domingo, 14 de abril de 2013

Entre ser e nada: Augusto de Campos lê John Cage

Entre ser e nada

          Acabo de ver isto: http://www.erratica.com.br/opus/110/nada.html e, em seguida, isto: http://vimeo.com/29791907.
          A conferência sobre o nada na interpretação de Augusto de Campos (gravada por Vanderley Mendonça e, no primeiro link, editada por André Vallias) enfatiza o auditório vazio. Que é, evidentemente, uma alegoria. O auditório real está em outra parte: do outro lado da tela: o internet surfer que clica no item, dentro da revista eletrônica.
          Sendo assim, o que quer dizer a ênfase no auditório vazio? Ou melhor, a construção de um auditório vazio para a leitura filmada, pois neste momento e naquele lugar, o mais provável é que houvesse nele público significativo, não fosse a necessidade do cenário.
          É uma espécie de testemunho sobre a época (Cage, 1949)? Ou afirmação sobre a nossa própria época (Campos et al., 2011)? Um lamento por não haver já quem se interesse por ouvir uma conferência sobre o nada, isto é, uma conferência que se reduza a um ato performativo, que se desdobra numa pregação de silêncio? Ou um elogio do solitário ouvinte que contempla a leitura e contempla o auditório vazio (ao qual, por contemplar, já não pertence)?
          O pequeno filme configura o leitor/tradutor/intérprete, bem como aquele que assiste ao vídeo como figuras de exceção, irmanadas na recusa à suposta recusa de ouvir o que o poeta não tem a dizer.
          Mas o poeta que quer o silêncio e quer dizer nada, quer dizer que tem o direito de não ter nada para dizer, exceto a vontade ou o imperativo de dizer – e que identifica a poesia com esse não-dizer ou dizer-nada – mas esse poeta, perguntava, que lugar real configura para o público? E para si mesmo?
          Sem a afirmação negativa, isto é, sem a afirmação pela negação, onde está a poesia? Essa poesia, que se constrói como antipoesia, no sentido de ser uma declaração de ser o contrário do que a expectativa do suposto público (ausente da plateia filmada) teria do que fosse a poesia.
          Mas quando quem vê é reduzido à pessoa eleita a que o discurso se dirige (com ou sem a edição que alude a um determinado tipo ou momento da história da poesia), qual o sentido do silêncio, ou da afirmação negativa, se não há expectativa a contrariar? É que aqui a expectativa é plenamente satisfeita. Contrariá-la seria apresentar um poema expressivo, narrativo, lírico ou de versificação tradicional – enfim, tudo o que o leitor acostumado ao discurso negativo da vanguarda e suas descendências não vê ou não aceita como seu contemporâneo. Mas não foi esse o caminho escolhido. Não sendo, qual o sentido da negação? Para quem e por que o poeta/tradutor/intérprete diz “não”? O “não”, aqui, dada a expectativa confirmada, vale por um “sim”, ou por um “assim queríamos demonstrar”. Vigora, pois, como reiteração do esperado. E do lugar à margem em que supostamente se encontram tanto o poeta quanto o seu realizador e o seu espectador.
          Nesse caso, a intervenção tem um sentido apenas: reafirmar o acordo, revivificar o já ocorrido. Seu alcance, assim, é predominantemente histórico. Sua reflexividade ensaia, mais do que tudo, a afirmação do pertencimento e do lugar na série. Ou seja, a filiação – de olho na descendência. Reiteração, dogma, elogio, aceno cúmplice: é assim celebração, ou melhor, autocelebração (e eloquente) a coisa dita dessa forma e neste momento por meio da negação do dizer.

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originalmente publicado aqui: http://sibila.com.br/critica/entre-ser-e-nada/5194

Jorge de Sena e o haikai

Os haikais de JS

X
     Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
     A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero.
     Ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa.  Essa disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.
     O efeito de sentido é complexo. Trata-se de um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a ele.
     A forte personalidade do autor determina o afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.
     Para um leitor pouco familiarizado com o haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o texto mimetize a estrutura profunda do haikai.
     Dos poemas do autor, o que mais pareceria, pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de tempo, nenhum kigo.
     Já o que me parece ter mais espírito de haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa, muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e indiscutível.
     Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão o quis fazer.
     Como exercício, para mostrar as diferenças e as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir, mas dialogar divertidamente com o poeta.
     No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:

Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.

No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:

O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.

Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente poderiam ser assinados por ele.
X                   
                
HAI-KAIS
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.

HAI-KAI
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.
11-12/1/1974
In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192





Publicado origalmente em Ler Jorge de Sena
http://lerjorgedesena.wordpress.com/2013/04/09/jorge-de-sena-e-os-haikais-2/

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Plágio - entrevista a Ricardo Manini



Breve entrevista a Ricardo Manini – a propósito da noção de plágio – março, 2013

Manini:  Rousseau escreve, nas suas Confissões, o seguinte: "I know my heart, and have studied mankind; I am not made like any one I have been acquainted with, perhaps like no one in existence; if not better, I at least claim originality, and whether Nature did wisely in breaking the mould with which she formed me, can only be determined after having read this work". Alguns críticos literários colocam que o ideal da originalidade nasce, ou ao menos está ligado em grande parte, ao período Romântico. Isso está correto? O movimento romântico traz mesmo uma ideia de querer ser diferente, querer ser original, em relação a outros homens? Em que sentido isso se realiza?


Franchetti: Acho que o que nasce com o período romântico é nossa forma de compreender a originalidade. Mas basta percorrer a história da literatura para ver que as marcas originais foram valorizadas em várias épocas, de uma forma ou outra. Os líricos gregos mais conhecidos criaram inclusive formas estróficas próprias, que depois outros incorporaram. E até hoje falamos de verso sáfico, por exemplo. As escolas de pintura reforçavam, no trabalho coletivo, a maneira de um mestre. E os traços comuns a textos de autores diferentes foram ao longo dos anos reunidos sob um nome próprio (como Camões, por exemplo; ou Gregório de Matos), sendo a ele atribuída a autoria, isto é, a sua origem. A distinção entre invenção e cópia, entre propriedade e apropriação, tampouco é romântica. Já no Quixote nos deparamos com aquela passagem engraçada em que D. Quixote chega a um lugar por onde teria passado um falso Quixote, isto é, um Quixote herói de um livro não escrito por Cervantes. Ali aparece a questão da autoria, da autoridade do criador, que confere verdade à sua criação e desautoriza a existência da cópia, sem entretanto conseguir negá-la (isso é o mais notável, pois o falso Quixote também existe e sua existência não é questionada pelo verdadeiro).
Mas é evidente que, no período romântico, a originalidade ganha outro contorno e passa a ser valorizada e apreciada de outra maneira. Por um lado, pela razão que apontou na sua pergunta: parte importante da estética romântica é postular a ligação íntima da vida e da obra, com a consequente valorização da singularidade de uma vida. Assim, os traços mais individuais, quando expressos, garantem que a expressão é autêntica, que o que se tem ali é a expressão de um indivíduo concreto. Por outro lado, a originalidade passa a ser mais importante no momento em que os cânones clássicos se enfraquecem ou se dissolvem. Sem o quadro prescritivo do cânone, a justificação de uma obra passa a se dar por meio do apelo à fidelidade ao sentimento e à observação do real. E não podemos deixar de notar que o período romântico é justamente aquele no qual a literatura se torna mercadoria de grande consumo e, como consequência, o período no qual se define o direito à propriedade intelectual. Para ter uma ideia do quadro, basta considerar que dois dos maiores escritores portugueses, Garrett e Alexandre Herculano, tinham posição oposta com relação à remuneração da produção intelectual (os direitos de autoria): Garrett era favorável e Herculano era contrário. Creio que é a questão da quebra do quadro clássico dos gêneros literários aliada à ascensão da classe média, que permitiu que a literatura passasse a bem de consumo, que nos permite dizer que a originalidade (e a questão do plágio literário, tal como hoje a concebemos) tem origem romântica.


Manini: Se pensarmos em uma perspectiva histórica, a cópia de textos era muito praticada por monges na Idade Média, antes da invenção da prensa. A cópia, nesse caso, não poderia ter o sentido de plágio. Tinha, em realidade, a ideia de disseminação do conhecimento para aquele pequeno grupo de homens. Hoje, a cópia literal sem citação da fonte original é vista, muitas vezes, como uma coisa senão ilegal, ao menos imoral. Podemos dizer que há uma mudança de sentido do ato de copiar no decorrer da história?

Franchetti: O sentido do ato e da forma de copiar – ou melhor, de se apropriar dos textos de outros – mudou muito ao longo da história. Na China clássica, por exemplo, se você quisesse citar um texto canônico no interior do seu texto não tinha de colocar nenhuma marca como as nossas aspas e nem explicar de onde tirou a frase ou parágrafo ou estrofe. Seria um insulto à cultura e à inteligência do leitor. É um exemplo extremado, mas em vários períodos da nossa própria história percebemos comportamento semelhante. E ainda hoje, apesar das pressões das normalizações, é comum encontrar artigos sobre literatura em que os autores mais conhecidos são apenas referidos, sem a usual indicação de ano e página. Na literatura também a forma de avaliar a apropriação da autoria também sofreu mudanças importantes. Uma delas foi que a acusação de plágio passou a transcender o texto: Eça de Queirós, por exemplo, foi acusado de plágio, quando publicou O Crime do Padre Amaro, porque o enredo do livro lembrava o de um livro de Émile Zola. Outra é que ao longo do tempo, a recriação livre de um texto de outra língua – ainda muito comum entre os nossos românticos, por exemplo – passou a ser pouco praticada – até ser de novo valorizada na forma de uma tradução criativa. Nesses casos, o que se observa é não uma subtração da autoria, mas a afirmação de duas autorias concorrentes, o que é uma variável interessante para pensar na questão do plágio. Já na modernidade, vigoraram alguns procedimentos que, em outro tempo, poderiam ser vistos como plágios: a incorporação de textos de outros autores por Eliot, ou por Pound, por exemplo. De modo que, hoje, a questão da apropriação de textos de outros autores se tornou mais complexa, mais mediada. Ou seja, perdeu força no domínio literário, onde sobrevive apenas nos casos em que o que importa de fato é a mercadoria: nos best-sellers. A relevância da noção de plágio – a própria formulação ou acusação de plágio – tem a ver, portanto, com o valor econômico do produto. Ou do que o produto pode ou poderia render, ou do capital investido na sua produção. Por isso, a questão do plágio é hoje mais grave no domínio da ciência. Daí a vinculação com ilegalidade: o que está em questão não é a apropriação particular de um bem comum, como queria Alexandre Herculano ao negar o direito de autor, mas a apropriação indébita de um bem que se entende como privado, seja um resultado científico, um produto, uma sequência de palavras, frases musicais, enredos, etc.


Manini: É possível traçar uma relação entre a meta de originalidade e a meta de copiar? Uma ideia se contrapõe à outra? Há nuances nessa relação?

Como respondi acima, do meu ponto de vista, no domínio da literatura e da arte não há contraposição rígida, se considerarmos um amplo período de tempo.

Entrevista - Balacobaco

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco (2002)

Paulo Franchetti nasceu em Matão (SP), em agosto de 1954. Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa na Universidade Estadual de Campinas, publicou três livros de poesia (Várias Vozes, 1975, Indigo Blues, 1984, e Hacais, 1994) e vários trabalhos de crítica e história literária, entre os quais se destacam Alguns aspectos da Teoria da Poesia Concreta (1989), Haikai - Antologia e História (1990), Correspondência de Eça de Queirós e Oliveira Martins (1994), a edição-crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1994) e a edição comentada de O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1998). Durante dois anos, dirigiu a lista de discussão Haikai-L, dedicada à prática do haikai.

Como foi o seu percurso poético até encontrar o haicai?
Eu cheguei ao haikai por dois caminhos. Por um lado, pelos textos de Haroldo de Campos. Fiz uma tese de mestrado sobre a teoria da Poesia Concreta, que defendi em 1982. E como Haroldo de Campos escrevesse sobre haikai, valorizando a etimologia dos kanjis, e Augusto de Campos várias vezes abordasse o sistema de escrita da China e do Japão, interessou-me aprender a língua japonesa (o que fiz, por alguns anos), e ver como funcionava o kanji numa língua que o empregava como sistema de escrita. Por outro lado, nos estudos de literatura e cultura portuguesa, deparei pela mesma época com os livros de Wenceslau de Moraes, que retratou a vida japonesa no início deste século e também traduziu haikais. Interessado pelo assunto, e tentando ter do haikai uma visão mais fundamentada, acabei chegando à obra fundamental sobre o assunto no Ocidente: os livros de R. H. Blyth. Isso foi no começo dos anos 80, e a partir daí passei a estudar mais sistematicamente o haikai e a sua história no Japão e entre nós. Foi apenas no lançamento do livro "Haikai -- antologia e história", no VI Encontro Nacional de Haikai, realizado em 1989, que comecei a fazer haikais e a participar de reuniões de um grupo nipo- brasileiro, presidido por Hidekazu Masuda Goga na Aliança Cultural Brasil-Japão.
Caetano Veloso, numa letra de música, diz que: "está provado que só é possível filosofar em alemão". Plagiando o cantor, só é possível fazer o haicai em japonês?
Nem a blague de Caetano é verdadeira, nem a idéia de que só é possível fazer haikai em japonês. Da mesma forma que é possível fazer ikebana no Brasil, é possível fazer haikai em português. O haikai, tal como o entendo, é mais uma atividade e uma atitude frente à linguagem, do que uma forma poética.
O que um haicai exige do haicaista? É necessária concisão, concentração?
Exige um distanciamento da nossa tradição poética. Pelo menos de uma certa tradição, que identifica a poesia com um conjunto de práticas lingüísticas. Haikai é um texto curto, sem metáforas, sem rima, sem preocupação de brilho lingüístico. É basicamente isto: um texto breve, despojado, modesto, em que uma sensação, uma percepção de algum fenômeno natural é colocada em palavras de modo muito objetivo. Concisão, assim, é uma palavra de sentido muito específico: significa recusa tanto ao derramamento sentimental, quanto ao descritivismo detalhista. Diz-se usualmente que o haikai é sintético, mas isso não é bem verdade. Em haikai não temos síntese no sentido de "dizer o máximo com o mínimo". O haikai é, antes, a arte de, com o mínimo, dizer apenas o suficiente para o desenho, em traços rápidos, de uma cena ou situação em que se surpreenda algum índice de alteração sazonal.
Qual a diferença da linguagem do haicai para a linguagem poética. É possível um haicai sem poesia? e um haicai que não é poema?

Colocada nestes termos a pergunta, a melhor resposta me parece ser:haikai não é poesia. É uma formulação que parece paradoxal, mas que faz todo o sentido, quando se pensa nas expectativas que temos frente a um texto que denominamos "poesia" ou "poema" e a um texto que denominamos "haikai". Se pensamos o haikai como "poema" ou "forma poética", ele tem pouco a nos oferecer: é mais uma forma exótica, como o pantum malaio que fez sucesso entre os parnasianos, ou uma forma fixa datada e hoje pouco empregada, como o rondó, por exemplo. O que ele tem a nos oferecer de mais interessante é uma outra concepção de emprego da linguagem. Nos meios haikaísticos mais interessantes, o haikai é uma forma de viver a alteridade, de nos afastarmos momentaneamente da nossa própria tradição. É um jeito de estar no mundo e na linguagem; e é também uma prática coletiva, uma atividade que se faz em conjunto, dentro de um certo estado de espírito e com o objetivo de interação com outros praticantes.

Quais são os principais haicaistas brasileiros? Quais são os mestres nipônicos?
Os mestres nipônicos mais conhecidos são Bashô, Buson, Issa e Shiki. Bashô, que viveu no século XVII, é o iniciador do que chamamos "o caminho do haikai". Shiki, que viveu já nos tempos modernos, é considerado o restaurador do haikai, o homem que recuperou o prestígio da atividade num Japão fascinado pela literatura ocidental. No Brasil, creio que os haikaístas mais interessantes são os que permanecem ligados à prática coletiva do haikai e que estão mais perto da tradição japonesa. Dentre esses, creio que os melhores são Teruko Oda e Edson Kenji Iura.
Como foi estar à frente da lista de discussão Haikai-1?
Foi uma experiência muito gratificante, durante um certo tempo. A lista foi criada para ser uma oficina on-line e funcionou assim durante uns dois anos. Depois, virou um lugar de disputa entre tendências concorrentes. De um lado, os que têm do haikai uma visão como a que expus acima. De outro, os que vêem o haikai como uma manifestação do "zen" ou como uma mera forma literária, que pela sua brevidade exige uma linguagem trocadilhesca ou piadista. O haikai "zenista" ou piadista me parece uma prática cansativa e rebaixada. Creio que a lista é importante e deve continuar funcionando. Para mim, entretanto, perdeu boa parte do interesse que tinha, pois ao invés de uma oficina dedica a uma prática específica e à construção de um caminho específico de haikai, passou a ser um lugar de publicação mais ou menos indiscrimida, como acontece nas listas dedicadas à prática da poesia de modo geral.
O que falta para o haicai ser mais difundido no Brasil? O que falta para ser difundido além dos limites da colônia nipônica?
Acho que o haikai é muito difundido no Brasil. Na colônia japonesa ele ainda é muito praticado em japonês. O Grêmio Haicai Ipê, a que me referi acima, foi o primeiro esforço de juntar as duas tradições: a do haikai produzido no Brasil em japonês e a do haikai aqui produzido em português.
Como a tradição do haicai pode estar a serviço de uma renovação da linguagem do poema aqui no Brasil?
De várias formas, às vezes muito diferentes. Sem dúvida, o haikai e o ideograma desempenharam um papel importante na formulação e na prática da Poesia Concreta. Pouco depois, Paulo Leminski escreveu haikais, traduziu haikais e incorporou elementos do haikai à sua própria poética. A objetividade do haikai, sua modéstia e despojamento são elementos que encontramos em lugares muito prestigiados atualmente na poesia brasileira, como, por exemplo, em alguma poesia de Manoel de Barros. Mas creio que o haikai, por ser uma prática que se aprende no convívio com outros praticantes, por ser objeto de muitas oficinas em vários lugares do país, tem um papel importante na criação de novas formas de usar a linguagem com objetivos artísticos, e que as conseqüências disso na criação poética brasileira só vão ser sentidas e melhor avaliadas daqui a alguns anos.
Quais os principais trabalhos sobre o haicai publicados no Brasil?
Sem falsa modéstia, creio que o mais completo trabalho publicado em português é o que saiu pela Editora da Unicamp em 1989: Haikai -- Antologia e história. Mas há outros textos importantíssimos disponíveis: os ensaios de Octávio Paz, publicados em "Signos em rotação" e o livro de Carlos Verçosa, "Oku, viajando com Bashô".
O tema da sua tese de mestrado foi a poesia concreta. O que poderia nos adiantar? Quais os caminhos pelos quais a sua tese navegou? Quais > conclusões chegou? Poesia concreta é design? Ainda existe hoje? Foi substituída pela poesia visual?
Trabalhei apenas com a teoria da Poesia Concreta. Meu interesse, naquele momento, era observar a argumentação que desenvolveram os seus principais formuladores, os valores que defendiam, as questões que privilegiavam no debate. Isto é: tentei pensar a Poesia Concreta como movimento cultural e apreender a sua articulação com o momento histórico brasileiro, buscando entender o que tornou tão persuasivas as suas propostas. Creio que Poesia Concreta é uma expressão que designa, mais do que um tipo de produção poética ou um certo número de procedimentos lingüísticos, um conjunto de proposições culturais. Nesse sentido, a Poesia Concreta existe ainda hoje, isto é: é um vetor importante da nossa cultura. Mas se quisermos utilizar a expressão para designar uma expressão homogênea, um tipo de texto, teremos dificuldades, pois a produção de um Augusto de Campos ou de qualquer um dos outros dois é muito variada e mesmo o verso, ou a forma de figuração analógica que foram abolidos programaticamente em 1956 ou pouco depois, reaparecem em momentos vários da sua prática poética.
Como estão os estudos sobre a poesia portuguesa simbolista?
Minha tese de doutorado foi a edição crítica dos versos de Camilo Pessanha. Recentemente, defendi, como tese de livre- docência um trabalho de análise de poemas desse autor, que deverá ser, em breve, publicado pela Editora da USP. Reúno ali tudo o que há vários anos tenho pensado sobre a poética simbolista, e com isso sinto estar fechando um estudo iniciado há mais de dez anos. No momento, meus interesses estão concentrados na elaboração de uma nova descrição da poesia brasileira produzida entre o Romantismo e o Modernismo: a de extração simbolista, principalmente, mas não só.
É notória a sua condição de grande estudioso do haicai. Também se sabe de todo o tempo que dedica ao estudo do mesmo. Por que o haicai ainda não foi alvo de seu estudo na universidade?
Tenho feito alguns estudos acadêmicos sobre o haikai no Brasil. Mas como sei pouco japonês, não me aventuro a estudar o haikai no original, sem a ajuda da minha colega Elza Taeko Doi. Tenho pensado o haikai, assim, basicamente como uma imagem produzida pelo Ocidente. Meus estudos sobre o haikai no Japão sempre foram apenas uma tentativa de encontrar parâmetros que me permitissem entender as apropriações que dele vimos fazendo no Ocidente, principalmente a partir das primeiras décadas deste século.
Tem alguma epígrafe que o acompanhe?
Sim. Uma frase de Bashô: "o que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu".
Qual o papel do escritor na sociedade?
Mallarmé dizia que era dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Pound, que era manter a linguagem eficiente. Acho que é um pouco por aí.
(2002)

publicada originalmente em:

http://www.gargantadaserpente.com/entrevista/paulofranchetti.shtml


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Santo Reis da Luz Divina - apresentação



Apresentação do livro Santo Reis da Luz Divina, de Marco Aurélio Cremasco - 2004


            “Celeste, entretanto, não amou a Augusto como Pedro a Inês, mesmo com o nascimento de Santino, e, depois de três crianças mortas quando do nascimento, de Heitor.”
Quando li esse nome, tudo empalideceu: o rosto de Augusto, o desfile sob a luz das tochas, o sonho depois perdido no meio do sertão da terra nova. Apenas a figura do herói se erguia, igual a si mesma. Não era possível compreender como se sentiria antes da batalha. Não havia ainda o cheiro da morte, os membros rasgados nas pedras, imundos com a lama coberta de sangue. O vento que ondulava nas planícies poeirentas invadiu o quarto e, junto, o cheiro forte da erva esmagada pelos carros. Os cavalos suados, a mudez sobre as muralhas, de onde logo o choro grosso das mulheres desceria em ondas sobre a encosta da colina.
            E era uma palavra, numa seqüência de outras, que trazia os fantasmas ininteligíveis, a procissão deles, sujos, sanguinolentos, terríveis na paixão, caindo como troncos sobre o solo, soltando o suspiro fundo, no qual a alma se esgueirava para os reinos subterrâneos, onde tudo era apenas sombra.
            Eu li, naquele momento o que se passa e se agita sempre sob o olhar das letras, como o fluido nas veias sob a pele: as naus, os cantos, amores e luar gelado sobre as tendas. E quando continuei o milagre estava feito, a espécie recomposta e o animal de outrora, redivivo, de novo se agitava.
            E depois, fui abrindo outras portas, caminhos que ligavam o aqui e o ontem e o que houve no começo: “Acontecimentos passados apenas passam quando importância dada pouco é ventilada. São folhas caducas de árvores secas que servem de ninho aos pássaros ou cova aos ratos ou simplesmente abrigam a alma do que não existe”.
            De onde vinham as palavras que se moviam assim, na direção do que por um momento brilhou e foi sabedoria, e agora, esquecido, permanece apenas como reminiscência, desejo surdo de retorno? O que ali estava se compondo, por debaixo da história na qual os fatos pareciam apenas balizas de um sentido que não emergia totalmente?
            “Qual noite é capaz de esconder o brilho do mais distante fogo? As cabanas, envoltas de cusparadas de chamas, incendiavam-se em cada graveto da última fogueira no meio de carroças e tendas”. O dente do tempo faz uma cicatriz em cada trecho da pele esticada desta narrativa: vêm, sob o arranjo da fala, o ritmo e a volúpia do que já foi dia um tido por autêntico. A cadência de quando havia um país por descobrir, uma fala por trazer para dentro do espaço sagrado das páginas de um livro. Mas agora esses ecos estão misturados com as formas dos filmes, o borbulhar do riso que percebe o movimento nostálgico, a verdade de uma infância perdida no canto da memória, de onde as falas e os nomes às vezes emergem, ainda melados do sono do esquecimento.
            “A vida só tem sentido quando contada pela morte. O construído se completa no destruído. Entre o estampido e o tiro, a luz. A luz só tem sentido quando antecedida pela ausência. Ficar em pé só se completa no tombo. Os dentes brancos do sorriso são escovados pela lágrima. E quando não há dentes, é por terem sido arrancados no espólio da batalha”. E perante isso, que importa, senão como intervalo, o particular da história? Como não perseguiria, ávida e displicentemente, quem está do lado de cá, esbarrando na barreira das palavras, a trama dos eventos de que já ninguém se lembra? Como não passaria rápido, de uma linha a outra, em busca da forma do próximo momento no qual o corpo vivo do que foi de novo apareceria: o livro do conhecimento, a voz anônima em provérbios, as sagas perdidas, as lidas e as trelidas ao longo dos séculos se amontoam na margem, à espera da sua vez de, bebendo o sangue dos nomes novos, recuperar um pouco da visão antiga. E foi assim que eu segui, imune quase ao fluxo do que me aparecia apenas como alimento e base do que crescia a intervalos: a história de Santino e Esperança, as cuidadosas reconstruções do que não importava, a figura e o charuto de Getúlio, os nomes da geografia de onde passei a minha própria infância.
            Durante o tempo estendido em que a fala tentou tecer uma ponte de sentido, as perguntas valeram sempre mais do que as repostas: “Quando a guerra acaba no olhar do guerreiro? Quando a lâmina cega na barriga do derrotado? Quando a desgraça se apodera dos desesperados? Qual o momento certo para fugir do espelho ou se refugiar na própria sombra? Esperança olhava o céu. Santino, a terra. Esperança rogava a Deus. Santino enxergava o infinito nas trilhas que cruzavam Luz Divina. Enquanto um se procurava nas estradas perdidas da infância, outra aumentava as feridas impregnadas nos joelhos por tanta oração. O Brasil não era o mesmo”. Mas quem se importará, singrando a superfície das palavras, com o último elemento? E com, ao final, o amigo que não era amigo, o enigma solucionado? Para quem buscava o sentido na ramagem, estava dado o prato e a sobremesa. Mas para os que sentiam que as folhas só se agitavam de verdade porque as raízes se enroscavam, famintas, na terra onde há séculos penetrava o húmus das palavras decompostas, florescentes e de novo prontas para a seiva nova, para esses a passagem deveria ser refeita, os escolhos da superfície afastados, para que o leito do mar, onde repousam os restos dos naufrágios sucessivos, pudesse acolher mais este gesto de amor e, com ele, depois da carne rápida e viva da lembrança, o mineralizado esqueleto da infância, ali ternamente depositado como um testemunho ou uma homenagem, já que assim dignificado junto às sombras dos heróis de outrora.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Poetry and technique: concrete poetry in Brazil


Poetry and technique: concrete poetry in Brazil


Abstract. Drawing on the writings of leading participants such as Joao Cabral de Melo Neto, this article examines the emergence of Concrete Poetry in postwar Brazil. Although literacy was then rapidly increasing, the status of poetry was challenged by the new media, such as film, that drew mass audiences. Responding to this challenge, Concrete Poetry did not retreat into a Classical revival, but aimed at a style of verse rooted in the realities of modern technology, and capable of being popular. It thus claimed to be true not only to its time, but also to its literary heritage--a heritage that was in fact validated rather than betrayed by its modernity. 

Keywords. Concrete poetry; Brazil; Mass Media 


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sábado, 3 de novembro de 2012

Bilac e o Brasil republicano


Olavo Bilac e a unidade do Brasil republicano

A António Dimas
Até há meio século, ele era ainda o príncipe dos poetas brasileiros. Adorado em vida, venerado no período subseqüente à sua morte, sempre lido ao longo da primeira metade do século XX, apenas nos últimos quarenta anos o poeta de Tarde foi sendo aos poucos deixado de parte. Mais recentemente, nos livros canônicos da historiografia literária brasileira, embora sempre lhe fosse reconhecida a mestria da forma, Bilac esteve francamente em baixa como poeta, sendo parte de seu êxito e permanência identificados a uma forma de reação contra o novo gosto modernista.[2] Porém a mais funda incompreensão a propósito do alcance e da importância da obra de Olavo Bilac se deu, na minha opinião, no que diz respeito à sua atuação como publicista e pedagogo.[3]
Apenas nestes últimos anos tem sido sensível, no meio acadêmico, um certo renascer do interesse pela obra e pela figura pública de Olavo Bilac, que ainda é cedo para dizer se produzirá ou não frutos a longo prazo. Da mesma forma que a literatura do início do século XX vem sendo finalmente estudada sem os preconceitos da historiografia dos anos 50 e 60 – em muitos pontos excessivamente marcada pela visada modernista – também o chamado Parnasianismo brasileiro parece estar destinado a receber da crítica uma atenção mais aprofundada e compreensiva. Se já foi o tempo em que o início do século interessava apenas enquanto “pré-modernismo”, no sentido de premonição ou anúncio do que estava por estalar em 22, também já parece ter passado a época em que mesmo a melhor crítica parecia sentir necessidade de assumir as palavras de ordem antiparnasianas dos homens de 22.
É nesse contexto, então, que me propus a apresentar aqui algumas reflexões sobre o poeta e publicista Olavo Bilac, tentando chamar a atenção para um escritor pouco difundido hoje em dia, mesmo no Brasil, e buscando apreender aspectos de sua obra e atividade que possam depois ser aplicados a outros tópicos dos estudos de cultura brasileira.

I. O poeta e o seu público.

Contam os biógrafos que Olavo Bilac certa vez entrou numa perfumaria do Rio de Janeiro para reabastecer-se de uma colônia que, num gesto teatral, tornara famosa ao derramá-la sobre o corpo de um companheiro de geração, na hora do enterro. O atendente de balcão, que era um rapazinho recém-chegado de Minas Gerais, mal ouviu o nome da colônia, associando-a ao poeta e sem saber que estava em presença do próprio, passou a derreter-se em elogios ao seu ídolo, que ainda não pudera ver pessoalmente…
Também faz parte da biografia de Bilac um outro episódio curioso: ia o poeta pela Praça Martim Afonso com outros literatos, pouco tempo depois de ter publicado na A Semana um dos seus sonetos mais famosos, quando foi abalroado por um homem mulato que lhe pisou brutalmente um pé. Depois da troca de alguns insultos, percebendo que se tratava de Bilac, o atropelador logo mudou o tratamento: pediu-lhe perdão, aludiu com piada ao soneto d’A Semana e terminou por despedir-se chamando ao poeta “ave augusta da nossa poesia”.
Os dois episódios nos transmitem uma impressão muito forte do que era a penetração popular de um escritor como Bilac. Especialmente o segundo, que se teria passado ainda em 1886, quando o nosso homem andava pelos 20 anos e era inédito em livro.[4] Para o estudioso da literatura brasileira, esses depoimentos revelam uma relação autor/público profundamente diferente da que será inaugurada, algumas décadas depois, pela primeira geração modernista. De fato, se há um momento em que se instala um divórcio completo entre o escritor e o seu público, no Brasil, esse momento é o Modernismo de 1922. Naquele final de século, às vésperas e depois da proclamação da República, a literatura era ainda um objeto de desejo das nascentes classes médias e um lugar privilegiado de projeção e debate das ideologias.
Aliás, não creio que se tenha discutido ainda, com a profundidade necessária, a questão do público de literatura no Brasil, por volta da virada do século. Quando lemos algumas obras menores do início do XX, percebemos a importância que tinha a arte da palavra para a vida quotidiana da pequena classe média, composta basicamente por funcionários de escritórios, funcionários públicos, profissionais liberais e autônomos: assim como ter uma opinião política, arranhar a sua literatura e ter decorado alguns versos dos randes poetas do tempo era requisito de distinção.[5]
De um modo geral, podemos dizer que, desde os anos em que a propaganda republicana ganhou corpo, até a época do Modernismo, o que vemos no Brasil é a construção de um público médio e uma feliz identificação entre as expectativas desse público e a realização estética que lhe era oferecida pelos escritores mais notáveis.
Poucas vezes, de fato, pôde-se observar, na história da leitura no Brasil, uma consonância tão intensa entre os ideários dos principais escritores do momento e o público de que dispunham. As conseqüências desse fato são muitas. Uma das mais importantes, creio, é que começa então a ganhar corpo a idéia da literatura como profissão. É verdade que ainda será preciso esperar por Monteiro Lobato para que a literatura em livro comece a ser fonte de renda para o escritor. No tempo de Bilac, a vida literária ainda está vinculada ao jornalismo e é das crônicas que provém a maior parte do sustento do autor. Mas já então percebemos que se afirma, de uma forma sem precedente no Brasil, o valor econômico do trabalho intelectual e do papel social do escritor.
Da singularidade e novidade dessa situação estava o poeta  da Via Lactea bem consciente. E deu-lhe o devido destaque, quando procedeu a um apanhado da sua atividade cultural na conferência intitulada Sobre a minha geração literária.
Nesse texto, fazendo um balanço dos serviços prestados à Pátria pela sua geração, aponta como um deles a superação da oposição romântica entre o autor e a sociedade:
Aluímos, desmoronamos, pulverizamos a pretensiosa torre de orgulho e de sonho em que o artista queria conservar-se fechado e superior aos outros homens; viemos trabalhar cá em baixo, no seio do formigueiro humano [...], não nos limitamos a adorar e a cultivar a Arte pura, não houve problema social que não nos preocupasse, e, sendo ‘homens de letras’, não deixamos de ser ‘homens’.[6]
Da sua perspectiva, o maior triunfo, porém, tinha sido outro: acabar com o caráter amador e marginal da atividade literária:
Que fizemos nós? Fizemos isto:  transformamos o que era até então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio; estabelecemos um preço para o nosso trabalho, porque fizemos desse trabalho uma necessidade primordial da vida moral e da civilização da nossa terra; forçamos as portas dos jornais e vencemos a inépcia e o medo dos editores; e, como, abandonando a tolice das gerações anteriores, havíamos conseguido senhorear-nos da praça que queríamos conquistas, tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade, e incorporamo-nos a ela, honrando-nos com a sua companhia e honrando-a com a nossa; e nela nos integramos de tal modo que, hoje, todo o verdadeiro artista é um homem de boa sociedade, pela sua educação civilizada, assim como todo o homem de boa sociedade é um artista, se não pela prática da Arte, ao menos pela cultura artística. Foi isso o que fizemos.[7]
E para que não houvesse dúvida sobre o valor dessa obra, enquanto atividade constitutiva da nacionalidade, Bilac introduz, logo a seguir, uma comparação inequívoca:
De certo ponto de vista, podemos dizer que representamos, para o progresso intelectual do Brasil, na última metade do século XIX, o mesmo papel que para o seu progresso material representaram no século XVII os heróis das ‘bandeiras’: nós também varamos léguas e léguas de desertos morais, nós também desbravamos sertões, nós também fundamos cidades.[8]
Compreende-se o orgulho do poeta na apresentação dos resultados do empenho da sua geração e no sentimento de obra concluída. Tendo atuado em várias campanhas cívicas, Bilac era também autor de textos didáticos e de formação de públicos. Junto com M. Bomfim, publicara, em 1913, uma narrativa para uso nas escolas primárias intitulada Através do Brasil; já em 1910 tinha dado à luz outra obra escrita em colaboração, o famoso Tratado de versificação; e desde 1904 faziam sucesso as suas Poesias infantis.[9] No campo específico da produção literária, Bilac e seus companheiros tinham criado um gosto homogêneo e bastante difundido, um padrão que persistiria ainda por muitos anos. E, por fim, criara-se uma consciência profissional no meio das letras, recebendo o poeta remuneração seja por seus livros, seja por artigos em periódicos, seja ainda pela elaboração de versos para uso publicitário.[10]
Contra esse pano de fundo, o Modernismo de 1922, alimentado na estufa dos salões aristocráticos da capital paulista, vai surgir como uma negação não apenas dos valores estéticos do Parnasianismo, mas também da aliança que este estabelecera com o seu público, daquela forma de inserção do poeta na vida social. Embora a seu modo também animado de fôlego pedagógico e proselitista, o movimento modernista não caminha no sentido de identificação com os públicos médios. Constitui-se, antes, numa proposta de violenta elitização da arte, apostando no internacionalismo e na especialização e refinamento dos públicos restritos. Nos apupos e ruídos escandalosos do público que encheu as platéias da Semana devem-se também ouvir, além da resistência aos novos padrões estéticos, os protestos dos que, acostumados a pensar na cultura literária como um bem social e um instrumento de integração, viram de repente contestado o equilíbrio tão longamente construído desde os primeiros tempos republicanos. A literatura brasileira, que orgulhosamente proclamara a sua institucionalidade em 1897, com a fundação da Academia Brasileira de Letras, e que daí por diante se empenhara na construção de uma norma e na formação de um público leitor de expressão razoável, apresentava-se, em 1922, como anti-acadêmica e futurista, isto é, para os padrões do tempo, socialmente segregacionista e esteticamente anárquica.
Mas, nesse momento, já Olavo Bilac não participava das rodas literárias: estava morto desde há quatro anos.

II. A campanha civilizatória de Olavo Bilac.

Se é verdade que, como vimos, do ponto de vista da produção literária, o conceito chave para Bilac é a integração, não é menos verdade que toda a sua ação política também se apóia sobre o mesmo ideal. Defrontado desde os últimos anos do século XIX com a necessidade de contribuir para a continuidade do regime republicano, Bilac empenhou-se em várias campanhas de expressão nacional.
A que ficou mais conhecida foi a que moveu a favor do alistamento militar obrigatório. Igualmente importantes, porém, são as suas ações no sentido de demonstrar a necessidade de instituir a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa em todas as escolas do país e a sua campanha pela expansão do ensino básico e profissionalizante.
No fundo, quando lemos os seus textos, percebemos que sempre trabalhou numa só direção, qual seja a de buscar a criação de uma norma civilizacional comum, um substrato cultural básico que permitisse a construção de uma nação republicana e a manutenção da unidade do país.
E qual era o inimigo contra que se batia o publicista? Qual o perigo que procurava conjurar, e quais os sintomas que lhe mostravam que se tratava de uma ameaça real?
Para responder a essa questão, devemos lembrar-nos de que, na passagem do Império para a República, não foram poucos os que pensaram e sentiram como Eça de Queiroz, ídolo confesso de Bilac. Numa crônica publicada logo que os telegramas anunciaram a proclamação da República, Eça refletia sobre o que sucederia ao nosso país com o fim da ação unificadora da Coroa: “Com o Império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil. Este nome de Brasil que começava a ter grandeza, e para nós Portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha geografia política. Daqui a pouco, o que foi o império estará fraccionado em repúblicas independentes, de maior ou menor importância.” Depois de alinhavar as razões para esse julgamento, que eram basicamente as diversidades regionais e as ambições localistas, concluía: “A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande império!”[11]
O temor de que se cumprisse um dia a profecia do romancista parece ter acompanhado Bilac ao longo dos anos em que se empenhou pela construção da República. Nos últimos tempos, numa conferência pronunciada no Clube Militar, já em plena Guerra, verbaliza-o claramente:
O que me aterra é a possiblidade do desmembramento. Amedronta-me esse espetáculo: este imenso território, povoado por mais de vinte e cinco milhões de homens, que não são continuamente ligados por intensas correntes de apoio e de acordo, pelo mesmo ideal, pela educação cívica, pela coesão militar [...][12]
Nesse texto, em que congrega as elites instruídas para o trabalho de manutenção da unidade nacional, aparece uma outra componente do perigo que, de seu ponto de vista, ameaçava o país: a volta da monarquia, entrevista por alguns como forma de recuperar um laço de união entre os vários segmentos da nação que parecia tender a desmembrar-se.[13]Não creio que essas idéias e sentimentos se devam exclusivamente à situação atual, que era a Guerra na Europa. Em outros textos de Bilac, percebemos claramente que o perigo da pulverização do país esteve sempre presente em suas preocupações.
Assim é que o vemos assustar-se, em 1906, com o fato de se estarem criando, pelo interior do Brasil, quistos lingüísticos e culturais que ameaçavam a unidade nacional.[14] Assim também é que o vemos verberar o analfabetismo do interior do país: não apenas porque o analfabeto é, em princípio, incapaz de exercer plenamente a sua cidadania, mas também porque sem a ação aglutinadora de uma cultura comum, de uma língua minimamente padronizada, não poderia o país manter todo o seu vasto território indiviso.
É nesse mesmo quadro argumentativo que Bilac leva adiante a sua campanha pelo alistamento militar obrigatório. Na falta de uma verdadeira organização da sociedade civil, cumpre ao exército o papel civilizador e coesivo: pela incorporação generalizada, obriga-se o cidadão ao uso da língua portuguesa, a adquirir hábitos regulares de higiene e a passar pela educação fundamental.[15]
Para Bilac, foram sempre os mesmos os remédios e os caminhos para a preservação da unidade e para o progresso do país: “a educação cívica, firmando-se na instrução primária, profissional e militar.”
Entretanto, é preciso frisar que Bilac nunca foi militarista. Mas como tinha uma ojeriza e um desprezo imensos pelos políticos profissionais – a “política” mereceu sempre as farpas mais agudas de sua pena – sonhava com um exército  nacional, integrado pelas mais diferentes classes sociais, que seria, na falta de outra estrutura organizada no interior da nação, um instrumento de homogeneização e de integração cultural.[16]
Tem, portanto, suas campanhas cívicas o mesmo objetivo que sua ação enquanto escritor: fabricar as normas do convívio social, criar a civilização brasileira e mantê-la unida tal como veio do Império.
É nesse quadro também que devemos avaliar e compreender a sua concepção de língua. Cultor da métrica impecável, da forma elaborada em poesia, Bilac na verdade nunca é obscuro e raras vezes realmente precioso. Pelo contrário, se há um defeito recorrente em sua poesia é o intuito didático, a vontade de comunicação e de clareza que impele tantos dos seus versos para a explicitação excessiva. Desse didatismo e dessa vontade de comunicação, creio, advém um traço estilístico que é todo seu e o distingue entre os contemporâneos parnasianos: a apostrofação excessiva que encontramos em seus poemas. Uma rápida olhada nos seus versos completos nos permite verificar que, de fato, metade dos seus poemas trazem uma interpelação direta de um “tu”, um diálogo ou invocação cujo efeito é sempre descritivo, explicativo.
Se a esse procedimento juntarmos os que são os traços estilísticos do período – o descritivismo puro, a narração objetiva e sensual de episódios históricos – teremos já o quadro da poesia de Bilac: instrutiva, clara, preocupada com a comunicabilidade, com a clareza expressiva, com a correção sintática e com a riqueza do vocabulário.
É assim mesmo que vemos descrito o estilo da época nos livros de história literária. Porém, essas opções e procedimentos só ganham sentido quando colocados em função de contexto mais amplo, qual seja, o das configurações das idéias do tempo. Aí podemos ver, então, a real dimensão e o desenho geral do projeto bilaquiano. Porque para esse poeta, a poesia era somente uma faceta – talvez a mais nobre – de sua forma de atuação pública. Não pode ser absolutizada e julgada por si só, mas sim em conjunto e contraste com a linguagem flexível e brilhante de suas crônicas, e com a elaborada simplicidade oratória de suas conferências e discursos solenes.
Já vimos que, no tocante à poesia, Bilac é um aficcionado da norma e um adepto da técnica. Sabemos que escreveu mesmo um Tratado de versificação e uma olhada à sua bibliografia nos mostra que produziu também um Dicionário de Rimas. Mas qual seria a sua concepção de língua, pensada de modo mais amplo, como fator de civilização?
Em primeiro lugar, talvez devamos já enfatizar que, para Bilac, a norma é o princípio básico de civilização. Formado num momento de grande alteração do regime jurídico e político, Bilac é, como Rui Barbosa, um liberal para quem o respeito ao direito, isto é, à expressão formal das normas do convívio social, é a base e o objetivo da democracia. Assim, embora reconheça que a língua evolui, enriquece-se, transforma-se, afirma sempre que as suas “regras vitais” – isto é, a sintaxe, basicamente –­­permanecem as mesmas e imutáveis.[17] A idéia comparece em vários de seus textos em prosa. De fato, lemos, por exemplo, numa conferência pronunciada em 1916, em Lisboa: “Também não sou purista extremado, de um purismo que se abeire da caturrice. Será ridículo que os nossos netos falem e escrevam exatamente como falaram e escreveram os nossos avós; também seria ridículo que o nosso estilo de hoje fosse a reprodução fiel do estilo dos quinhentistas. Mas se o tesouro do vocabulário, o movimento das locuções, o ritmo das frases podem e devem ser variados e aperfeiçoados, – a sintaxe, que é a estrutura essencial do idioma, é perpétua e imutável.”[18]
Por isso pôde Bilac dirigir, nos termos em que o fez, o elogio a Afonso Arinos, por ocasião de seu ingresso na Academia Brasileira de Letras: louvou-lhe a correção e a elegância gramatical, a sua norma castiça, e, de quebra, a “linguagem pitoresca e ingênua, cheia de barbarismos sempre coloridos e expressivos” que o escritor punha na boca das suas personagens. Como bem registra Bilac, as “expressões que fulminariam, de puro espanto, o velho Rodrigues Lobo” não ferem a pureza da linguagem do escritor. Antes, funcionando como contraste expressivo, permitem que o leitor as receba envoltas no “leve sorriso indulgente do escritor castiço, [...] anotando e saboreando a novidade daquele dizer errado e gracioso.”[19] Para um quadro mais completo do pensamento de Bilac sobre a questão da norma literária, talvez valesse a pena chamar um outro exemplo, a completar o discurso de louvor a Afonso Arinos.
Trata-se de uma conferência em que apresenta aspectos relevantes da obra de Gonçalves Dias, lida também na Academia. Em certo momento, defendia o poeta da crítica que se fizera às obras indianistas daquele autor. Aos que não julgavam adequado que os índios se expressassem, nos poemas de Dias, em  português castiço, perguntava Bilac, cheio de ironia: “Como haveriam eles de falar? em tupi? – e como os compreenderiam então aqueles que, nesta época de desmazelo de linguagem, nem ao menos se sabem servir, com um pouco de correção e de decência, da língua que é a sua? E que importa a falsidade daquilo? Só não é falso na vida o que a afeia e desonra.”[20] Mas que não nos engane a especificidade do caso dos poemas indianistas ou das narrativas regionalista de Arinos. Para Bilac, a correção e o casticismo da língua são uma virtude em si, uma das maiores virtudes, na verdade. E o seu elogio de Gonçalves Dias – que nas rodas boêmias afirmava valer dez vezes mais do que Castro Alves – vai incidir exatamente neste ponto: Gonçalves Dias amava os clássicos e o seu nacionalismo não o levou a renegar a herança lusitana: “O poeta, que, como um contemplativo extremado, não queria ver o lado prático da conquista, a utilidade dessas sangueiras, que haviam de fecundar o solo da América para o desabrochar de pátrias novas, – soube logo ver e prezar o valor do patrimônio que os invasores lhe haviam deixado: a língua, a mais bela e dúctil de todas as línguas da terra. Com que apaixonado carinho, com que solicitude de filho meigo, entrou ele a estudar esse inigualável idioma! Não o estudou pela rama, colhendo apenas as flores novas e os lindos frutos que a sazão amadurecera: foi às mais profundas raízes da árvore amada, estudou-lhes as fontes da seiva e da vida.”[21]
O que espero que já esteja apontado, ao longo destes comentários, é que esse cuidado com o respeito à norma lingüística e às fontes clássicas da língua portuguesa não é de forma alguma uma reivindicação puramente estética, nem exclusivamente um vezo de escola. Pelo contrário, creio que é bastante sensível que procede de uma atitude crítica e meditada: para Bilac, a questão da língua é a questão política por excelência, o centro de suas preocupações. A língua, dirá ele, é “a base da nacionalidade”.[22] Daí que a produção da literatura seja, de seu ponto de vista, um trabalho semelhante ao de manutenção das fronteiras do país: “o povo, depositário, conservador e reformador da língua nacional, é o verdadeiro exército da sua defesa: mas a organização das forças protetoras depende de nós: artífices da palavra, devemos ser os primeiros defensores, a guarnição das fronteiras da nossa literatura, que é toda a nossa civilização”.[23]
É verdade que Bilac enfrentava, nos últimos anos de vida, um inimigo bem palpável: os quistos linguísticos estrangeiros, que se formavam devido à emigração intensa e ameaçavam a integridade linguística do país. Mas também é verdade que a sua concepção de que a literatura é “toda a nossa civilização” ultrapassa em muito o condicionalismo do momento.
O ideal bilaquiano da civilização brasileira aparece consubstanciado, embora de uma forma um tanto diminuída por exigência do gênero, no seu livro para uso nas escolas, o Através do Brasil. Concebido para ser o único livro das primeiras classes do ensino primário, Através do Brasil é o relato de uma viagem por todo o país, empreendida por dois meninos de classe média e um moço que encontram em certo ponto do caminho.[24] Recobrindo a grande diversidade da paisagem, dos costumes e da formação étnica, o que unifica o texto e dá a medida da nacionalidade é a língua: falam a mesma linguagem tanto o narrador, quando os protagonistas e as demais personagens. O livro relata, por meio da viagem, uma experiência da diferença, mas a expressão lingüística em que é vazado é perfeitamente homogênea: expressam-se na mesma norma, com o mesmo grau de elaboração sintática, tanto as crianças quanto os adultos, tanto o sertanejo baiano, quanto o gaúcho ou o caipira paulista. É claro que isso se deve muito ao fato de ser um livro escolar. Mas creio que se pode ver aqui claramente expresso um ideal que transcende o fim prático do volume. A diversidade linguística  a sintaxe e a prosódia dialetal não têm lugar nesse livro de leitura, como também não têm no resto da obra do poeta. Não é só por se tratar de um volume didático que Bilac nunca leva o realismo no sentido de alterar a expressão correta e elegante. Aqui, como no resto de sua prosa e da sua poesia, não se mimetiza aquilo que se pretende combater.
A questão da língua é, assim, o foco de todo o pensamento e de toda a ação cívica de Bilac: instrução primária, integração nacional, papel civilizador do exército, culto da forma em poesia – tudo converge para a afirmação do papel fundamental da língua na sobrevivência do país republicano.
Nos termos claros do próprio Bilac:
A instrução primária é a cellula-mater da organização social. Só por meio da sua difusão é que poderemos evitar a morte da nossa nacionalidade; porque só a instrução primária pode conservar e expandir no país o uso da língua que os nossos avós nos legaram, – e o que constitui a nacionalidade é propriamente a língua nacional. A pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. Um povo só começa a perder a sua independência, a sua dignidade, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor do idioma natal.[25]
Como vemos, o problema que Bilac sempre se apresentou foi este: afinal, o que constitui esta nação? Desde que todos deixamos de ser súditos de um mesmo Imperador, o que é que, afinal, nos une e faz de nós um conjunto orgânico? Sem fundo étnico comum, sem um mesmo ritmo de progressão econômica, sem homogênea distribuição das cidades e das riquezas, o que restava, além da inércia e do costume? A língua, respondia o poeta. E foi nela que, de várias formas, concentrou a sua atenção e baseou o seu projeto, sob muitos aspectos vitorioso, de intervenção política.


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Notas:
[1] Texto publicado originalmente no livro de atas do V Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, 1998, Oxford, 1996. v. 2. p. 697-706. Para esta publicação, atualizaram-se as referências temporais, por conta da mudança de século. Depois, na revista Sibila: http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/olavo-bilac/2736
[2] “Bilac permaneceu como o poeta do gosto médio, e mesmo medíocre”. Castello, J.A. & Candido, A. Presença da literatura brasileira (5ª ed.).  São Paulo, Difel, 1974, p. 200. “Os temas que versou com mais assiduidade [...] ajustavam-se bem a esse traço exterior e retórico do seu modo de ser artístico; e deram-lhe leitores fiéis que representavam o gosto das gerações resistentes ao impacto modernista.” Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. (2ª ed.) São Paulo, Cultrix, 1975, p. 256.
[3] É o caso de Alfredo Bosi, que o vê apenas como representante de um “meufanismo estático e vazio, amante da tradição pela tradição considerada em si mesma como beleza”. Op. cit., p. 256.
[4] É apenas dois anos depois, em 1888, que Bilac publica seu primeiro volume de versos, Poesias, sucessivamente reeditado e ampliado até 1902, a que se seguirá um livro de Poesias Infantis. Seu terceiro título poético, Tarde é de publicação póstuma.
[5] A propósito e para ter uma idéia de um ambiente notável em que se exercia a retórica literária e política, vale a pena observar a função dos serões nas pensões de funcionários, retratados de forma interessante na novela Gente Moça, elogiada por Monteiro Lobato e escrita no ano de 1922. (Antunes, David. Gente Moça. In: Bagunça. São Paulo, Saraiva, 1968, pp. 111-166.) Vale a pena ver também, a esse respeito, ler a novela O professor Jeremias, de Leo Vaz (São Paulo, Revista do Brasil, 1920). Aí se verá um outro espaço interessante de exercício retórico literário, desta vez nas cidades pequenas do interior do país: a farmácia.
[6] Bilac, Olavo. “Sobre a minha geração literária”. In: Últimas conferências e discursos. São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1924, p. 79.
[7] Op. Cit., pp. 78-9.
[8] Op. Cit., p. 79.
[9] Em colaboração com outros autores, Bilac assina também um volume de Contos Pátrios, um Livro de Leitura, um Livro de Composição, além de A Pátria Brasileira e do Teatro Infantil.
[10] No caso de Bilac, a profissionalização do escritor passava também, e com implicações que já foram muito bem estudadas, pela produção de textos para a escola. A propósito, v. Lajolo, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo, Editora Ática, 1993, especialmente o capítulo “Livro didático e língua portuguesa: parceria antiga e mal resolvida”. Ver também, da autora: Usos e abusos da literatura na escola – Bilac e a literatura escolar na República Velha. Rio de Janeiro, Globo, 1982.
[11] Publicada orginalmente na Revista de Portugal. Repr. in: Obras. Porto, Lello & Irmão, s/d, vol. III, pp. 937-941.
[12] “Ao exército nacional”. In: Últimas conferências e discursos. cit., pp. 133. A conferência é de 1915.
[13] Ib. p.135.
[14] “Sobre a viagem de um Presidente”. In: Ironia e piedade (3ª ed.). São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1926. Nesse artigo, Bilac escandaliza-se com dados escolares colhidos em Blumenau, que mostravam que, em 112 escolas daquele município, a situação lingüística era a seguinte: 81 ensinavam exclusivamente o alemão; 17, exclusivamente o italiano; apenas 4 tinham apenas o português como língua de estudo. As outras dez eram bilíngües, sendo que duas delas não incluíam o português entre as línguas ensinadas (p.47).
[15] Na conferência “Nec nos labor iste gravabit!”, lida em São Paulo, em 2 de abril de 1917, celebrando a implantação do serviço militar obrigatório por sorteio, Bilac escrevia: “dos sorteados, que vieram dos mais distantes pontos do Brasil, muitos são analfabetos, ignorantes da nossa geografia e da nossa história, leigos na vida administrativa, econômica e política do país, inconscientes do seu valor moral como cidadãos.” Cita, então, para comprovar o real estado de coisa no interior do país os dados referentes aos alistados na cidade de São Gabriel, no Rio Grande do Sul: “60% não tinham a mais ligeira noção sobre a nossa grandeza territorial; 46,66% desconheciam a nossa forma de governo; 73,33% eram analfabetos; 73,33% ignoravam a residência oficial do Presidente da República; 86,66% nunca tinham ouvido o nome do Barão de Rio Branco. E dos dos brasileiros natos, de origem alemã, 61,53% não falavam nem entendiam uma só palavra do nosso idioma”. In:Últimas conferências e discursos. cit., pp. 55-56.
[16] No texto “Em marcha”, lido em 1915, temos uma definição muito clara do que entendia como benefícios do serviço militar obrigatório: “Que é o serviço militar generalizado? É o triunfo completo da democracia; o nivelamento das classes; a escola da ordem, da disciplina, da coesão; o laboratório da dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é a educação cívica obrigatória; é o asseio obrigatório, a higiene obrigató­ria, a regeneração muscular e física obrigatória. As cidades estão cheias de ociosos descalços, maltrapilhos, inimigos da carta de ‘abc’ e do banho, — animais brutos, que de homens têm apenas a aparência e a maldade. Para esses rebotalhos da socie­dade a caserna seria a salvação. A caserna é um filtro admirável, em que os homens se depuram e apuram: dela sairiam conscientes, dignos, Brasileiros, esses infelizes sem consciência, sem dig­nidade, sem pátria, que constituem a massa amorfa e triste da nossa multidão.” In: Últimas conferências e discursos. cit., p. 120.
[17] “Certo, uma língua não pode [conservar-se] mumificada e inânime, dentro de faixas seculares e imutáveis. Os organismo vivos arfam e vibram numa perpétua renovação. [...] Mas as regras vitais permanecem as mesmas, na sua eterna e misteriosa essência.” In: “Gonçalves Dias”. Repr. in: Conferências literárias (2ª ed.) São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1930, p. 14.
[18] “Aos homens de letras de Portugal”. In: Últimas conferências e discursos. cit., p. 164.
[19] “Na Academia Brasileira”. In: Crítica e fantasia. Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, pp. 421 e 422.
[20] “Gonçalves Dias”. In: Conferências literárias. cit., p. 19.
[21] Ib., p.17.
[22] “A língua portuguesa”. Conferência de 1916. Repr. in: Últimas conferências e discursos. cit. A expressão citada está na p. 210.
[23] Ib., p. 208.
[24] A propósito dessa obra, cf. os comentários de Lajolo, M. e Zilberman, R. Literatura infantil brasileira – História & histórias. São Paulo, Editora Ática, 1984, especialmente o cap. 3.4.1 “As images/stories do Brasil”, onde as autoras também comentam o modelo de Bilac, a novela Le tour de la France par deux garçons (1877), de G. Bruno. Um estudo muito aprofundado do livro de Bilac se encontra em: António Dimas. “A encruzilhada do fim do século”. In: Ana Pizarro (org.) América Latina – palavra, literatura e cultura, vol. 2. Campinas, Edunicamp / São Paulo, Memorial da América Latina, 1994, pp. 535-574. O texto de António Dimas também enfoca outros aspectos da obra de Bilac que também aqui abordamos.
[25] “Instrução e patriotismo” In: Conferências literárias. cit., p. 301.