Escrevi há alguns dias esta carta a Pedro Marques.
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Mas depois pensei que talvez fosse uma carta que eu poderia endereçar a outras pessoas que estimo, embora não fossem previstas como participantes do nosso diálogo, que muito me honra e gratifica.
Então aqui está. Veremos...
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Meu caro Pedro,
Quando você me convidou para participar de um evento sobre poesia e me pediu um texto com antecedência de algumas semanas, logo pensei que não faria. Porque tenho escrito muito sobre poesia contemporânea e tenho insistido tanto em alguns pontos que me parecem importantes, que temi ser repetitivo, cansativo. Ou, na pior hipótese, confirmar minha cegueira quanto a outros pontos que, vistos de mais longe, podiam ser mais importantes.
Mas, pela estima que tenho por você, eu tentei escrever algo. Mesmo correndo o risco de ser repetitivo.
Entretanto, à medida que eu ia compondo o texto ia me irritando com o formato de artigo acadêmico. Até que desisti.
Pensei, porém, que lhe devia alguma satisfação. Por isso esta carta, na qual digo mais ou menos o que pensava dizer, se estivesse disposto a enfrentar a forma de escrita que chamamos de “artigo”.
Para ir logo ao ponto, a verdade é que nos últimos tempos tenho pensado a questão da poesia contemporânea brasileira a partir de uma experiência nova de leitura para mim: a leitura sem nenhum compromisso nem obrigação, a leitura não como meio para produzir algo, ou com objetivo de compor repertório – mas apenas como gosto, exercício livre de escolha do que fazer com o tempo e a energia de cada ocasião.
E assim tenho aberto e fechado livros.
Numa atitude talvez condenável, após algumas páginas ao acaso, avalio o que tenho em mãos pelo tempo decorrido entre essas duas ações.
Confesso que não me interessa descobrir o “projeto” de um livro, nem mesmo me interessa muito sua situação na obra do autor, muito menos avaliar o seu interesse a partir dessas questões. Leio – vamos dizer assim – selvagemente: em busca daquela emoção de impacto que faça dizer para mim mesmo “caramba! Ouça isto!”.
Talvez seja um defeito surgido com a aposentadoria e afastamento voluntário dos meios intelectuais, especialmente universitários. Mais ou menos como fez o ontem falecido Leonard Cohen quando se internou no mosteiro budista.
E assim como ele voltou depois a compor e a fazer shows, pode ser que eu ainda volte à universidade ou à atividade acadêmica. Mas, se isso ocorrer, com certeza voltarei muito diferente do que me fui moldando ali ao longo de tantas décadas.
Tudo isso para dizer que leio indiferentemente o de hoje e o de ontem. E procuro no de hoje alguma coisa semelhante ao que me sacode o espírito ao reler ainda uma vez a “Ode a uma urna grega” ou “A máquina do mundo” ou os “Quatro quartetos” ou ainda sonetos de Shakespeare ou Camões.
Mas a verdade é que encontro no presente muito pouca coisa em que me regozijar.
Evidentemente eu sei que olhar para um breve intervalo de tempo como o do presente de uma vida de leitura e buscar ali grandeza semelhante à peneirada pelos séculos todos é ingenuidade. Mas um ar de família é o que procuro. E raramente encontro, ainda que opaco.
Por isso me movo às vezes a refletir.
Por exemplo, lembro-me de uma passagem da Autobiografia precoce de Evgeni Evtuchenko. Ele era já um poeta de sucesso, quando numa livraria viu um leitor folhear o seu primeiro livro. Ficou envaidecido, mas o rapaz, depois de folheá-lo, disse à vendedora: “Não é isso que procuro. Tenho uma amiga, uma jovem muito simpática, que perdeu a confiança na vida. Queria achar algo que a ajudasse a reencontrar-se. Mas todos esses poemas nada dizem. São tambores sem ressonância: e nada têm a ver com a vida.” E me lembro também do soneto de Rilke ao torso de Apolo, de cuja contemplação ele extrai a frase que diz mais ou menos: você tem de mudar a sua vida. Para mim, a grande arte sempre nos diz exatamente alguma coisa relevante e nos diz isso mesmo que Rilke escreveu, de várias formas e em vários níveis.
Também me ocorrem algumas perguntas provocativas de Ezra Pound. Esta, sempre: “você se interessaria pela obra de homens cujas percepções gerais estão abaixo do nível comum?” E muito frequentemente me sinto disposto a fazer este exercício, sobre qualquer texto, adaptando o objetivo ao gênero: “Que o aluno examine um determinado texto, digamos, o editorial do dia em um jornal, para ver se o escritor está tentando ocultar alguma coisa; para ver se ele está ‘encobrindo o seu significado’; se está com medo de dizer o que pensa; ou se está tentando dar a impressão de que pensa sem estar pensando em coisa alguma.” Especialmente o último desafio.
Tudo isso para dizer, Pedro, que agora o que me move para a poesia é a busca de uma experiência significativa, de algo que eu olhe e me surpreenda e me ensine não pela técnica isolada e abstratamente considerada, mas pela técnica em ação (se é que me posso expressar assim). Quero dizer: a técnica nunca me pareceu razão suficiente para estimar ou mesmo me interessar por um poema. A não ser como exemplo didático, nos tempos mais formalistas. Porque de duas uma: ou a técnica produz algum efeito além da sua própria exibição, ou não produz e portanto se exibe como perícia vazia, sem objetivo outro que não seja a autocelebração narcisista.
Dizendo de outro modo: se um poema me causa impacto, me emociona ou me comove ou me deslumbra ou me faz perceber que ali está algo que não posso ainda compreender bem, esse poema me parece válido. Mais que válido: necessário! E eu posso, se quiser entender como aquilo me atingiu, ou se quiser compreender o que estava ali para poder incorporar à minha própria prática poética, descer à análise da técnica, dos meios pelo qual se produziu o efeito. Caso contrário, eu posso ter interesse lúdico na questão da técnica, olhar para aquilo e dizer algo sobre o modo de funcionamento. Mas o interesse morre nisso e se não houve um efeito, aquilo é mais ou menos como um esquema, uma equação, ou – na melhor hipótese – uma demonstração convincente de virtuosismo.
Acresce o problema o fato de que a técnica encontrada na maior parte da lírica contemporânea no Brasil é pífia: a impressão que se tem é que ou ao autor falta de fato capacidade de escrita (e eu conheço vários poetas que são poetas porque não conseguiriam escrever um bom texto em prosa) ou falta confiança no seu leitor imaginado, para que possa exercer a sua perícia até o limite e descoberta do novo.
Quanto a isso, um texto que sempre me acompanha como memória de leitura e critério para a vida é o ensaio de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida. Pode mesmo ser que, depois de tanto incorporá-lo, a minha leitura dele seja idiossincrática. Mas em várias ocasiões utilizei aquele conceito de “manual encarnado”, para descrever a produção poética que traz à tona o tempo todo uma consciência escolar do que terá sido ou deveria ter sido a evolução da poesia nacional ou universal, e indicações sobre a situação daquele poema ou mesmo daquele poeta na tradição de que se julga o herdeiro, mas é talvez apenas o escravo mal formado.
Por tudo isso, com essas referências de base, é claro que me sinto agora (quando elas me acompanham e frequentam até mais do que antes) um estranho no ninho da academia. Daí a dificuldade de redigir um texto no qual debata a poesia contemporânea: porque sou cada vez menos contemporâneo, cada vez (na verdade) menos interessado em ser contemporâneo. Ou talvez pudesse mesmo dizer: cada vez mais decidido a não ser contemporâneo.
Mas quando você me convidou e eu comecei a rabiscar um texto, comecei, como sempre, pelo mais óbvio. Pela pergunta que já me fiz em várias ocasiões e em vários artigos, a ponto de parecer tedioso: o que significa escrever hoje em linhas quebradas, que não vão até o final da página? Essa questão pode desdobrar-se facilmente em outra: se há significado nisso (e é de pressupor-se que haja), qual o critério para o corte das linhas?
Apresentada assim a questão pode parecer rasa ou banal. Mas eu não sinto que seja. Pelo contrário, acho que é a pergunta que todo poeta devia fazer a si mesmo. E que os críticos não deveriam deixar de lado na aproximação a um texto que interesse ou sobre o qual se sinta obrigado a falar.
E aqui volta a questão da técnica e do efeito: quando leio um poema contemporâneo, ele pode me emocionar ou não.
Se não me emociona, o que me resta além de ver que as linhas estão partidas e que isso indica verso e reclama uma disposição de leitura específica?
Se não me emocionou de imediato, posso considerá-lo objetivamente e “analisá-lo”, em busca da razão e da motivação para a sua existência e para a sua forma particular.
No caso da partição das linhas, por exemplo, posso pensar: ok, isto se apresenta como poema, pede uma leitura como poema, mas não me emociona – então vamos ver que mais descubro aqui, por que está assim, o que o poeta pode ter almejado e que não consegui repercutir? E se não consigo motivar as quebras, não consigo obter pela análise aquela emoção que não senti quando fui submetido à técnica sem olhar diretamente para ela, o que me resta fazer com esse poema, senão deixá-lo dormir no livro fechado?
Nesse ponto, já que isto é uma carta e não um artigo, posso fazer uma digressão. É que eu sempre comparo a leitura de poemas à audição de música – clássica ou popular, tanto faz. Quando ouço, por exemplo, Mozart ou Leonard Cohen, não me preocupo com questões de técnica. Deixo a música atuar sobre mim e sigo o fluxo da emoção. Somente depois, se aquilo me comoveu bastante, a audição repetida pode ensejar a análise, que é mais uma curiosidade intelectual para ver como se produziu a mágica ou então um meio de refinar a percepção, pela contemplação de eventos que tinham ficado por assim dizer submersos na massa sonora que me impressionou como um todo.
Quando, porém, leio poesia contemporânea raras vezes sinto significativa emoção estética. A maior parte dessa poesia parece girar à volta de si mesma, à volta da proclamação do seu poder ou da sua excelência ou da sua falência ou da sua função de resistência etc. Quando não gira à volta de outra coisa mais fácil, que é a proclamação da sua modernidade, da sua conformação ao que o poeta imagina ser o desenvolvimento da lírica ocidental, onde encaixa e justifica a sua prática e o seu estilo.
Muitas vezes me pergunto, Pedro, se em outros tempos eu teria sentido de forma diferente a poesia com que conviveria. Pode ser que seja ilusão, mas eu creio que sim, que até há algum tempo (digamos cerca de 60 ou 70 anos) a poesia podia ter ainda poucos leitores, mas sua importância social era maior. Um poeta não era apenas um fazedor de versos, mas alguém que tinha algo a dizer. Sobretudo, um poeta era alguém em quem valia a pena prestar atenção, porque mostrava alguma coisa com palavras. Alguma coisa que podia ser uma forma de ver o cotidiano banal (e redimido pela poesia), ou os grandes movimentos convulsivos da sociedade do tempo. Não é preciso recuar muito. Penso, por exemplo, em Neruda, em Pound e em Maiakovski. Em Drummond. Em Bandeira e mesmo Vinicius de Moraes.
É claro que imagino que essa forma de expor a questão da poesia contemporânea possa ser acusada de tardo-romântica. Ao expô-la, alguém poderia, por exemplo, dizer que ainda tenho por modelo Victor Hugo, o bardo; e não Mallarmé, o sacerdote segregado. E que minha escolha da tradição modernista continua esse modelo eletivo, na medida que meus poetas preferidos são os que desenvolveram uma poesia de intervenção ou de meditação sobre o mundo contemporâneo sub specie aeternitates.
Mas mesmo que seja isso, daí decorre uma pergunta legítima, que só pode ser realmente desqualificada por esprit de corps: qual o sentido de escrever poesia hoje? Ou: o que significa escrever poesia hoje? Sem contar com esta, mais simples: para quem escrever poesia hoje?
É claro que conheço as respostas usuais, a que já me referi, e que se baseiam ou no elogio da poesia como resistência, ou na celebração da comunidade dos eleitos. Mas elas não bastam. Para mim, não bastam, pois eu me pareço um pouco com aquele comprador do livro do Evtuchenko, com a diferença de que a amiga que perdeu a confiança na vida sou eu mesmo.
E por isso agora, livre das amarras do bem-pensar acadêmico, posso dar completa vazão ao que sempre julguei ser a questão realmente importante, decisiva para a continuidade da leitura, que é esta: o que este sujeito tem a me dizer? Do que ele fala? Por que ele julga que eu possa me interessar por isso a ponto de continuar a ler ou a comprar o seu livro? Qual o interesse da percepção de mundo dessa pessoa, para que eu a leia em verso? E claro: por que isso vem até mim em verso? O que significa vir em verso e não em prosa ficcional ou em esquema ou mesmo em prosa analítica didática?
Sobre isso poderíamos conversar. Mas é exatamente sobre isso que tenho escrito já várias vezes, de modo que me tornaria muito repetitivo. E cansativo, por certo.
Quanto a mim, porém, é a única questão quer realmente importa.
Por fim, valendo-me do fato de que numa carta pessoal não é preciso ter uma sequência ordenada de argumentos, queria terminar pela transcrição de um tratado de teatro japonês, escrito pelo grande Zeami.
Sobre o Nô, ele escreveu esta passagem espantosamente lúcida e precisa, que eu acho que se pode aplicar a toda arte:
No que se refere ao Nô, é preciso saber o que é substância [tai = corpo] e efeito imediato [yô = aparência]. A substância pode ser comparada à flor; o efeito, ao perfume. O mesmo com relação à lua e sua claridade. Quando tiveres assimilado perfeitamente a substância, o efeito se apresentará por si só. Ora, o conhecedor vê o Nô com o espírito; o não-conhecedor, com os olhos. O que se vê com o espírito é a substância. O que se vê com os olhos é o efeito. Assim, o estreante vê o efeito e o imita. Trata-se de uma imitação que desconhece o princípio do efeito. O efeito é por definição inimitável. Aquele que conhece o Nô imita sua substância, pois o vê com o espírito. A imitação correta da substância contém o efeito secundário. Quando o não-conhecedor imita o efeito, que ele imagina ser o estilo a tomar como modelo, ele ignora que, ao ser imitado, o efeito se torna substância. Como não se trata de substância autêntica, substância e efeito lhe escapam definitivamente e não subsiste aí nada do estilo [que o iniciante tomou por modelo]. Em tal caso se diz que se trata de Nô sem Lei nem Caminho.
E eu acredito, ainda, que essa passagem possa ser colocada ao lado da reflexão de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida – no que diz respeito aos “manuais encarnados”.
E agora, para encerrar esta longuíssima carta, Pedro, queria dizer que creio que boa parte do desinteresse que tem para mim a enorme maioria da poesia contemporânea venha de algo que pode ser compreendido a partir desse excerto do tratado de Zeami.
Portanto, como vê, eu não teria mesmo muita coisa para dizer sobre a poesia de hoje no Brasil. Ou talvez pudesse apenas fazer alguns exercícios sobre poemas publicados, indagando pela função do corte e do desenho dos versos, como já fiz, aliás, num texto que resultou um tanto antipático.
E por ser assim, em vez de redigir um artigo em grande parte repetitivo, optei por lhe agradecer a convocação e lhe escrever de modo solto as questões que, simultaneamente, me interessam muito e me fazem declinar do convite de redigir um paper para ser apresentado no congresso que organiza.
Um grande abraço,
Paulo
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Mas depois pensei que talvez fosse uma carta que eu poderia endereçar a outras pessoas que estimo, embora não fossem previstas como participantes do nosso diálogo, que muito me honra e gratifica.
Então aqui está. Veremos...
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Meu caro Pedro,
Quando você me convidou para participar de um evento sobre poesia e me pediu um texto com antecedência de algumas semanas, logo pensei que não faria. Porque tenho escrito muito sobre poesia contemporânea e tenho insistido tanto em alguns pontos que me parecem importantes, que temi ser repetitivo, cansativo. Ou, na pior hipótese, confirmar minha cegueira quanto a outros pontos que, vistos de mais longe, podiam ser mais importantes.
Mas, pela estima que tenho por você, eu tentei escrever algo. Mesmo correndo o risco de ser repetitivo.
Entretanto, à medida que eu ia compondo o texto ia me irritando com o formato de artigo acadêmico. Até que desisti.
Pensei, porém, que lhe devia alguma satisfação. Por isso esta carta, na qual digo mais ou menos o que pensava dizer, se estivesse disposto a enfrentar a forma de escrita que chamamos de “artigo”.
Para ir logo ao ponto, a verdade é que nos últimos tempos tenho pensado a questão da poesia contemporânea brasileira a partir de uma experiência nova de leitura para mim: a leitura sem nenhum compromisso nem obrigação, a leitura não como meio para produzir algo, ou com objetivo de compor repertório – mas apenas como gosto, exercício livre de escolha do que fazer com o tempo e a energia de cada ocasião.
E assim tenho aberto e fechado livros.
Numa atitude talvez condenável, após algumas páginas ao acaso, avalio o que tenho em mãos pelo tempo decorrido entre essas duas ações.
Confesso que não me interessa descobrir o “projeto” de um livro, nem mesmo me interessa muito sua situação na obra do autor, muito menos avaliar o seu interesse a partir dessas questões. Leio – vamos dizer assim – selvagemente: em busca daquela emoção de impacto que faça dizer para mim mesmo “caramba! Ouça isto!”.
Talvez seja um defeito surgido com a aposentadoria e afastamento voluntário dos meios intelectuais, especialmente universitários. Mais ou menos como fez o ontem falecido Leonard Cohen quando se internou no mosteiro budista.
E assim como ele voltou depois a compor e a fazer shows, pode ser que eu ainda volte à universidade ou à atividade acadêmica. Mas, se isso ocorrer, com certeza voltarei muito diferente do que me fui moldando ali ao longo de tantas décadas.
Tudo isso para dizer que leio indiferentemente o de hoje e o de ontem. E procuro no de hoje alguma coisa semelhante ao que me sacode o espírito ao reler ainda uma vez a “Ode a uma urna grega” ou “A máquina do mundo” ou os “Quatro quartetos” ou ainda sonetos de Shakespeare ou Camões.
Mas a verdade é que encontro no presente muito pouca coisa em que me regozijar.
Evidentemente eu sei que olhar para um breve intervalo de tempo como o do presente de uma vida de leitura e buscar ali grandeza semelhante à peneirada pelos séculos todos é ingenuidade. Mas um ar de família é o que procuro. E raramente encontro, ainda que opaco.
Por isso me movo às vezes a refletir.
Por exemplo, lembro-me de uma passagem da Autobiografia precoce de Evgeni Evtuchenko. Ele era já um poeta de sucesso, quando numa livraria viu um leitor folhear o seu primeiro livro. Ficou envaidecido, mas o rapaz, depois de folheá-lo, disse à vendedora: “Não é isso que procuro. Tenho uma amiga, uma jovem muito simpática, que perdeu a confiança na vida. Queria achar algo que a ajudasse a reencontrar-se. Mas todos esses poemas nada dizem. São tambores sem ressonância: e nada têm a ver com a vida.” E me lembro também do soneto de Rilke ao torso de Apolo, de cuja contemplação ele extrai a frase que diz mais ou menos: você tem de mudar a sua vida. Para mim, a grande arte sempre nos diz exatamente alguma coisa relevante e nos diz isso mesmo que Rilke escreveu, de várias formas e em vários níveis.
Também me ocorrem algumas perguntas provocativas de Ezra Pound. Esta, sempre: “você se interessaria pela obra de homens cujas percepções gerais estão abaixo do nível comum?” E muito frequentemente me sinto disposto a fazer este exercício, sobre qualquer texto, adaptando o objetivo ao gênero: “Que o aluno examine um determinado texto, digamos, o editorial do dia em um jornal, para ver se o escritor está tentando ocultar alguma coisa; para ver se ele está ‘encobrindo o seu significado’; se está com medo de dizer o que pensa; ou se está tentando dar a impressão de que pensa sem estar pensando em coisa alguma.” Especialmente o último desafio.
Tudo isso para dizer, Pedro, que agora o que me move para a poesia é a busca de uma experiência significativa, de algo que eu olhe e me surpreenda e me ensine não pela técnica isolada e abstratamente considerada, mas pela técnica em ação (se é que me posso expressar assim). Quero dizer: a técnica nunca me pareceu razão suficiente para estimar ou mesmo me interessar por um poema. A não ser como exemplo didático, nos tempos mais formalistas. Porque de duas uma: ou a técnica produz algum efeito além da sua própria exibição, ou não produz e portanto se exibe como perícia vazia, sem objetivo outro que não seja a autocelebração narcisista.
Dizendo de outro modo: se um poema me causa impacto, me emociona ou me comove ou me deslumbra ou me faz perceber que ali está algo que não posso ainda compreender bem, esse poema me parece válido. Mais que válido: necessário! E eu posso, se quiser entender como aquilo me atingiu, ou se quiser compreender o que estava ali para poder incorporar à minha própria prática poética, descer à análise da técnica, dos meios pelo qual se produziu o efeito. Caso contrário, eu posso ter interesse lúdico na questão da técnica, olhar para aquilo e dizer algo sobre o modo de funcionamento. Mas o interesse morre nisso e se não houve um efeito, aquilo é mais ou menos como um esquema, uma equação, ou – na melhor hipótese – uma demonstração convincente de virtuosismo.
Acresce o problema o fato de que a técnica encontrada na maior parte da lírica contemporânea no Brasil é pífia: a impressão que se tem é que ou ao autor falta de fato capacidade de escrita (e eu conheço vários poetas que são poetas porque não conseguiriam escrever um bom texto em prosa) ou falta confiança no seu leitor imaginado, para que possa exercer a sua perícia até o limite e descoberta do novo.
Quanto a isso, um texto que sempre me acompanha como memória de leitura e critério para a vida é o ensaio de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida. Pode mesmo ser que, depois de tanto incorporá-lo, a minha leitura dele seja idiossincrática. Mas em várias ocasiões utilizei aquele conceito de “manual encarnado”, para descrever a produção poética que traz à tona o tempo todo uma consciência escolar do que terá sido ou deveria ter sido a evolução da poesia nacional ou universal, e indicações sobre a situação daquele poema ou mesmo daquele poeta na tradição de que se julga o herdeiro, mas é talvez apenas o escravo mal formado.
Por tudo isso, com essas referências de base, é claro que me sinto agora (quando elas me acompanham e frequentam até mais do que antes) um estranho no ninho da academia. Daí a dificuldade de redigir um texto no qual debata a poesia contemporânea: porque sou cada vez menos contemporâneo, cada vez (na verdade) menos interessado em ser contemporâneo. Ou talvez pudesse mesmo dizer: cada vez mais decidido a não ser contemporâneo.
Mas quando você me convidou e eu comecei a rabiscar um texto, comecei, como sempre, pelo mais óbvio. Pela pergunta que já me fiz em várias ocasiões e em vários artigos, a ponto de parecer tedioso: o que significa escrever hoje em linhas quebradas, que não vão até o final da página? Essa questão pode desdobrar-se facilmente em outra: se há significado nisso (e é de pressupor-se que haja), qual o critério para o corte das linhas?
Apresentada assim a questão pode parecer rasa ou banal. Mas eu não sinto que seja. Pelo contrário, acho que é a pergunta que todo poeta devia fazer a si mesmo. E que os críticos não deveriam deixar de lado na aproximação a um texto que interesse ou sobre o qual se sinta obrigado a falar.
E aqui volta a questão da técnica e do efeito: quando leio um poema contemporâneo, ele pode me emocionar ou não.
Se não me emociona, o que me resta além de ver que as linhas estão partidas e que isso indica verso e reclama uma disposição de leitura específica?
Se não me emocionou de imediato, posso considerá-lo objetivamente e “analisá-lo”, em busca da razão e da motivação para a sua existência e para a sua forma particular.
No caso da partição das linhas, por exemplo, posso pensar: ok, isto se apresenta como poema, pede uma leitura como poema, mas não me emociona – então vamos ver que mais descubro aqui, por que está assim, o que o poeta pode ter almejado e que não consegui repercutir? E se não consigo motivar as quebras, não consigo obter pela análise aquela emoção que não senti quando fui submetido à técnica sem olhar diretamente para ela, o que me resta fazer com esse poema, senão deixá-lo dormir no livro fechado?
Nesse ponto, já que isto é uma carta e não um artigo, posso fazer uma digressão. É que eu sempre comparo a leitura de poemas à audição de música – clássica ou popular, tanto faz. Quando ouço, por exemplo, Mozart ou Leonard Cohen, não me preocupo com questões de técnica. Deixo a música atuar sobre mim e sigo o fluxo da emoção. Somente depois, se aquilo me comoveu bastante, a audição repetida pode ensejar a análise, que é mais uma curiosidade intelectual para ver como se produziu a mágica ou então um meio de refinar a percepção, pela contemplação de eventos que tinham ficado por assim dizer submersos na massa sonora que me impressionou como um todo.
Quando, porém, leio poesia contemporânea raras vezes sinto significativa emoção estética. A maior parte dessa poesia parece girar à volta de si mesma, à volta da proclamação do seu poder ou da sua excelência ou da sua falência ou da sua função de resistência etc. Quando não gira à volta de outra coisa mais fácil, que é a proclamação da sua modernidade, da sua conformação ao que o poeta imagina ser o desenvolvimento da lírica ocidental, onde encaixa e justifica a sua prática e o seu estilo.
Muitas vezes me pergunto, Pedro, se em outros tempos eu teria sentido de forma diferente a poesia com que conviveria. Pode ser que seja ilusão, mas eu creio que sim, que até há algum tempo (digamos cerca de 60 ou 70 anos) a poesia podia ter ainda poucos leitores, mas sua importância social era maior. Um poeta não era apenas um fazedor de versos, mas alguém que tinha algo a dizer. Sobretudo, um poeta era alguém em quem valia a pena prestar atenção, porque mostrava alguma coisa com palavras. Alguma coisa que podia ser uma forma de ver o cotidiano banal (e redimido pela poesia), ou os grandes movimentos convulsivos da sociedade do tempo. Não é preciso recuar muito. Penso, por exemplo, em Neruda, em Pound e em Maiakovski. Em Drummond. Em Bandeira e mesmo Vinicius de Moraes.
É claro que imagino que essa forma de expor a questão da poesia contemporânea possa ser acusada de tardo-romântica. Ao expô-la, alguém poderia, por exemplo, dizer que ainda tenho por modelo Victor Hugo, o bardo; e não Mallarmé, o sacerdote segregado. E que minha escolha da tradição modernista continua esse modelo eletivo, na medida que meus poetas preferidos são os que desenvolveram uma poesia de intervenção ou de meditação sobre o mundo contemporâneo sub specie aeternitates.
Mas mesmo que seja isso, daí decorre uma pergunta legítima, que só pode ser realmente desqualificada por esprit de corps: qual o sentido de escrever poesia hoje? Ou: o que significa escrever poesia hoje? Sem contar com esta, mais simples: para quem escrever poesia hoje?
É claro que conheço as respostas usuais, a que já me referi, e que se baseiam ou no elogio da poesia como resistência, ou na celebração da comunidade dos eleitos. Mas elas não bastam. Para mim, não bastam, pois eu me pareço um pouco com aquele comprador do livro do Evtuchenko, com a diferença de que a amiga que perdeu a confiança na vida sou eu mesmo.
E por isso agora, livre das amarras do bem-pensar acadêmico, posso dar completa vazão ao que sempre julguei ser a questão realmente importante, decisiva para a continuidade da leitura, que é esta: o que este sujeito tem a me dizer? Do que ele fala? Por que ele julga que eu possa me interessar por isso a ponto de continuar a ler ou a comprar o seu livro? Qual o interesse da percepção de mundo dessa pessoa, para que eu a leia em verso? E claro: por que isso vem até mim em verso? O que significa vir em verso e não em prosa ficcional ou em esquema ou mesmo em prosa analítica didática?
Sobre isso poderíamos conversar. Mas é exatamente sobre isso que tenho escrito já várias vezes, de modo que me tornaria muito repetitivo. E cansativo, por certo.
Quanto a mim, porém, é a única questão quer realmente importa.
Por fim, valendo-me do fato de que numa carta pessoal não é preciso ter uma sequência ordenada de argumentos, queria terminar pela transcrição de um tratado de teatro japonês, escrito pelo grande Zeami.
Sobre o Nô, ele escreveu esta passagem espantosamente lúcida e precisa, que eu acho que se pode aplicar a toda arte:
No que se refere ao Nô, é preciso saber o que é substância [tai = corpo] e efeito imediato [yô = aparência]. A substância pode ser comparada à flor; o efeito, ao perfume. O mesmo com relação à lua e sua claridade. Quando tiveres assimilado perfeitamente a substância, o efeito se apresentará por si só. Ora, o conhecedor vê o Nô com o espírito; o não-conhecedor, com os olhos. O que se vê com o espírito é a substância. O que se vê com os olhos é o efeito. Assim, o estreante vê o efeito e o imita. Trata-se de uma imitação que desconhece o princípio do efeito. O efeito é por definição inimitável. Aquele que conhece o Nô imita sua substância, pois o vê com o espírito. A imitação correta da substância contém o efeito secundário. Quando o não-conhecedor imita o efeito, que ele imagina ser o estilo a tomar como modelo, ele ignora que, ao ser imitado, o efeito se torna substância. Como não se trata de substância autêntica, substância e efeito lhe escapam definitivamente e não subsiste aí nada do estilo [que o iniciante tomou por modelo]. Em tal caso se diz que se trata de Nô sem Lei nem Caminho.
E eu acredito, ainda, que essa passagem possa ser colocada ao lado da reflexão de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida – no que diz respeito aos “manuais encarnados”.
E agora, para encerrar esta longuíssima carta, Pedro, queria dizer que creio que boa parte do desinteresse que tem para mim a enorme maioria da poesia contemporânea venha de algo que pode ser compreendido a partir desse excerto do tratado de Zeami.
Portanto, como vê, eu não teria mesmo muita coisa para dizer sobre a poesia de hoje no Brasil. Ou talvez pudesse apenas fazer alguns exercícios sobre poemas publicados, indagando pela função do corte e do desenho dos versos, como já fiz, aliás, num texto que resultou um tanto antipático.
E por ser assim, em vez de redigir um artigo em grande parte repetitivo, optei por lhe agradecer a convocação e lhe escrever de modo solto as questões que, simultaneamente, me interessam muito e me fazem declinar do convite de redigir um paper para ser apresentado no congresso que organiza.
Um grande abraço,
Paulo