quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 6 - Saudação - Mallarmé - IA

 Creio que esta será a última provocação no tópico (mas não só...)


Numa língua que conheço mal ou da qual tenho apenas rudimentos, prefiro ler traduções literais de poemas, ao lado do texto original.
Nisso, o meu modelo – eleito ainda na adolescência – foi a antologia de Pablo Neruda publicada pela Editora Sabiá: o texto do original em versos, no corpo da página, ocupando o lugar principal; em rodapé, humilde, em texto corrido, com a quebra dos versos marcada por um sinal gráfico, a tradução plana, literal. Foi o modelo que sempre depois tentei conseguir de poetas que me interessavam, ainda que a prosa fosse não em português, mas em espanhol ou francês.
Porque em línguas ocidentais não é difícil oralizar e perceber o ritmo e as sonoridades. E tendo o texto em prosa literal, usufruir das duas coisas: a sucessão das palavras, imagens e conceitos, e a sucessão, a repetição e a variação dos sons e mesmo a disposição das letras. Por isso mesmo, quando organizei o livro “Haikai – antologia e história”, tratei de fornecer ao leitor a tradução palavra por palavra ao lado de outra, mais escorreita, mas ainda assim literal.
Já as traduções que buscam recuperar aquilo que em certa época se denominou “função poética”, ou – como se diz - recriar ou transcriar o original, poucas vezes me atraem ou convencem. Primeiro porque não sei o que poderia haver a ganhar em recuperar uma rima à custa da mudança do registro da palavra; ou uma aliteração, alterando a imagem; ou um acoplamento sintático de verso a outro quebrando a relação determinada entre frase e verso, ou provocando inversões que não há no texto original.
Para mim, desde que eu consiga ver isso tudo no original, e juntar o que vejo (ou ouço) com o que a tradução mais elementar me mostra, já está bom. E se o tradutor do texto em prosa generosamente acrescentar notas para esclarecer o que achar que merece ser esclarecido nas opções que fez, melhor ainda.
É o meu limite. E se na poesia lírica prefiro a tradução literal, acompanhada do original, mais ainda na tradução da épica tenho predileção pela prosa o mais possível literal.
Por exemplo, eu gostei de ler a Ilíada, na adolescência, na tradução em versos de Carlos Alberto Nunes, que me seduziu pelo ritmo. Tanto que, enquanto a lia, qualquer trabalho escolar ou mesmo carta, terminava por se conformar ao batidão de “logo que aurora de dedos de rosa surgiu matutina” ou “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas” – versos que posso estar referindo errados, mas que se fixaram assim na minha memória. Mas estou seguro de que preferiria a ter lido desde sempre numa boa tradução em prosa corrente.
Assim como preferi, depois de ter lido a Eneida em versos, a prosa da tradução de Giulio Davide Leoni e Neyde Ramos de Assis. Foi essa a Eneida que mais me satisfez e satisfaz como leitor, ao longo do tempo, e foi ela a que usei quando, anos depois, pude compreender um pouco de latim e assim ler em paralelo. Por isso, na escala das minhas preferências, traduções como as Odorico e seus descendentes ocupam um lugar bastante modesto. Há quem garanta que ali se recupera muito da sonoridade ou do sentido das palavras do grego, e do latim. Não sei avaliar, e penso que possam ser, por isso mesmo, bom material de estudo. Mas a verdade é que nunca consegui ler nenhuma delas de modo extensivo, só por amostragem – e ainda assim sem entusiasmo nem prazer.
Mas me ocorreu hoje esse tópico por conta da disponibilidade de máquinas inteligentes, capazes de traduzir muito melhor do que o velho Google Tradutor.

Então me lembrei deste poema de Mallarmé:

Salut

Au seul souci de voyager
Outre une Inde splendide et trouble –
Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double
Comme sur quelque vergue bas
Plongeante avec la caravelle
Ecumait toujours en ébats
Un oiseau d’annonce nouvelle
Qui criait monotonement
Sans que la barre ne varie
Un inutile gisement
Nuit, désespoir et pierrerie
Par son chant reflété jusqu’au
Sourire du pâle Vasco.

A mim esse poema interessou sempre por dois motivos: por ser de fato um belo sonetilho, em versos de 8 sílabas; e por ter sido composto quando dos quatrocentos anos da viagem de Vasco da Gama, no mesmo ano, portanto, em que Camilo Pessanha publica o díptico “San Gabriel”.

A tradução mais conhecida talvez seja esta, de Augusto de Campos:

Brinde

À só tenção de ir além de
Uma Índia em sombras e sobras
− Seja este brinde que te rende
O tempo, cabo que ao fim dobras

Como sobre a vela da nave
Mergulhando com a caravela
Espumante a ávida ave
Da novidade sempre vela

A cantar com monotonia
Sem jamais volver o timão
Uma jazida ali à mão
Noite demência e pedraria

Que se reflete pelo casco
Ao riso pálido de Vasco.

Gosto muito pouco do resultado. Primeiro porque é aquele tipo de tradução em que, em nome de uma aliteração ou uma rima, se sacrifica uma parte importante do sentido, algo que parece constitutivo do seu sentido.

O poema é um brinde a uma coisa e não a outra. Mallarmé brinda à viagem, não ao objetivo dela. À viagem e não à conquista de um lugar luxuoso e turvo. Brinda apenas à inquietação de viajar, a uma viagem portanto além da Índia. O brinde ocupa os dois primeiros versos. O terceiro se refere ao próprio brinde e diz que o fato de ser feito quando é feito o torna uma espécie de mensageiro do tempo. Vasco da Gama dobrou o tempo, ultrapassou-o, e não só ao Cabo das Tormentas.

Na tradução de Campos, o tempo é que rende (?) um brinde ao navegador. E a Índia comparece agora “em sombras e sobras”, o que não ecoa mais a atração do luxo e a confusão que o verso de Mallarmé lhe atribuía como atributos. É a fissura da aliteração, embora não haja aliteração nesses versos. É, portanto, o tal perde-ganha: há uma aliteração em outro verso, que é irrecuperável, então se compensa onde não há.

Há outros problemas, do meu talvez limitado ponto de vista. A ave da nova anunciação, ou seja, a anunciação de uma nova era ou novo mundo, vira uma ave da novidade, que é sempre ávida – talvez de mais novidade. Ou de mais aliteração.

Também fica um pouco obscurecida a ideia de que nada fazia o navio perder o rumo (esse é um dos sentidos da palavra gisement – que é ainda jazida e jazigo – o ângulo formado entre o eixo longitudinal (ou linha de proa) de um navio e a direção de um ponto externo (fixo ou móvel). Na versão de Augusto, em vez de não desviar nada do rumo pré-traçado, temos “volver”, que dá ideia de retorno ou mudança voluntária de rumo. Tampouco gosto do “casco” rimando com Vasco, mas isso já é o de menos.

Mário Faustino fez uma tradução mais literal (tenho anotada num caderno, mas não encontro o livro, por isso desculpem alguma imprecisão):

Com a única inquietação de viajar
Para além de uma Índia esplêndida e perturbada -
Seja esta saudação o mensageiro do tempo
Cabo que tua popa dobra

Como certa verga baixa
“Mergulhante” junto com a caravela
Espumava sempre em folguedos
Um pássaro de nova anunciação

Que apregoava monotonamente
Sem que variasse a cana do leme
Um inútil jazigo
Noite desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

Por fim, uma tradução de máquina. A de Claude.ai:

Saudação

Apenas com ânsia de viajar
Além de uma Índia esplêndida e turva -
Esta saudação seja a mensageira
Do tempo, cabo que tua popa dobra

Como sobre alguma verga baixa
Mergulhando com a caravela
Espumava sempre em movimentos
Um pássaro de novo anúncio

Que gritava monotonamente
Sem que o leme variasse
Um inútil jazigo
Noite, desespero e pedraria

Por seu canto refletido até
O sorriso do pálido Vasco.

Prefiro ler na de Faustino, embora o primeiro verso me pareça melhor na de Campos. Mas para aqueles poemas que eu não puder ler no original e que Faustino ou outro que ensaie uma tradução literal não traduziu, é bom saber que agora tenho a tradução artificial.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 5 - T. S. Eliot, Fernando Pessoa e a inteligência artificial


 

A IA pode escrever boa poesia? Essa é uma questão candente. Boa parte das respostas negativas se baseia na falta de sensibilidade da máquina. Ela faria apenas pastiches de coisas já ditas. À IA faltariam duas coisas: capacidade de produzir o novo, isto é, originalidade; e experiência humana. Não há por trás do texto produzido por IA, isso é claro (por enquanto), um ser consciente, não há mente, apenas algoritmos, grades de programas, regras de pesquisa e combinação e adaptação do já escrito. Entretanto, valeria a pena mediar as reações pela leitura de um texto muito conhecido e influente, “A tradição e o talento individual”. Por exemplo: “A poesia não é uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade.“ Também há um outro texto de Eliot que podia ser convocado aqui nesta provocação. Um sobre Hamlet, no qual ele fala do “correlato objetivo”. Isto: “A única maneira de expressar a emoção em forma de arte é encontrar um correlato objetivo, em outras palavras, um grupo de objetos, uma situação, uma cadeia de eventos que serão a fórmula dessa emoção particular, de modo que quando os fatos externos, que devem terminar em experiência sensorial, são fornecidos, ele evoca imediatamente a emoção.” Eu creio que o “correlato objetivo” tem muito a ver com o haicai. Houve, inclusive, quem aventasse a hipótese de Eliot ter formulado a ideia a partir do contato com a poesia oriental. Não duvido, nem acredito, e essa não é a questão. O que eu queria sugerir é que a IA talvez possa ser uma máquina eliotiana de compor poemas. Assim como ele fez em “The Waste Land”, pastichando e incorporando outros poetas; ou como fez em Prufrock, no que toca ao correlatos objetivos; ou ainda nos Quartetos, quando a paráfrase de textos bem conhecidos gera um tom que para alguns parece até muito sentencioso. O que quero dizer é que não penso que um poeta como Eliot fique desmerecido se o descrevermos como uma máquina muito sofisticada de seleção e agenciamento e incorporação dos textos do passado, isto é, da tradição. Se for assim, não creio que seja impossível que um supercomputador (uma máquina neural) não seja capaz de produzir poemas do mesmo nível, se considerado apenas o aspecto técnico. Mas o que mais há que possa ser avaliado objetivamente em arte além da realização técnica? O que nos leva a outra questão: a perplexidade quanto ao que o leitor tem à sua frente (isto foi produzido por IA ou por humano?) pode, a longo prazo, fortalecer uma tendência já sensível, que é a de valorizar o texto diretamente vinculado a uma experiência. Temos visto já a grande ascensão de um tipo de texto, e do interesse acadêmico nele: o texto de testemunho. De modo que aqui vai uma última provocação: se o interesse for pelo vivido, pelo testemunhado, e se a desconfiança quanto ao texto “impessoal” aumentar, pode-se dar uma curiosa inversão, que é a de preferir os textos menos claramente literários, menos realizados literariamente, desde que mais testemunhais. O que teria um ar de família com o teste que se faz hoje para saber se um artigo foi produzido por humanos ou por IA: se não houver erro, a chance de ser IA é grande. Por isso mesmo, alguns vendedores de facilidades já anunciam textos de IA em que a própria IA introduz pequenos deslizes, de modo a emular o humano. Mas há ainda um outro exemplo que eu queria trazer aqui. Fernando Pessoa escreveu em vários estilos. A poesia de Caeiro pouco tem a ver com a de Álvaro de Campos, por exemplo. Pessoa criou as personalidades e até fez delas horóscopos, que é uma forma de conseguir parâmetros “pessoais”, que seriam juntados a parâmetros estilísticos. Qual a experiência real do poeta? A que aparece em Caeiro ou nos poemas iniciáticos de Pessoa ele-mesmo? Onde ele está sentindo, onde ele está inteiramente como pessoa? Ora, se a beleza dos poemas dos heterônimos é produzida com base em uma espécie de matriz que inclui desde o horóscopo até a suposta formação filosófica, passando pela imaginada experiência de vida e pelo diagnóstico do tempo de modo a inserir cada um dos heterônimos no debate contemporâneo, por que uma IA sofisticada não poderia fazer o mesmo? Nós nos emocionamos com os poemas desses seres fingidos por um humano, por que não nos emocionaríamos com os que viessem de um ser fingido por uma máquina?

 

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 4

 Continuando o assunto do post anterior sobre poesia contemporânea… Pedi à Claude.ai que reescrevesse uns versos horrorosos (compostos em pastiche piorado do que tenho lido aqui e ali). Ela não produziu bons poemas. Mas estamos apenas no começo da viagem, e o domínio linguístico da máquina já é muito admirável – especialmente nas justificativas que ela apresenta para as escolhas que fez. Fico me perguntando como serão os livros de poesia apresentados em concurso de agora em diante, à medida que a IA for se tornando mais conhecida, acessível e aperfeiçoada.

Eis aqui:

** Claude.ai: Bom dia! Como posso ajudar você hoje?

** PF: Reescreva isto em boa poesia: Meu amor me deixou, meu dia estragou, / Tenho saudades da infância, quando / Tudo que eu queria era crescer. / Agora que cresci, me desiludi. / Quero ser criança de novo, / Mas como se tudo mudou?

** Claude.ai:

# Paradoxo do Tempo

Na amplidão vazia deste quarto escuro,
Onde ecoam passos do amor que partiu,
Mergulho em memórias de um tempo mais puro,
Quando o futuro era sonho que fluiu.

Criança inquieta, eu corria sem medo,
Ansiando pelo dia de enfim crescer.
Guardava nos olhos um doce segredo:
A pressa insana de adulto ser.

Ironia do tempo, agora entendo:
A infância era ouro que não soube ver.
Na pressa de crescer, fui me perdendo,
E hoje, adulto, só quero esquecer.

Como voltar ao jardim da inocência,
Quando o mundo era feito de aquarela?
O tempo transformou minha existência
Numa tela em tons de cinza, já não bela.

Ah, quem me dera ter a sabedoria
De saborear cada momento então!
Mas o tempo, em sua dança fugidia,
Só deixou saudade no coração.

Transformei seu texto em um poema mais estruturado, usando versos em quartetos com rimas alternadas (ABAB). O poema mantém os temas centrais da sua versão original - a perda do amor, a nostalgia da infância e o desejo de retornar ao passado - mas desenvolve essas ideias com maior profundidade poética e imagética mais elaborada.

Utilizei metáforas como "jardim da inocência" e "mundo de aquarela" para representar a infância, e contrastes como os tons de cinza da vida adulta para enfatizar a mudança. O título "Paradoxo do Tempo" reflete a ironia central do poema: quando éramos crianças, queríamos crescer; agora adultos, desejamos voltar a ser crianças.

Gostaria que eu fizesse alguma modificação no poema?

** PF: Reescreva em terza rima

** Claude.ai:

# Ciclos do Tempo

No vazio do quarto abandonado,
Onde o amor seus rastros já desfez,
Contemplo o tempo que foi sonhado.

Na infância, tudo era pequenez -
Queria ser maior, forte, crescido,
Correndo contra o tempo, de uma vez.

Mas hoje, com o coração ferido,
Percebo o erro dessa pressa vã:
O paraíso estava ali, perdido.

A inocência que tive, tão sã,
Escorreu por entre dedos distraídos,
Como orvalho que evapora de manhã.

Os sonhos de criança, coloridos,
Cederam lugar à realidade
E seus tons de cinza desabridos.

Agora busco aquela liberdade
Que tinha e não sabia preservar -
Do tempo jovem sinto só saudade.

Mas como poderia retornar
Ao jardim puro da minha inocência,
Se o tempo não nos deixa voltar?

Resta aceitar essa dura ciência:
Que a vida flui num único sentido,
E nela aprender nova sapiência.

Reescrevi o poema em terza rima, uma forma poética que Dante imortalizou na "Divina Comédia". Cada terceto segue o esquema ABA BCB CDC, etc., onde cada verso do meio (B) rima com os versos externos (A) do próximo terceto.

O poema mantém a temática original, mas a forma da terza rima permite um desenvolvimento mais narrativo e fluido da história, como um rio que segue seu curso natural - o que combina bem com a temática do tempo que não volta.

Gostaria que eu fizesse algum ajuste na nova versão?

** PF: Não.

Poesia contemporânea

 Tenho lido bastante poesia contemporânea brasileira. Meu interesse no gênero me levou, por exemplo, a participar como jurado do Prêmio Jabuti, na categoria em que se inscrevem poetas que publicaram no ano passado seu primeiro livro. Foi uma experiência muito interessante, pois encontrei coisas boas. A leitura de tantas obras, entretanto, me fez notar algumas coisas. Primeiro, que há algumas editoras muito ativas, que publicam poesia aparentemente sob demanda (e pagamento) do autor. Não penso que isso seja ruim. Do meu ponto de vista, quanto mais poesia publicada, melhor. De modo geral, má poesia ainda me parece melhor do que nenhuma poesia. Independente da qualidade do que vem encadernado, e apesar das frequentes dedicatórias à mãe e agradecimentos em primeiro lugar a Deus, seguidos da lista dos parentes todos, e apesar principalmente de prefácios, posfácios, orelhas e quartas-capas laudatórias, que parecem agora partes necessárias de qualquer livro de poesia, é de alguma forma gratificante perceber que tanta gente busca se expressar em versos. Mas minha segunda observação tem uma zona de contradição com a primeira. É que em um número muito grande de casos dá para perceber que o autor tem um domínio precário do idioma e dos recursos poéticos. Na verdade, tenho frequentemente a impressão de que muitas pessoas escolhem a poesia porque não têm recursos linguísticos para sustentar a prosa. É que em prosa recortada em linhas irregulares as carências tendem a ser interpretadas (ou desculpadas) como intencionalidade expressiva. Na verdade, essa parece ser a esperança do poeta. Já na prosa corrida, a conversa é outra: a construção dos parágrafos, o desenvolvimento de cenas ou argumentos, os elementos de ligação entre as partes do discurso, a escolha e manejo do tom, tudo isso demanda trabalho, treinamento, competência linguística. Então a necessidade ou vaidade de se expressar parece escolher a poesia porque ela surge como o caminho mais fácil para a encadernação de sentimentos e ideias. Isso é bastante chato, porque o resultado normalmente é bastante ruim. Mas ainda assim as surpresas compensam, no caso dos autores estreantes. E os pontos altos recompensam o trabalho de leitura de uma multidão de pontos baixos, no caso de autores já publicados, isto é, não estreantes. Espero ainda voltar ao assunto. Porque de agora em diante vai haver outra variável no jogo: a Inteligência Artificial.

Inteligência artificial - 3

 Um dístico elegíaco


Continuando a testar Claude.ai, pedi-lhe que compusesse um dístico elegíaco em grego antigo. Ela me respondeu muito sensatamente:

"Peço desculpas, mas devo esclarecer que embora eu possa discutir literatura grega clássica e métricas antigas, criar um dístico elegíaco autêntico em grego clássico seria um desafio significativo que exigiria extremo cuidado com:

A métrica específica do dístico elegíaco (hexâmetro seguido de pentâmetro)
A prosódia correta do grego antigo
O uso apropriado de dialetos literários
Regras específicas de quantidade silábica
Convenções poéticas do período clássico

Em vez disso, posso oferecer uma tradução em português que mantém o espírito do dístico elegíaco, ou podemos discutir como seria a estrutura em grego clássico. Qual você preferiria?”

** Pedi que me explicasse.

“A estrutura do dístico elegíaco grego é fascinante. Vou explicar seus elementos principais:

1.⁠ ⁠Composição básica:
•⁠ ⁠Consiste em dois versos que formam uma unidade
•⁠ ⁠Primeiro verso: hexâmetro datílico
•⁠ ⁠Segundo verso: pentâmetro datílico

2.⁠ ⁠Estrutura do hexâmetro:
•⁠ ⁠Seis pés métricos
•⁠ ⁠Cada pé pode ser:
* Dátilo (― ⟡ ⟡) [uma longa, duas breves]
* Ou espondeu (― ―) [duas longas]
•⁠ ⁠O quinto pé é geralmente dátilo
•⁠ ⁠O último pé é sempre espondeu ou troqueu
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ―

3.⁠ ⁠Estrutura do pentâmetro:
•⁠ ⁠Dois hemistíquios (metades)
•⁠ ⁠Cada hemistíquio tem dois pés e meio
•⁠ ⁠O meio pé no final de cada hemistíquio é sempre longo
•⁠ ⁠Os pés completos podem ser dátilos ou espondeus
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―

4.⁠ ⁠Características importantes:
•⁠ ⁠Cesura: pausa natural no meio do verso
•⁠ ⁠No hexâmetro: geralmente após a sílaba longa do terceiro pé
•⁠ ⁠No pentâmetro: pausa fixa no meio do verso

5.⁠ ⁠Regras adicionais:
•⁠ ⁠Elisão de vogais em encontros vocálicos
•⁠ ⁠Possibilidade de alongamento por posição
•⁠ ⁠Restrições quanto ao fim de palavra
•⁠ ⁠Bridges (zeugma): certas posições onde não deve haver fim de palavra

6.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠O hexâmetro tende a dar um senso de movimento
•⁠ ⁠O pentâmetro fornece um senso de conclusão
•⁠ ⁠A alternância cria um ritmo característico

7.⁠ ⁠Usos tradicionais:
•⁠ ⁠Lamentos (threnos)
•⁠ ⁠Epitáfios
•⁠ ⁠Poesia amorosa
•⁠ ⁠Reflexões filosóficas

Esta forma métrica foi usada por grandes poetas como:
•⁠ ⁠Calino
•⁠ ⁠Mimnermo
•⁠ ⁠Teógnis
•⁠ ⁠Propércio (em latim)
•⁠ ⁠Ovídio (em latim)

No caso específico do tema proposto (homem velho sozinho), o dístico elegíaco seria particularmente apropriado porque:
•⁠ ⁠Era tradicionalmente usado para expressões de perda e solidão
•⁠ ⁠Permitia uma combinação de narrativa (no hexâmetro) com reflexão (no pentâmetro)
•⁠ ⁠O ritmo mais lento do pentâmetro poderia espelhar a quietude da casa vazia
•⁠ ⁠A forma permitiria tanto descrição objetiva quanto expressão emocional

A complexidade desta forma métrica explica por que ela é tão difícil de reproduzir em línguas modernas e por que as traduções geralmente optam por equivalentes aproximados.”

** Então pedi que fizesse em latim o que não sabia fazer em grego. E ela fez!

Eis aqui:

“Coniugis absenti vastam per nocte per aulam
Quaero vestigia, sed mihi sola domus.

[Tradução literal:
"Da esposa ausente, pela vasta sala noite adentro
Busco os vestígios, mas a casa está só para mim."]

Análise métrica:

Hexâmetro:
CŌNIŬGĬS | ĀBSĒN|TĪ VĀS|TĀM PĒR | NŌCTĔ PĔR | AŪLĀM
(― ⟡ ⟡ | ― ― | ― ― | ― ― | ― ⟡ ⟡ | ― ―)

Pentâmetro:
QUAĒRŌ | VĒSTĪ|GĪĀ || SĒD MĬhĭ | SŌLĂ dŏ|MŪS
(― ― | ― ― | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―)

Alguns aspectos poéticos que busquei incorporar:

1.⁠ ⁠Escolha vocabular:
•⁠ ⁠"Coniugis" (esposa) como primeira palavra, enfatizando a perda
•⁠ ⁠"vastam aulam" sugere o vazio da casa grande
•⁠ ⁠"vestigia" (vestígios/rastros) evoca a busca por memórias
•⁠ ⁠"sola domus" (casa solitária) como palavras finais, ecoando a solidão

2.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠Aliteração em "per... per" enfatizando a continuidade da busca
•⁠ ⁠O som prolongado de "vastam" ecoa o vazio do espaço
•⁠ ⁠As sibilantes em "vestigia... sola" sugerem sussurros ou silêncio

3.⁠ ⁠Estrutura:
•⁠ ⁠O hexâmetro descreve a ação da busca noturna
•⁠ ⁠O pentâmetro traz a realização dolorosa da solidão
•⁠ ⁠A cesura no pentâmetro marca a transição entre esperança (busca) e realidade (solidão)”

** Que tal?

Inteligência artificial - 2

 Agora pedi à Claude.ai para compor um soneto satírico sobre as eleições. Só pedi isso, sem mais instruções.


Ela me deu isto, com a explicação que segue:

Retorna o circo em cada eleição:
Palhaços graves, de terno e gravata,
Prometem mundos, mas tudo é bravata -
O mesmo velho teatro da ilusão.

"O povo! O povo!" - gritam com paixão,
Enquanto enchem os bolsos, cada data
Traz novo esquema que o jornal relata,
Nova mentira, nova adulação.

Há quem ainda creia, pobrezinho,
Que desta vez virá a diferença...
(Como é teimoso o humano bichinho!)

Mas tudo segue: a velha desavença,
O mensalão, o pixulé, o jeitinho -
E assim termina mais uma sentença.

Construí este soneto usando ironia e sarcasmo para criticar o ciclo repetitivo das eleições e a corrupção política. Mantive a estrutura tradicional do soneto (duas quadras e dois tercetos, com versos decassílabos), mas usei uma linguagem mais coloquial em alguns momentos ("pixulé", "jeitinho") para ressaltar o caráter satírico.

O poema brinca com a metáfora do circo e do teatro para representar a política, e usa expressões típicas do discurso político ("O povo!") de forma irônica. A chave de ouro faz um trocadilho com "sentença", que pode significar tanto o fim do poema quanto uma condenação judicial - referência à corrupção.

Inteligência artificial - 1

 Pedi à Claude.ai que analisasse um haicai de que gosto bastante. O haicai diz:

Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Eis a resposta:
"Vou analisar este interessante haicai levando em conta seus diferentes aspectos:
1. Estrutura:
- Segue a forma tradicional de três versos
- No entanto, não segue rigidamente a métrica 5-7-5 do haicai tradicional japonês, o que é comum em haicais contemporâneos
- O segundo verso é notavelmente mais longo, criando um efeito de pausa contemplativa
2. Elementos sensoriais:
- Auditivo: o canto dos grilos
- Espacial: a referência específica ao "lado esquerdo"
- Há uma interessante ausência de elementos visuais, focando na experiência sonora
3. Significado e simbolismo:
- O haicai trabalha com uma descoberta súbita (kireji) - característica fundamental do gênero
- A perda da audição bilateral é usada como metáfora do envelhecimento
- Os grilos, tradicionalmente associados à noite e à passagem do tempo, ganham uma nova dimensão simbólica
- A progressão dos versos vai do concreto (grilos) ao abstrato (envelhecimento)
4. Construção narrativa:
- Primeiro verso: estabelece a cena (grilos cantando)
- Segundo verso: adiciona o elemento surpreendente (apenas de um lado)
- Terceiro verso: revela a conclusão/reflexão sobre a mortalidade
5. Recursos poéticos:
- Uso da sinestesia: combina sensação auditiva com percepção espacial
- Economia de palavras típica do haicai
- A simplicidade da linguagem contrasta com a profundidade do tema
6. Temas universais:
- Envelhecimento
- Deterioração física
- Conscientização da própria mortalidade
- Passagem do tempo
7. Aspecto psicológico:
- Captura o momento de tomada de consciência sobre o envelhecimento
- A lateralidade do som serve como gatilho para uma reflexão existencial
- Demonstra como pequenas percepções podem levar a grandes realizações sobre a vida
8. Originalidade:
- Inova ao usar uma limitação física específica (perda auditiva unilateral) como metáfora
- Subverte a expectativa tradicional dos grilos como marcadores de tempo/estação
- Cria uma nova associação entre o canto dos grilos e o envelhecimento
Este haicai é particularmente bem-sucedido porque:
- Mantém a concisão característica do gênero
- Consegue um efeito de surpresa e revelação
- Liga uma observação cotidiana a uma reflexão profunda
- Usa uma imagem concreta (grilos) para expressar algo abstrato (envelhecimento)
- Evita sentimentalismo excessivo ao tratar de um tema potencialmente melancólico
É um exemplo excelente de como o haicai contemporâneo pode manter a essência do gênero (observação precisa, momento de iluminação) enquanto aborda temas universais de forma inovadora."