quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Machado de Assis: Dom Casmurro




A recepção recente de Dom Casmurro*

Se considerarmos a história da leitura de Dom Casmurro a partir daquilo que Abel Barros Baptista denominou “a ficção do tribunal” (Baptista, 2003, p. 375), ela pode ser dividida em três momentos.No primeiro deles, Capitu está no banco dos réus e o veredicto de sua culpa parece unânime. Por exemplo, veja-se esta formulação de Lúcia Miguel Pereira, datada de 1936: “Capitu, se traiu o marido, foi culpada – ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? é a pergunta que resume o livro.” (Pereira, 1949, p. 175)
Aparentemente há aí uma modalização. “Se traiu”, diz a crítica, deixando aberta a possibilidade de Capitu não ter traído. Ora, se a pergunta que resume o livro é se a traição foi praticada por vontade livre ou foi determinada pela hereditariedade, a existência da mesma não é objeto de dúvida. O condicional, assim, origina uma formulação contraditória, que mostra a que ponto o consenso crítico resumia a questão do livro na questão da traição de Capitu.
Outro testemunho do consenso é esta passagem assinada por um crítico ainda lido, Augusto Meyer, que, em 1947, centrando a atenção no caráter pérfido de Capitu, assim respondia à indagação de Lúcia Miguel Pereira: “Capitu mente como transpira, por necessidade orgânica. [...] Em Capitu, há um fundo vertiginoso de amoralidade que atinge as raias da inocência animal. Fêmea feita de desejo e de volúpia, de energia livre, sem desfalecimentos morais, não sabe o que seja o senso da culpa ou do pecado.” (Meyer, 1986, p. 224)
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O segundo momento se inaugura com o livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis, publicado nos Estados Unidos em 1960. É bem conhecido o passo em que a crítica propõe a leitura do romance do Casmurro como uma peça judicial destinada à condenação de Capitu e se apresenta como advogada de defesa da ré:

[...] no final de sua estória [...] o porquê de publicar nos atinge em cheio. Os capítulos CXXXVIII–CXL estão permeados de um ar de tribunal. Capitu está no banco dos réus. [...] No capítulo final (CXLVIII), o leitor percebe em sobressalto que foi convocado como jurado. A “narrativa” de Santiago não passa de uma longa defesa em causa própria. [...] O argumento funciona da seguinte forma: ele, Santiago, não é ciumento sem causa; ele não executou uma vingança injusta: Capitu é culpada. Caso os leitores o julguem inocente, ele estará limpo a seus próprios olhos (Caldwell, 2002, p. 99). [...] Praticamente três gerações – pelo menos de críticos – julgaram Capitu culpada. Permitam-nos reabrir o caso. (Caldwell, 2002, p.100).

Assumir o papel de advogada de defesa de Capitu, por meio do desmonte da narrativa de Bento, não é, entretanto, uma empresa sem custos e sem riscos. Isso se percebe desde logo, quando se anunciam as duas questões que resumiriam o foco do livro: a principal – “a heroína é culpada de adultério?” – e a subsidiária – “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?” (Caldwell, 2002, p. 13).
Essas questões, porém, se anulam mutuamente (Baptista, 2003, p. 371). Se a última subsistir, a primeira não poderá ter resposta. Ou, dizendo de outra forma: se a decisão de fato dependesse só do leitor, então nunca seria possível concluir com certeza pela culpa ou inocência da heroína. Mesmo sem desenvolver esse ponto, queria notar que o tribunal continua ativo, com a substituição do acusado.
O movimento da advogada Caldwell é, entretanto, mais complexo do que a simples substituição do acusado. Se ela retira Capitu do banco dos réus e ali coloca Bento, ao mesmo tempo toma precauções para que, ao enviar Bento para essa posição, não envie junto o autor Machado de Assis.
O ponto não é de importância pequena, pois a partir do momento em que o autor fictício Bento Santiago passa a ser julgado, o autor real, que lhe delegou integralmente a palavra, pode também ficar sob suspeita. Na verdade, sem eliminar a suspeita sobre o autor real, não é possível afirmar seja a inocência de Capitu, seja a culpa de Bento.
A forma de Caldwell resolver o impasse e afastar o perigo é postular que Machado teria deixado pistas, ao longo do livro, para indicar ao leitor que ele deve desconfiar da narrativa de Bento. Ou seja, para indicar-lhe o rumo da leitura correta, que é a que estaria de acordo com o desígnio autoral. Machado, dessa forma, não apenas deixa de ser suspeito de compactuar com Bento, mas é chamado a júri como testemunha de acusação. Vai sem dizer que essa forma de conceber a atuação de Machado anula a questão subsidiária, acima referida, pois na verdade não haveria liberdade de decisão do leitor, já que existe uma intenção autoral a sinalizar a opção correta, por intermédio de sinais semeados ao longo do livro.
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A defesa de Machado e sua oposição a Bento ganham novo fôlego com um artigo de Silviano Santiago – o primeiro texto brasileiro escrito sob o influxo direto do livro de Caldwell. (1)
Machado, diz Santiago, era um “intelectual consciente e probo, espírito crítico dos mais afilados, perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira” (Santiago, 2000, p. 46). Não há como confundi-lo, portanto, com o Casmurro reacionário. A delegação da voz narrativa, a partir desse pressuposto, começa a ser entendida ironicamente, como mimese crítica dos defeitos da sociedade brasileira.
Estava inaugurada assim uma linha de leitura que tenderia a tornar-se dominante, ao longo dos anos seguintes e até há bem pouco tempo, na leitura do romance.
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John Gledson dará continuidade e desenvolvimento às linhas abertas por Caldwell e Silviano Santiago, dedicando-se com afinco ao levantamento e interpretação de todos os elementos que pudessem ser entendidos como pistas da intenção de Machado e da leitura correta do romance.
E de tal forma, que termina por retomar, de Caldwell, a tese de que Dom Casmurro não é propriamente um romance de primeira pessoa, pois a delegação da voz narrativa não se faz inteiramente. Para a crítica americana, “o episódio do panegírico expõe o temor de Machado de que o júri tome o partido de Santiago e o deixe impune. Porém, se desempenharmos nosso papel como leitores, o papel que nos é atribuído por Machado, perceberemos que Santiago não é o autor do livro” (Caldwell, 2002, p. 204). Gledson, por sua vez, afirma: “é inteiramente falso pensar ser adequado classificar Dom Casmurro, acima de tudo, como narrativa de primeira pessoa e, portanto, agrupá-lo com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires, por oposição a Quincas Borba e Esaú e Jacó.” (Gledson, 1991, p.22)
Ora, o problema é conciliar a história da leitura do livro com a eficácia das indicações de intenção de autor, que desmascarariam o Casmurro. Se elas fossem eficazes, a leitura do livro não teria sido a que foi até o aparecimento de Helen Caldwell. E se elas não foram eficazes, isso se deveria a um defeito de execução da obra ou ainda a uma segunda intenção do autor?
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A lógica do tribunal produz a conclusão fatal, em dois textos de Roberto Schwarz, escritos em 1990, “A poesia envenenada de Dom Casmurro” e Um mestre na periferia do capitalismo – que explicam a insuficiência das indicações de intenção como desígnio objetivo de enganar o leitor.
Vejamos um trecho de cada um.

Primeiro, de Um mestre…:

por estratagema artístico, o Autor adota a respeito uma posição insustentável, que entretanto é de aceitação comum. Ora, a despeito de toda a mudança havida, uma parte substancial daqueles termos de dominação permanece em vigor cento e dez anos depois, com o sentimento de normalidade correlato, o que talvez explique a obnubilação coletiva dos leitores, que o romance machadiano, mais atual e oblíquo do que nunca, continua a derrotar. (Schwarz, 1990, p. 12).

Segundo, de A poesia envenenada:

O livro [Dom Casmurro] tem algo de armadilha, com lição crítica incisiva – isso se a cilada for percebida como tal [...]. Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norte-americana (por ser mulher? por ser estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago – o Casmurro – com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis. [...] / Também o avanço seguinte se deveu a um crítico de fora, John Gledson, num livro cheio de perspicácia e espírito democrático. (Schwarz, 1997, pp. 9 e 11).

Schwarz leva às últimas consequências a ideia de um romance escrito não só contra o autor fictício, mas principalmente contra o leitor.
É certo que a ideia estava em Gledson, já no título do seu livro em inglês – muito mais sutil do que o da edição brasileira.(2) Mas para Gledson, o logro se reduzia à encenação dos preconceitos de classe e também dos desvarios de uma mente dominada pela paixão. E era um logro, por assim dizer, pedagógico, pois ao mesmo tempo em que mimetizava os preconceitos em vigor na sociedade brasileira, fornecia pistas para que o leitor pudesse perceber os limites desses mesmos preconceitos. Por isso mesmo, o estudioso inglês pôde terminar o seu livro de 1984 de uma forma otimista, quanto à relação de Machado com o seu leitor, atribuindo ao romance um efeito ou intenção terapêutica:

Acostumados como estamos à ideia de que o papel do filósofo é em grande parte crítico – ou seja, o de destruir hábitos mentais arraigados e errôneos –, talvez seja conveniente ver Dom Casmurro como uma peça de ficção, útil e destrutiva sob essa forma. E nessa medida o igual, sim, cura o igual: o livro nos agarra – ou deveria agarrar – em algum ponto, fazendo-nos reconhecer Bento como nosso irmão. Quando percebemos todas as ilações desse fato, é que o romance começa a produzir sua cura. (Gledson, 1991, pp. 182-3)

A novidade do ensaio de Schwarz é que, da sua ótica, o leitor (ao menos o leitor comum) já não é jurado e muito menos destinatário de uma ação curativa. Junto com Bento, senta-se agora no banco dos réus o leitor homem, brasileiro, católico (e presumivelmente sem perspicácia nem espírito democrático). E sua pena é dupla: é condenado como cúmplice de Bento e ridicularizado como objeto da ironia da composição machadiana.
Este terceiro momento da ficção do tribunal é um desdobramento coerente da lógica do paradigma inaugurado por Caldwell, embora seja um desdobramento incômodo. A ponto de Gledson, sentindo a amplitude e o peso da acusação, ver-se compelido a escrever, em Por um novo Machado de Assis:

Embora a descrição de Roberto Schwarz do tipo de elite que ele representa seja exata, Bento é um personagem com quem muitos leitores, e não só por causa de um compromisso ideológico subconsciente com a elite brasileira (só posso citar a mim mesmo como evidência), se identificarão, em um ou em vários níveis. (Gledson, 2006, pp. 182-3)

Mas essa é uma resposta à questão menor. Nos textos de Schwarz de 1990, o leitor corre o risco ou está sob suspeita de compactuar com Bento em questões e preconceitos muito amplos. Seu argumento vai muito além do de Gledson. O leitor agora deve responder não somente pela identificação com o lugar de classe de Bento, mas também pela adesão (que também parece decorrer daquela primeira) a um determinado tipo de discurso literário.
Nas suas palavras: “a transformação dessas emoções regressivas [de Dom Casmurro] em padrão de elegância literária, com vasta aceitação nacional, foi um dos sarcasmos máximos da arte de Machado.” (Schwarz, 1990, p. 96).
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Aqui reponta a verdadeira questão do volume Duas meninas, de 1997, que conjuga esse ensaio sobre Dom Casmurro e o dedicado a Minha vida de menina, de Helena Morley, revelando a plena implicação do primeiro.
À primeira vista, o eixo do livro é o paralelo entre as personagens femininas. Mas essa seria uma comparação desde logo destinada ao fracasso, literariamente falando, já que a personagem de Helena Morley nos chega por meio de um discurso em primeira pessoa, enquanto Capitu não tem voz no romance de Machado, senão por intermédio de Bento – que Gledson e Schwarz já se esforçaram por mostrar inconfiável e manipulador. Ou seja, nos próprios termos em que a questão se apresenta para Schwarz, se tudo o que o Casmurro conta é manipulado, como erguer sobre esse mesmo relato um retrato confiável de Capitu que pudesse comparar-se ao que Helena Morley traça de si mesma? Tudo o que se poderia contrastar, nesse caso, portanto, seriam duas construções alegóricas do liberalismo ou do impulso modernizador.
Schwarz não recua, porém, perante a dificuldade e o despropositado da comparação. Porque, na verdade, não é esse o foco dos ensaios, e sim a questão maior do cânone literário brasileiro. Mais especificamente, do cânone da prosa brasileira.
Uma afirmação como Minha vida de menina “é um dos livros bons da literatura brasileira, e não há quase nada à sua altura em nosso século XIX, se deixarmos de lado Machado de Assis” (Schwarz, 1997, p. 47) precisa ser bem meditada.
A começar pela consideração do fato de que esse livro do século XIX só foi publicado em 1942 – o que desde logo coloca vários problemas, desde a data efetiva da composição, até a forma que recebeu para a publicação, bem como o momento em que foi pela primeira vez lido como documento oriundo do XIX. Schwarz é o primeiro a perceber o perigo do terreno, tanto que faz um inventário completo das possibilidades de estar analisando não um texto do século XIX, mas uma contrafação modernista.
A questão da autoria e da datação de Minha vida de menina, porém, não frutifica, antes se dissolve ao longo do ensaio, que se organiza de modo a propor o livro de Helena Morley como contraponto à prosa da virada do século. Àquela prosa dominante em fins do XIX e começo do XX, que Schwarz vê como um produto da “conjunção infeliz e inconfundível que se havia estabelecido, nas letras da época, entre a crise do Brasil antigo, o contorcionismo estilístico e as ofuscações subalternas do cientificismo”. (Schwarz, 1997, p. 47).
O núcleo de força do seu ensaio está nessa postulação de que um livro “sem intenção de arte” – ou ao menos um livro que não é, a rigor, de ficção – possa ter conseguido cumprir, melhor do que todos os do seu tempo presumido – exceto os da segunda fase de Machado de Assis –, os objetivos da moderna literatura realista.(3) (Schwarz, 1997, p. 50).
Ou seja, na afirmação de uma desconfiança do “literário”, “estético”, “artístico”, que aparecem ao longo do texto como empecilhos ao realismo e à prosa progressista, isto é, uma prosa capaz de apreender e transmitir limpidamente a experiência nacional e a especificidade da estrutura social brasileira.
O livro de Helena Morley lhe parece notável pela naturalidade, pela espontaneidade e pela objetividade do registro – e, sobretudo, pelo “estilo sem literatice”. (Schwarz, 1997, p. 106)
A operação crítica dominante nesse ensaio é, portanto, opor esse momento luminoso das letras nacionais (“sem literatice”) ao resto, onde se confundem e se traduzem uns nos outros a “intenção de arte”, o “ranço literário”, o “ranço ideológico”. (Schwarz, 1997, p. 49) – frequentemente denunciados (como seria também a intenção de Machado denunciá-los) como “cobertura cultural da opressão de classe”. (Schwarz, 1997, p. 13)
Nesse quadro, fica evidente a única maneira de redimir a elegância, a subjetividade do registro e as amplas referências literárias (literatice) dos últimos romances de Machado: a armadilha, a enganação de sentido crítico.
Mas por conta da estreiteza das balizas dentro das quais se move, o raciocínio e a capacidade de análise do crítico terminam por claudicar exatamente no momento em que seria preciso separar estilo, efeito de estilo e caráter, inclusive para poder prosseguir no esmiuçamento da relação entre articulação literária e dominação de classe.
Refiro-me ao momento em que Schwarz tem de dividir o romance de Machado em duas partes – a primeira, que seria dominada por Capitu; e a segunda, que seria dominada pelo Casmurro. Nas suas palavras, “uma sob o signo do espírito esclarecido, outra sob o signo do obscurantismo”. (Schwarz, 1997, p. 14)
A divisão é vital para o argumento do livro. É ela que permite contrapor a progressista Capitu ao reacionário Bento (pois a análise de Schwarz depende da transformação de Bento de dependente da mãe em Casmurro páter-famílias, já que é esse passo social que exigiria o sacrifício da mulher que representa as forças da Ilustração) – como é ela que permite equivaler Capitu e Helena Morley.
Essa divisão não seria meramente de conteúdo, mas se apoiaria num dado formal: o livro seria constituído de duas partes, do ponto de vista da constituição da prosa.
Eis como ele coloca a questão:

Pois bem, como entender que a elegância da prosa dos primeiros capítulos, suprema sem nenhum exagero, seja a obra e o passatempo dessa figura nociva e patética das páginas finais? Respostas à parte, a pergunta decorre da composição do livro. Sob pena de ingenuidade, esta obriga à distância em relação ao que é dito, ou melhor, incita a dar palavra a correções e adendos que a situação narrativa imprime ao memorialismo lírico do primeiro plano. (Schwarz, 1997, p. 32)

A resposta oferecida à parte é que “a poesia no caso pode também ser um álibi, um modo de afetar a isenção necessária à inculpação pública de Capitu…”. (Schwarz, 1997, p. 36)
Estamos ainda e sempre na clave de leitura de Helen Caldwell. Mas o que há aqui de novo pode ser apalpado quando consideramos o que seria essa pergunta se dirigida a outros textos. O que resultaria dela, como ponto de vista de avaliação literária, se fosse dirigida, ao romance Lolita, de Nabokov? O autor fictício desse livro é, sem sombra de dúvida, um pedófilo, um egoísta cruel, um assassino. Não obstante, sua prosa é magnífica e assim tem sido reconhecida de modo unânime. Constitui isso um problema literário? Dizendo de outro modo: por que a elegância da prosa pareceria ou deveria ser incompatível com uma figura nociva e patética de autor? Que aposta, desconfiança ou prescrição aí se revela acerca da coincidência do ético com o estético? E qual é a pena de ingenuidade a que se expõe o leitor que reconheça ou se emocione com o lirismo da chamada primeira parte?
Ora, a consideração atenta do livro de Machado, no que toca à elegância da prosa, mostra que ela de modo algum é menor nos capítulos do meio ou do fim do livro. Na verdade, se há um traço que permanece idêntico ao longo do romance é o estilo. A tal ponto que um dos efeitos da leitura mais notáveis é a saturação que alguns procedimentos produzem, à medida que o livro avança e que o lirismo da evocação da infância vai se dissolvendo em amargura.
Aquilo que se deixava ler como elegância do torneio da frase, justamente por continuar indiferente ao tom que o livro vai adquirindo, passa a ser sentido como impiedade, zombaria ou, no limite e dependendo da clave de leitura, perfídia. O mesmo ocorre com as digressões, com as remissões ao processo de escrita e o gosto das citações: o seu efeito muda radicalmente entre uma e outra parte do livro. E por isso a imperturbável elegância da prosa, adequada à evocação e à descrição da primeira parte, parece impudica, quando continua em vigor na última.
Trata-se, se quiséssemos falar assim, de uma dissonância entre o registro estilístico e o registro de gênero: o modo de escrever adequado a um idílio ou a uma narrativa de final feliz não é o mesmo de uma narrativa dramática, que se postula como trágica. A persistência de um mesmo registro estilístico produz a sensação de desajuste, que é identificada como paródia ou farsa e pode ser traduzida, na leitura, como disposição moral.
A pergunta/resposta de Schwarz, nessa interpelação do mecanismo do livro e da ingenuidade do leitor, se baseia assim, afinal de contas, numa pressuposição formal sem fundamento: a de que haja diferença de nível estilístico entre as partes do romance.
A questão que se impõe é: como um ensaio que utiliza uma descrição precária e superficial da estrutura do livro para sustentar uma comparação problemática sob muitos pontos de vista entre dois textos tão díspares conseguiu não só passar quase sem reparo crítico, mas ainda vigorar como item de primeira linha na fortuna crítica de Machado de Assis?
A resposta, quanto a mim, está na estrutura argumentativa do ensaio sobre Dom Casmurro, que se torna evidente pela articulação com o que lhe foi acrescentado para formar Duas meninas: a oposição construída ao longo do primeiro ensaio se revela, no escopo maior do volume, na sua verdadeira dimensão e importância, que é promover a oposição e o combate entre o despojamento da prosa realista e a “literatice” pegajosa da ideologia. Não é apenas a parte de Capitu contra a parte de Bento no romance de Machado que o crítico mobiliza, mas Helena Morley contra Euclides da Cunha (o modelo negativo implícito no ensaio de Schwarz).(4)
Na articulação dos ensaios, o analista não só monta um processo contra os “hábitos mentais arraigados e errôneos” de Bento e de seu leitor cativo (para usar as palavras de Gledson), mas ainda alarga esse processo e essa denúncia até atingir em cheio a questão literária: o que está em pauta – ou melhor, o que está agora no banco dos réus, junto com o leitor ingênuo ou conivente – é também um modelo ou ideal de prosa literária nacional.
É por ser esse o verdadeiro combate que anima o livro que os argumentos podem contornar decididamente obstáculos tão notáveis quanto a diferente natureza dos textos a comparar ou o delicado problema da datação e autoria do livro assinado por Helena Morley. E é o interesse atual desse combate, bem como a possibilidade de reconquistar Machado de Assis como aliado na construção de um ideal de prosa realista moderna, que talvez explique a sorte desse ensaio, último desenvolvimento do modo de ler com o pé-atrás.
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Notas:
(1) Apesar de neste artigo só comparecerem os textos afinados com a “ficção do tribunal”, vale lembrar que houve, desde a primeira hora, quem se mantivesse fora das linhas de desenvolvimento originadas no livro da crítica americana. Antonio Candido, por exemplo, embora se refira ao livro de Caldwell no mesmo ano do seu lançamento, no estudo denominado “Esquema de Machado de Assis”, não dá maior importância às suas teses, pois não foca na culpa ou inocência de Capitu o interesse da obra, anotando: “o fato é que, dentro do universo machadeano, não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói a sua casa e a sua vida” (Candido, 1970, p. 25). Outro crítico que se manteve fora do paradigma aqui estudado é Alfredo Bosi, que em “O enigma do olhar” (Bosi, 1999) se contrapõe explicitamente à tradição inaugurada por Caldwell.
(2) Em inglês, o livro intitulou-se The deceptive realism of Machado de Assis – a dissenting interpretation of “Dom Casmurro”. Em português, Machado de Assis: impostura e realismo – uma reinterpretação de “Dom Casmurro”.
(3) A respeito, para que não reste dúvida, leia-se também este trecho: “o leitor interessado no nervo social da forma artística estará reconhecendo ao vivo o conflito que organiza os romances da primeira fase de Machado de Assis [...]. Acho inegável que a questão figura com mais beleza, ou seja, com mais variedade, profundidade e humor, aqui no livro de Helena”. (Schwarz, 1997, p. 62)
(4) Vê-se aqui o rendimento crítico de uma opção de gosto que também se encontra na apreciação recente de Cidade de Deus, bem como, pouco antes, na avaliação da poesia de Cacaso e Francisco Alvim, por um lado, e da de Augusto de Campos, por outro.

Referências bibliográficas
Baptista, Abel Barros. Autobibliografias: Solicitação do Livro na Ficção de Machado de Assis. Campinas: Ed. da Unicamp, 2003.
Bosi, Alfredo. Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo: Ática, 1999.
Caldwell, Helen.  O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Cotia: Ateliê, 2002.
Candido, Antonio.  Vários Escritos.  São Paulo: Duas Cidades, 1970.
Gledson, John.  Machado de Assis: Impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Gledson, John.  Por um Novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Meyer, Augusto. Textos Críticos (org. de João Alexandre Barbosa). São Paulo: Perspectiva, 1986.
Pereira, Lúcia Miguel. Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). 4ª ed. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1949. (1ª ed.: 1936)
Santiago, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. (1ª ed.: 1978)
Schwarz, Roberto.  Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

* Este artigo foi publicado primeiramente na revista Estudos Avançados/USP, n. 65,
janeiro-abril de 2009. Está reproduzido também na revista eletrônica Sibila.


sábado, 15 de setembro de 2012

A demissão da crítica


a demissão da crítica



Há algumas semanas, um escritor de Campinas com alguma projeção nacional, pois é colunista fixo de um caderno da Folha de S. Paulo, respondeu duramente a um jornalista que escrevera sobre o seu último livro. A resposta, em si mesma, era preconceituosa e pífia.[1] Mas havia nela um ponto de interesse, pois vinha à tona, despida na sua rudeza, a aversão à crítica que domina grande parte do meio literário brasileiro.
Eis o argumento: o jornalista evidentemente não gostara do livro; se, não gostando, escrevera sobre ele, ou o fazia por ser um pau-mandado da direção do jornal, ou por ser um mau-caráter, que merecia interpelação judicial. O terceiro excluído, que permitiu essa formulação dilemática, foi a idéia de que a crítica escrita se possa fazer espontaneamente, como exercício de inteligência e avaliação. A exclusão categórica dessa terceira possibilidade, como se ela pesasse pouco ou fosse quase impossível, a menos que fosse um ato de insanidade senil – e não foi, pois não foram poucos os leitores e autoridades que se solidarizaram com o revide do escritor –, devia contar, como apoio da sua credibilidade, com a existência de um acordo tácito que a tornasse palatável.
Para quem acompanha o mundo literário brasileiro, não é difícil identificar o acordo. Ele é mais ou menos generalizado, e se ergue em torno de um preceito que tem passado por regra de ética e polidez, embora seja mais propriamente o esteio do compadrio. Trata-se do princípio de que uma reação crítica deve ser publicada quando for, de modo geral, favorável à obra analisada, ou quando nela predominar o caráter de apresentação mais ou menos neutra. Caso contrário, o melhor procedimento é o silêncio público, que não será contraditório com a maledicência privada.
A infração a essa regra de ouro tem como resposta a inimizade, a censura ou a reação corporativa descarada, para a qual a crítica franca e aberta é desrespeito, insulto ou agressão.
Se o criticado não tem expressão, a crítica de fundo é entendida apenas como um ato ímpio ou pouco generoso. Se o criticado é alguém com lugar definido no mundo acadêmico ou literário, com uma posição em um dos blocos que loteiam os jornais e os bolsões da vida literária, a reação varia desde o revide por interposta pessoa até formas mais truculentas e diretas de censura.
Entre essas formas de censura pública se destaca, pela repercussão ampla na vida social, a moda brasileira do abaixo-assinado das celebridades.
O abaixo-assinado tem origem democrática. Consiste, em princípio, num documento no qual um grupo de anônimos se reúne para reivindicar, pelo número, o direito a voz ou a uma resposta que, individualmente, dado o próprio anonimato e face à indiferença do poder, nenhum deles conseguiria.
A modalidade em pauta, porém, nada tem de democrática, pois um abaixo-assinado subscrito por personalidades de expressão pública ou acadêmica, dirigido contra o direito de um cidadão se pronunciar, não tem outro desígnio que não seja o de exigir o silêncio ou a submissão, sem necessidade de apresentar argumentos. É um ato de puro poder, uma modalidade do “cala a boca” do chefe de facção ou do “sabe com quem está falando?” do poderoso do momento.
O que teve caráter de certa forma inaugural foi o que se organizou contra José Guilherme Merquior, no começo dos anos 80. Merquior encontrou, sem aspas, num livro de Marilena Chauí, alguns trechos de Claude Lefort, e registrou por escrito o achado. A conseqüência não foi a justificação do ato pela autora ou o debate sobre um procedimento acadêmico que podia dar margem a um questionamento nesses termos, mas um abaixo-assinado contra o crítico “de direita” que agredia a filósofa “de esquerda”.
O fato intelectual teve, por esse caminho, a sua importância apagada, e a notação crítica foi tratada como ato a anular, e não como um texto a ser encarado e rebatido no campo das idéias e argumentos.
Uma década depois, outro documento do mesmo tipo foi publicado contra Bruno Tolentino, em desagravo a Augusto de Campos. Aqui não houve argumento. O que esteve na mira dos subscritores foi o fato inaceitável de uma figura bem estabelecida nos meios intelectuais ter sido objeto de crítica violenta por um adventício, um recém-chegado sem lugar no meio literário nacional.
Mais recentemente, organizou-se um cala-boca solidário a Sebastião UchôaLeite, contra o jornal Rascunho, com uma novidade: a usual censura e repúdio não pareceram suficientes, e algum inimigo mais convicto da liberdade de expressão se empenhou num plano para extinguir o próprio veículo da crítica, isto é, o jornal, por meio de pressão coletiva sobre o seu principal patrocinador.
E há ainda que lembrar o abaixo-assinado contra o artigo de Nelson Ascher sobre Edward Said, que reuniu, contra uma crítica também política, personalidades várias, ligadas a diversas comunidades e a grupos teóricos de extração diversa.
Alguns nomes destacados figuram em mais de um desses documentos coletivos. Pessoas que, sem esforço, conseguiriam espaço na imprensa para apresentar argumentos e razões intelectuais para desqualificar e rebater a crítica indesejada. Por que preferiram o abaixo-assinado? Por simples preguiça intelectual e alinhamento partidário? Por gosto de estar em boa companhia, no caso dos menores, e por afetação de humildade, no caso dos mais célebres?
Sejam quais forem os motivos, o que importa ressaltar é o resultado do recorrente gesto de repúdio à crítica e ao direito de criticar. Essas brigadas ligeiras de combate, montadas acima das diferenças teóricas e políticas, capitalizando o prestígio intelectual dos seus integrantes a serviço da repressão do pensamento independente, naturalizam e revestem de dignidade o que é rasa violência de censura e namoro com o obscurantismo, em nome dos bons costumes e do respeito à hierarquia. O resultado é o estabelecimento de um princípio de bom-mocismo nacional e o reforço da necessidade de alinhamento a algum dos principais grupos regidos por uma figura totêmica, sem o qual o livre-pensador fica desprotegido e sem espaço de escrita e manifestação.
Também é digno de nota que, entre subscritores contumazes desse tipo de documento, se encontram membros do corpo docente das nossas melhores universidades. O que está em contradição com a imagem que a universidade constrói publicamente de si mesma, como lugar de embate de idéias e respeito à pluralidade de pontos de vista e opções teóricas.
Na verdade, o abaixo-assinado é apenas um sintoma – talvez o mais espetaculoso – de uma atitude ativa de repúdio à crítica que se enraíza na vida intelectual brasileira contemporânea. Uma atitude generalizada, que não apenas encontra abrigo e pasto privilegiado no meio acadêmico, mas ainda tem no funcionamento da universidade e no aparelhamento da mídia, especialmente a paulista, pelos grupos de poder que se formam no interior da instituição acadêmica, uma das suas fontes de renovada energia.
Na área das Letras (nas demais humanidades talvez não seja diferente, mas não posso erguer a voz em testemunho, como nesta) é costume geral as bancas examinadoras de teses e concursos universitários se montarem segundo critérios de amizade, dívida pessoal e apadrinhamento, ou ainda segundo a prática paternalista comum, que é a de se aceitarem as escolhas (e os vetos) dos próprios examinandos.
Por isso, nessa área, o exercício responsável da crítica em situações de exame é o caminho mais curto para o ostracismo. E mesmo nas situações que não envolvam exames públicos, o exercício da crítica independente, que viole a demarcação das áreas de influência ou contrarie um julgamento de chefe de grupo, recebe resposta imediata na forma de censura, isolamento institucional ou veto explícito à presença do crítico indesejado em empreendimentos intelectuais sob a influência da autoridade contrariada.
Talvez em outro país o relaxamento da crítica no interior da universidade não tivesse um impacto tão decisivo. Mas aqui, onde não há praticamente outras instituições de peso cultural, o seu papel formador é enorme e, por isso, a sua responsabilidade no processo geral de enfraquecimento da crítica é grande. Principalmente porque é no seu interior que se cria e acaba se abrigando, dada a limitação de possibilidades de vida cultural na mídia, a maioria dos praticantes das várias modalidades de crítica de literatura.
O crítico que escreve em jornal de grande circulação, hoje, no Brasil, ou é aluno, ou é professor, ou é aspirante a professor das universidades de primeira linha. Assim, ou como origem, ou como destino almejado, a universidade e o seu modus operandi, bem como as suas facções, acabam por reger também o ralo meio literário que sobrevive à sua margem ou à sua sombra.
Por isso é tão recorrente na imprensa a ânsia de glosar os lugares estabelecidos pelos discursos acadêmicos mais prestigiosos, ainda que disso resultem textos contraditórios ou incongruentes. E também por isso a imagem de respeitabilidade crítica se faz por meio de uma curiosa mistura: do olhar desdenhoso que a universidade ainda lança sobre o campo do presente com o esforço historizante, que busca substituir o debate sobre objetos pela proposição de linhas de filiação nas fontes canônicas eleitas e celebradas pelas versões hegemônicas do desenvolvimento da literatura nacional.
Não espanta, assim, nesse quadro de rarefação do embate crítico, no qual a regra é evitar o confronto, que a forma privilegiada do texto dedicado à produção literária moderna e contemporânea seja a glosa, tanto nos artigos elaborados para jornais, suplementos e revistas de grande circulação, quanto nos textos produzidos para circulação no meio universitário: monografias, dissertações, teses e relatórios de pesquisa.
O procedimento comum é a paráfrase ou a transcrição, em mosaico, das formulações metalingüísticas da própria obra ou do discurso do autor sobre si mesmo, presente em entrevistas, artigos e depoimentos. O que resulta, de regra, num discurso plano, levemente acadêmico e tedioso, cujo atrativo principal é servir de resumo ao que está presente na própria obra e nos seus paratextos; ou então de apanhado dos lugares-comuns da historiografia dominante, de modo a “explicar” o objeto pela filiação a um deles, como decorrência ou contraposição.
O resultado imediato é a anemia e o desinteresse que caracterizam a maior parte da produção brasileira que enfoca os textos literários do presente, incapaz de real enfrentamento com os objetos e problemas imediatos da cultura contemporânea e, principalmente, com a questão do valor.
A propósito, o escritor Nelson de Oliveira escreveu o seguinte: “as resenhas dos cadernos literários têm me interessado apenas na medida em que põem em evidência, para o freqüentador de livrarias, meu último trabalho. Ou seja, na medida em que divulgam uma obra recém-lançada, funcionando como ferramenta da propaganda e ajudando nas vendas”.[2]
É certo que a frase exibe algum cinismo provocador. E é certo que Nelson de Oliveira parece idealizar, em alguns pontos do seu texto, a crítica produzida na universidade, da qual é também praticante, em nível de pós-graduação.
No que diz respeito especificamente às resenhas, quem quer que venha acompanhando as páginas literárias dos jornais brasileiros não verá exagero na sua redução a instrumento de promoção de vendas. Nem nesta outra afirmação, que se encontra no mesmo texto: “o crítico literário – tanto o da imprensa quanto o das universidades – é, para os escritores de hoje, uma nova espécie de colunista social”.
Uma postura defensiva seria entender a declaração de Oliveira como um exemplo da dificuldade de os escritores perceberem qual seja o real lugar da crítica, ou sua função na vida da cultura.
Quanto a isso, é certo que, para boa parte deles, a questão da crítica sequer se apresenta como questão intelectual. O que se observa, por exemplo, quando se constata que inserir a assinatura num abaixo-assinado, sem sequer ler o documento a subscrever, é menos uma recusa da atividade crítica (ou do valor de um texto crítico específico) do que uma manifestação de solidariedade abstrata, isto é, de esprit de corps. Nesse caso, a recusa à crítica é quase uma reação fisiológica, despida de maior interesse: um gesto defensivo e corporativo, dirigido contra algo que parece apenas uma ameaça ao espelho narcísico ou aos resultados de vendas.
Mas o próprio gesto automático de repúdio à crítica só é possível e freqüente porque na vida literária brasileira é muito forte o descrédito atual da crítica. Ou seja: ele não é produto, mas produtor dos múltiplos gestos afetivos, provindos do campo artístico.
Tal descrédito deve ser debitado em parte à conta dos próprios agentes que atuam no campo crítico e definem os seus limites e regras de funcionamento. Porque, de fato, talvez seja só um pouco exagerado dizer que, neste momento, é cada vez menos necessário ler a crítica literária brasileira, especialmente a publicada em jornal. É claro que há exceções e que alguns nomes destoam do cinzento usual. Mas na espessa maioria dos casos, basta passar os olhos pelas páginas e colunas, tomar consciência do que foi resenhado, anotar quais livros receberam espaço na mídia, quais vieram acompanhados de um retrato do autor ou uma foto da capa, em que tamanho etc. O texto quase nada acrescenta à sua própria presença na página, e usualmente o título e a avaliação final, icônica, quando existe, bastam para que ele tenha cumprido a sua função.
Mas não só. Essa é apenas a maneira mais leve de encarar a questão, que lhe reserva inclusive certo glamour kitsch: a crítica como colunismo social. Mas, por conta da substituição do gesto crítico pela simples ocupação do espaço, a crítica contemporânea é mais propriamente descrita como modalidade do marketing, sendo as páginas culturais dos jornais, revistas e suplementos de grande circulação objeto do mesmo tratamento profissional que recebem hoje as gôndolas das redes nacionais de supermercados.
O estado atual da crítica não é, portanto, resultado de algum fator subjetivo ou contingencial, como a ausência de bons talentos críticos depois do que teria sido o grande momento dos anos 50 e 60. É certo que a universidade, subordinando as questões intelectuais ao aparelhamento ideológico e fugindo ao embate crítico em nome dos interesses pequenos e imediatos da luta pelo poder local, contribui decisivamente para a eliminação da tensão crítica. Mas a persistente falta de tônus intelectual e a ausência ou omissão dos agentes conseqüentes, que, juntas, promovem a demissão da crítica da vida literária brasileira, não encontram explicação na vaidade dos criadores, na pouca inteligência ou na falta de coragem do articulista de jornal ou redator de ensaio universitário. Esses são apenas os epifenômenos. O movimento completo tem um desenho mais complexo, pois, embora todos os fatores já enunciados concorram para o caráter anódino da crítica literária brasileira contemporânea, o mais importante deles, em minha opinião, tem tido pouca visibilidade: o fortalecimento e a internacionalização da indústria do livro e do entretenimento literário no Brasil, e a conseqüente valorização do campo da literatura, que, pela primeira vez, se constitui em mercado importante do ponto de vista dos resultados de vendas.
Ou seja, mesmo tendo origem autônoma, a ductilidade e a eliminação da aresta indesejada da avaliação e do embate das idéias se ajustam perfeitamente às necessidades da indústria e do comércio jornalístico e livreiro.
É, portanto, da convergência entre os interesses gerados pelo fortalecimento do mercado, por um lado, e o enfraquecimento do meio intelectual, por outro, que resulta o quadro atual da crítica brasileira. E se a falência momentânea da crítica poderia ser explicada “por dentro”, isto é, a partir das formas de exercício do poder intelectual no Brasil contemporâneo, a letargia que a mantém longamente nesse estado falimentar já não pode, pois se deve à coincidência entre esse momento de fraqueza e o fortalecimento e multiplicação dos interesses industriais e comerciais ligados à produção de livros, notícias e eventos literários.
O abastardamento do crítico em divulgador, parafraseador e cortejador dos vários lugares do poder intelectual tem, nesse quadro, função precisa e preço alto, pois o que poderia parecer, a princípio, um estranho dublê de colunista social e agente secundário de marketing acaba por ser o perfil mais adequado à ocupação dos espaços de mídia. Uma ocupação, diga-se, que se processa de forma coerente e metódica, em progressão racional: das matérias esparsas ao controle e editoria de seções especializadas, e destas ao trabalho de assessoria a editoras, que se valerão, depois, desses mesmos espaços para a divulgação dos seus produtos, sem esquecer a prestação de serviços na organização e atribuição dos prêmios literários, que são uma das formas mais eficientes de promoção de vendas para as grandes editoras.
O resultado textual é, pois, o que menos importa na atividade do novo modelo de profissional das Letras. Na verdade, sequer está em causa o sucedâneo de texto crítico que hoje ocupa as páginas dos jornais e das revistas literárias, sob a denominação “resenha” ou “ensaio”. A forma de discurso anódino, que evita o confronto com os objetos particulares, bem como o posicionamento perante as questões candentes da cultura contemporânea, e que homenageia e projeta na mídia os vários pólos do poder localizados na universidade, não conta pelo que diz ou deixa de dizer. Conta apenas como objeto pacífico, transparente, que, justamente pela insipidez, se oferece à indústria e ao comércio como instrumento altamente eficaz de divulgação, num ambiente no qual, por conta da demissão da crítica, o espaço preenchido acaba por ser a forma privilegiada, se não mesmo a única, de promoção do produto junto ao consumidor a que ele se destina.





[1] Rubem Alves, “Mascando pimentas”. Campinas: Correio Popular, 27-02-2005. Sobre esse texto escrevi um artigo, intitulado “Orgulho e preconceito”, que foi publicado no mesmo jornal em 02-03-2005 e se encontra disponível em www.unicamp.br/franchet/r_a.htm .
[2] Verdades provisórias: anseios crípticos. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 38.