terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Camilo Pessanha: uma homenagem em Macau

 Homenagem a Camilo Pessanha

 

Acabo de receber e de ler o livro Ladrão de tempo, de Carlos Morais José, que será lançado amanhã, dia 29/12, em Macau, juntamente com um volume de ensaios dedicados à obra do poeta, coordenado por Catarina Nunes de Almeida. Ambos prestam uma bela homenagem aos 100 anos de publicação da primeira recolha de versos de Pessanha em livro, a Clepsydra.

Ainda no calor da leitura, mesmo correndo o risco de não perceber o que uma segunda visita talvez permitisse ver, não quis deixar sem registro as impressões que me deixou esse livro bem editado e bem ilustrado. 

Li com muito interesse, pois há tempos acompanho o trabalho do autor, a quem se deve o achamento das correções que Pessanha fez no exemplar da revista Centauro que lhe pertenceu. Eu mesmo, quando estive em Macau, busquei ansioso esse exemplar, do qual dispunha de apenas uma página fotocopiada, que me fora cedida por Daniel Pires. Com base nela, anotei, na edição de 1995, a variante preferencial. Mas havia muito mais, dissera-me Daniel Pires. Algum tempo depois, soube que eu não encontrara a Centauro porque tinha ido para restauração – num trabalho que teria consistido em apagar com corretor branco as intervenções do poeta. Felizmente (se é que a história é verdadeira), des-restauraram-se as páginas. E mais felizmente ainda, Carlos Morais José as encontrou e generosamente as estampou na edição da Clepsydra, que fez com Rui Cascais e publicou em 2004.

Mas a relevância do trabalho do autor vai além dessa importante descoberta e da edição em que vieram as reproduções. Vivendo em Macau desde 1990, em vários momentos organizou eventos comemorativos da memória do poeta, redigiu textos, fez discursos e palestras, escreveu ensaios interpretativos.

Uma parte desse material vem agora coligida no volume que acabo de ler.

Compõe-se o livro de 5 textos de caráter diverso. Do primeiro deles, intitulado “O exilado”, gostaria de destacar um ponto muito positivo, que é a crítica ao automatismo biografista, que toma pelo valor de face as esquisitices do poeta. Por exemplo, a organização da sua casa e as fotografias em que se faz retratar por um fotógrafo profissional em trajes e situações estudadas com vistas à produção de um efeito. É certo que, nesse primeiro ensaio, Morais José dá muito facilmente voz a duas figuras cujo depoimento é suspeito, pela carga de ódio e ressentimento que transpiram. Refiro-me aos irmãos Francisco Penajóia (nome literário de Francisco de Carvalho e Rego) e José de Carvalho e Rego. De fato, se há algo de crível nos “testemunhos” da dupla é a dose de fantasia que acrescentam aos fragmentos de realidade sobre os quais teceram sua fábula maledicente. É verdade que Morais José coloca sob leve dúvida o relato que faz este último Rego de uma visita que o escritor Blasco Ibañez teria feito a Pessanha. Mas transcreve a fantasia. Ora, Ibañez esteve em Macau cerca de doze horas, se tanto. Visitou nesse intervalo as ruínas de São Paulo, o castelo, a Gruta de Camões, o centro comercial e, antes do banquete oficial, foi visitar um típico prostíbulo chinês. Do banquete partiu diretamente para o navio que o levaria a Hong Kong. Dessa visita, redigiu Ibañez um minucioso relato, que inclusive menciona um escritor português, “Sebastián Da Costa”. Nem uma palavra sobre Pessanha, que, segundo Carvalho e Rego teria sido um dos motivos para sua ida a Macau...

Mas mesmo com essas concessões aos “testemunhos” fraternos, o que ressalta do ensaio, no que toca à biografia de Pessanha, são dois pontos: o primeiro é a convicta apresentação do caráter poseur de Pessanha, que desenvolve como elemento de um esforço concreto de distanciamento da Europa, analisando o seu caso no quadro mais amplo do exotismo finissecular; o segundo é, ainda dentro dessas balizas, a reflexão sobre a casa de Pessanha, tanto a casa paterna, lugar da infâmia, quanto a casa macaense, lugar da preparação para a morte e para o desaparecimento.

No segundo artigo, intitulado “A dor que deveras sente”, continua a crítica ao biografismo vulgar que ocupou boa parte dos textos dedicados ao poeta, e toma a sua poesia num sentido, digamos, filosófico: de exploração do estar no mundo. O resultado é ainda, talvez, biográfico. Mas num sentido mais alto: uma biografia propriamente filosófica, na qual a análise dos textos se processa em função da cosmovisão que identifica no conjunto dos poemas de Pessanha.

No terceiro ensaio, intitulado “Marginalidade e utopia: o poeta no seu santuário”, Morais José reflete sobre a relação conturbada e complexa do poeta com Macau. Ainda aqui, combate o mau biografismo, especialmente a tão propalada abulia do poeta e o seu suposto desconhecimento do idioma chinês. Falando com propriedade da cidade que conhece tão bem e do poeta a quem dedicou muito estudo, é um ponto alto do livro.

Por fim, na quarta e penúltima posição temos o discurso proferido quando do aniversário de 80 anos da morte do poeta. Intitulado “Não deitem fogo, não é para arder”, é um belo testemunho da dedicação do autor ao poeta e à sua poesia.

Ao final do volume, como uma coda e assim apresentado, pois o texto vem após uma larga cronologia da vida e obra de Pessanha, encontramo-nos, em “Ladrão de tempo”, não mais apenas com o estudioso da obra, mas sobretudo com o poeta Carlos Morais José, que ali comparece costurando, em voz própria, frases, versos, imagens do autor da Clepsydra.

No prefácio do livro, o seu autor nos informa que “é, pois, tempo de encerrar e de exorcizar. Nes­te livro reúno alguns dos textos que sobre Pessa­nha escrevi, numa homenagem final ao poeta, ao homem e à cidade que temos em comum.” Pouco mais adiante, ainda no mesmo prefácio, faz uma promessa solene a Camilo Pessanha: a de que não vai mais ocupar-se de sua vida e de sua obra.

Cumpre-nos torcer para que não a cumpra. 

 

*

 

Carlos Morais José. Ladrão de tempo. Macau: COD, 2020.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Papel social das editoras universitárias

 Editoras universitárias: seu papel social[1]

 

 

                                                                       

Para ir logo ao ponto desta apresentação: eu creio que o papel social de uma editora universitária é em tudo homólogo ao papel social da universidade, de que ela é parte. 

Embora seja possível encontrar semelhanças entre universidades públicas e privadas, no que toca à sua função social, a mim parece evidente que as públicas têm escopo muito diferente aqui no Brasil. De fato, elas oferecem gratuitamente ou quase gratuitamente uma formação que, nas universidades privadas, tem um grande custo. 

As universidades públicas brasileiras, tanto as federais quanto as estaduais, são um investimento governamental, de base amplamente democrática, tendo por finalidade não o lucro, mas a criação de um espaço de pesquisa e ensino, capaz de bem formar pessoas nas várias áreas do conhecimento. 

Já uma universidade privada, mesmo quando não tenha o lucro como principal objetivo, necessita fazer um balanço entre as condições ótimas ou ideais e as condições possíveis, dentro de um orçamento que é determinado, no Brasil, quase exclusivamente pelo pagamento de mensalidades. 

Disso derivam imediatamente algumas diferenças. 

Uma universidade pública normalmente mantém o ideal universitário de contemplar todas as áreas do conhecimento, mesmo as que são menos rentáveis – seja por pouca procura, seja por alto custo operacional, seja por não terem uma terminalidade valorizada pelo mercado. Da mesma forma, uma universidade pública pode investir enormemente nas instalações e equipamentos de ponta, necessários à realização de pesquisas e à formação de pesquisadores, sem precisar fazer as contas do retorno financeiro desse investimento. 

Outra diferença fundamental é que são as universidades públicas que mantêm o mais amplo espectro de cursos de pós-graduação de alto nível, e é nelas que encontramos a maior quantidade de docentes com alta titulação, trabalhando em tempo integral.

Esse breve quadro serve para situar o foco da minha fala, que é a editora da universidade pública no Brasil. Alguns pontos certamente serão comuns entre editoras de universidades públicas e privadas, mas não todos e talvez nem mesmo a maioria.

 

Começo então por uma questão que comparece frequentemente no discurso sobre editoras de universidades. E o ponto é este: recentemente, por conta de uma visão pobremente empresarial, administradores insistem no conceito confuso de “autossustentável”. Uma editora deve ser autossustentável, repetem até à exaustão reitores, pró-reitores, gestores de vário calibre e até – pasmem! – editores universitários.

Como se a universidade pública devesse ser autossustentável, como se os laboratórios devessem ser autossustentáveis, as bibliotecas devessem ser autossustentáveis, as moradias estudantis devessem ser autossustentáveis, os hospitais universitários devessem ser autossustentáveis, as orquestras universitárias e os grupos de teatro universitários devessem ser autossustentáveis, ou, por fim, os cursos de graduação e de pós-graduação devessem ser autossustentáveis.

Repeti a palavra à exaustão para demonstrar o descabido de uma ideia que pode parecer, de tão repetida, razoável. De fato, quando se discute o orçamento, numa universidade pública e gratuita, de que órgão se pede que seja autossustentável? Da editora! E por quê? Talvez porque se suponha, por analogia com as comerciais, que uma editora universitária é uma espécie de empresa incrustada na Universidade, uma produtora de mercadorias destinadas à venda, e não um órgão importante da universidade, com uma função social e cultural da maior relevância. 

Não creio que a vulgar exigência de autossustentabilidade da editora universitária seja um passo para exigir autossustentabilidade de toda a estrutura universitária, a começar pelos hospitais e pelos cursos de pós-graduação. Creio antes que essa cobrança provenha exclusivamente da ignorância de qual seja o papel das editoras universitárias, do desconhecimento das três funções para as quais elas são insubstituíveis. Ao menos no Brasil. Então vejamos quais são.

 

A primeira delas é a publicação de textos que podem não ser rentáveis, mas são essenciais ao desenvolvimento das áreas de atuação da universidade. 

É que a publicação de um livro que se destine a um conjunto restrito de estudantes ou pesquisadores torna inviável um investimento privado. De fato, que editora de mercado se interessaria por publicar, a bom preço, um título cuja venda estimada seja 100 ou 200 exemplares por ano? Ainda mais se for um livro traduzido? Esse cálculo não deve ser determinante, porém, para uma boa editora universitária. Para ela, não é o lucro financeiro que conta, mas a relação entre investimento e retorno intelectual. E ela deve publicar o que for preciso para alavancar a ciência e a cultura nacional. 

Por exemplo, em certo momento os professores de alemão da Unicamp procuraram a sua Editora para que ela traduzisse e publicasse em português um conjunto de livros didáticos que consideravam o melhor.[2] Com base no exposto, a Editora comprou os direitos e publicou. Isso permitiu, de imediato, que o curso dessa língua fosse reduzido em um semestre letivo, graças ao melhor aproveitamento das aulas. E permitiu que outras universidades ou escolas privadas pudessem aproveitar a oferta do material para melhorar a sua prática. O mesmo sucedeu com duas coleções bilíngues de venda para público restrito, mas de enorme repercussão científica: a coleção de textos filosóficos coordenada por Fausto Castilho, e a coleção de textos clássicos, coordenada pelos professores da área de grego e latim da Unicamp.[3]

Em todos esses casos, um empreendimento de pouco retorno direto se tornou exequível por conta do trabalho, sem ônus para a Editora, de membros do corpo docente (na tradução e redação de textos de apoio), já que suas atividades foram enquadradas no cumprimento aos requisitos do tempo integral. O que é outra vantagem de uma editora universitária pública, que não visa lucro e sim atender às demandas da comunidade acadêmica, que se mobiliza, por sua vez, para tornar exequíveis os projetos editoriais que propõe.

E aqui chegamos a uma questão que devo frisar, pois se aplica a toda a produção consequente de uma editora universitária, em graus variáveis: o retorno do investimento não deve ser computado de um ponto de vista estreitamente financeiro. Numa editora verdadeiramente universitária, não é a venda de livros que garante o sucesso e a justeza do investimento dos recursos públicos ou próprios. Os casos citados são exemplares, porque é fácil ver o verdadeiro e diferenciado retorno: o aumento de qualidade dos cursos, apoiados no material didático novo, no caso das obras clássicas e de filosofia, e a economia de horas de trabalho em sala de aula (um semestre!), no caso do curso de alemão. Mas, torno a dizer, esse é o retorno (em medida vária) de todo livro responsavelmente publicado por uma editora universitária.

Nesse contexto, insistir na ideia de autossustentabilidade parece piada sem graça, no que diz respeito aos objetivos e funções da universidade pública.

 

Uma segunda função é a de “filtro”. 

Uma editora acadêmica de valor tem um conselho editorial de peso, com representantes respeitados em todas as áreas. Assim, o que publica vem com uma chancela: a universidade tal, de tal lugar, garante que este livro tem relevância! Por isso mesmo, atribuo a uma visão curta do processo editorial e do papel da editora universitária a decisão de algumas editoras acadêmicas de não publicar teses de doutoramento, usando como argumento que estão todas no banco de dados da CAPES, disponíveis para download. 

Em primeiro lugar, porque a pós-graduação, infelizmente, por conta das exigências de cumprimento de prazos, tem aprovado no Brasil teses em profusão, de qualidade muito díspar. À editora universitária de prestígio (como também a respeitadas editoras de mercado) cabe a tarefa de filtrar esse material e de editá-lo. Quero dizer: fazer com que o autor retire da tese aquelas partes formais, aquele aparato de notas que para um leitor comum o mais das vezes é excessivo, bem como os argumentos defensivos, que tentam antever as objeções da banca; fazer com que ele reforme o conteúdo, adequando-o à forma “livro”. 

Quantos não são, nas Humanidades, os livros fundamentais que foram defendidos como teses? E quantos ainda não serão? Recusar, por comodismo ou renúncia ao trabalho editorial, a publicação de teses, parece-me um erro brutal e uma abdicação de um dos papeis relevantes da editora acadêmica. 

Além do que, uma boa edição produz outro objeto, como se pode ver (um exemplo entre tantos!) nos volumes sobre erótica japonesa, que eram uma tese de livre-docência, quase ilegível no repositório da CAPES, e se transformaram numa obra magnífica, de enorme valor científico e estético, ao serem publicados pela Edusp.[4]

 

Uma terceira função que cabe à editora universitária, do meu ponto de vista, é a disposição e capacidade de abastecer os cursos da sua universidade (e também de outras, claro) com a bibliografia estrangeira necessária, em traduções cuidadas, revistas e garantidas pelo seu controle de qualidade. Principalmente daqueles livros que não serão sucesso garantido de vendas, mas que são importantes para cursos de graduação e de pós-graduação, bem como para a formação da cultura literária ou científica. Esse é um trabalho difícil, demorado, custoso. Mas se não for feito por uma editora universitária, por quem seria feito aqui no Brasil?

Claro que vai sem dizer que uma editora assim constituída deve dar atenção à produção local, dos seus docentes. Mas sempre tendo em mente que a sua função de chancela é a principal, pois ela carrega no nome a marca da universidade. Assim, a seleção rigorosa das produções locais é uma forma de acrescentamento da qualidade do trabalho na instituição, uma forma de estimular a emulação e de orientar, com base nos pareceres ad hoc e nas decisões do conselho, os docentes e pesquisadores no sentido de atingirem patamares elevados de exigência e realização. Na contramão, a publicação de trabalhos locais que não seriam aceitos em outras editoras de primeira linha é o caminho mais rápido para a perda de uma das funções principais da editora universitária, que é aquilo que descrevi como uma espécie de declaração de qualidade com fé pública.

Por fim, há uma outra função social das editoras universitárias, ligada não mais à produção, mas à distribuição do livro acadêmico. 

A questão do mercado e da distribuição dos livros acadêmicos, que é um problema em muitas partes do mundo, se agrava num país como o Brasil. Exemplos: um livro publicado numa universidade de Porto Alegre tem de percorrer cerca de 4000 km para chegar ao campus da Universidade Federal do Pará, 4200 para chegar à Universidade Federal do Ceará e 4400 para atingir o campus da Federal do Amazonas. Como despachar em tão longas distâncias livros que muitas vezes não são objeto de nota fiscal? E quem paga o custo do envio ou do retorno?

Para fazer frente a esse problema, foi criado nos anos de 1980 o Programa Interuniversitário de Distribuição de Livro, da ABEU – pelo qual as editoras participantes tinham, por meio de um acordo com regras claras, a possibilidade de trocarem livros entre si, para venda em suas livrarias.

O que implicava outra questão: para poderem participar do PIDL e para o PIDL ter alguma abrangência, as editoras precisavam ter pontos de venda, livrarias, pelas quais se escoasse a produção.

A dificuldade de criação e manutenção de livrarias é grande: primeiro porque a administração universitária, da mesma forma que cisma com a autossustentabilidade da editora, insiste na da livraria; segundo, por conta da concorrência das livrarias privadas estabelecidas no interior dos campi, que normalmente oferecem à universidade alguma contrapartida imediatista.

O PIDL, mesmo assim, foi, durante muito tempo e creio que ainda é, a tábua de salvação do livro universitário, tanto para as pequenas editoras, que podem sustentar um ponto de venda com os livros das grandes (o desconto é de 50%, igual ao que exigem os distribuidores), e assim expor e vender os seus próprios, quanto para as médias e grandes, que assim podem enviar e expor seus produtos em lugares aos quais eles não chegariam por intermédio dos distribuidores comerciais – ou por essas editoras não terem documento fiscal, ou porque o custo do transporte de um livro de baixa vendagem não torna a operação atrativa para o comerciante.

Da mesma forma, ao longo do tempo as editoras universitárias, a exemplo da Edusp, foram organizando feiras e eventos, nos quais livros de editoras universitárias são vendidos diretamente à comunidade acadêmica, com significativos descontos.

Com isso, sem dúvida, presta-se um serviço à causa do livro universitário. Mas um serviço menor. Os pontos realmente importantes e que justificam a existência de uma editora dentro de uma universidade ou a ela subordinadas são aqueles relacionados no corpo desta comunicação, pois é possível imaginar muitas formas criativas de comercializar e distribuir livros – ainda mais na era do predomínio da cultura digital – mas ainda não é possível imaginar, além das editoras universitárias, outras instâncias ou organismos capazes de responder tão bem e com tanta agilidade (e fora do interesse econômico imediato) às necessidades universitárias no que diz respeito à seleção, produção e difusão de obras relevantes para o avanço do ensino e da pesquisa no Brasil.



[1] Texto lido em mesa-redonda no IV Encontro de Editores da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (ENEDIF), em 29/10/2020.

[2] Blaue Blume - Curso Completo

[3] Coleção Multilíngue de Filosofia Unicamp; Coleção LVMINA.

[4] A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX, de Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Crítica literária - uma entrevista

 Uma entrevista sobre crítica literária:

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https://mundoescrito.com.br/critica-literaria-paulo-franchetti/?fbclid=IwAR2jjXqYRYcHn4VsM8qUZBX18kKwZSiq2mzm9HdbKEYdY-fQUI8nI3LkarQ




sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A CLEPSYDRA de 1920


Uma questão recorrente nos debates sobre o livro dos poemas de Pessanha é a seguinte: por que João de Castro Osório não respeitou o número e a ordem dos poemas da Clepsydra publicada por sua mãe, Ana de Castro Osório, em 1920? Essa pergunta se aplica a todos os que não mantém o livro de 1920 preservado, separando-o do conjunto dos demais poemas que se foram encontrando do autor nos anos seguintes – e até os anos de 1960... É uma questão que me foi apresentada várias vezes.

Na edição que preparei em 1995, para a Relógio d’Água, nem havia lugar para tal questionamento, porque ali – como disse explicitamente na introdução – o que me interessava era anotar as variantes todas de todos os poemas e fragmentos, dispondo-os em mera ordem cronológica de conhecimento: ou seja, dispondo-os segundo a datação da primeira versão ou a primeira aparição impressa. É certo que fiz uma concessão. Ou melhor, duas: abri o conjunto com o poema que começa “Eu vi a luz” e o terminei com o que se inicia por “Ó cores virtuais”.  Isso significava que eu não desistia de marcar o desejo de Pessanha de organizar um livro, cujo projeto parecia perdido. De fato, num manuscrito que vi em casa de Carlos Amaro, o poema “Ó cores...” vinha com uma nota entre parênteses: “Última página de um livro em tempos delineado”; e o poema “Eu vi a luz” me pareceu de fato destinado a abrir o conjunto, pois não há dele outro registro além dos autógrafos de 1916, que o poeta deixou com Ana de Castro Osório para publicar. Ali, vinha ele abrindo o conjunto. E que Pessanha pensava num livro e autorizava Ana de Castro Osório a publicá-lo estava patente na dedicatória/procuração que encontrei colada à contracapa da primeira edição. Então fui levado a encontrar essa solução, que ficou meio ambígua, por mais que a explicasse.

Mas quanto à edição de 1920, fui bem claro, eu creio, pois a consulta aos autógrafos mostrava desde logo que as indicações de agrupamento e sequência de alguns sonetos não fora respeitada. E a lista dos poemas a reunir para o livro não os separava em sonetos e poesias.

Sucede ainda que sabemos que Pessanha ficara de enviar de Macau as versões definitivas dos poemas que anotara “de memória”, como ele mesmo registrou nos autógrafos, e nunca o fez.

A conclusão era fatal: primeiro, que Ana de Castro Osório, na boa intenção de preservar a obra do amigo, fez o que podia: ajuntou o que tinha em autógrafos ou em cópias de terceiros e ainda em publicações em jornais, e nos deu a Clepsydra; segundo que deu, ela mesma, a essa edição a sua contribuição, seja separando os poemas por forma (sonetos/não-sonetos), seja não criando os dípticos claramente indicados pelo poeta nos autógrafos que utilizou.

Seu filho, depois, deu continuidade ao que denominou “salvamento” da obra de Pessanha, acrescentando o que pôde encontrar em poder de terceiros ou no “Caderno” de Macau, revelado apenas no segundo pós-guerra – e tomando as liberdades que julgou legítimas, como rearranjar a ordem dos poemas, suprimir algum de uma edição a outra, atribuir títulos e, por fim, juntar fragmentos, reordená-los e dar-lhes um título, como se fossem um poema só – no caso “Roteiro da vida”.

Quanto à edição de 1920, Pessanha, em carta a Ana de Castro Osório, do ano seguinte, agradece a publicação e especialmente o cuidado da disposição e da ortografia. Mas o faz numa carta escrita com outro propósito, qual seja o de apresentar à amiga um companheiro de maçonaria que embarcava para Lisboa: “Mas não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradíssimo etc...” – e isso foi tudo.

Eu já tinha repisado esses argumentos muitas vezes, por escrito ou oralmente. E me preparava para fazê-lo mais uma vez, já que faria uma conferência num colóquio na Sociedade de Geografia de Lisboa e ali certamente estariam alguns defensores do respeito à edição de 1920.

Fui dormir, na véspera, pensando em como apresentar de modo novo os mesmos argumentos. Isto é: que a Clepsydra de 1920 não era uma edição de autor, era antes uma coletânea, organizada por uma pessoa com a qual Pessanha tinha uma forte relação afetiva etc. Mas não fui muito longe na elaboração da estratégia e adormeci.

Foi então que, quase ao raiar do dia, sonhei. No sonho, passavam na frente dos meus olhos algumas capas de livros. E depois a da Clepsydra de 1920. Quando acordei, imediatamente vi o que me queria dizer. E me lembrei ainda de uma outra capa, que logo fui conferir, porque tinha faltado no sonho.

São as que seguem. E o que elas me disseram é que, na época de Pessanha, a assinatura vinha no alto da capa. E, no centro, o nome da obra. Com exceção de duas, dentre as sonhadas: a de O livro de Cesario Verde e a de Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha. E então me lembrei do livro de Antero e fui em busca da imagem no Google.

O que o sonho me mostrou foi algo que eu deveria ter visto desde o começo: falta a assinatura de Pessanha, visualmente, na capa da edição de 1920. Como falta na poesia coligida de Cesário. O livro que procurei depois foi o dos sonetos de Antero, organizados por Oliveira Martins. 

E procurei porque me lembrei de que quando Oliveira Martins os publicou, compondo a biografia espiritual do amigo por meio das fases evolutivas, o livro não era mais Sonetos, com o nome do autor no alto da capa, mas sim Os sonetos completos de Anthero de Quental, com a menção em letras menores: “publicados por J. P. de Oliveira Martins”.

Era esse o caso tanto de Cesário, quanto de Pessanha. Se Cesário tivesse ele mesmo publicado seu livro, era provável que víssemos, no alto da página, seu nome; e no centro algo como Canto Meridionais. O mesmo com Pessanha e sua Clepsydra.

Silva Pinto e Ana de Castro Osório poderiam ter anotado, como fez Oliveira Martins: “publicado/s por...”. Não o fizeram de modo explícito, certamente por modéstia. Mas tomaram o cuidado de não inserir no lugar devido a assinatura, o nome do autor, cuja poesia reuniam e publicavam para a posteridade, indicando assim a natureza do que ofereciam ao leitor.











segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Os poemas perdidos de Camilo Pessanha


        O que nos chegou da poesia de Camilo Pessanha resume-se a meia centena de poemas. O número exato não é tão simples de precisar. Por exemplo, João de Castro Osório, na última edição que fez da sua poesia, no volume intitulado Clepsidra e outros poemas de Camilo Pessanha, juntou 3 fragmentos escritos a lápis encontrados no Caderno de Macau a um outro, que lhe chegou não se sabe como, e com eles compôs um poema em três partes, intitulado “Roteiro da vida”. Não ficou mal, para dizer a verdade. Como os fragmentos não se juntavam perfeitamente, o resultado ficou muito moderno e impressivo.

Entretanto, o procedimento é complicado – para dizer o mínimo –, porque nada indica que os quatro textos que ele juntou fossem partes de um mesmo poema (a suposição nasceu do fato de virem a lápis) e porque, a formarem um poema, a ordem em que vinham no Caderno não era a mesma em que os dispôs Castro Osório. Na edição que fiz para a Relógio d’Água, achei que mais prudente oferecer aos leitores e editores futuros o que encontrei nos autógrafos do caderno de Macau.

Se contarmos “Roteiro da Vida” como um só poema em três partes, temos um total de 51 poemas (incluindo dois sonetos de intuito paródico, intitulados “A miragem” e “Transfiguração”). Se não aceitarmos que esses fragmentos possam ser considerados partes de um único poema, mas sim fragmentos ainda em composição, pois não foram passados a limpo, como era costume do poeta, o número cai para 50.

Mas afinal isso foi tudo que Pessanha escreveu, até o final da vida? Não, não foi. Há alguma coisa mais.

Em primeiro lugar, temos dois poemas de que restaram fragmentos na memória de terceiros: do próprio Castro Osório e de Carlos Amaro. Uma ode que começa por “ó Terra doce e boa” e um soneto cujo primeiro verso era “Um fio a desdobar, que não termina”.

Depois, temos um que começava por “Voa o comboio, correria doida”. Num postal que Alberto Osório de Castro enviou a Pessanha em 3 de abril de 1908, ele informa estar de posse do manuscrito. Mas depois não há mais notícia. São já três perdidos.

Numa carta que Pessanha enviou a Henrique Trindade Coelho em 9 de setembro de 1916, com os dois sonetos satíricos que conhecemos, ele diz: “Ainda fiz outros menos complicados – até com um travo agreste a século XV (talvez se chamem ‘Santa Comba’, ou  ‘Santa Ovaia’, porque ‘Santa Comba’ soa a chegada de comboio à estação”. A carta é importante não só por mencionar dois (ou mais) sonetos perdidos, mas também porque mais outra vez mostra como é pouco sustentável a lenda de que o poeta nada mais escrevera desde os primeiros anos de Macau, consumido por uma suposta abulia. Pois ele não só escrevia e revia, mas ainda fazia sátiras... Bom, mas agora já somamos no mínimo 5 (supondo que “outros” indique apenas mais dois).

Na carta que Pessoa escreve a Pessanha, pedindo colaboração para o número 3 de “Orpheu”, ele menciona dois sonetos sob o título “O Estilita”. Nunca se encontraram. Pessoa menciona ainda “Regresso ao lar”, que eu mesmo acreditei ser o soneto “Quem rasgou...”, mas que, como se verá, talvez não fosse, e sim outro. Sem constar, por enquanto, “Regresso ao lar” como perdido, temos agora já 6.

Um texto não assinado, publicado no “Diário de Lisboa” em 3 de março de 1926, por ocasião da morte do poeta, menciona como suas obras-primas, “Tatuagens”, “Volta ao lar”, e “Coimbra”.  Deste último nunca houve outra notícia. São já 7, portanto, os poemas perdidos.

João de Castro Osório, por fim, diz que Pessanha mencionara a existência de dois outros poemas de que não temos notícia: um segundo sobre o fonógrafo, e uma segunda parte do poema que começa “Voz débil que passas”. A conta agora já está em 9, no mínimo.

Isso era o que eu sabia até 1995. No entanto, quando a lista dos poemas a recolher para a “Clepsydra” descolou-se da contracapa onde vinha presa, revelou-se que, na frente do primeiro verso de alguns desses poemas vinha um sinal de +, indicando que ali se tratava de um díptico. E de fato, havia, nos autógrafos díptico bem marcados com indicação de sequência dos sonetos que começavam “Passou o outono já...”, “Desce em folhedos tenros...”, “Singra o navio...”. O problema é que também havia sinal de + na frente dos seguintes primeiros versos: “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” e “Se andava no jardim”. Ora, o segundo de cada um desses nunca foi enviado por Pessanha, nem encontrado por ninguém. O segundo de “Quem poluiu...” talvez seja o “Regresso ao lar”, ou talvez não. Mas trata-se, sem dúvida, de mais um poema perdido, que com a sequência de “Se andava...” soma, com os anteriores, 11.

Sendo assim, o total dos poemas possivelmente perdidos é impressionante, proporcionalmente: são 11 poemas perdidos ou recuperados apenas em parte, contra 50 conservados. Ou seja, 20%. Para uma obra tão exígua, é um percentual muito alto...

Pessanha tradutor

Neste ano em que se comemoram os 100 anos da publicação em livro dos poemas de Camilo Pessanha, já está morto e sepultado um mito abstruso em que tantas boas mentes acreditaram: o do poeta sem escrita.

Como se sabe, isso começou – paradoxalmente – com quem o publicou em 1920. De fato, Ana de Castro Osório declarou textualmente, numa entrevista de 21 de abril de 1921, ao Diário de Lisboa, que “Camilo Pessanha nunca escreveu um só de seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração e guarda-os na memória. Só consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade”.
É incrível que tal inverdade não tenha sido contestada. Várias pessoas possuíam autógrafos de Pessanha, que ele costumava distribuir, sempre anotando que eram transcritos “de memória”- o que significava que havia um documento escrito e fixado. Carlos Amaro, por exemplo. E Alberto Osório de Castro, irmão de Ana de Castro Osório, que num postal de 1908 dizia: “Trouxe o manuscrito dos seus versos” e listava um grande conjunto de poemas, inclusive um de que nunca mais se teve notícia. E quanto a dizer apenas a pessoas da maior intimidade, faz ainda menos sentido, pois Pessanha não se fazia de rogado para dizer seus versos – e basta a carta que Pessoa lhe enviou para comprovar que ele declamara versos para um jovem desconhecido já num primeiro encontro.
Não obstante, a bobagem foi aceita e muito repetida, até ser levada a sério por quase todo mundo, ou, pelo menos, não ser contestada por ninguém.
Por isso mesmo, quando, no começo de 1985, a revista Persona (número 10), publicou o “Caderno” de Camilo Pessanha, com manuscritos e anotações e muitas correções a manuscritos anteriores e mesmo a textos recortados de jornal, foi um choque. O melhor testemunho do choque foi um artigo de Alfredo Margarido, na Persona 11/12, intitulado justamente “Camilo Pessanha, poeta da escrita”.
Sobre o poeta sem escrita, um abúlico, porque fumava ópio, e portanto seria incapaz até mesmo de escrever e publicar a sua própria obra, escreveu muito bem Alfredo Margarido, na indignação da primeira hora, em 1985:
“Em síntese: a imagem de Pessanha tal como ela tem sido divulgada, reforçada pela enorme massa de tolices acrescentadas por João de Castro Osório não resiste à análise. É certo que Camilo Pessanha se drogava, mostrando-se um bom consumidor de ópio. Mas já alguém pensou em condenar as personalidades dos drogados ilustres da literatura europeia, de Coleridge a Thomas de Quincey, de Baudelaire a Henri Michaux? Não passaria pela cabeça de ninguém a ideia triste de acoimar de ‘abúlicos’ tais criadores, sendo a droga um elemento integrado à criação, como o era também a aguardente de Fernando Pessoa.”
Entretanto, outra lenda persiste. Essa porque ainda não se encontrou outro caderno – que talvez nunca se encontre, dada a incúria dos testamenteiros com o legado do poeta –, mas que foi visto por pelo menos duas pessoas, de cujo testemunho, nesse assunto, não se tem qualquer motivo sério para duvidar. E quanto a isto, Margarido não faz justiça a João de Castro Osório.
Trata-se da lenda de que Pessanha nunca aprendera chinês a ponto de traduzir daquela língua, e portanto não o fez – como se Pound tivesse aprendido chinês a fundo para traduzir o que traduziu...
Ainda hoje se repetem argumentos sem peso, todos baseados na suposta abulia do poeta. E não há nada que pareça convencer os descrentes contumazes nem mesmo a conceder ao poeta o benefício da sua dúvida – que ele, por sinal, orgulhoso como era, certamente desdenharia.
O fato, quanto a mim, é que temos 3 documentos escritos.
O primeiro, em importância, é um artigo que Carlos Amaro, amigo dileto do poeta, publicou quando da sua morte, na revista “Ilustração”. Em certo ponto, escreveu:
“Não é esta a hora da crítica serena à sua obra, demais tanta coisa anda dispersa, tantas composições só começadas, mas tendo, contudo, o bastante para valer bem a pena publicá-las, trabalhos sobre a língua, literatura e poesia chinesas – mais de sete mil páginas vi eu escritas em letra quase microscópica, da última vez que Camilo Pessanha esteve em Lisboa –...”
E João de Castro Osório, em 1969, no meio da massa de comentários a que se refere Margarido, declarou que Pessanha, ao regressar a Macau em 1916, esperava contar com algum auxílio oficial para que se copiassem e publicassem as numerosas traduções de literatura chinesa que ele tinha feito e recolhia num caderno. Caderno esse que Castro Osório examinou e por isso mesmo lamentava que não se tivesse feito “o completo acabamento e publicação, ao menos, das muitas obras que enchiam o volumoso caderno, que tive por algumas horas em meu poder, onde Camilo Pessanha juntara as suas traduções poéticas da literatura chinesa”. E acrescenta: “foi um verdadeiro crime contra a cultura portuguesa ter-se menosprezado o valor desta colaboração”. Um crime que, em certo sentido, se perpetua, ainda hoje, por aqueles que acham mais fácil desprezar dois testemunhos coincidentes, em nome da facilidade da acusação banal de “abulia”.
Por fim, basta ler com atenção a correspondência coligida por Daniel Pires e publicada em coedição pela Biblioteca Nacional e Editora da Unicamp. Lá se encontra, por exemplo, esta declaração de Pessanha a Carlos Amaro, numa carta de março de 1912:
“Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, - no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão.”
De tudo o que lemos nessa e em outras cartas resulta um perfil atormentado, mas nada que se pareça com a figura do abúlico incapaz de escrita poética ou de aprendizado do chinês ou de tradutor dessa língua. Abúlicos, no sentido mais amplo, talvez sejam os críticos renitentes, na preguiça de enfrentar os lugares comuns desta lenda, como antes não enfrentaram da outra, a do poeta sem escrita.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sobre Camilo Pessanha e a Clepsydra


Por ocasião do centenário da publicação, por Ana de Castro Osório, da Clepsydra, fiz algumas postagens no Facebook que talvez tenham interesse.

Disponho a seguir os links:


Uma entrevista sobre a Clepsydra

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3525848700782748/?d=n


Sobre as lendas

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529451537089131/?d=n


O caso do poema Violoncelo

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529493143751637/?d=n


Sobre fotos de Camilo Pessanha

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529976873703264/?d=n


Sobre a angústia de decidir qual a lição de um soneto:

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3530032623697689/?d=n



sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contributo à biografia de Plínio Martins Filho*

Entrevista a Ulisses Cappozoli


1)    Como e quando vocês se conheceram e que interação tiveram?

Conheci o Plínio por intermédio do Ivan Teixeira. Ivan dirigia uma coleção na Ateliê. Uma coleção que publica clássicos em língua portuguesa, em edições cuidadas, cheias de notas de apoio à leitura. Convidou-me para redigir uma apresentação do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Isso deve ter sido na segunda metade da década de 1990. Talvez tenha estado com o Plínio antes, em alguma outra ocasião. Mas minha lembrança mais forte data desse momento. 
Ivan era uma pessoa muito absorvente, um intelectual notável, cheio de planos. Plínio tinha nele o parceiro ideal. Plínio é um homem tranquilo, que gosta de ouvir, que aprecia o conhecimento. Ivan e ele formavam um par fantástico e creio que as qualidades de ambos deram o tom da parte acadêmica da Ateliê: seriedade, firmeza, comprometimento, entusiasmo.
Do que me lembro, apreciei de imediato o ar modesto e gentil do Plínio, e seu real interesse nos livros e nas questões editoriais implicadas por uma coleção desse tipo, destinada a formar um fundo de catálogo dirigido à formação de leitores.


2)    Que contribuição mais específica ele deu para a editora da Unicamp. Em que estágio ela estava, quando começou a colaboração a que você se refere?

Quando assumi a direção da Editora em 2002, não havia praticamente nenhuma estrutura. Praticamente falida, com um catálogo problemático e funcionários sem treinamento, aquilo era um caos. Desde meu primeiro encontro com o Plínio, fui-me aproximando dele, por admiração e também porque comecei a me envolver com a coleção da Ateliê. Na sequência, por intermédio do Ivan, me aproximei da Edusp, tendo inclusive, por sua indicação, publicado lá minha tese de livre-docência.
Minha primeira ação, quando fui convidado para dirigir a Editora da Unicamp, foi, portanto, ligar para o Plínio e perguntar-lhe o que achava. Como ele me entusiasmasse, perguntei-lhe se poderia contar com ele. Essa era a condição para eu assumir.
E assim foi: fui a São Paulo várias vezes e especulei tudo o que podia. Depois, a cada passo, ligava para o Plínio, com ele discutia as estratégias. E pude apreciar uma qualidade do seu caráter: Plínio nunca é impositivo. Embora seja um dos maiores editores brasileiros, nunca disse algo como “faça assim...”, ou “o certo é...”. Sempre partia da sua experiência, sugeria, ouvia.
Além disso, pude contar com ele para qualificar o quadro funcional da Editora. Revisores, preparadores e administradores foram assistir aulas na ECA, estagiar na Edusp e puderam sempre recorrer à nossa irmã mais velha no sistema público paulista, para estabelecer rotinas e procedimentos.
Quando finalmente encontrei uma pessoa capaz de gerenciar todo o processo de produção, foi ainda o Plínio de grande valia para orientar os primeiros passos que fazíamos para ter uma estrutura técnica independente da direção acadêmica – o que, por sinal, valeu a sobrevivência da Editora da Unicamp, no período posterior, quando ela quase foi outra vez desmantelada.


3)    Que papel ele teve em termos de contribuição para o desenvolvimento de outras editoras universitárias?

Plínio nunca foi político nem fez proselitismo. Assim, sua contribuição se deu basicamente pelo exemplo e pelo acolhimento. O acolhimento sempre foi notável: qualquer professor levado pelas circunstâncias a assumir uma editora sempre teve nele um mestre disponível e um amigo para os desabafos. Foi assim comigo, como foi com o diretor da editora da UFPR e a diretora da UEL, entre vários outros.
No que toca ao exemplo, é público e notório que o trabalho do Plínio na Edusp estabeleceu um novo patamar para a edição universitária. Além da qualidade editorial propriamente dita, que é a mais alta possível, Plínio nos mostrou que construir uma identidade visual era necessário. Todos reconhecíamos de longe os livros da Edusp. E aquilo sempre foi uma inspiração para muitos: livros sóbrios, bem feitos, bem planejados, miolo e capa em harmonia, uso racional de logotipo, distribuição dos títulos em coleções consequentes. Sobretudo, mostrou que uma editora universitária não precisava ficar a dever, em qualidade e apresentação, a nenhuma editora privada. Pelo contrário, podia disputar, com as melhores, os prêmios todos, do conteúdo específico ao projeto gráfico.



4)    Plinio chegou à USP num contexto comparativamente incomum (não tinha mestrado nem doutorado). Como você interpreta essa condição. De alguma maneira ele rompeu um certo paradigma, no sentido de não ser um, digamos, “iniciado” do ponto de vista acadêmico?

Há dois Plínios, e só a cegueira institucional da USP é que não permite que sejam um só. Quero dizer: há o funcionário Plínio, lotado na Edusp; e há o professor Plínio, lotado na ECA, no curso de editoração. Ambos são um só, evidentemente, e se a USP fosse uma universidade menos engessada, teria ali um profissional raro em qualquer parte do mundo: um professor de notório saber, capaz de formar gerações e gerações de editores, e de gerir a maior e melhor editora universitária do Brasil.
Lembro-me sempre, quando penso nisso, no caso de Alexandre Eulálio. Foi meu colega no IEL. Um homem de saber incomum na área da literatura e da cultura, de modo geral. 
Alexandre não tinha título universitário. Por isso a Unicamp lhe conferiu um título de doutor por notório saber e o contratou como professor em tempo integral.
Já na USP, o que ocorreu? Exigiram do Plínio uma tese de doutoramento, que ele fez tardiamente, pois esse não era o seu perfil. A tese é um livro maravilhoso, o “Manual de Editoração”. Mas não é uma tese acadêmica. Ainda bem, porque é um trabalho diferenciado, que só um grande editor poderia ter feito.
O problema da USP é não compreender a grandeza de uma pessoa como ele. Por isso, relega-o a tempo parcial. De modo que sua atividade termina por ser restrita, seu enorme potencial termina por ser subaproveitado pela universidade.
E, por fim, há a mesquinharia dos jogos políticos: um dos maiores editores do Brasil foi afastado da direção da Editora que construiu, e substituído por pessoas que podem ter boa vontade, mas não formação ou experiência no mundo editorial. Pior: pessoas que, por conta da circunstância interna das mesquinharias político-acadêmicas, sequer se socorreram do saber do antecessor, nem trataram de se esforçar para corrigir o erro que foi a universidade tê-lo afastado da função que ele pode desempenhar como ninguém.
Quando ao fato de ele ter chegado sem doutoramento, só posso louvar a amplitude de visão de João Alexandre Barbosa. Este, sabendo-se sem condição de gerir uma editora (como eu também tinha consciência disso, e qualquer professor subitamente designado para tal função deve ter...), aceitou com a condição de ter ao seu lado o Plínio, que ele conhecia da Perspectiva. Foi graças ao João Alexandre que o Plínio veio para a USP. E graças a essa decisão, a Edusp se tornou o que ainda é hoje, apesar de serem já sensíveis os sinais de seu declínio como editora de ponta. O resto da história todos conhecem: num momento em que o país mergulha num crescente obscurantismo caipira e ressentido, Plínio é retirado da direção da Edusp e fica restrito a atividades de segunda importância. A rigor, fica confinado num espaço de todo indigno da sua formação e competência.

  
5)    As universidades brasileiras não têm certa resistência em aceitar o conhecimento, digamos vivido, prático, sem que esteja acompanhado de certa formalidade acadêmica?

Nós somos o país dos bacharéis. Como respondi acima, poucas vezes se vê um gesto como o da Unicamp, ao atribuir a um dos maiores intelectuais brasileiros um título de notório saber, que lhe permita trabalhar e orientar estudantes.
No geral, o carreirismo impera entre nós. Muitos gostam da formalidade vazia a ponto de inserirem em seus currículos o absurdo título de “pós-doutor em...”
Mas sobre isso falei na resposta anterior.
  

6)    Como você avalia uma experiência dessa natureza? Plinio teve algumas resistências (por exemplo, recusa em que monografia de mestrado pudesse ser transferida para doutorado, algo relativamente comum no meio acadêmico). Como interpretar esse ambiente?

Plínio foi um outsider numa universidade extremamente conservadora, engessada, que ainda vive das glórias do passado. Creio que muitos setores da USP nunca puderam assimilar a ideia de que a competência acadêmica pode ser adquirida na prática, no exercício consequente de uma atividade.
Sobretudo, o que julgo fundamental para entender o porquê de a USP ter aproveitado pouco o Plínio no trabalho acadêmico é que essa universidade, desde a publicação da famosa “lista dos improdutivos”, passou a considerar como produção (e a enfatizar desmesuradamente como produção) os papers acadêmicos. O lado formativo, que sempre foi a alma e razão de ser da universidade, ficou em segundo plano. O professor termina por ser inferior, do ponto de vista prático e de avaliação, ao “pesquisador” (seja lá o que isso queria dizer na área das humanidades). Plínio é, essencialmente, um formador, um professor. Não é um homem que publica artigos acadêmicos. Aliás, na sua área, no seu domínio específico que é a editoração, isso nem sequer é possível. De fato, pode-se falar muito sobre história do livro, circulação do livro, aspectos materiais da leitura etc. Mas sobre concepção e produção de livros, administração de editora, política de vendas, equilíbrio entre o Estado e o mercado na produção e venda de livros, que interesse têm artigos acadêmicos?
Ao restringir a avaliação do desempenho ao paper, a universidade dá provas de grande cegueira, e sacrifica o que sempre foi sua razão de ser: formar pessoas. Não é à toa que cada vez mais “dar aulas” é visto como perda de tempo pelas novas gerações de docentes que se entendem como pesquisadores em busca do próximo artigo a publicar em inglês...


7)    Em termos qualitativos e mesmo quantitativos, como você avalia a produção dele na Edusp?

Já falei sobre isso. Plínio foi a alma da Edusp. E por conta de seu trabalho e dedicação ela se tornou o que é. Ou foi.


8)    Qual ou quais as contribuições dele foram mais promissoras tanto para a Edusp quanto na parceria que tiveram em relação à Editora da Unicamp?

Também já falei sobre isso. A competência técnica, apoiada num grande amor ao livro e à leitura, foi sua contribuição principal. Nas parcerias com a Unicamp e outras, creio que sua contribuição principal foi sua vontade de ensinar e ajudar.


9)    Qual a situação, de modo geral, das editoras universitárias no Brasil e que perspectiva você enxerga para elas?

Sobre isso posso lhe enviar um artigo específico sobre editoras universitárias, que sairá em breve em volume. Mas, de modo geral, creio que atravessam um momento difícil. Não vejo possibilidade de que se repita o momento de esplendor, que se localiza mais exatamente entre a posse de João Alexandre e a substituição quase simultânea dos três diretores das mais atuantes editoras universitárias do Brasil: a da UFMG, a da UNESP e a da USP. O fato de todos, com longo tempo de direção, terem sido alijados num curto espaço de tempo, é um marco cronológico importante – e um sinal do fim de uma etapa.

10) Uma editora como a da Unicamp tem que diferenças, se comparada à Edusp ou outras editoras universitárias no Brasil?

Sobre a Editora da Unicamp tenho pouco a dizer. Assim como sobre as demais. Deixei a direção há 6 anos. Então o que eu pudesse dizer agora dependeria de me debruçar sobre o catálogo atual de cada uma, o que não fiz.


11) Plínio recusa a ver-se como um “intelectual”, ainda que faça um trabalho intelectual e tenha relacionamento estreito com uma comunidade intelectualizada. Como você entende essa recusa da parte dele?

Plínio não é um “intelectual” no sentido que essa palavra tem no estrito contexto universitário. Não é um homem de teorias, não é um produtor de artigos acadêmicos, não passa a vida a correr atrás de mais linhas para o seu Lattes, não fica exibindo indiretamente o currículo o tempo todo em conversas sociais. 
É um intelectual, porém, como muitas pessoas dentro e fora da universidade: é um grande leitor, um melômano, um apaixonado pela história do livro e da edição, que conhece como poucos. Mas eu entendo completamente que não queria se ver como “intelectual”. Eu mesmo não gosto dessa palavra se for aplicada a mim. Prefiro ser identificado como professor. Ele, como editor.

12) O que significa editar perto de 1.600 títulos em uma editora universitária?

Significa ter a competência de administrar o caos. E também a humildade de saber que em algum ponto se vai falhar, atrasar, escolher mal. Mas, sobretudo, significa que, depois de uma experiência como essa, e do sucesso comprovado, você é tudo menos uma peça dispensável. Significa – não me canso de repetir – que deixar uma pessoa com tal cabedal afastada do centro produtivo da universidade é uma demonstração de cegueira ou de mesquinharia indignas de uma grande universidade como a USP.
  

13) Qual o contexto, neste momento, das editoras universitárias em relação às comerciais?

As editoras universitárias estão enfrentando um grande desafio. Como as teses agora são todas públicas, na forma eletrônica, ou as editoras se tornam verdadeiramente editoras, no sentido de obrigar que uma tese seja submetida a uma radical edição para virar livro, ou então se resignam a produzir material de apoio: traduções, livros didáticos, manuais. Ou, pior ainda: a editora pode ceder à tentação de publicar apenas trabalhos de seus docentes e estudantes que não passaram pelo crivo de uma banca – e, dentre eles, justamente aqueles que outras editoras não têm interesse em publicar.
O caminho da concorrência com as editoras comerciais, pela abertura do catálogo a títulos não acadêmicos, por outro lado, parece-me perigoso. Não só porque aí não se justificaria manter uma editora universitária, mas principalmente porque as verbas públicas tendem a encolher, caso em que não há justificativa para empregá-las num lugar onde a iniciativa privada pode atuar. 
  

14) Qual sua visão em relação à perspectiva do livro impresso, em comparação à versão eletrônica?

As edições eletrônicas tendem a substituir grande parte das impressas. E aqui entra o papel do editor. Um bom editor é aquele que sabe explorar as potencialidades gráficas a tal ponto que o livro em papel tenha um diferencial notável em relação ao eletrônico. Cito como um exemplo: os dois volumes idealizados pelo Plínio e publicados pela Edusp, sob o título “A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX”. Esse, que conheci em manuscrito, era uma tese de livre-docência. Entre essa primeira versão e o que foi publicado, tudo mudou: o editor fez a diferença, e o que hoje temos é uma obra-prima editorial. Outro exemplo é a edição da “Divina Comédia”, com desenhos de Botticelli, publicada em conjunto pela Ateliê e Editora da Unicamp: um livro que é outra obra de arte, e que nunca seria possível em forma eletrônica, inclusive porque exige do leitor uma inversão do sentido da leitura, quando a narrativa atravessa o Inferno e começa a subir em direção ao Purgatório.
Mas mesmo quando a intervenção do editor não é tão decisiva, eu creio que, por enquanto, o livro em papel persiste. Porque ele ainda representa um filtro de qualidade: tudo pode ser publicado caseira ou industrialmente na forma eletrônica a custo relativamente baixo; mas se algo é publicado em papel, com custo alto, supõe-se que seja algo que tenha merecido o investimento. Esse é um papel fundamental das editoras: filtrar. Mas no caso das editoras universitárias, esse papel é ainda mais importante, porque para elas não é tão importante o filtro (digamos assim) constituído pela análise do investimento e da previsão de retorno, quanto o da qualidade. Isto é: uma editora acadêmica, ao publicar um livro, direta ou indiretamente chancela a sua qualidade e a sua relevância para um dado campo do saber. Mesmo que ele não dê retorno financeiro.
Entretanto, a longo prazo, creio que o livro digital irá substituindo gradativamente a maior parte dos livros impressos, especialmente os de caráter mais técnico, numa ponta, e os de pura diversão, na outra.

  
15) Como é editar livros numa editora universitária, num ambiente claramente competitivo, mas diferente do que ocorre com editoras comerciais?

Não creio que o ambiente das editoras universitárias seja claramente competitivo. Há muita emulação. Nesse sentido, a Edusp era o padrão: a barra sobre qual todos queriam poder saltar. Mas a ABEU, por exemplo, é um órgão destinado a promover a cooperação e parceria, inclusive no que toca à comercialização dos livros. Nem sempre conseguiu, porém, fugir às questões de instrumentalização política. Por isso mesmo, a Edusp, a editora da UEL, a da UFMG e a da Unicamp tentaram, em tempos, criar a Liga de Editoras Universitárias – destinada exclusivamente a promover a parceria, cooperação e comercialização dos livros acadêmicos. De modo geral, porém, o ambiente me pareceu sempre muito mais cooperativo do que competitivo.
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*Ulisses Cappozoli está redigindo uma biografia de Plínio Martins Filho, ex-diretor da Edusp e editor da Ateliê Editorial. Pediu-me, como subsídio ao seu trabalho, que contasse um pouco da história comum: que lhe falasse do período em que trabalhamos juntos como autor e editor, e do tempo em que trabalhamos lado a lado como editores - ele na Edusp e eu na Editora da Unicamp. Para isso, enviou-me uma série de questões, que respondi rapidamente, porque o trabalho está em andamento. Entretanto, a entrevista não será publicada: foi solicitada apenas como material de base, que o autor incluirá da forma que couber melhor na sequência narrativa, combinado a outras entrevistas e depoimentos. Sendo assim, pensei que valeria talvez a pena publicá-la na íntegra. Principalmente porque, imagino, aquela parte mais propriamente pessoal - que não se evita ao escrever de impulso - não tem como ser aproveitada: digo, o tom, a afetividade na confissão da dívida.