Oliveira Martins e o Brasil
[publicado na revista Remate de Males, 22 (2002), e reproduzido
no volume Estudos de literatura
brasileira e portuguesa (Ateliê, 2007)]
Na
história da cultura portuguesa do século XIX, um dos atores coletivos mais
importantes é o que se convencionou chamar ‘Geração de 70’. Por esse nome,
designa-se um conjunto de intelectuais
que são assim reunidos por neles se reconhecer o desejo de proceder a uma
campanha de reforma da nação, a partir de ideais republicanos ou socialistas.
Reforma essa que se apresenta primeiramente como um esforço de submeter a
processo a história do país e da constituição do império ultramarino.
O
momento central de constituição pública do grupo, que reflete inclusive no rótulo
atribuído à ‘Geração’, foram as Conferências Democráticas, de 1871. Do
programa bastante amplo, como se sabe, apenas cinco foram proferidas: a de
abertura, a de Antero, sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares
nos últimos três séculos; a de Augusto Soromenho, sobre A literatura
portuguesa; a de Eça, sobre A nova literatura; e a de Adolfo Coelho,
sobre O ensino em Portugal. Suspensas por ordem governamental, o que delas
restou, além do programa ambicioso e revolucionário, foi a atitude comum que
animava os vários textos: promover, pela denúncia do estado atual de estagnação
e atraso da cultura portuguesa, os valores modernos, científicos e
revolucionários. Nesse sentido, o texto que sintetiza o programa de revisão
histórica das Conferências e da ‘Geração’ é mesmo o de Antero de
Quental, e não creio que exagere ao dizer que é esse talvez o texto capital da
cultura portuguesa no século XIX, pois representa, simultaneamente, um ponto de
chegada e um ponto de partida. De chegada porque dá nova síntese, numa clave
revolucionária, a temas e questões que já vinham de Herculano. De partida,
porque é das teses polêmicas desse texto seminal que nascem, por decorrência ou
por contradição, algumas das obras fundamentais para a definição da cultura
portuguesa do final do século XIX e começo do XX.
O
texto de Antero desenvolve, de modo brilhante, o que depois se tornou o tema
central do tempo: o diagnóstico da decadência portuguesa. Essa é a palavra‑chave
no pensamento dessa época, e a história das várias modalizações do sentimento
de decadência na segunda metade dos oitocentos já foi muito bem feita por
António Machado Pires, num livro publicado em 1978.
Dentro
do propósito crítico e revolucionário que se reconhece sob a denominação de
‘Geração de 70’ – e necessitando, portanto, desse enquadramento, para ser
adequadamente compreendido –, avulta um conjunto de trabalhos que, pelo seu
escopo, pela sua grandeza e pela presença decisiva que teve e ainda tem na
cultura luso‑brasileira, atrai de imediato a atenção de quem quer que se
interesse pelo estudo das coordenadas ideológicas do final do século XIX. Trata‑se
da obra de Oliveira Martins.
Com
o mesmo objetivo com que foram pensadas as “Conferências”, isto é, com o objetivo de educar o público, de
promover a sua atualização como estratégia para reformar a sociedade e reverter
a decadência nacional, projetou e compôs Martins uma vasta “Biblioteca das Ciências Sociais”, em
que os volumes se referem mutuamente e cobrem campos muito amplos, da antropologia
à crematística, da etnologia à história do sistema colonial português, da
história de Roma à crônica do Portugal seu contemporâneo.
No
centro desse grande painel, como um eixo sobre o qual giram todas as questões
maiores, está uma questão e um país. O país é Portugal; a questão é a
decadência e a tentativa de discernir algum caminho possível para revertê‑la. A
alicerçar o conjunto, fazendo de livros de divulgação (livremente adaptados dos
autores mais prestigiosos do tempo) obras que apresentam interesse próprio,
está o estilo poderoso de Oliveira Martins, a arte verbal que faz dele, na
opinião de António Sérgio, o "mais rico e substancial de todos os
prosadores da nossa língua".
É
talvez ao estilo, à qualidade artística do texto de Martins que se deve
atribuir parte do persistente interesse pelos seus livros em Portugal e,
principalmente, no Brasil. A
História de Portugal lê‑se como um romance
emocionante, cheio de suspense, de presságios e de lances dramáticos e
pitorescos. As suas biografias dos homens de Avis nada ficam a dever, em termos
de arte verbal, às boas novelas históricas oitocentistas. Daí que, ainda em
1913, na resposta a um inquérito literário, um intelectual brasileiro, Dantas
Barreto, listasse, entre os seus autores preferidos, Oliveira Martins,
juntamente com Shakespeare, Goethe, Camões, Alexandre Herculano e Eça de
Queirós...
Mas, não creio que seja só o estilo de Martins que responda pela sua
permanência no centro do interesse da cultura brasileira do final do século XIX
e início do XX. Penso que, além do estilo, interessa ao leitor brasileiro a sua
peculiar visão dos rumos da cultura portuguesa e do que foi a colonização do
Brasil.
Hoje
não são certamente muitos os que, no Brasil, tiveram a oportunidade de conhecer
diretamente o texto e as ideias de Martins. Mas essas ideias são ainda parte da
cultura brasileira de uma forma muito mais intrínseca do que se poderia parecer
a uma primeira vista de olhos.
Um
episódio ocorrido quando do centenário de morte de Oliveira Martins pode servir
aqui de exemplo.
Em
1995, no âmbito das homenagens, foi publicado um volume reunindo a
correspondência entre ele e seu amigo e companheiro de geração, Eça de Queirós.
A publicação, de caráter estritamente acadêmico, provocou uma inesperada
resenha de Antonio Callado, na
Folha de São Paulo. Inesperada porque
poucos dias antes o jornal trouxera uma matéria sobre o livro, e porque a
coluna do autor de
Quarup pouco se ocupava de assuntos relativos à
cultura portuguesa, e menos ainda de temas ou textos acadêmicos.
O
notável no texto de Callado era o tom: expunha aí o escritor brasileiro toda a
sua calorosa admiração pela prosa de Martins, de que transcrevia várias
passagens, deixando evidente seu fascínio. Mais do que isso, servia a resenha
de pretexto para que apresentasse uma confissão de o quanto a obra do escritor
português tinha marcado sua visão de Portugal e das raízes históricas da
civilização brasileira: "talvez eu nunca tenha sentido tanto a ligação
lusitana como quando li, no meu voluntário exílio em Londres, durante a guerra,
a História de Portugal de Oliveira Martins", escreveu ele.
Outro
ponto interessante dessa resenha é que nela Callado atribuía à influência de
Martins o tom galhofeiro com que, vez por outra, na sua coluna, tinha tratado
Portugal, principalmente quando se ocupou de comentar o filme Carlota
Joaquina (1995)
Ora,
além de nos dar um depoimento eloquente da persistência, no Brasil, da
influência dos livros de Oliveira Martins, esse texto de Callado, ao referir o
filme recentemente lançado, aliava ao testemunho pessoal um testemunho
cultural, pois Carlota Joaquina era a mais recente atualização artística
grandemente tributária da História de Portugal. De fato, quem quer que
tenha lido as obras de Martins percebe imediatamente que, apesar do esforço
enorme de Oliveira Lima para recuperar, numa clave mais positiva, o papel e a
figura de D. João VI, Carlota Joaquina bebe em Martins todos os
estereótipos sobre os quais monta a sátira da corte e da balofa figura do
monarca e sua mulher ninfomaníaca.
Para
alguns intelectuais portugueses que visitam o Brasil, essa permanência das
obras de Martins no horizonte da cultura brasileira causa sempre algum espanto.
Um bom exemplo ocorreu nesta mesma ocasião: o Prof. João Medina, que por acaso
estava em São Paulo quando Callado publicou a referida resenha, dirigiu‑lhe uma
longa carta, manifestando seu espanto por Martins ser assim uma referência tão
central para o intelectual brasileiro, e aproveitando a ocasião para lhe
apresentar o que julgava ser de fato o lugar de Martins na historiografia
portuguesa... Pondo de lado o caráter anedótico do episódio, não deixa de ser
curiosa essa permanência do historiador português como presença ativa. Afinal,
desde 1879, que é o ano da publicação da História, mudaram os paradigmas
que regem o discurso histórico e aumentou muito o conhecimento documental sobre
as várias épocas retratadas por Martins. Entretanto, basta observar as
bibliografias dos programas de literatura portuguesa de várias universidades
brasileiras no final do século XX para ver que em muitas ainda constam, como
textos referenciais, os livros de Oliveira Martins. A que se deveria isso? Como
explicar a persistência da visada histórica do escritor português ao longo de
um século inteiro?
Reservando
sempre o recurso à força do estilo, à evidente qualidade literária de sua obra,
há outras razões para que ele tenha sido tão lido e meditado, principalmente no
Brasil. Uma delas é que, como se reconhece cada vez mais claramente nos dias de
hoje, encontra‑se em Martins uma profunda e original interpretação da sociedade
portuguesa.
Malgrado
o que possa haver de incorreto, de lacunar, do ponto de vista documental, e
mesmo de apressado e tendencioso no julgamento dos dados de que dispunha, ainda
parece plausível a afirmação de António José Saraiva, "ele entendeu que a
realidade se processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que
os historiadores comuns, julgando‑se cientistas, procedem de fora para dentro,
como é habitual na análise científica, mas afastando‑se cada vez mais daquilo
que pretendem explicar (...) É por isso – continua Saraiva – que, em comparação
com esta
História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como
sombras imperfeitas."
Por
outro lado, em nenhum outro escritor português do século XIX se poderá
encontrar uma crítica tão feroz, sistemática e radical do seu país e da sua
cultura. Assim, ou porque os nossos escritores reconhecessem a propriedade da
intuição martiniana sobre a constituição da sociedade portuguesa, ou porque
Martins oferecesse, ao sentimento antilusitano exacerbado no período
republicano, farto material de combate e embasamento crítico, – ou por essas
duas razões combinadas, foi o escritor português aproveitado muito extensamente
por pensadores que, no início do presente século, se dedicaram a refletir sobre
o Brasil e sobre o significado, na nossa vida política e social, da herança da
colonização portuguesa.
Seja
como for, do que não há dúvida é que boa parte da literatura de caráter
reflexivo sobre a sociedade brasileira, no final do século XIX e começo do XX,
tem como referência importante, a negar ou a afirmar, a obra histórica de
Oliveira Martins. Suas teses, muitas vezes já desvinculadas de seus textos,
formam uma espécie de solo comum de algumas das mais fortes interpretações do
sentido da herança portuguesa na formação do Brasil. Dissolvidas, aclamadas ou
contestadas, suas ideias parecem ter penetrado profundamente na cultura do
país. E é por isso que a leitura de qualquer dos livros de Oliveira Martins
provoca ainda hoje em qualquer brasileiro culto, como provocou em Antonio
Callado, uma espécie de efeito de reconhecimento: está ali, sistematizado num
conjunto coeso, muito do que no Brasil se foi pensando do que foi Portugal na
história da civilização ocidental.
Um
comentário rápido de alguns textos e documentos da cultura brasileira do final
do século XIX e começo do século XX permitirá aquilatar melhor a receptividade
que tiveram no Brasil os livros de Oliveira Martins. Antes, porém, já que os
seus livros não continuam talvez a ser tão lidos, vale a pena proceder a um
resumo das suas ideias centrais sobre Portugal e, principalmente, sobre o
Brasil.
A
História de Portugal é um livro de cuja leitura, nas palavras de António
Sérgio, uma pessoa sai confusa e perturbada, com "cinco impressões
essenciais" sobre o país: em primeiro lugar, um sentimento geral de
desencanto, de incapacidade, de bolor, desde o século XVI até agora; depois, a
ignomínia dos lauréis da Índia; e o [...] ingênito sebastianismo; e a negra
educação dos jesuítas; e a série mofina dos reis de Bragança, desde D. João IV
a D. João VI".
É
verdade. De um modo geral, a História de Martins é mesmo um panorama
triste e pessimista da vida da nação. Mas cheio de cores, de ação e lances
romanescos. Forma a sua espinha dorsal, mais do que a narração objetiva dos
acontecimentos dispostos em ordem cronológica, uma série de quadros impressivos,
dramáticos, mais ou menos trágicos e relativamente completos em si mesmos. Do
meu ponto de vista, além das que Sérgio assinalou há uma sexta "impressão
essencial": a de que o fio condutor da narrativa é a exposição de uma
persistente e equívoca loucura coletiva, que acaba por dirigir o fluxo dos
acontecimentos marcantes na história pátria. Persistente, porque não é
privativa de nenhuma das casas reinantes; e equívoca porque, de acordo com o
momento, ora parece bastante desprezível, ora puramente trágica, ora sublime.
A
maior parte do livro, como já se depreende das impressões de Sérgio, gira à
volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio depois de 1580 é
visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutilmente um indivíduo
condenado, um demorado e arrastado processo de decomposição de um corpo social
já sem vida própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, a narração é cheia de
prefigurações da desgraça, de que Alcácer‑Quibir é apenas o desenlace
formidável.
Outra
tese fundamental que organiza a visada martiniana é a de que, inaugurado sem
uma base rácica ou geográfica, Portugal se afirma como nação com a dinastia de
Avis, quando encontra e realiza a sua vocação marítima.
É
no desenvolvimento da vida marítima, ou melhor, na transformação de Portugal de
país agrário em país dedicado ao comércio por mar que Oliveira Martins vai
radicar a própria sobrevivência da nação portuguesa, garantida pela Revolução
de 1383: "Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força
absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular", diz ele na sua
História e completa, no
Portugal nos Mares: "Portugal é
Lisboa, escrevi eu algures. Devia ter dito antes que Lisboa absorveu Portugal,
pois esta expressão corresponde melhor à verdade histórica. (...) Desde que a
vida marítima e ultramarina nos absorveu de todo, a capital e o seu porto, como
um cérebro congestionado, mirraram as províncias. Portugal passou a ser Lisboa:
uma cabeça de gigante num corpo de pigmeu".
Mas
justamente nessa frase já se mostra o destino trágico da nação. Formado assim
para o mar, sem corpo que sustentasse o desenvolvimento desproporcional da
ciência e do comércio marítimo, Portugal duraria enquanto durasse o desígnio
que o criou: a exploração e o domínio do oceano.
É
um curto período, esse da pujança da nação. Do ponto de vista de Oliveira Martins
não vai além do reinado de D. João II. Já no tempo de D. Manuel, a tônica da
sua narrativa é a senectude e a decadência. Tanto é assim que o livro V enfeixa
sob o título de "A Catástrofe" os reinados de D. Manuel, D. João III
e D. Sebastião. Na verdade, os três podem ser lidos como encarnação da tríade
responsável pela decadência portuguesa, conforme fora descrita por Antero, no
famoso texto das Conferências Democráticas: D. Manuel é o desfecho da
aventura marítima, com a exploração criminosa da Índia; D. João III é o triunfo
do catolicismo tridentino, jesuítico e inquisitorial; e D. Sebastião é a
loucura, que só se torna realidade social, coletiva, devido ao regime político
absolutista e ao fanatismo religioso que o embasaria.
Desse
ponto de vista, com a catástrofe de África acaba Portugal – isto é, acaba aquela
primeira nação, no sentido que essa palavra tinha em seu pensamento. Portugal
passa a ser, quando muito, uma nacionalidade.
A Restauração de 1640 produzirá um outro ser político, sobre o mesmo território
e com o mesmo nome e língua. É o que lemos na Introdução à
História,
quando o Portugal restaurado é comparado à Bélgica, fruto artificial das
necessidades do equilíbrio europeu, e reduzido às proporções de um protetorado
inglês encravado na Europa, cujos feitores serão os reis da dinastia de
Bragança.
Uma
das mais fortes influências de Oliveira Martins se exerceu justamente nessa
assimilação da história de Portugal – nascimento, crescimento e morte – à
história das dinastias de Borgonha e Avis, relegando para o domínio da farsa
insubsistente a narração dos sucessos da época bragantina.
A
pergunta que, nesse quadro, se impõe imediatamente é: como se processou a colonização
do Brasil? Como foi possível a construção da nova terra portuguesa no mesmo
momento em que a metrópole morria, deixava de ser um organismo vivo? O que o
Brasil herdou de Portugal e no que o superou ou ficou inferior? As respostas a
essas perguntas, ou a algumas delas, são dadas, por Martins, em outro volume,
que se intitula O Brasil e as colônias portuguesas e que foi publicado
pela primeira vez em 1880.
Para
bem compreender as articulações centrais do pensamento de Martins sobre o
Brasil, distingamos logo de início algumas questões de fundo. Em primeiro
lugar, para o historiador Brasil e África formavam um verdadeiro sistema, em
que o lugar determinante era ocupado pelo Brasil. O domínio africano foi, para
ele, uma clara função dos interesses colonizadores da América: uma fonte de mão
de obra, e pouco mais do que isso. A esse sistema de exploração colonial opunha‑se
na economia portuguesa, com ele coexistindo, um outro: o Império da Índia, que
Martins descreve como uma empresa anárquica, baseada na conquista, no saque e
no comércio.
Cada
um desses sistemas representava um lado do gênio nacional português, uma face
de um único ser bifronte. Portanto, não se pode entender perfeitamente a
narrativa da colonização do Brasil, segundo Martins, se não tivermos em mente a
sua narrativa do império da Índia. Num caso, o desastre, a tragédia; no outro,
o sucesso e a obra imorredoura. Assim, enquanto na Índia tudo eram miragens e iniquidades,
onde "os portugueses davam larga ao seu gênio guerreiro e mercantil; na
África e na América obedeciam aos impulsos mais felizes do seu gênio indagador
e audaz”.
Já aqui se detecta o problema principal dessa formulação, que se pode
sintetizar nesta pergunta: nos termos da visão martiniana, como a mesma nação,
que desaparecerá como tal em 1580, pôde encontrar a energia necessária à grande
obra da colonização brasileira?
No
quadro conceitual da História de Portugal, o Brasil vai aparecer como
uma espécie de persistência possível dos caracteres positivos que o autor atribuía
aos homens do período de Avis. Tudo se passa como se, perdido o tônus nacional
na metrópole, tivesse sido ele preservado na população portuguesa da América,
que, afastada da fonte de corrupção que era a corte, manteve, dirigia para o
sertão interior "a mesma tenacidade com que antes [os portugueses] tinham
querido desvendar, e tinham desvendado, os segredos do mar". Era essa
tenacidade, essa força do gênio lusitano "que os impelia agora a descobrir
os segredos desses vastos e espessos sertões da África e da América
austrais."
Essa idéia recorre em várias
partes do livro. Por exemplo, quando trata do Nordeste brasileiro, escreve
Martins esta frase, devidamente enfatizada cinqüenta anos depois por Gilberto
Freyre: "a população, especialmente no Norte, constituiu‑se
aristocraticamente: isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o
Ultramar, e desde todo o princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das
turbulentas imigrações dos castelhanos na América Central e Ocidental". Já
quando trata do Sul, descobre sempre nos paulistas as qualidades mais
destacadas do período áureo da nação portuguesa: nos habitantes de São Paulo,
diz ele, "a semente do gênio descobridor dos portugueses pudera medrar
livremente, à sombra de um clima benigno e de uma colonização naturalmente
agrícola".
Mas
essa semente não germinaria, seria destruída pela atonia geral portuguesa, ao
longo dos séculos – como o foi no Norte, do seu ponto de vista – não fosse um
caso fortuito que mudou o rumo da história do Brasil: a descoberta das minas de
ouro. Eis como descreve ele a vitória do paulista sobre o nortista, que
conduzirá, ao longo do tempo, à constituição do Brasil como nação autônoma:
Na riqueza do ouro encontrou a população de
S. Paulo uma força predominante, com que impôs a sua supremacia – como
homogeneidade, como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às
províncias do Norte, cuja existência era artificial, na população toda
estrangeira, quer nos brancos portugueses, quer nos negros africanos;
artificial no regime do trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a
de uma fazenda ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo gênio
dos estadistas, e não a de uma nação nova existindo independente e autônoma,
por virtude de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia.
A
nação brasileira, portanto, vai sobreviver graças à preservação, nos paulistas,
do gênio descobridor português, fixado na terra e erguido a um lugar de poder
pela descoberta fortuita das minas, no século XVIII.
E
por que São Paulo não se corrompeu, não integrou a corrente descendente em que
Portugal mergulhou desde a segunda metade do século XVI? Perguntar isso é o
mesmo que perguntar por que Martins pôde dizer que “o Brasil se salvou
apesar
dos Braganças reinarem em Portugal”.
Esse
ponto não é devidamente esclarecido no texto. Em algumas passagens parece
sugerir Martins que foi o caráter aventureiro de que logo se revestiu a vida
paulista, com as entradas e bandeiras, que respondeu pela manutenção do gênio
explorador português nessa parte do país, enquanto as demais o perdiam pela
vida ociosa, apoiada na escravidão e dissolvida pelo luxo excessivo.
De
qualquer forma, o que importa notar é que, segundo Martins, "o espírito
aventureiro dos paulistas foi a primeira alma da nação brasileira; e São Paulo,
esse foco de lendas e tradições maravilhosas, o coração do país".
Graças a esse espírito aventureiro, haveria em São Paulo um germe de nação já
no final do século XVI. Assim, para Martins, o Brasil se forma como nação forte
na mesma época em que Portugal mergulha na mais profunda decadência. E se forma
como tal por obra dos paulistas e por obra do acaso, que foi a descoberta das
minas.
Esse
é o primeiro eixo, e o central, do livro sobre o Brasil: a narrativa da
adaptação de uma das facetas do gênio português a um novo espaço geográfico, em
que pôde sobreviver e desenvolver-se, preservado da decadência metropolitana. É
por essa narrativa que O Brasil e as colônias portuguesas se integra no
quadro mais amplo, de que também fazem parte a História de Portugal e a História
da Civilização Ibérica.
Um
segundo eixo de articulação do texto de Martins é o que se dedica às
circunstância particulares dessa adaptação, e que consiste na defesa da
escravidão do negro e da guerra ao indígena. Dele decorre, em primeiro lugar,
um sistemático combate à atividade jesuítica. Dele decorre também a parte menos
legível do seu texto, que é a exposição reiterada de sua concepção da
superioridade racial dos arianos e o esforço brutal para demonstrar, com base
na literatura racista da época, o caráter pouco humano, ou inferiormente humano
da raça negra.
Quanto
ao argumento racista, há pouco a dizer, mas a ele voltarei em breve. Já a
concepção de que o índio representa um obstáculo à expansão ariana, que deveria
ser assimilado ou simplesmente destruído, merece mais atenção, porque o combate
ao jesuíta provém da concepção de que uma sociedade indígena
"cretinizada" pelos padres representaria uma aberração histórica e a
eliminação de qualquer possibilidade de o Brasil vir a ser uma nação
civilizada.
Isso,
claro, porque, para Martins, civilizada significava, essencialmente, européia.
De modo que o libelo anti‑jesuítico que perpassa toda a História de Portugal
recebe aqui cor local e mais contundência, aliado à certeza de que a afirmação
da igualdade essencial das raças humanas era apenas uma quimera do pensamento
cristão, nada científica.
Já
no que diz respeito ao negro, o ponto interessante a notar é que, apesar das
hoje revoltantes páginas racistas, há um momento no livro de Martins em que
fala não o cientista social, não o ardoroso defensor das teorias da supremacia
da raça branca, mas o historiador-artista. Trata‑se da descrição do quilombo de
Palmares, página memorável em que, esquecendo‑se por instantes de todos os
preconceitos, o escritor celebra a cidade negra.
Afirmando
que em Palmares temos o mais belo e heroico exemplo do protesto e da revolta
dos escravos, chama‑lhe república, e diz que ali se tinha um agrupamento humano
que bem merecia o nome de nação, e que se comparava, pela forma de organização,
à Roma primitiva, e, pelo destino, à grandeza de Tróia.
Essa contradição entre os pressupostos teóricos e as necessidades da composição
artística, tão fortemente assinalável nos vários livros de Oliveira Martins,
embora extremamente interessante, não poderá ser investigada aqui. Basta, no
momento, registrar que o darwinismo social adotado pelo historiador faz com
que, tirante essa página, todo o seu livro possa ser lido como uma decidida
defesa da escravidão do negro e do extermínio das populações indígenas como
etapas necessárias à construção de uma sociedade civilizada, européia, no Novo
Mundo.
Um
último ponto a ressaltar, na visão martiniana do Brasil, é a sua preocupação
constante com o futuro da grande obra portuguesa. De duas formas essa
preocupação se manifesta, no que diz respeito ao Brasil seu contemporâneo. Por
um lado, Martins se preocupa com a falta de um passo necessário e decisivo para
a plena constituição da nação brasileira: a diversificação da economia, que ele
considera ainda de moldes coloniais, fundada na monocultura, primeiro do açúcar
e então do café. Por outro lado, assusta‑o a possibilidade de fragmentação do
vasto território, devido a uma política de imigração que ele considerava
inadequada. Como o Império incentivasse a imigração dos países nórdicos,
defende o incentivo à imigração de italianos e espanhóis, como forma de
promover a homogeneização da população, reforçando o predomínio do caráter
latino na nacionalidade brasileira. Mas esse é um aspecto da sua visada que não
será enfocado aqui, pois não diz respeito à história pregressa do Brasil, e sim
ao seu futuro e permanência enquanto unidade nacional.
Tendo
traçado o que julgo serem as teses fundamentais de Oliveira Martins, é o caso,
agora, de passar à segunda parte do trabalho, isto é: de tentar observar
algumas de suas repercussões e modalizações em textos brasileiros.
Logo
num primeiro momento, o diálogo com a obra de Martins sobre o Brasil encontra
uma expressão muito eloquente na obra fragmentária de Eduardo Prado. Amigo
pessoal de vários integrantes da Geração de 70, Prado teve longa e íntima
convivência com Martins e com Eça de Queirós.
Monarquista, católico, patriota
exaltado, Eduardo Prado não podia aceitar a condenação martiniana da Companhia
de Jesus e da sua obra catequista. Como não podia também deixar de valorizar,
na obra do amigo português, a exaltação dos paulistas como a base da
nacionalidade brasileira e a melhor expressão do gênio português transplantado
para a América. Assim, se dedicou boa parte de seu tempo a estudos sobre os
jesuítas, no intuito de mostrar, contra a opinião de Martins, a importância da
obra catequista para a definição da nacionalidade brasileira, também tratou de
corrigir a opinião daquele escritor sobre a forma e o sentido da mestiçagem
entre o europeu e o índio.
Entre
os vários trabalhos de Eduardo Prado, há um texto que interessa especialmente.
Trata‑se de uma conferência pronunciada em 1896, intitulada "O
Catolicismo, a Companhia de Jesus e a Colonização do Novo Mundo".
Veem-se aí retomadas algumas teses de Martins: o heroísmo tingido de uma ponta
de loucura, que levou Portugal a realizar uma tarefa desmedida para o seu
tamanho e capacidade populacional, e a reafirmação do papel central de São
Paulo para a constituição do Brasil. Mas o que é novo é a defesa intransigente
da Companhia de Jesus, responsável, entre outras grandes obras por duas, que
Prado destaca e que crê relacionadas: a fundação de São Paulo e a domesticação
do índio, que permitiu a mestiçagem cabocla, por ele considerada a origem da
força específica que o próprio Martins descobrira na população paulista.
A
tese mais interessante desse trabalho de Eduardo Prado é, porém, aquela que
explica o que ficara mais ou menos inexplicado no texto de Oliveira Martins:
porque em São Paulo, e apenas em São Paulo, pôde‑se preservar o antigo heroísmo
português, desaparecido na pátria‑mãe depois da morte nacional simbolizada no
desastre de Alcácer‑Quibir.
A
explicação de Eduardo Prado vai em duas direções: de um lado, tem-se o elogio
da mestiçagem, em que o branco entra com o cérebro mais desenvolvido e o índio
com "a agudeza da sensibilidade dos seus sentidos e a agilidade elástica
dos seus músculos", formando assim um tipo, não inferior, mas superior e
mais adaptado à empresa de desbravamento que foi a dos paulistas.
De outro – e este ponto é muito importante –, a afirmação de que o isolamento
de São Paulo em relação à costa teve papel decisivo na formação da nova raça.
Isso porque a localização geográfica teria permitido simultaneamente que a sua
população se mantivesse fora do "contato imediato com a gente do mar,
forasteiros e aventureiros", cujo convívio era "corruptor e
fatal", e que ali predominasse o europeu, pois o clima não lhe era tão
hostil quanto ao nível do mar. Foi essa convergência de circunstâncias que,
segundo Eduardo Prado, permitiu que no planalto se formasse o tipo adequado à
colonização dos trópicos: o cabloco paulista. São Paulo foi, assim, uma
"oficina de homens", e o berço da que poderia ser chamada a raça
brasileira.
A
tese de que o isolamento de São Paulo foi responsável pela manutenção de
qualidades que se perderam ou nunca chegaram a existir no litoral fará fortuna
crítica, pois permite separar os portugueses do Brasil (devidamente mestiçados
com o índio, é verdade), dos decadentes portugueses dos períodos filipino e
bragantino, estigmatizados por Oliveira Martins.
Compõe‑se,
dessa forma, um quadro muito interessante, que persistirá pelo menos até os anos
trinta do século XX: uma singular mistura de anti‑lusitanismo e de elogio das
virtudes portuguesas dos fundadores e propulsores do progresso brasileiro.
Ainda em Eduardo Prado não há anti‑lusitanismo, mas já nas fileiras
republicanas ele será o tom dominante, e Oliveira Martins será muito frequentemente
a referência mais forte do discurso anti‑lusitano e anti‑bragantino.
O
desolado quadro da decadência portuguesa traçado por Martins, conjugado à tese
de Eduardo Prado de que o isolamento foi a forma pela qual se mantiveram, em
alguma população brasileira, as boas qualidades étnicas do período heróico vai
reaparecer num dos textos mais importantes da literatura brasileira do começo
deste século: Os Sertões, de Euclides da Cunha. Mas já aqui o isolamento
das populações interioranas não terá sempre um valor positivo, pois tanto
servirá para preservar as boas qualidades renascentistas, quanto para
cristalizar os vícios da decadência, transplantados para o Brasil ao longo dos
séculos coloniais.
Assim,
na mesma linha de Martins e Eduardo Prado, na tipologia do homem brasileiro
distingue Euclides o habitante do litoral e o paulista, nome que designa
"os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do sul", que
resultaram da melhor aclimatação dos primeiros portugueses e da absorção, por
eles, das populações indígenas. Com o mesmo entusiasmo de seus predecessores,
vai chamar a esses paulistas "cruzados das conquistas
sertanejas", definindo‑os racialmente como os "mamalucos
audazes". Os paulistas de Euclides, como os de Martins e Eduardo
Prado, são essencialmente os habitantes do planalto. O isolamento geográfico
era simultaneamente uma proteção militar – "a disposição orográfica (diz
Euclides) libertava‑o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a
cobiça do estrangeiro" – e moral, contra a degeneração operada pelo clima
litorâneo, que "delia num clima enervante" "a força viva
restante do temperamento dos que vinham de romper o mar imoto".
Mas
se o isolamento fora benéfico na construção da raça paulista, tivera efeito
diverso sobre as populações sertanejas do Norte. Lá, a falta de contato com
outros agrupamentos humanos produzira monstruosidades, entre as quais a
religiosidade mestiça, cujos "fatores históricos" o autor vê como um
"caso notável de atavismo, na história". Segundo Euclides, que se apoia
expressamente em Oliveira Martins para traçar o quadro da decadência portuguesa
e dos fatores que a explicariam, "o povoamento do Brasil fez‑se, intenso,
com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral,
quando 'todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo
peninsular'".
Por se manterem relativamente isoladas, as populações sertanejas apresentariam,
ainda nos tempos modernos, cristalizados, os vários momentos da loucura e
degenerescência coletiva que foi a história de Portugal desde o reinado
faustoso e já decadente de D. Manuel: "Esta justaposição histórica – diz
Euclides – calca‑se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras.
Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral
da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados
que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para
completar o símile, o misticismo político do
Sebastianismo. Extinto em
Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos
sertões do norte."
Portanto,
enquanto os isolados do Sul cristalizaram o que de melhor havia na índole do
português descobridor, guardaram os do Norte apenas a herança negativa, os
vícios da metrópole decadente. E se, no primeiro caso, o contato intenso com
outros povos e culturas, poderia ser nocivo à manutenção do caráter heróico dos
mamelucos, já no segundo poderia ter amenizado talvez as taras herdadas dos
portugueses decadentes que continuaram a colonização do Brasil.
A
tese de que o isolamento preservou no Brasil os traços heroicos do caráter
português e permitiu preservar da decadência geral um significativo segmento da
população da colônia terá uma larga fortuna e muitas modalizações, que
entretanto pouco lhe acrescentam em termos de novidade. Muito mais importante do que os
desenvolvimentos das ideias de Eduardo Prado ou de Euclides, do ponto de vista
da história da influência de Oliveira Martins no pensamento brasileiro do
começo do século XX, é o que veio num volume publicado quase ao mesmo tempo que
Os Sertões, mas que, não obstante a qualidade de sua reflexão, ficou
quase esquecido ao longo de oito décadas. Trata‑se do ensaio A América
Latina – Males de Origem, de autoria de Manoel Bomfim.
Manoel
Bomfim talvez seja ainda hoje mais conhecido como o co‑autor de
Através do
Brasil, livro de leitura escolar escrito de parceria com Olavo Bilac. Sua
obra principal, porém, é o referido ensaio, que foi publicado em 1905, em
Paris, e republicado em 1938.
Nesse
trabalho, Bomfim desenvolve a tese de que o mal de origem da América Latina é o
parasitismo das metrópoles, perpetuado, depois, no parasitismo das classes
dominantes. Como avalia e resume Darcy Ribeiro, "Manuel Bomfim surgia com
um livro sábio e profundo (...) em que demonstra cabalmente, dizendo‑o com
todas as letras (...) que nossos males não vêm do povo. São, isto sim, produto
da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas
sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador,
visto como uma mera fonte de energia produtiva".
Pretendendo
dar do Brasil uma visão real, e não coada pelos preconceitos da antropologia e
das teorias políticas europeias, Bomfim produz um discurso profundamente
nacionalista e, por isso mesmo, nos termos daquele momento, profundamente
antilusitano.
E
aqui aparece uma questão muito interessante. Como organiza Bomfim o seu
discurso antilusitano? Apoiando‑se inteira e extensamente nas obras de Oliveira
Martins. Dizendo assim, é difícil fazer ideia real do aproveitamento de Martins
por Bomfim. É preciso olhar para as páginas do volume, para poder bem avaliar a
interação dos textos: praticamente todas as inúmeras citações destacadas do
corpo do discurso são do historiador português. Sílvio Romero, numa crítica
virulenta ao livro, teve a pachorra de contar as linhas escritas por Bomfim e
as que foram transcritas de Martins. Na terceira parte do livro, chegou a estes
números: das 2.276 linhas, 1.114 são do historiador português. "Mais da
metade!", exclama Sílvio, que concentra então suas baterias em Oliveira
Martins, chamando aos seus dois livros principais,
História de Portugal
e
História da civilização ibérica "dois panfletos histórico‑políticos
(...), livros perniciosíssimos, causadores de males incalculáveis entre
diletantes".
Comentando
a crítica de Romero, Darcy Ribeiro escreveu: "Pouco depois de publicada,
ela foi objeto de todo um livro de contestação do genioso Sílvio Romero. Nesta
polêmica, Sílvio desanca Manoel Bomfim procurando demonstrar que ele é um
completo idiota. Idiota era Sílvio, coitado. Tão diligente no esforço de
compreender o Brasil, mas tão habitado pelos pensadores europeus em moda, que
só sabia papagaiá‑los." É curiosa a crítica, porque silencia sobre o ponto
central: a acusão de Romero de que Bomfim papagaiava Oliveira Martins.
Ora,
sem qualquer juízo de valor, é justamente esse aproveitamento tão intenso dos
livros de Martins o que aqui mais interessa. É verdade que Bomfim discorda
profundamente de Martins em alguns aspectos fundamentais da sua interpretação
do Brasil. Principalmente das teorias racistas sobre a inferioridade congênita
do negro. Mas a visão martiniana do que foi a história portuguesa e de quais os
males principais da organização da sociedade da metrópole que se teriam
transmitido ao Brasil é o verdadeiro eixo desse livro excepcional.
O
diagnóstico dos males de origem das sociedades latino‑americanas se processa
segundo duas linhas argumentativas. Em primeiro lugar, vem a tese do
parasitismo das nações ibéricas. Em segundo, a de que os males da sociedade
brasileira se explicam em grande parte pelo que chamou de os remanescentes
do parasitismo metropolitano, cujo lugar de expressão é o Estado brasileiro,
divorciado das necessidades populares, e cujo traço político é o
conservadorismo das elites.
Para
o desenvolvimento dos dois argumentos, a obra de Oliveira Martins fornece a
base ideológica, quando não o próprio vocabulário. Mesmo a idéia do parasitismo
ocorre repetidamente em Martins, em passagens que são reproduzidas e, às vezes,
repetidas em pontos diferentes do livro. Como esta: "Enxame de parasitas
imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras,
monsenhores e castrados...(...) Portugal quase que se tornara um comunismo
monástico, em que as classes privilegiadas, fruindo todos os rendimentos,
distribuíam comedorias à nação sob a forma de empregos e outras." Essa
passagem, por exemplo, comparece duas vezes no livro de Bomfim: primeiro para
comprovar o caráter parasitário interno à própria sociedade metropolitana; e
depois, quando trata do Estado brasileiro, vemo‑la novamente, agora como
fragmento de uma colagem com um trecho de
O Brasil e as colónias portuguesas,
de modo a demonstrar a transferência da praga metropolitana para o Brasil, com
a vinda da corte de D. João VI. O trecho com que vem montada é bastante forte:
"Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em
Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o digerir mais à
vontade..."
Demonstrado,
dessa forma, o caráter parasitário das classes dominantes portuguesas com as
citações de Martins, e assim apoiada a tese numa autoridade insuspeita, por
portuguesa, Bomfim desenvolve o seu segundo argumento: o de que boa parte dos
males nacionais são resultantes dos
resíduos ou
remanescentes da
metrópole. Por esses termos, Bomfim entende os segmentos da sociedade que
representam "diretamente os interesses parasitas", que constituem
"uma parte da metrópole plantada na colônia". São eles que reprimiram
os movimentos de emancipação real do país, pensa Bomfim, e foram eles que,
conservadoramente, mantendo os privilégios parasitários, arranjaram a
Independência, em acordos sem a participação popular. Na síntese do seu
diagnóstico sobre os males das sociedades latino‑americanas, escreve Bomfim:
"As classes dirigentes, herdeiras diretas, continuadoras indefectíveis das
tradições governamentais, políticas e sociais do Estado‑metrópole, parecem
incapazes de vencer o peso dessa herança; e tudo o que o parasitismo peninsular
incrustou no caráter e na inteligência dos governantes de então, aqui se
encontra nas novas classes dirigentes; qualquer que seja o indivíduo, qualquer
que seja o seu ponto de partida e o seu programa, o traço ibérico lá está – o conservantismo,
o formalismo, a ausência de vida, o tradicionalismo, a sensatez conselheiral,
um horror instintivo ao progresso, ao novo, ao desconhecido, horror bem
instintivo e inconsciente, pois que é herdado." Os resultados dessa
herança eram muito semelhantes ao quadro traçado por Oliveira Martins, no
Portugal finissecular. Apenas se atualizavam os termos: "O resultado desse
passado recalcitrante é esta sociedade que aí está: pobre, esgotada, ignara,
embrutecida, apática, sem noção do próprio valor, esperando dos céus remédio à
sua miséria, pedindo fortuna ao azar -- loterias, jogo de bichos, romarias, 'ex‑votos';
analfabetismo, incompetência, falta de preparo para a vida, superstições e
crendices, teias de aranha sobre inteligências abandonadas..."
Curiosamente,
sucede com o texto de Bomfim o mesmo que com o de Martins: hoje já o estilo não
é o nosso, nem as teses básicas parecem sustentáveis, nem os dados em que se apoiam
muito confiáveis. Entretanto, muitos leitores brasileiros de hoje saem da
leitura com uma forte impressão de realidade e adequação, e, pelo menos quanto
a mim, parecem muito exatas estas palavras de Luís Paulino Bomfim, de 1993:
"O grande drama do continente americano é que, nos dias de hoje,
A
América Latina de Manoel Bomfim, que deveria ser como um
videotape
em preto e branco do passado, se apresenta como uma reportagem a cores – e ao
vivo – do presente."
Como
se explica esse fenômeno? Tratar‑se‑ia de uma profunda intuição histórica, que
se impõe até hoje apesar do instrumental analítico? Ou apenas de uma alta
coerência estética na formação dos argumentos e na sua exposição literária? A
resposta a estas questões constitui um desafio para a compreensão do sentido e
do alcance de um certo discurso que foi o de Martins e também o de Bomfim. Mas
o lugar de responder a esse desafio não é, decerto, este.
Aqui,
nos limites desta primeira aproximação, o importante é ressaltar que, por meio
da incorporação das teses, do estilo acusatório e admoestativo e da visada
central de Oliveira Martins sobre a decadência e o parasitismo estruturante das
sociedades peninsulares, Bomfim vai compor um texto de alto poder de persuasão
e grande consistência literária. Corrigindo o pendor racista dos trabalhos de
Martins, abria ele também as portas a uma nova compreensão do sentido da
mistura racial no Brasil, e foi realmente uma pena que o seu livro não criasse
escola, nem fosse o início de uma nova corrente de pensamento brasileiro, como
justamente lamenta Darcy Ribeiro.
Nos anos subseqüentes, há ainda
dois momentos fortes em que Martins desempenha um papel importante no
pensamento brasileiro, antes que sua presença se vá fazendo sentir cada vez
menos e sua influência suplantada, nos meios eruditos, por outras
interpretações da história de Portugal – principalmente a de António Sérgio e,
depois, por efeito de sua estada prolongada no Brasil, a de Jaime Cortesão.
O primeiro é constituído, na
década de 1920, por dois livros de Paulo Prado --
Paulística (1925) e
Retrato
do Brasil (1928) –, cuja reflexão etnológica e histórica se articulará
sobre a oposição entre os brasileiros do litoral e os do planalto, conjugada a
uma especulação sobre os vários tipos de mestiçagem e seus efeitos culturais.
Mas não tratarei desse livros aqui, por dois motivos. Primeiro, porque a
apresentação do que neles há de martiniano já foi feita.
Segundo, porque Paulo Prado parece apenas desenvolver, no tocante a Oliveira
Martins, os mesmos tópicos que já identificamos no comentário dos textos de
Eduardo Prado e de Euclides da Cunha.
Mais
importante, porque ainda por estudar, é a presença do pensamento de Oliveira
Martins na obra de Gilberto Freyre. A consulta ao índice onomástico de alguns
dos seus livros indicará a importância de Martins para o seu pensamento. Mas o
lugar do historiador português na obra de Freyre é maior do que o ocupado pelo
conjunto das várias citações, porque, mais do que de referência, é um lugar de
método.
Sei
que a afirmativa parecerá estranha, sendo tão díspar a forma de organização
textual. Mas penso que a forma de conceber a história tem em ambos notáveis
semelhanças. No prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala,
lêem-se estas palavras: “A história social da casa-grande é a história íntima de
quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo
escravocrata e polígamo [...] O estudo da história íntima de um povo tem alguma
cousa de instrospecção proustiana.” E mais, adiante:
No estudo da sua história íntima
despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante
por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o
caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos
poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’. Outro meio
de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se
antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que
emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um
esforço de pesquisa pelos arquivos.
Compare-se
esta passagem com o que escrevia 50 anos antes Oliveira Martins, na Advertência
da sua História de Portugal:
Nada disso ,
porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições sejam
indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no sistema
das instituições e nos sistemas das idéias coletivas, que são para a sociedade
como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado,
no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada dos lugares e
acessórios que forma o cenário do teatro histórico.
Ao que, na resposta aos críticos
do seu livro, acrescenta ainda:
porque eu
entendi que usando da reserva conveniente sempre que os fatos essenciais da
história eram desconhecidos [...] para não cair em aventuras perigosas, devia
por toda a parte construir a história íntima com os monumentos sinceros,
confissões e memórias, sem o cunho da convenção banal das publicações oficiais
ou propriamente literárias.
Foi
a especificidade do ponto de vista martiniano, ao empenhar-se na reconstrução
da história íntima da nação, que Antonio José Saraiva acabou por reconhecer
como a grande conquista de Martins. E é curioso que, para descrever essa
especificidade tenha utilizado a mesma expressão utilizada por Freyre para
descrever o próprio texto: uma "história introspectiva”. E da mesma forma
que, na reavaliação de Eduardo Lourenço, a História de Martins constitui
o “imaginário coletivo” da modernidade portuguesa, cada vez mais nos
apercebemos que a mesma função tem a obra de Freyre, no Brasil de hoje.
Essa
homologia de função era algo que o próprio Freyre parecia entrever e desejar.
Pelo menos, é o que se depreende da leitura de um romance seu, pouco conhecido.
Trata-se de O outro amor do Dr. Paulo, que é, nas suas próprias
palavras, uma “seminovela”, um texto ficcional de intenção histórica.
A
personagem central é um brasileiro chamado Paulo, que passa longo tempo na
Europa, onde convive, no final do século, com o Barão de Rio Branco, Eduardo
Prado e Eça de Queirós, entre outros. As passagens que interessam aqui são
duas. Numa delas, Paulo presencia uma cena em que outro brasileiro diz a Eça
que o Brasil precisava ter um Eça de Queirós. Eça então responde: “Não, não
precisa. [...] Precisa de um Oliveira Martins, historiador, sociólogo,
pensador, ensaísta em profundidade. [...] Cada vez admiro mais Machado de
Assis. E Portugal nada seria sem Oliveira Martins”.
No
final do romance, a mesma afirmação é atribuída a Eça. Mas numa situação que
revela com vigor a homologia entre Freyre e Martins. No texto, a frase aparece
justamente depois de o narrador fazer uma digressão sobre o sistema patriarcal
no Brasil, a que, justamente, Freyre consagrara suas obras principais. No
romance, o tempo histórico é anterior, e assim surgem como profecias de si
mesmo estas frases do narrador da seminovela:
Evidentemente
esse sistema patriarcal de família – o brasileiro projetado sobre Portugal – com
afinidades com o grego, não tivera ainda o seu analista. Eça de Queirós tinha
alguma razão quando dissera uma vez, no apartamento de Eduardo Prado, em
resposta ao reparo de um brasileiro de que o Brasil precisava de ter um Eça de
Queirós: ‘O Brasil já tem um mestre nesse gênero de literatura que é Machado de
Assis. O Brasil precisa é de grandes pensadores e historiadores que o analisem
e interpretem. Precisa, tanto quanto Portugal precisou, de um Antero, de um
Oliveira Martins, de um Ramalho Ortigão. Precisa muito de um Oliveira Martins.’
Mais ou menos o que dissera quando visitado por Paulo e seu grupo.
Assim,
embora não seja o caso de desenvolver a reflexão sobre que pontos, de fato,
Freyre incorporou da obra ou das ideias de Martins, registre-se esse seu
testemunho, como mais uma prova de que, pela interpretação global do que foi a
história da nação portuguesa – interpretação essa que a muitos brasileiros tem
parecido a mais adequada e convincente –, parece fora de dúvida que a obra de
Oliveira Martins vem organizando, em vários níveis, ao longo de mais de cem
anos e quase até o presente, a visão brasileira do que foi e do que é Portugal
e do que foi ou é o Brasil enquanto produto da pequena nação ibérica.
Neste
texto, que é apenas um balanço parcial dos resultados de um trabalho ainda
inconcluso, contento‑me em apresentar este mapeamento sumário de um território
pouco conhecido, mas que, pela importância do que pode revelar a respeito da
história do pensamento brasileiro, sem dúvida merece e precisa ser mais bem
explorado.
Pires, A. Machado. A ideia de decadência na
Geração de 70. Foi publicada recentemente uma segunda edição desse livro
fundamental: Lisboa, Vega, 1992.
Ver, a propósito da Biblioteca, AbdoolKarim
Vakil: Leituras de Oliveira Martins: história, ciências sociais e
modernidade económica. Comunicação apresentada ao 'Congresso Internacional Oliveira
Martins: Literatura, história, política'. Coimbra, abril de 1995.
A. Sérgio. "Oliveira Martins: impressões sobre o
significado político da sua obra." In: Martins, J. P. Oliveira. Dispersos.
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1923, p.xxxviii.
Apud
Martins, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. V. São Paulo,
Cultrix/Edusp, 1977‑78, p. 560.
Queirós,
Eça de e J. P. de Oliveira Martins. Correspondência. Estabelecimento de
texto e notas de Beatriz Berrini, introdução de Paulo Franchetti. Campinas:
Editora da Unicamp, 1995.
A. J. Saraiva. A tertúlia ocidental. Lisboa,
Gradiva, 1990.
A. Sérgio. Op. cit., p. xxvii.
Portugal nos Mares. Lisboa: Ulmeiro, 1984, p. 10.
Ver, a propósito do conceito de nação e nacionalidade
em Oliveira Martins, o meu texto "No centenário de morte de Oliveira
Martins", de onde retomei, com algumas modificações, os parágrafos
anteriores. In: Martins, J. P. de Oliveira & Queirós, J. M. Eça de. Correspondência.
cit.
O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa,
Guimarães e Cia. Editores, 1953, p.2.
O Brasil...,
cit., p. 36.
Manoel Bomfim, no livro A América Latina -- Males
de origem, que comentarei a seguir, notou essa contradição do texto
martiniano.
In: Collectaneas, vol. IV. São Paulo, Escola
Typographica Salesiana, 1906.
Prado, E. Op. cit., p. 85.
Todas as citações são do texto de Os Sertões.
Euclides da Cunha. Obra Completa, vol. 2. Rio de Janeiro, Editora
Aguilar, 1995, p. 155, 197 e 198.
Cinqüenta e cinco anos depois, o livro foi relançado,
com um prefácio acalorado de Darcy Ribeiro, no qual o autor se mostra revoltado
por o livro não ter tido a repercussão que merecia e chama a Manoel Bomfim
"o fundador da antropologia do Brasil e dos brasileiros": Manoel
Bomfim. A América Latina -- Males de Origem. Rio de Janeiro, Topbooks,
1993, p. 18.
Sylvio Romero. A América Latina. (Analyse do
livro de igual título do Dr. M. Bomfim). Porto, Livraria Chardron, 1906, p. 50.
Bomfim, Op. cit., p. 111 e p.227.
Bomfim. Op. cit , pp. 327‑8.
"Pequena biografia de Manoel Bomfim". In:
Bomfim, Manoel. Op. cit., p. 358.
Berriel, Carlos. Tietê, Tejo, Sena: a obra de
Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000.
“Prefácio à primeira edição”. In: Freyre, Gilberto. Casa-Grande
e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1986, p. 26.
Martins, Oliveira. História de Portugal.
Lisboa: Guimarães Editores, 1991, p. 8.
A História de Portugal -- Os críticos da
1ª edição. Repr. in: Albuquerque, Isabel de Faria e (ed.). História
de Portugal de J. P. Oliveira Martins. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da
Moeda, 1988. O trecho citado está na p. 218.
Freyre, Gilberto. O outro amor do Dr. Paulo.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977, p. 91.