu professor de xadrez. Mas também não duvido de que uma aproximação ao texto a partir de um amplo repertório cultural, uma leitura que não violente o texto para fazê-lo dizer apenas uma coisa ou impedi-lo de dizer outras, é capaz de dar conta de um leque muito mais amplo de textos e de gerar respostas mais duradouras nos estudantes, permitindo-lhes mais ampla formação. Quando eu cursava a faculdade de Letras, caiu sobre nós o Estruturalismo. Foi uma febre. Um sarampo, como depois se disse. A Linguística era tida como a chave das ciências humanas. As aproximações linguísticas ao texto literário proliferaram. A vertente mais ativa foi a que teve na palavra “estrutura” o seu esteio. Uma leitura como a que Jakobson fez de um poema de “Mensagem” foi imitada até a exaustão. A competência dos professores que aderiram era inegável: um texto ia para a lousa ou para a transparência e era impiedosamente desmembrado, em busca de todo tipo de estrutura: acoplamentos, paralelismos, quiasmos, classes de palavras, paronomásias, anagramas, oclusivas, dentais, sibilantes etc. Drummond compôs, sobre essa prática de vivissecção, um poema engraçado, “Exorcismo”, com um refrão que pedia a Deus para nos liberar de uma aluvião de termos técnicos – e das formas de leitura que deles se valiam ou neles se escoravam. Passou em certo momento o sarampo, mas deixou cicatrizes. Houve gerações que, no ensino médio ou no superior, foram expostas. Ler literariamente, naquele tempo, para muita gente, era esquartejar um texto e exibir a sua anatomia: os ossos, os músculos, os tendões. Fora disso, era tudo gordura. E melhores eram os textos quanto menos gordura tivessem. Quando a “teoria” saiu de moda e a forma de leitura idem, a competência de leitura específica de professores treinados no modelo, e só nele, se esvaiu. Os que ficaram aferrados àqueles mecanismos interpretativos passaram rapidamente do laboratório de vanguarda ao depósito do museu. 

 

Notas sobre ensino - 4

 

No último post terminei por desviar talvez o assunto e evocar os tempos em que estudar literatura pareceu, no Brasil, tratar de responder, de certo ângulo de visão, à pergunta: como funciona o texto literário? Como funciona a máquina do poema? No caso do romance, a perspectiva teve menos sucesso ou menos aplicação. Talvez porque o método seleciona o objeto? O pressuposto define o lugar do exercício do método? Seja como for, voltando ao ponto: para mim, ensinar literatura é ensinar a ler textos literários. Por isso mesmo, retomando, creio que tanto melhor é o resultado do trabalho da leitura quanto mais se permita que o texto force os limites do método ou dos pressupostos do leitor. Os melhores professores que tive foram os que não obrigavam o texto a dizer isto ou aquilo, nem tratavam de buscar a pedra filosofal da literariedade, muito menos os que moíam e peneiravam um texto em busca dos pedregulhos com que escorar ideias sobre a sociedade. Mas agora, nestas divagações preparatorianas, surgem de novo perguntas incômodas. Por que estudar literatura na escola? Por que estudar só literatura e não as demais artes, isto é: por que parece natural a muita gente que somente a literatura seja a única arte exigida como parte do currículo? Será por inércia curricular que as universidades pedem, no vestibular, apenas o conhecimento da história literária ou de obras literárias, e não de pintura, escultura ou música? Quando a questão da nacionalidade era central, a pergunta de por que estudar literatura, ou por que a literatura tinha proeminência sobre outras artes nem fazia muito sentido. Isso ainda era muito forte nos tempos de Antonio Candido, como se vê pela famosa proposição de que é a nossa pobre e fraca literatura que “nos” exprime. Daí o dever de amor que ele ali preconizava. Mas e hoje? Qual o futuro da literatura como disciplina escolar e como parte essencial da educação dos cidadãos? Por quanto tempo ainda haverá a obrigação de estudar literatura e, portanto, a necessidade de ensiná-la na escola regular? Como estas divagações nasceram de um convite para falar mais uma vez sobre ensino de literatura, creio que é daqui, deste lugar mais incômodo, que deva prosseguir. Mas termino estas anotações por confessar que ainda não sei bem como.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um manuscrito

Isto estava em um caderno muito antigo. Manuscrito, em péssima letra, de leitura tão árdua que não garanto a fidelidade nem a autoria.

Trazia ainda uma palavra feia, que tratei logo de ocultar para menor ofensa ao leitor.


O verso 12 foi o mais obscuro, de decifração mais difícil, dada a condição do material. 


A lição deste texto é a do Alcir, a quem pedi socorro. 

A minha dizia: Que coragem te dê no que restou.

 

 

Ó bárbara criatura, ó desprovida: 

“Se em cada verso meu onde c*g*ste

Uma rosa se erguesse numa haste

Seria esta clepsidra bem florida!”

 

- De nada valem reis ou marafonas

Em teu socorro virem com asnices:

Não há como ocultar tuas sandices,

Não há como esconder um Amazonas. 

 

E se vires que possas afogar

Alguma inveja no bestunto teu,

Roga ao Deus que teu cérebro encurtou

 

Que fé te dê no pouco que sobrou

Pra confessar que no trabalho meu

Cuspindo disfarçaste o chupitar.

 

 

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Monstros masculinos

 Estive lendo um artigo no The Guardian. Era assinado por Claire Dederer. Minha ignorância englobava também esse nome. Então fui à procura. Aprendi que é uma autora norte-americana conhecida. O artigo que li era um extrato do livro “Monsters: A Fan’s Dilemma”. Achei-o na Amazon, felizmente em versão Kindle. Sua capa é divertida. Veremos o livro, que comprei, mas ainda não li. Estou ainda com o texto do jornal.

O artigo merece atenção. A autora desde logo assume o lugar de onde pensa: o de uma mulher, vítima da opressão e agressão masculinas. Mas seria ingênuo pensar que as questões que apresenta se limitem ao universo das leitoras, embora ela explicitamente atribua a propalada separação entre a biografia e a obra, no sentido de que a qualidade estética pode ser avaliada por si só, aos homens. Eis como escreve: “Quando comecei a explorar esse problema, descobri que críticos masculinos desejavam que a obra permanecesse intocada pela vida.” Na sequência, identificando “male critics” com “a voz da autoridade” desenvolve um parágrafo que parece um petardo endereçado aos axiomas do New Criticism, mas não só.
O ponto que mais me interessou talvez tenha sido o jeito como ela descreve o crime de um homem monstruoso: uma mancha, que vai se espalhando pelo entorno, pela obra. 
Na apresentação do livro na Amazon, lemos: “O que fazer da arte de homens monstruosos? Podemos amar a obra de Roman Polanski e Michael Jackson, Hemingway e Picasso? Deveríamos amá-la?” No artigo, além desses nomes aparece o de Bowie, que desvirginou uma menina de 15 anos. 
O crime de Bowie inclusive lhe parece mais grave na medida em que a menina não sentia que era uma mancha a perda da sua virgindade para um artista que adolescentes (inclusive Claire Dederer, no seu tempo) adoravam. 
Mas voltando ao ponto da mancha. Pensei que a melhor expressão para nomear o que ela descreve talvez fosse “ferrugem”. Porque a ferrugem tem essa propriedade de se espalhar, corroer, como uma espécie de podridão líquida que se derrama em todas as direções.
E fiquei pensando em quais autores eu tinha sentido, por conta da sua biografia, essa ferrugem a corroer a obra. Desses que ela mencionou, fixei-me no caso de Hemingway, um autor que realmente amo – para usar o termo que ela usa. Sucede que li certa vez uma biografia que lançava várias manchas sobre o caráter e mesmo sobre a motivação e origem da obra de Hemingway. Uma péssima biografia, eu creio, escrita por alguém que antipatizava com o autor de modo muito intenso, Anthony Burgess.
Como já se vê, não houve mancha que ali se lançasse sobre o homem Hemingway que se transportasse, no meu julgamento ou afeição, para a obra do autor de “Adeus às armas”. E depois ainda li outras. E sei da antipatia que o escritor desperta em certos meios, dos ecológicos aos feministas, passando por largo espectro. Mas a verdade – talvez por ser eu mesmo um “crítico masculino”, como diz Dederer – é que ainda leio com grande prazer, pela terceira ou décima vez, um conto do autor de “O sol também se levanta”. Ao mesmo motivo alguém poderia atribuir o fato de que nenhuma revelação sobre Salinger, verdadeira ou não, tenha afetado minimamente a minha fascinação pelas suas “Nove histórias”.
Resta agora ler o livro da autora, para ver se a minha insistência em acreditar que “a thing of beauty is a joy for ever” não é, no final das contas, alguma desprezível cumplicidade com monstruosas criaturas.

Serviço: https://www.theguardian.com/books/2023/may/06/can-i-still-listen-to-david-bowie-a-superfans-dilemma?CMP=fb_gu&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR0KST6J8zXD5S5ustvpSzAXS-Jencnx3pBRugeK-tSv0KeHhpAxEeoxRI0&mibextid=Zxz2cZ#Echobox=1683368487

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Leo Vaz

 Alexandre Eulálio conheceu Leo Vaz. Gostava dos seus livros e gostou de saber que eu também. Na verdade, houve uma época em que pensei seriamente em lhe dedicar um trabalho mais longo. Queria escrever – e o faria ainda se tivesse força para isso – um estudo sobre um tipo de literatura que ficou soterrada pela aluvião da herança modernista. Pensava em centrar o trabalho sobre dois livros, “Vida ociosa”, de Godofredo Rangel, e “O professor Jeremias”, de Leo Vaz. Ambos publicados em 1920. Alexandre, como é fácil imaginar, adorou a ideia. Como incentivo, um dia me apareceu com o exemplar cuja foto vai anexada. Eu tinha defendido o mestrado no ano anterior ao da dedicatória. Queria que ele me orientasse, mas ele se recusou. Não tinha formação, dizia. Não era um acadêmico. Era um diletante.

Agora há pouco, arrumando os livros, deparei com esse exemplar meio esquecido. Junto com ele, o primeiro que li do autor, quando ainda era muito jovem, e que Alexandre menciona na dedicatória. Só depois, já durante o mestrado, vim a conhecer essas “Páginas vadias”, e ainda “O misterioso caso de Ritinha”, que era uma segunda edição “sorrateiramente aumentada pelo autor”, como se lia no frontispício.

Ao folhear esses volumes, fiquei matutando. Autores como Leo Vaz e Godofredo Rangel praticamente desapareceram. Do último, houve recentemente uma reedição em grande estilo, que recebi de Wander Melo Miranda. Mas de Leo Vaz não creio que se tenha reeditado nada de modo sistemático. E não tive notícia de estudos universitários sobre esse filão ainda por explorar e avaliar, que foi a prosa que nasceu ao lado ou mesmo antes da modernista e depois correu ao lado dela.
Lembro-me também de ter lido, na época, entre outros, um escritor de Piracicaba, em cujos livros encontrei muita boa matéria para reflexão, principalmente sobre o que eram os serões da pequena classe média nas pensões onde viviam estudantes e funcionários para os quais a cultura literária e linguística era um capital importante para o sucesso e a ascensão possível.

Cheguei a comentar com Antonio Candido sobre esses tópicos de interesse, e foi uma desilusão. Sua resposta foi que aquele escritor especialmente era um chato, que lhe enviava todos os livros, mas que ele nunca tivera paciência de ler. E concluiu que ali, naquele campo em que eu pretendia laborar, pouco haveria de fato de interesse. Não concordei. E não foi por isso que desisti do trabalho e enveredei pela literatura portuguesa. Foi, sim, justamente para escapar de algo que me parecia complicado, que era a assunção dos preconceitos modernistas, na esteira da vaga acusação de “anatolianismo” com que Mário de Andrade, se não estou em erro, fustigou os não-modernistas da linhagem que me interessava.


Em todo caso, trouxe para a mesinha de cabeceira agora à noite o Leo Vaz, mesmo com o risco pulmonar dos farelinhos de papel e dos restos de poeira imbricados nas lombadas. Quem sabe me animo ainda um dia.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Perfis 7 - Antonio Arnoni Prado



Certa vez, numa conversa sobre o Modernismo, de repente perguntei ao Arnoni se ele era da família Prado. Ele parou de falar e dispôs a mão na frente do queixo, num gesto todo seu: só o indicador, meio dobrado, ocultava um pouco do sorriso estranho, no qual os cantos da boca não se erguiam, mas abaixavam num esgar controlado. “Que é isso, companheiro? Sou um prado do Tremembé!” 


Arnoni era homem de poucos gestos, mas expressivos. Gostava de ficar de meio perfil para o interlocutor, olhando de esgueio. Não falava alto nem baixo e tinha uma bela voz. Na verdade, sempre me pareceu que poderia ser ator. Um galã, com rosto quadrado e olhar um tanto enigmático, como se ponderasse com certa hesitação tensa as palavras e os movimentos dos músculos do rosto. 


Tinha na fala o hábito das reticências, que intercalava com uma combinação esparsa de exclamação com interrogação, todas sempre apoiadas num risco de ironia. 


Se dissesse que o temperamento era melancólico não creio que incorresse em erro. Mas talvez valesse mais a pena sublinhar uma certa camada de tinta machadiana, aquela pátina de descrença que a gente vai percebendo ao longo da evolução do escritor, entretanto sem dose de cinismo ou de exibicionismo irônico.
Quando certa vez me socorri do valhacouto dos desamparados, que era a casinha campineira do Haquira Osakabe, Arnoni lá foi parar também. Havia mais dois quartos na parte interna, que ele recusou. Preferia ficar num cômodo alijado, no fundo do quintal. Dava mais certo com ele, afirmou. 


Foi um conviva quase invisível. Vez por outra passava ao lado da janela aberta da salinha de jantar. Eu estava ali, normalmente estudando. Ele cumprimentava, às vezes parava um minuto. Certa vez, parou mais. Falou um pouco de tudo e depois sacou da bolsa um exemplar do Baudelaire, da Pléiade. Estou muito bem acompanhado, me disse, segurando o livro como um amuleto. E se foi.


Não tive tempo de dizer nada, mas se tivesse talvez teria dito que pelo aspecto de ambos não pareciam boa companhia mútua. 


Não tive segunda chance: em poucos dias um de nós deixou o refúgio e depois só nos falamos institucionalmente.


Aliás, creio que essa era a forma preferencial de relação do meu fugaz companheiro da casinha da rua Amélia Bueno.


Apenas uma vez o vi fora da contenção habitual. Foi durante o período mais tenso da vida do departamento. Fundado por Antonio Candido e organizado a partir de um núcleo composto por seus orientandos, vivia o DTL um processo de redefinição. Arnoni, naquela época, se recuperava de alguma lesão nas pernas e caminhava com auxílio psicológico de uma bengala.


Aquilo na verdade lhe caía bem. Ele não fumava cachimbo, que eu soubesse, mas tinha um pouco a boca torta, como se diz dos habituados à arte. Com a bengala, a possível reminiscência do cachimbo ressaltava os traços do rosto e a contenção habitual dos gestos. Parecia um aristocrata.


Mas numa das reuniões nas quais se debatia a herança, o encanto se desfez. Enfrentando um oponente mais ardido, enquanto dirigia palavras num tom de voz grave, alguns decibéis acima do usual, Arnoni foi se aproximando lentamente. Enquanto gesticulava, parecia ter se esquecido do apoio psicológico, que agora se movimentava quase por vontade própria. Em certo momento, como fecho da frase, ergueu a mão direita. E com ela a bengala, que ficou vibrando no ar por alguns segundos densos, pesados como a madeira de que era feito o objeto gesticulante.


O oponente não me lembro se se intimidou, mas Arnoni pareceu surpreso. Não de todo insatisfeito com o gesto, eu creio. Mas num minuto se conteve, voltou a usar a bengala na sua função precípua, apoiou-a no chão, virou sobre os calcanhares e caminhou solenemente de volta ao fundo da sala, onde se sentou.


Eu me lembro de que o olhava entre perplexo e divertido. Estávamos praticamente lado a lado, mas não julguei que a bengala, embora eu estivesse no mesmo campo do interlocutor de há pouco, fosse de novo adquirir vida. Percebendo meu olhar, ele fez o mesmo gesto característico que descrevi no começo da crônica. Ainda parecia um tanto irritado e combativo. Afinal, era um aspecto do legado do Mestre que estava sendo questionado. Mas já se via que o ar fleumático ia ganhando terreno até subir à superfície, na forma de um meio sorriso, entre resignado e cúmplice.


Não o vi muitas vezes depois disso. Minhas atividades na Editora me pouparam de muitas reuniões burocráticas e anódinas. E soube que, naquele bom tempo em que não havia lista de presença nem problemas com ausência, ele também não dava muito as caras por lá.


Quando tive notícia da sua morte, não pude, por conta da minha própria saúde, ir prestar-lhe homenagem. O que faria com gosto e por justiça. Como faço aqui.