quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Recordando Goga



Arrumando os arquivos do computador, encontrei várias anotações sobre uma figura excepcional que tive o prazer de conhecer. Juntei alguma coisa, puxei pela memória e eis aqui:
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Conheci H. Masuda Goga logo depois do lançamento de “Haikai: antologia e história”. Foi assim: a Editora da Unicamp, que o publicara, participava da Bienal do Livro. No estande, fui procurado por um simpático senhor, que se apresentou: Douglas Eden Brotto. Falou-me então de um grupo que se dedicava à prática do haicai em São Paulo, na Aliança Cultural Brasil-Japão, e convidou-me para ir conhecê-lo. Creio que ele estava com mais alguém, mas não me recordo. Recordo-me, sim, que fui, no próximo sábado em que houve reunião. E foi lá que conheci Goga.
Goga praticara o haicai sob orientação de Sato Nenpuku, que liderava um amplo movimento de composição do haicai em japonês entre os imigrantes. Ao longo dos anos em que se dedicou a promover o haicai, Nenpuku teve cerca de 6000 mil discípulos. Mas nunca escreveu em português.
A produção de Nenpuku terminou por ser conhecida em nossa língua, traduzida, mas a enorme quantidade de haicais escrita em japonês, tendo como tema a natureza e a vida quotidiana no Brasil, parece esperar em vão por um trabalho sério e sistemático, que a reúna, estude e traduza, permitindo assim a sua divulgação mais ampla no país, bem como o conhecimento da língua dos imigrantes e alguns aspectos da sua adaptação ao clima, à flora e à fauna do Brasil.
Goga levou adiante o trabalho de Nenpuku, praticando o haicai na sua língua natal, mas dando um passo decisivo. Como foi amigo de Guilherme de Almeida e de Jorge Fonseca Júnior, empenhou-se na transposição do haicai tradicional para o português.
A tarefa não era fácil. O haicai não é somente uma forma fixa. Não é uma espécie de microssoneto, não é uma estrutura na qual se pode vazar qualquer conteúdo.
É certo que o “haicai” tem uma forma que, na vertente que é a de Goga, tradicionalista, exige um grande domínio da técnica e da língua literária. Mas antes de ser uma forma ou o produto de uma técnica, o haicai é um jeito de estar no mundo, uma maneira de olhar para as coisas. Um jeito de estar na linguagem, no sentido de que o estado de haicai pressupõe a contemplação, a experiência e a composição por impulso, segundo a impressão do momento. Mais ou menos como sair com uma câmera para fazer fotos pressupõe um jeito diferente de olhar para as coisas e de se acercar delas.
O primeiro problema que se apresentava, em meados do século XX, era compreender por que caminhos e com que sentidos o haicai tinha chegado ao Brasil. Não havia ainda nenhum trabalho sistemático sobre isso, nem em português, nem em japonês. Goga dedicou-se a recompor essa história, dando finalmente a público, em 1987, o volume O haicai no Brasil, publicado também em língua japonesa.
Nesse mesmo ano, junto com outros interessados, principalmente nisseis, fundou a primeira associação dedicada à prática de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, e logo depois, em 1993, o Grêmio Haicai Caleidoscópio, dedicado à produção de rengas (haicais encadeados) em língua portuguesa.
Foram anos de dedicação à tarefa. Goga, nascido em 1911, emigrou para o Brasil em 1929. Seu trabalho com o haicai em português se estende de 1936 até 1987, quando dá por encerrada a primeira parte do trabalho, com a publicação do livro e a fundação do Grêmio.
Ainda havia, entretanto, muito que trabalhar, para construir o haicai brasileiro em moldes japoneses. O próximo desafio era fazer a sistematização dos índices de estação no Brasil.
No Japão, a longa prática consolidou relações unívocas entre alguns fenômenos, animais, plantas e atos humanos, por um lado, e os vários momentos do ciclo das estações, por outro. A simples menção a um pássaro, por exemplo, já convoca para o poema associações que configuram não só uma estação específica, mas também um estado de espírito tradicionalmente associado a ela. A alma do haicai tradicional repousa nessas relações unívocas, pois elas fornecem a base para o desenvolvimento particular de cada poema, por meio da glosa do estado de espírito conotado, da sua contradição, da anotação de uma variante ou, em casos mais radicais, da sua negação pela ironia ou pela piada. No Japão, a codificação dessas relações é tão importante e clara que se organizam dicionários de “kigos”, isto é, palavras que remetem a um momento determinado na sucessão das estações.
No Brasil, país de vários climas e de estações menos definidas, o “kigo” sempre foi um problema. Sua sistematização, do ponto de vista do haicai tradicional, era urgente.
Com ajuda da haicaísta Teruko Oda, sua sobrinha, foi esse o próximo passo de Goga na construção do caminho do haicai brasileiro. Após muitos anos de trabalho, ambos publicaram finalmente o volume “Natureza – Berço do Haicai” (1996), o primeiro dicionário de “kigos” brasileiros.
Por conta desse trabalho, Masuda Goga recebeu, em 2004, do Japão, o “Masaoka Shiki International Haiku Grand Prize”, que é concedido a pessoas que tiveram grande destaque na difusão internacional do haicai.
Em 2008, ano em que se comemoravam os cem anos da imigração japonesa, esse homem que dedicou boa parte da vida a promover a imigração da forma do haicai tradicional nos deixou, no dia 28 de maio. Tinha 96 anos de idade.
Sua passagem foi consentânea com os ideais da poesia que praticou.
Naquele ano, ia ser lançado, pelos seus admiradores, um concurso de haicai com o seu nome, e seria realizada uma exposição de fotografias em sua homenagem. Ia também ser lançado o meu livro “Oeste/Nishi”, que Goga generosamente tinha traduzido para o japonês, completando assim um círculo: o haicai tradicional, praticado pela colônia sob a orientação de Nenpuku, aclimatado à língua portuguesa por Goga, voltava agora à língua japonesa pelas suas mãos. É certo que eu não pertencia ao Grêmio Ipê, mas também é certo que sempre tive por ele a maior simpatia. De modo que nesse sentido se pode dizer que o círculo se fechava.
Pois bem, foi quando viajava, em companhia do filho e da nora para São Paulo, vindo do interior de Minas Gerais, onde vivia seus últimos anos, que Masuda faleceu. Trazia, como sempre, a sua caderneta, onde escrevia tantos haicais. Em certo momento, olhando a paisagem, sentiu-se cansado. Disse à nora que descansaria um pouco no ombro dela. Recostou-se e adormeceu calmamente para sempre.
Na abertura dos eventos comemorativos, que incluíam o lançamento do livro, um seu retrato o representou: sorridente e feliz, como sempre o vimos e dele me lembro agora.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Haquira e o haikai

 Quando comecei a estudar o haicai, Haquira Osakabe me disse: tem de lembrar que haicai é atividade, é sociabilidade. Ele tinha um jeito oracular de se expressar. Não concatenava as ideias com clareza lógica. Ao menos, não como eu gostaria que fizesse. Em vez disso, comunicava pelo olhar, pelo meio sorriso, pelo gesto. Tinha uma forma estranha de se expressar corporalmente. Uma vez, perante uma fala enrolada e perigosa, ele mesmo se enrolou defensivamente de um modo que não compreendi à primeira vista, pois parecia que suas longas pernas, enroscadas uma na outra, eram de material plástico e não de carne e osso. Ainda o vejo assim, e com a mão tampando metade da boca, como a impedir-se de falar. Pois aquela advertência foi assim enigmática e a frase acima é o apenas a minha tradução. Hoje me lembrei dela. Estou terminando um breve texto para um congresso. Intitulei-o “Poesia da natureza – a aclimatação do haiku no Brasil”. Faz tempo que não participo de congressos, mas uma razão afetiva me moveu a responder positivamente à organizadora, que foi tão solidária com os últimos eventos da minha vida. Talvez por isso, por esse texto ser uma resposta afetiva, lembrei-me do Haquira. Mas não só: ao longo dele ressalto como florescência nova desse transplante justamente a sociabilidade dos grêmios e dos agrupamentos virtuais dedicados ao haicai. E porque o nosso haicai tradicional é uma aclimatação em linha reta do haiku de Shiki, usei o termo japonês no título. De fato, Shiki > Kyoshi > (Mizuho Nakata) > Nenpuku > Goga > Teruko Oda > “grêmios” = haiku > haicai tradicional brasileiro. E dinamizando isso tudo, a sociabilidade, o caráter coletivo, a valorização da poesia como atividade, mais do que como produto – como queria me dizer Haquira, no começo dos já longínquos anos de 1980.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Arguição: literatura digital?

 Estou agora mesmo numa atividade que há tempos não me pegava: ser membro de uma banca acadêmica. No caso, banca de uma tese apresentada em concurso para Professor Titular numa universidade federal.

As questões que abordei na  minha participação têm a ver com o que vim refletindo aqui sobre poesia e técnica, poesia digital, inteligência artificial.

Por isso mesmo, como a arguição é uma etapa pública e aberta a qualquer interessado, pensei que não haveria problema em a transcrever aqui, já que talvez ela pudesse gerar alguma conversa também neste espaço.

 

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Arguição da tese intitulada Antologia crítica da literatura digital brasileira.

Autora: Rejane Cristina Rocha 

Instituição: Universidade Federal de São Carlos

Data: 10 de dezembro de 2024

 

Prezada Rejane,

 

Lendo sua tese, reparei um ponto que me interessou pessoalmente, pois fui dos primeiros usuários de computador do meu Instituto e em casa. Também pude criar num CCVAX o primeiro fórum de discussão sobre haicai (e talvez o primeiro dedicado à literatura), em 1996. Vim para a Unicamp dez anos antes disso, em 1986, no mesmo ano em que foi lançado o Redator da Itautec. No IEL, em 1987 chegaram dois computadores de 8 bits, sem hard disk, com apenas dois drives para disquetes moles (floppy disks). Foi neles que compus, em 1987– usando o Redator  –, para maravilha de muitos, o primeiro livro do IEL inteiramente digitado. 

Assim que pude, comprei um computador Itautec, com um pequeno disco rígido de 30 megabytes E foi nessa máquina ou em uma um pouco melhor que pude, em 1990/91, instalar o WordPerfect e criar as macros que me permitiram fazer, em tempo recorde, a edição crítica do Camilo Pessanha. 

Por essa época, fui o segundo usuário do IEL a utilizar o bitnet por linha discada de 1200 bps. Como tinha uma namorada nos EUA – minha futura ex-esposa – e o BITNET (because it’s time of network) fosse muito ruim, consegui uma generosa autorização para usar a HEPNET (High Energy Physics Network).  

Com tanto entusiasmo profissional e tanto interesse pessoal envolvido, e como eu era praticamente o único usuário constante e apaixonado, logo fui designado Coordenador de Informática, sendo por um ano e tal o coordenador e praticamente o único coordenado. 

Enfim, o que quero dizer é que vivenciei, em casa ou na Unicamp, no espaço de 15 anos, todas as etapas do choque informático e internético.

Um ponto que me interessou pessoalmente, portanto, foram as reflexões sobre o tempo acelerado das mudanças no mundo da informática, bem como sobre a perda das informações, soterradas sob programas que já não funcionam ou sites dos quais a gente só tem uma imagem congelada e parcial. 

Camões já observava algo novo no seu tempo. Dizia ele que 'todo o mundo é composto de mudança,' mas que “outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.' 

Não creio exagerar ao dizer que essa aceleração do ritmo da mudança se deveu em grande parte à invenção e disseminação da imprensa. Agora, com a invenção do computador pessoal e da internet experimentamos algo semelhante ao que registrou Camões: a velocidade da mudança cresceu espantosamente. 

            Entretanto, no que diz respeito à sua tese, outra mudança se faz de muito mor espanto. É que o livro impresso representou, no seu tempo, duas coisas: acessibilidade do conhecimento e conservação desse conhecimento, pois não se tratava mais de existirem exemplares únicos. Já a informática, junto com um enorme poder de difusão, trouxe um complicador: a perda igualmente rápida da informação, por conta da obsolescência vertiginosa do software e hardware. E não só: a desativação de domínios – por exemplo, no livro impresso Tristessa, que você analisa, deparei com esta informação, na quarta capa: “O livro original você pode ler emwww.quatro.com.br/tristessa . Mas esse domínio, como vi logo em seguida, ao tentar acessar, já não existe.

            Você se debate com algo, portanto, que a gente não imaginaria no começo da aventura computacional: a perda da informação e da memória. 

Daí que o seu trabalho seja equiparado em vários momentos da tese ao de um arqueólogo. Enquanto aquele tira o entulho e varre o pó acumulado sobre os objetos antigos, você pelo contrário lida com o que, de uma perspectiva puramente utilitária, é o entulho. 

Seja como for, é mesmo arqueologia: tem de chegar ao que está enterrado, usar instrumentos de escavação (por exemplo, emulação de programas já desaparecidos) imaginar como se comportavam os seus objetos, os seus “textos”, e imaginar o efeito de poemas dos quais só se têm fragmentos e poucos testemunhos de leitura. 

Assim como o tradutor de Safo enfrenta os fragmentos na busca infinita da totalidade impossível, assim você tenta traçar um quadro compreensivo da evolução da poesia digital, a partir dos poucos registros disponíveis. 

A terminologia também é reveladora: museu, conservação, preservação. Ou seja, em certo sentido, trata-se de um trabalho de recolha arqueológica e preservação museológica.

 

            Do meu ponto de vista, a sua tese tem dois polos de tensão, entre os quais se ramificam as questões que você nos apresenta. De um lado, pensar o sentido da experimentação poética com as inovações técnicas (hardware e software); de outro, constatar repetidamente a ruína da memória dessa experimentação e os limites para a sua preservação. 

            Do primeiro polo derivam as reflexões sobre poesia e técnica: qual o sentido da experimentação? É cedência ao mercado ou uma forma de resistência a ele? 

Do segundo, a reflexão sobre a obsolescência e a função dos estudos desse tipo de arte.

 

            Minhas questões de leitura giram à volta da relação entre a literatura (ou a arte) e a técnica. Na verdade, nem são questões, são mais comentários. E eu conto aprender ao ouvir os seus comentários aos meus comentários.

 

            A primeira é esta: você em certo ponto diz que temos de concordar com a asserção de que a arte é produzida com as tecnologias do seu tempo. Eu não entendo bem o que isso quer dizer. 

Quer dizer que um autor não pode ou não deve escrever à mão hoje? Ou que mesmo a escrita à mão pressupõe hoje a máquina de escrever ou o computador? Ou quer dizer que a forma literária é determinada apenas em parte pela tecnologia? Por exemplo: o texto fica "jornalístico", como dizem os manuais sobre alguma modernidade... Mas isso é fatal? Proust, por exemplo, vai na contramão... No entanto, mesmo se admitirmos que se torna "jornalístico", isso tanto pode ser atribuído ao fato de que a literatura é produzida com as tecnologias do tempo (máquina de escrever, telégrafo para transmitir textos etc.), quanto à vontade de imitar, de incorporar – ou seja, as tecnologias podem não determinar, mas ser emuladas pela forma literária. São, portanto, questões diferentes, porque uma coisa é a arte ser produzida com a tecnologia do tempo e ser por ela determinada; outra é a arte dialogar com a tecnologia, emulá-la por meios artesanais, ou mesmo ser apenas influenciada por ela.

 

Assim também a afirmação de que hoje tudo é digital. Penso que aí temos também duas coisas diferentes. A reprodução da obra literária implica necessariamente o digital, o número. A literatura, porém, não nasce necessariamente vinculada ao dígito no nosso tempo. Ela pode continuar sendo escrita à mão ou em velhas máquinas de escrever, ou mesmo não sendo escrita, só memorizada e transmitida verbalmente.

 

Outro momento que me chamou a atenção foi quando você pareceu ver a especificidade da questão brasileira como diretamente vinculada ao menor desenvolvimento tecnológico. Eu me pergunto se seria só isso, porque eu me recordo sempre daquele texto de Antonio Candido sobre a literatura na primeira metade do século XX, no qual ele diz que entre nós a cultura letrada “clássica”, erudita, não se tinha sedimentado. E que por isso o público recém-formado era logo capturado pelos mass-media, pela arte de massas. Quero dizer, eu entendo que nós temos uma fixação na tecnologia, apesar do nosso claro atraso nesse campo, por conta justamente de entre nós o mesmo público nascente nas cidades ter sido, por assim dizer, “bilíngue” – falando a língua da cultura letrada e a da cultura de massas ao mesmo tempo.

 

Por fim, a questão da autoria. 

 

Nas redes sociais se publica muita poesia. Mas ali também existe uma preocupação forte com a autoria: publicam-se os poemas em forma de imagem, para não se perder a diagramação, mas também para impedir a alteração. E muitas vezes o nome do autor vem escrito junto de cada poema, mesmo quando o poema vem na página pessoal do autor.

 

Ora a técnica, em si mesma, não é autoral. Ninguém sabe quem inventou o Word, ou o applet x ou y, nem mesmo o Flash. 

 

Um dos motivos pelos quais a evolução da tecnologia é rápida é que ela não é autoral, mas colaborativa, fruto de trabalho de equipe. E quando não é, os direitos negociados fazem com que ela pertença à empresa e não seja creditada ao indivíduo, o que permite modificações, atualizações, redesenho geral se for o caso.

 

Entretanto, a arte exige a autoria. Não só a assinatura, mas a vinculação a uma figura biográfica pública.

 

Por isso mesmo, a arte digital acaba por ter sempre um ar cediço: ela, ao reivindicar a autoria, congela a evolução, fixa o momento. Como a evolução é rápida, e o interesse pela arte é pequeno para justificar um investimento empresarial, o que sucede é que ela faça uma passagem muito rápida: num passe de mágica ela sai da vanguarda do namoro tecnológico para o casamento com o museu de curiosidades e antiguidades.

 

Outro ponto que me chama a atenção é que alguma arte digital não se destaca pela realização, pela qualidade ou novidade do resultado final, mas sim pelo processo de criação. Consideremos, por exemplo, o “Tombeau de Mallarmé”, de Erthos Albino de Sousa. Como você bem nota, há algo curioso no descompasso entre processo produtivo e resultado. Eu acho até que aquilo poderia ser feito com uma máquina de escrever. E, sem dúvida, num computador 8 bits, de tela CGA, ligado a uma impressora matricial. Podia mesmo ser feito artesanalmente, com Letra Set. Mas foi feito por um processo complicado de registro da temperatura de um fluido qualquer num cano. E foi esse processo que chamou a atenção da crítica, processo que, mesmo nesta tese, numa nota, é descrito em pormenor. Então eu concluo que há aí um fetichismo da técnica, não do objeto artístico.

Observo ainda que, nesse caso, no limite há um intuito analógico, patenteado pela apresentação do poema junto com a foto do túmulo de Mallarmé. Os fluidos aquecidos reproduzem o perfil do túmulo. Isso também reafirma a ideia de que o interesse desse poema está unicamente no processo, porque o resultado não é vanguarda, já que está próximo seja dos Caligramas, seja dos poemas "em forma de" que vêm desde os gregos, passando pelos barrocos e românticos.

 

 

Na mesma linha, pude também observar que em muitos casos a tecnologia é convocada "do lado de fora" do resultado textual: livros que cheiram; palavras produzidas por hologramas; palavras produzidas por nanotecnologia. etc. O que se admira nesses casos é a tecnologia. Mas o resultado, o produto, muitas vezes parece pífio em termos de linguagem. Há um caráter lúdico, quase infantil que é divertido, nisso tudo. Mas em geral o que está em pauta é a técnica, que se apresenta muitas vezes, como disse, “do lado de fora” da arte, quase como uma vestimenta. Ou uma embalagem, para lembrar a definição que Philadelpho Menezes deu a poemas de Augusto de Campos.

 

Os exemplos mais claros para mim são alguns poemas desse mesmo poeta, nos quais a tipografia ou mesmo a tecnologia servem basicamente para produzir uma dificuldade de leitura. Muitas vezes para disfarçar a banalidade do enunciado, como no poema dos livros que estão em pé na estante – um poema metrificado, convencional, “ilustrado” pela tipografia.

 

Isso é que é curioso: muitas vezes, no caso da poesia digital, como no caso de vários poemas concretos, não é que explicações sobre a tecnologia são necessárias para o entendimento do poema. A pergunta que me surge é: sem essas explicações do processo, sem o andaime do edifício, o poema não pode ser fruído – o edifício não pode ser habitado? Ou a fruição é na verdade do que é explicado de tecnologia ANTES do poema, como preparação, ou DEPOIS dele, como justificação?

 

Por fim, eu pensei: se a tecnologia é a estrela da festa, por que reivindicar para o produto o nome “poesia” ou “literatura”? Creio que essa é uma questão importante: reivindicar o nome é reivindicar uma forma de leitura, uma disposição do receptor. E também uma reivindicação de pertencimento: eu pertenço à família literária, portanto não sou um produto apenas tecnológico; sou par de Dante, Homero, Baudelaire, Pound etc.

 

Isso tudo está muito corretamente visto na sua tese. Mas voltando à poesia digital: o que nela é apresentado e o que nela é dito? Normalmente, como em alguns poemas de Augusto, o que é dito é apenas uma reflexão sobre o dizer e o ler e interpretar. É metalinguagem. Portanto, a questão é: sem o parasitismo da metalinguagem, remetendo aos novos meios e técnicas, o que esse tipo de poesia tem a dizer? E por conta da dependência da tecnologia e da obsolescência rápida das linguagens e equipamentos, é possível imaginar que se possa escrever um equivalente cultural (no sentido da permanência e da influência sobre o futuro) de uma Ilíada ou de uma Mensagem ou ainda de uma Máquina do Mundo com esses recursos? São questões para responder em outra tese, com certeza, mas que não consegui me impedir de pensar.

 

Uma última observação tópica diz respeito ao uso da palavra “paideuma”. Paideuma tinha um sentido de hierarquia em Pound, está claro; mas também um sentido de rendimento, de economia. Um paideuma seria um elenco de autores que permitiria às próximas gerações ir direto ao que importava, sem perder tempo com coisas que não valiam a pena. 

 

Mas aí me pergunto: no caso da arte digital o paideuma funciona? Perguntei-me isso porque não dá para ir direto ao material, que tem de ser objeto de uma reconstrução arqueológica. Assim, não é possível ao destinatário do paideuma ter acesso às obras tidas como essenciais para o desenvolvimento de sua própria obra. Só à sua descrição e a uma antologia involuntária, que são os fragmentos recolhidos em museus. Se não são acessíveis as obras, pode-se falar em paideuma, no sentido poundiano?

 

O comentário acima não era de fato o último, porque me parece que quanto à arte digital talvez já se possa falar de uma quarta geração. Até este momento, a definição geracional passava pela questão da técnica, dos meios técnicos. O caráter de experimentação se referiu quase sempre à exploração das possibilidades técnicas do software e do hardware por um autor. Mas já há cerca de dois anos começou a haver algo novo: o digital incorporado à literatura não no instrumento, no meio ou na linguagem - mas na própria criação, com a inteligência artificial. É possível pensar agora numa literatura do prompt - uma literatura que é toda ela digital, desde a "escrita", e que pode encontrar ou não uma forma física. E, sim, quando a IA escreve um livro e ele é impresso temos algo muito diferente de quando um livro era interpretado digitalmente. É algo como um caminho inverso. E isso também daria uma outra tese!

 

Não sendo o caso de fazer teses e mais teses, resta-me cumprimentá-la pela que nos apresenta, e aguardar os comentários que julgar interessante fazer em resposta aos meus.

 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Memórias da FFLC Araraquara

         Depois de muitos anos, conversei ontem por WhatsApp com Zina Bellodi. Zina foi minha professora em Araraquara. 

Durante a conversa, lembrei-me daqueles anos em que me deparei com o maior tesouro: uma enorme biblioteca com acesso livre. Nada de pedir o livro no balcão, aguardar, folhear, decidir que não era aquilo e galopar até o fichário para conseguir os dados para outro pedido. 

Entrar naquela biblioteca acolhedora, principalmente no novo campus, era uma coisa; sair, era outra. A serendipity fazia o seu trabalho com perfeição. 

Aquelas manhãs e tardes na biblioteca e o canto altíssimo das cigarras são as memórias mais persistentes daqueles anos de formação.

No que toca à formação propriamente dita, ou melhor, das aulas, persistem as memórias das longas horas sob o comando do Jorge Cury – com sua rabugice tão famosa, quanto a sua paixão pela literatura lusa –, da lenta decifração francesa dos contos e poemas de Gérard de Nerval e outros poetas a quem me afeiçoei, e das aulas de Teoria Literária – que, naqueles tempos, significava basicamente o livro de Wellek e Warren. Veio daí a  minha formação eclética, em que eu combinava sem contradição aparente (e contra os preceitos da professora de Teoria Literária) a explicação de textos francesa (muito externa, às vezes, e biográfica) e a nova crítica americana.

Quando me pus a refletir sobre isso, deparei com um texto em que Antonio Candido em que ele também afirma que a junção desses dois polos também animava o seu trabalho. Foi numa entrevista de 2011: “talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.” Se pusermos esse paradigma eclético a serviço de uma perspectiva marxista, para a qual o objetivo último da análise literária é a compreensão do movimento social, temos o segundo momento do Candido – momento esse em que não o segui. Não por ter alguma prevenção contra o marxismo, mas porque eu preferi, sempre que foi o caso, fazer o caminho inverso: ter a compreensão da obra literária como objetivo último (e único, talvez) do meu trabalho, colocando a seu serviço o que for preciso, inclusive a compreensão possível do movimento social.

Isso, penso agora, deve ter sido ainda produto da impregnação wellekiana, daqueles verdes anos.

            Por isso mesmo, num texto de um livrinho sobre o ensino da literatura escrevi isto: “Ao mesmo tempo numa disciplina denominada Teoria da Literatura, líamos o livro de René Wellek e Austin Warren, que marcou época no Brasil, promovendo a crítica dos métodos que atenderiam à “demanda extrínseca do estudo da literatura” e valorizando aqueles que promoviam o seu “estudo intrínseco”. [...] Olhando agora o meu velho exemplar dos tempos da faculdade, vejo nas profusas anotações a lápis nas margens do capítulo sobre mito e metáfora (e em outros) o quanto a clareza do vocabulário e o rigor analítico da exposição foram um deslumbramento para mim. Como foi também muito importante outro manual, igualmente marcado pela perspectiva formalista, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser, que desempenhava um papel complementar ao de Wellek.”

            A disciplina de Teoria Literária, poderia ir sem dizer, era a da Profa. Zina, com quem conversei ontem à noite, conversa essa que despertou em mim novamente, naqueles momentos em que não se está plenamente desperto, nem totalmente adormecido, estas velhas recordações do campus calorento e sua biblioteca infinita.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Textos sobre inteligência artificial neste blog

  

1-    Análise de haicai 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/7635535975447774395

 

2 – Composição de soneto

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4897252241031158659

 

3 – Um dístico latino

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/6389982462619581276

 

4 – Escrita de poesia 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4247847397337859988

 

5 – Eliot e a IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5125068848031893630

 

6 – Tradução e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5756432131876187924

 

7 – New Criticism e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4858346554281861182

 

8 – IA e autoria

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5947458456677344362

 

Inteligência Artificial - 8 - O que a IA nos mostra

 Nessas provocações que tenho feito quanto à capacidade da IA de fazer poesia, há um ponto que tenho achado interessante considerar. É que a maior parte de nós boa parte do tempo faz pastiche, assim como a máquina. Vamos lendo, acumulando ideias, procedimentos, imagens, imitando e tentado nos livrar da “influência”, dando um uso criativo a essa dinâmica etc. E nesse arranjo, quando conseguimos, inserimos a nossa nota pessoal, original ou o que seja. Mas penso que duas coisas entram em ação para confundir o debate quando falamos de IA. Primeiro, a ideia romântica do gênio, da individualidade capaz de radical originalidade. Depois, a ideia, que ora é antagônica, ora é complementar a essa, da autonomia do objeto estético. Com o New Criticism e com o Estruturalismo aprendemos na escola que o texto deve falar por si, que vale pela sua estrutura, pela sua concretude, independente de intenção ou propósito do autor. A história da poesia (e da literatura, claro) poderia ser contada como uma história de evolução das formas, quase ou totalmente apagando os autores. Mas essa sim parece uma falácia, em muitos sentidos. Porque talvez haja mais entre um texto e seu autor do que supõe a vã visada autonomista. Esse mais é algo que eu tenderia a chamar de personalidade ou mesmo de biografia literária. Que é diferente da biografia no sentido estrito. Principalmente da personalidade, num sentido psicológico. É uma imagem autoral que permite dinamizar o texto, interpretá-lo e reconhecer nele qualidades estéticas que, sem ela, não teriam a mesma força ou o mesmo sentido. Um bom exemplo é Manuel Bandeira. Sem a sua imagem autoral, sem a sua – por assim dizer – biografia pública, literária, gostaríamos do seu porquinho da Índia? Da sua Irene no céu? Da sua andorinha, andorinha? Dos seus cachorrinhos bebendo água? Escrito por um autor do qual nada soubéssemos, o porquinho não seria terrivelmente piegas? Se assinado por um estudante e entregue a um professor, que seria do poema da Irene ou da conversa com a andorinha? Além disso, há o estilo. Seria imaginável qualquer um desses três poemas saindo das famosas dores de cabeça do João Cabral? Portanto, a questão que me parece interessante no caso da IA é: um texto poético muito bem escrito e estruturado, incluindo ainda originalidade no tratamento do tema (porque pode-se programar a aparição do inesperado e aleatório – é só questão de tempo) poderá ser recebido e lido como boa poesia? Penso que essa questão é importante principalmente porque nos mostra a expectativa que temos com relação à poesia. Talvez com relação à música esse problema não se apresente com a mesma complexidade. Com o design industrial certamente não. E com a arquitetura, o que seria? Ou seja, as provocações visam a escarafunchar um pouco a nossa expectativa frente a um texto que identificamos como poesia. Apenas isso.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Prêmios literários

 Participar do júri de um grande prêmio literário é interessante por permitir uma visão ampla do que se produziu em determinado gênero no ano anterior. É um dos poucos momentos em que a gente escapa do marketing direto e indireto, e das recomendações e inclinações pessoais. No dia a dia, a escolha do que comprar para ler está condicionada à disponibilidade de recursos. O investimento é determinado pelas resenhas dos jornais (quase sempre subordinadas ao poder de marketing das editoras), pelo nome dos autores, pelo selo editorial. Num concurso, não: há de tudo e mais um pouco. A custo zero. Uma pena é que agora a gente não julga livros, no sentido próprio da palavra. Não julga os objetos na sua materialidade, mas apenas o seu “conteúdo” – por assim dizer –, a sua imagem numa tela de notebook ou computador de mesa, ou mesmo celular.

Neste ano tive a sorte de poder participar de dois júris em certo sentido complementares. No Jabuti, na categoria poesia de autor estreante. Na Biblioteca Nacional, na categoria poesia tout court. Se no Jabuti eu tivesse sido designado para “poesia”, por certo a sobreposição de obras seria bastante significativa. Da forma como foi, o exemplário terminou por ser o mais amplo possível.
Lendo postagens nas redes sociais, percebi que há sempre desconfiança. Normalmente, de autores que tinham mais expectativa ou de seus amigos próximos. Mas as desconfianças me parecem infundadas nesses dois casos.
Percebi também que as pessoas desconhecem o modo de funcionamento dos júris. Há muitos prêmios atualmente, e eu só posso falar desses dois que nomeei e têm funcionamento diverso. Então aproveito o post para contar.
No Jabuti, cada jurado atribui as notas nos quesitos sem fazer ideia de quem são os outros dois. As notas são tabuladas e os vencedores são proclamados. Só então os jurados ficam sabendo com quem trabalharam. Uma particularidade desse prêmio é que um jurado pode se surpreender com o resultado, vendo ganhar em primeiro lugar uma obra que não foi escolhida por ele para tal colocação, já que é a média aritmética que decide. No caso do prêmio da Biblioteca, os jurados têm de ser informados sobre seus parceiros de empreitada, porque ao final dos trabalhos será redigido um parecer conjunto, justificando a atribuição do prêmio à obra vencedora. Cada jurado também atribui três notas a cada obra, em três quesitos; a comissão do prêmio tabula os resultados; com isso se obtêm os três primeiros colocados; cabe então ao júri justificar a escolha que fez ao atribuir as notas.
A trabalheira este ano, com dois júris, foi imensa. Mas compensou, pois foi uma oportunidade única de tomar pé na poesia publicada no Brasil, uma oportunidade de ler livros que eu jamais compraria por iniciativa própria, ou por falta de recursos, ou por desconhecimento, já que muitos livros apresentados são edições regionais ou do próprio autor. Poder conhecer a produção do ano anterior sem gastar um tostão e ainda recebendo uma modesta retribuição financeira... que mais poderia pedir? A pergunta é retórica, claro, pois seria bem-vinda uma retribuição melhor do que a que existe hoje, simbólica, já que o trabalho é enorme! Mas a verdade (que não devia ser conhecida dos organizadores dos prêmios) é que eu faria o trabalho até de graça, só para poder tomar o pulso, de modo amplo, da poesia publicada no Brasil.

Digital e analógico

 Nesta era digital, fico pensando que poderia ser chocante, na poesia, um movimento semelhante ao que se vê na música: um recuo, uma volta ao analógico. O caminho da música gravada foi do gramofone ao disco, do disco ao cd, do cd à forma puramente digital. Mas agora são os velhos LPs os objetos do desejo. Também no tocante ao equipamento de reprodução, parece que se impõe a superioridade da válvula iluminada em relação ao transístor opaco. Fico pensando no que poderia ser um equivalente em poesia. Tenho um amigo que cada vez mais escreve tudo à mão, abandonando o computador. Outro, mais comedido, reserva o computador para o trabalho. Poesia, só à mão e a lápis. Quem sabe um dia ainda veremos poesia autógrafa, reproduzida em xerox, ou - como nos tempos da poesia marginal – em mimeógrafo a álcool... Poderia interessante esse retorno. Seria um contraponto à tendência do momento em que mesmo o livro digital em edição de autor busca todas as formas da mercadoria, como capa, prefácios, créditos, ficha catalográfica e ISBN. E um contraponto à crescente perda de corporeidade do texto, agora reduzido a dígitos transmitidos por wi-fi.

sábado, 23 de novembro de 2024

O método histórico de Oliveira Martins

 

 

O texto aqui apresentado provém da apresentação à correspondência trocada entre Eça de Queirós e Oliveira Martins. A transcrição e anotação das cartas foi feita por Beatriz Berrini que, sabendo do meu interesse pela obra dos dois autores, pediu a apresentação.

Na época, eu me dedicava à leitura da obra completa de Oliveira Martins, o que me absorveu por anos. Concordei, então, em escrever e ela aceitou que eu dedicasse a maior parte do texto a Oliveira Martins, na época já quase esquecido no Brasil.

O livro foi publicado em 1995 pela Editora da Unicamp e não teve reedição. Na sequência, somando a contribuição crítica de alguns especialistas às suas próprias revisões, Beatriz resolveu não reeditar o livro, por entender que havia muito que corrigir no texto das cartas e que seriam necessárias mais notas explicativas. Com isso, também eu não me ocupei mais do meu texto introdutório.

Hoje, decorridos 30 anos da sua redação, não teria muito a acrescentar. Uma crítica que me foi feita foi a de que eu tinha desconsiderado o racismo de Oliveira Martins. Para o colega que a formulou, não era possível entender o método histórico de Martins sem levar em conta o seu arianismo.

É certo que, se quisermos pensar a questão por esse ângulo, a história do mundo, para o autor de Os filhos de D. João I, é a história da expansão da raça ariana, que vai absorvendo ou exterminando as demais raças. 

Mas não creio nem que essa seja a contribuição do autor à cultura brasileira e portuguesa, nem que os pontos que me interessaram – os referentes à construção da narrativa histórica, ao lugar e ao tipo dos heróis, e ainda aos conceitos de história normal e de fim da história – precisassem da mediação do arianismo. Pelo contrário, creio que são questões diferentes e que podemos e devemos colocar o arianismo e o racismo entre parêntese, para que essa outra discussão não prejudique a compreensão daquilo que denominei “o método histórico”.

Sendo assim, passemos à apresentação da obra do historiador, tal como eu a redigi naquele livro da Editora da Unicamp.

 

 

Oliveira Martins e a história de Portugal.

 

 

Quando Oliveira Martins publicou em 1879 a sua História de Portugal e a História da civilização ibérica, abriu-se um fecundo filão do imaginário português contemporâneo. A partir desses livros, e dos que se lhe seguiram na pena de seu autor, ganha corpo e expressão uma espécie de “complexo nacional” frente ao qual (em apoio ou contraposição) se vai situar a nata da inteligência portuguesa contemporânea e subsequente. Antero, Eça e Junqueiro, no momento, António Sérgio, Jaime Cortesão e Fernando Pessoa, posteriormente, são apenas os nomes mais notáveis que tratarão de incorporar, combater ou transformar as principais teses e conclusões surgidas nesses trabalhos.

História de Portugal é, em boa parte, um triste panorama da vida da nação. Trata-se de um livro cheio de cores, de ação e lances romanescos. Forma a sua espinha dorsal, mais do que a narração objetiva dos acontecimentos dispostos em ordem cronológica, uma série de quadros impressivos, dramáticos, mais ou menos trágicos e relativamente completos em si mesmos. Da leitura, resulta a impressão de que o fio condutor é a exposição de uma persistente e equívoca loucura coletiva, que acaba por dirigir o fluxo dos acontecimentos marcantes na história pátria: persistente porque não é privativa de nenhuma das casas reinantes; e equívoca porque ora parece bastante desprezível, ora puramente trágica, ora sublime.

A maior parte do livro gira à volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio depois de 1580 é visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutilmente um indivíduo condenado, seguido da decomposição do corpo social já sem vida própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, longos trechos dos capítulos trazem prefigurações da desgraça, de que Alcácer-Quibir é apenas o desenlace formidável. Assim se passa com a descrição da descoberta e conquista da Índia, em que o narrador atento vai desvendando aos leitores os crimes portugueses e os sinais da punição iminente.

A título de exemplo, veja-se como termina por tratar o naufrágio da nau de D. Paulo de Lima, em 1589.

Num primeiro momento, identifica na própria descrição do navio, os desmandos da empresa colonial, movida pela cobiça, que fizera decair lamentavelmente a arte náutica portuguesa: 

 

A abundância da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as dimensões dos navios, ainda por cima agravadas pelo excesso das cargas. Era funesta uma cobiça, causa de tantas vítimas; mas o mal vinha de longe, desde o reinado de D. João III. Os navios, mal desenhados, de muito porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e eram ronceiros....

 

Naufragada a nau, cujo desastre ocupa doze páginas muito impressionantes, o símbolo se explicita: “A viagem da Índia não terminou aqui. O Império submergiu-se, mas os salvados foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miséria e perdição...”

E com a descrição da agonia dos poucos sobreviventes daquele desastre, narra-se a agonia da empresa das Índias e do próprio Portugal:

 

Essa louca viagem, sem pilotos hábeis, terminava por um breve naufrágio; e os mares que, no século XV, nós vencemos com tamanha audácia, vingavam-se, no XVI, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos nevoeiros prognosticados pelos geógrafos árabes, no meio das trevas da nossa perversidade. A natureza ofendida punia-nos com a morte; e o destino implacável retribuía-nos todos os males com que tínhamos flagelado o próximo.  [Cito segundo a edição da Guimarães Editores. Lisboa, 1991.]

 

 

Essa passagem permite, de imediato, identificar dois procedimentos básicos e recorrentes ao longo da obra histórica de Oliveira Martins. 

Em primeiro lugar, o recurso muito notável de simbolizar em acontecimentos particulares as grandes tendências ou transformações de um universo mais amplo, classista ou nacional. Todo o seu livro da História de Portugal é montado sobre esse procedimento. O terremoto de Lisboa são as reformas do Marques de Pombal. Cabral e o Gama são a exploração material e pérfida da Índia. Albuquerque e D. João de Castro, a sua face genial e correta, embora inadaptada à realidade do tempo. D. João VI, por sua vez, é o emblema de 200 anos de decadência praticamente ininterrupta, representante quase póstumo de uma dinastia (...) de reis doidos ou ineptamente maus”. Oliveira Martins cruelmente o representa assim, pelas ruas de Lisboa:

 

pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída e tostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, baloiçado como um fardo entre as almofadas de veludo dos velhos coches dourados de D. João V, e seguido por um magro esquadrão de cavalaria.

 

Em segundo lugar, aquele trecho nos revela um enfoque interessante da questão da decadência na obra de Oliveira Martins: a ideia de que ela seja, entre outras coisas, a expiação de crimes anteriormente cometidos.[1]    

Isso nos permite vislumbrar o quanto existe de místico na visão martiniana da história, porque o que se afirma, nesse passo, é a existência de alguma espécie de justiça moral que se exerce ao longo da vida da nação. Daí que Teixeira de Pascoaes vá alinhar Oliveira Martins entre os próceres do sebastianismo – “enternecido intérprete de Nun'Álvares e D. Sebastião”, diz ele –, porque apesar da explícita e feroz aversão à figura histórica de D. Sebastião, não há nada mais sebastianista do que essa história, em que o desastre de Alcácer-Quibir aparece como a punição (e portanto também, em certo sentido, como o resgate) dos pecados anteriormente praticados pelos portugueses.

É certo que coexiste em Oliveira Martins pelo menos mais uma interpretação da necessidade da decadência em Portugal, mas no mecanismo narrativo da História, a expiação é a mais impressiva, pois comparece de modo mais intenso e dramático, pontuando as várias narrativas de desastres nacionais. 

A outra interpretação da decadência, a que me referi, é a tônica do trabalho que com esse faz pendant, a História da Civilização Ibérica. Lá se encontram várias passagens que procedem deste axioma:

 

Caímos, passamos, porque é da natureza de todas as cousas vivas – e uma sociedade é um organismo – nascer, crescer e morrer.

 

O que aqui vem à tona é uma componente básica do procedimento narrativo e do pensamento de Oliveira Martins: a analogia organicista, que lhe proporciona muitas metáforas e um esquema argumentativo em que as fases da história de uma nação aparecem diretamente identificadas às fases do desenvolvimento de um indivíduo qualquer.

No entanto, assim como há diversas espécies de indivíduos, estabelece Oliveira Martins algures que há pelo menos dois tipos básicos de indivíduos sociais, isto é, duas formas-tipo de aglomerados humanos.

Na História de Portugal, logo no início, quando apresenta as questões prévias sobre a geografia e a composição da população, o historiador demonstra que não havia unidade rácica a justificar a separação de Portugal da Espanha, e que tampouco havia fronteiras geográficas que lhe garantissem a sobrevivência. Mas, então – pergunta o historiador –, “há ou não há uma nacionalidade portuguesa?” E responde: “Questão absurda, assim formulada. Evidentemente há, se a nacionalidade quer dizer nação.” A oposição mobilizada para responder a essa questão não é de caráter retórico, mas revela um conceito de real importância no pensamento do autor. Na verdade, embora muitas vezes utilize como sinônimos os termos em pauta, Oliveira Martins tem muito nítida uma tipologia dos organismos sociais, que num trabalho de 1872, refundido em 1891, é muito claramente explicitada:

 

[Portugal foi construído] do mesmo modo que os banidos criaram Roma: à força de vontade, indo de encontro às indicações nacionais. Em todas as civilizações se encontram paralelamente os dois tipos de agregação social, a que bem podemos denominar nacionalidades e nações: umas, existindo e desenvolvendo-se por força de circunstâncias naturais, como são a homogeneidade da raça, ou a conformação do território; outras, pelo contrário, elevando-se pela vontade enérgica dos príncipes, ou dos povos. Incontestavelmente, Portugal pertence à segunda espécie.[2]

 

 

Já veremos as implicações desses conceitos na caracterização do gênio nacional português. De momento, registremos que, no entender de Martins, na sucessão dos príncipes que formaram Portugal como nação existem dois momentos bem distintos. 

No primeiro, identificado à dinastia de Borgonha, a nação se vai fazendo inconscientemente, ao sabor das paixões individuais dos reis, sem que se saiba exatamente o que está sendo feito. É por isso que os heróis afonsinos são quase todos descritos como loucos, cruéis e faltos de caráter.

Entendida como base primitiva da nacionalidade, momento da inconsciência genesíaca em que se forjava a futura nação, a dinastia afonsina existe na História de Portugal basicamente por meio de dois vultos, entre os quais se polariza a atenção de Martins. De um lado, Afonso Henriques, homem “valente, medíocre, tenaz, brutal” e de “pérfido caráter” – um bandido, em suma; de outro, Pedro I – louco, gago, furioso na aplicação de uma justiça passional. Todos os outros reis são figuras pálidas, sem interesse nem expressão frente a esses dois, que, em suas próprias palavras, eram os “indivíduos tipos, os dois loucos – um, frenético, brandindo o punhal mortífero; outro, carrancudo e fero, empunhando o látego do algoz e a vara de juiz, ou risonho e folgazão, dançando e cantando nas ruas no meio da sua família, como um pai”. 

Entretanto é através deles que se forma Portugal. Mais do que indivíduos, são eles símbolos da construção de um organismo que os transcende, de que eles são ao mesmo tempo os criadores e os instrumentos. Daí a sua caracterização como loucos ou possessos. Essa visada é a base do mecanismo narrativo dessa parte da História de Portugal, e se explicita muito claramente em alguns momentos. Quando trata, por exemplo, de D. Afonso Henriques, deparamo-nos com a seguinte passagem: 

 

A razão política da independência, evidente hoje para a crítica, não o estava decerto para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a ambição, e o título e a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não tinha decerto a consciência de que isso importasse o primeiro passo no caminho da formação de uma nova nação peninsular. 

 

                Já a propósito de D. Pedro, escreveu: “A sua loucura era a síntese do pensamento coletivo”. [3]    

Fica agora mais fácil entender por que, além desses dois “loucos”, nenhum outro rei da casa de Borgonha mereça maior atenção. Nem mesmo D. Dinis lhe merece algum elogio muito maior do que “já não é analfabeto, e mede bem o valor da ciência”. E se o fundador da Universidade recebe algum destaque na dúzia e meia de linhas anódinas com que comparece na História é apenas porque Martins lhe reconhece “uma intuição dos caracteres modernos das nações”. 

É também devido a essa forma de apresentar a história do período, centrando a narrativa nas duas figuras que melhor encarnam a formação de um “pensamento coletivo”, que Afonso II fica sendo apenas “vulgar e obeso, avarento e incapaz”; seu pai, D. Sancho I, “um homem tão irascível quanto crédulo”, que se fazia acompanhar de uma feiticeira em todas as decisões; D. Fernando, “uma infeliz criatura”, mulherengo, caçador, indolente e três vezes covarde. Dos outros, ficam apenas alguns traços que carregam na mediocridade dos caracteres. Ou seja, fogem da mediocridade apenas aqueles caracteres que funcionam como símbolos de uma ideia que ainda não cabe neles, ainda não ascendeu ao nível da consciência e por isso se manifesta sob o aspecto da loucura e do grotesco.

Para o historiador era bem determinado o momento em que se formava a consciência nacional e começava a vida da nação como um indivíduo completo e equilibrado: a Revolução de 1383. Na História e no Camões, a revolução equivale a uma metamorfose:

 

Na crise de 1383 Portugal aparece outro. Fundidos e assimilados, os elementos constitutivos da nação tinham adquirido já o poder de organização bastante para ganhar uma consciência; e é por isso que o movimento fundador da segunda dinastia se nos apresenta como um ato popular ou coletivo, uma expressão positiva da vontade nacional, enquanto as agitações anteriores não passavam de atos pessoais ou de classe, revoltas de indivíduos (...) Vontade e pensamento que enfeixasse todas as forças e todas as vibrações do povo, de um modo sumário e sintético, não havia, antes de 1383, senão nos atos dos príncipes que obedeciam aos impulsos da própria ambição. Inconsciente, essa ambição continha o pensamento nacional que, desabrochando no fim do século XIV, daria alma, vontade e força a um povo inteiro para vencer em Aljubarrota, repelindo o domínio de Castela.[4]

 

 

Percebe-se aqui, portanto, que a era de Avis tem como distintivo não apenas a identidade entre a vontade do príncipe e a vontade dos povos, mas também a consciência, o autorreconhecimento do ser social como uma nação.

Inaugurado sem uma base rácica ou geográfica, Portugal vai afirmar e realizar agora, com a dinastia de Avis, a sua índole característica, expressão da vontade enérgica que lhe vai permitir manter-se como nação independente: a vocação marítima. 

É no desenvolvimento da vida marítima, ou melhor, na transformação de Portugal de país agrário em país dedicado ao comércio por mar que Oliveira Martins vai radicar a própria sobrevivência da nação portuguesa, garantida pela Revolução de 1383: “Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido à força absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular”, diz ele na sua História e completa, no Portugal nos Mares

 

Portugal é Lisboa, escrevi eu algures. Devia ter dito antes que Lisboa absorveu Portugal, pois esta expressão corresponde melhor à verdade histórica. (...) desde que a vida marítima e ultramarina nos absorveu de todo, a capital e o seu porto, como um cérebro congestionado, mirraram as províncias. Portugal passou a ser Lisboa: uma cabeça de gigante num corpo de pigmeu”.[5]    

 

 

Formado assim para o mar, Portugal duraria enquanto durasse o desígnio que o formou: a exploração e o domínio do oceano, que se atualizariam no século seguinte com a descoberta das terras a Oriente e Ocidente. 

É um curto período, esse da pujança da nação. Do ponto de vista de Oliveira Martins não vai além do reinado de D. João II. Já no tempo de D. Manuel, a tônica é a senectude e a decadência. Tanto é assim que o livro V enfeixa sob o título de “A Catástrofe” os reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião. Na verdade, os três podem ser lidos como encarnação da famosa tríade da decadência portuguesa, conforme fora descrita por Antero: D. Manuel é o desfecho da aventura marítima, com a exploração criminosa da Índia; D. João III é o triunfo do catolicismo tridentino, jesuítico e inquisitorial; e D. Sebastião é a loucura, que se torna realidade por meio do regime político absolutista e do fanatismo religioso que o embasava.

Nesse esquema, com a catástrofe de África acaba Portugal – isto é, acaba aquela primeira nação, no sentido que essa palavra tinha em seu pensamento. Portugal passa a ser, quando muito, uma nacionalidade. A Restauração de 1640 produzirá um outro ser político, sobre o mesmo território e com o mesmo nome e língua. É o que lemos na Introdução à História, quando o Portugal restaurado é comparado à Bélgica, fruto artificial das necessidades do equilíbrio europeu, e reduzido às proporções de um protetorado inglês encravado na Europa, cujos feitores serão os reis da dinastia de Bragança.

Uma das mais fortes influências de Oliveira Martins se exerceu justamente nessa assimilação da história de Portugal – nascimento, crescimento e morte – à história das dinastias de Borgonha e Avis, relegando para o domínio da farsa insubsistente a narração dos sucessos da época bragantina. Para compreender esse ponto, o primeiro passo é determinar quais são as postulações de Oliveira Martins sobre a história de Portugal – desse Portugal-nação, que emergiu em 1383 e foi sepultado em Alcácer-Quibir –, de modo a identificar de que forma, em sua obra, se constitui esse ser; qual a sua especificidade; e de que modo se criou e atualizou a vontade nacional que projetou o país na história do continente europeu. 

É no livro sobre Camões que essa questão aparece mais bem delineada. Para Oliveira Martins, o fato de Portugal ser uma nação, e não uma nacionalidade, permitira o desenvolvimento de um sentimento coletivo muito particular. Vejamos:

 

São exatamente, em geral, as nações pequenas, construídas como Portugal em hostilidade com as condições naturais de formação e expansão política, aquelas que mais aceso mostram o patriotismo, nervo íntimo da sua existência e penhor da sua duração. À irmandade nascida de um sangue comum, ou de interesses idênticos determinados pela geografia, substituem tais povos a irmandade fundada no sentimento quase religioso de amor por uma abstração, síntese das vontades comuns que os romanos denominaram Pátria.[6]

 

 

O afeto da pátria é oposto, no pensamento de Oliveira Martins, ao sentimento da terra. A Pátria, diz, é “uma abstração moral, adorada com a piedade que nos inspiram os deuses”, e não se confunde jamais com a terra, que “é um fato natural, amado com a paixão que nos inspiram as criaturas.” 

Esse sentimento de pátria, embora possa surgir nas nacionalidades, é congênito nas nações, é a sua condição de existência. Nas suas próprias palavras: “esse sentimento cuja definição pode dar-se numa nacionalidade, não é todavia constitucional da existência dela, como o é das nações que só vivem por um ato de fé e de vontade.”[7]      

Ora, desse sentimento patriótico advêm algumas consequências notáveis para a caracterização da nação portuguesa, segundo Oliveira Martins. Do ponto de vista que nos interessa, uma das mais importantes é o desenvolvimento de uma postura universalista e cosmopolita frente ao mundo, que não apenas aceita em si a presença e a influência do elemento estrangeiro, diferente, mas ainda o persegue, na grande aventura das navegações. Outra é que a Pátria, assim desvinculada da base geográfica ou rácica, permite galvanizar a energia coletiva em torno de um ideal, de um objetivo em que a nação se empenha e encontra realização. O nome que Martins dá a esse aglutinar da energia coletiva é heroísmo:

 

Heroísmo é a palavra que define sinteticamente este período da vida nacional portuguesa. Pelo heroísmo se explica a nossa grandeza e o nosso abatimento, as nossas virtudes e os nossos vícios, a culminação gloriosa a que subimos e o abismo podre em que nos afundamos para morrer. O heroísmo é o condão e a sina dos povos coletivamente idealistas.[8]      

 

A esse heroísmo, universalista e idealista, Martins opõe os limites estreitos do egoísmo localista e exclusivista que identifica nas nacionalidades. A este corresponde a existência e o domínio no plano material, enquanto àquele o do espírito e da liberdade:

 

A força que provém do grêmio encerrado pelo sangue nos limites da ascendência comum, é resistente como talvez nenhuma outra; mas ninguém dirá que seja a mais alta expressão civilizada, se por civilização entendemos (...) o progresso no sentido da liberdade que, dando asas ao pensamento, lhe permite elevar-se nos céus, independente de todas as escravidões naturais (...) Outra, mais abstrata e por isso mais elevada e mais livre, é a ideia que funda a pátria, à maneira romana e portuguesa (...) Só nesse instante em que o amor primitivo se transforma na paixão ideal a que se chamou patriotismo: só então é que desaparece o egoísmo particularista local e nacional, e que um povo movido pela abnegação atinge o heroísmo de que nós demos um exemplo lançando-nos à descoberta (...)[9]

 

É essa postura cosmopolita e patriótica – condição de sua existência e realização de seu momento de glória – que Portugal perderá para sempre em 1580. Sem ela, a Casa de Bragança exibirá, nas páginas da sua História, apenas aquela melancólica sequência de reinados mesquinhos, provincianos, destituídos de ideal universalista e de sentimento de Pátria.

Busquemos agora, no pensamento de Oliveira Martins, a forma de constituição e expressão da vontade coletiva que, em Portugal, formou a nação de Avis, isto é, a concretização do heroísmo, e investiguemos rapidamente o que nos diz sobre a forma e estatuto dos heróis particulares ao longo do processo histórico.

Na História da Civilização Ibérica, Oliveira Martins escrevera: 

 

As nações são, com efeito, seres coletivos, e o seu desenvolvimento é em tudo análogo ao dos seres individuais. A biologia, ou ciência da vida, abraça também a história dos povos. Os órgãos do corpo social apresentam-se, primeiro, como esboços rudimentares: e o conjunto possui apenas o caráter de agregação. À medida que a ação e reação dos diversos elementos obriga cada um deles a definir-se e a especializar-se, vai aparecendo o princípio de coordenação comum, espécie de princípio vital social.[10]

 

Como se vê, trata-se da já referida concepção organicista da sociedade e da vida nacional. Pouco adiante, a analogia é mais desenvolvida:

 

Logo, porém, e à maneira como se desenvolve e tende a atingir a perfeição típica, a sociedade gera em si um pensamento que é ao mesmo tempo o Norte que dirige e a mola interior que move o ser orgânico no seu desenvolvimento e afirmação (...)

 

Ora, esse pensamento ou alma da nação tem, como já vimos, atualização específica nos indivíduos heroicos. Para Martins, são eles que constituem a forma inteligível pela qual a alma nacional pode atuar sobre o corpo que a originou:

 

Quando as nações, depois de uma lenta e longa elaboração, atingem esse momento culminante em que todas as forças do organismo coletivo se acham equilibradas e todos os homens compenetrados por um pensamento, a que se pode e deve chamar alma nacional – porque o mesmo caráter tem nos indivíduos aquilo a que chamamos alma – é então que se dá um fenômeno a que também chamaremos síntese da energia coletiva. A nação aparece como um ser não apenas mecânico, quais são as primeiras agregações; não somente biológico, como nas épocas de mais complexa e adiantada organização; mas sim humano – isto é, além de vivo, animado por uma ideia. Nestes momentos sublimes em que a árvore nacional rebenta em frutos, o gênio coletivo já definido nas consciências, realiza esse mistério que as religiões simbolizaram na encarnação dos deuses. Encarna, desce ao seio dos indivíduos privilegiados; e dessa forma, adquirindo o que quer que é de forte que só no coração dos homens existe, atua de um modo decisivo e heroico.[11]

 

Chegamos assim à concepção básica do movimento da história e da função do historiador, segundo Oliveira Martins:

 

Todas as grandes épocas das nações se afirmam por uma plêiade de grandes homens em cujos atos e pensamento o historiador encontra sempre o sistema das ideias nacionais, anteriormente elaboradas de um modo coletivo, atualmente expressas de um modo individual. O herói vale pela soma de espírito nacional ou coletivo que encarnou nele; e num dado momento os heróis consubstanciam a totalidade desse espírito.

 

A ideia é bem clara: os heróis da história não têm, na composição de Martins, apenas o estatuto de recurso dramático, como já se julgou.[12] Não se trata tampouco de uma narração que se apoia nos heróis como concessões ao didático ou ao exemplar. A organização literária da História de Portugal, tal como vem sendo aqui descrita, procede de uma concepção muito clara da forma de manifestação visível da vontade dos povos. 

No entender de Oliveira Martins, se é verdade que para conhecer a história de uma nação é preciso acompanhar a história das suas condições geográficas e das suas instituições e classes, isto é, a história material e anônima, é também verdade que apenas no “sistema dessas manifestações individuais poderemos encontrar o fio histórico. Tudo era anônimo: tudo agora é pessoal; e na tragédia histórica, preludiada por coros numerosos, ouvem-se já as vozes das personagens.”[13]

O papel das individualidades heroicas que representam assim a vontade, o propósito social, precisa ser projetado, para ser mais bem compreendido, contra o pano de fundo de uma outra questão central na concepção de história de Oliveira Martins: que lugar tem o imprevisto, o fortuito na ordem e determinação dos acontecimentos históricos? O que implica, logicamente, uma discussão sobre a possibilidade de previsão dos rumos futuros de uma dada sociedade. Uma discussão, portanto, em última instância, acerca do caráter da historiografia enquanto ciência.

Numa época em que o fortuito era ou uma manifestação indireta da vontade ou providência divina, ou um “adjetivo inventado para consolar a vaidade humana de ignorar a cada passo a genealogia dos fatos e dos acontecimentos”, como pensava Herculano, Martins vai tentar afirmar simultaneamente o caráter científico da história e a existência do casual, do imprevisto na determinação do devir histórico.[14]

 Nesse ponto, percebe-se claramente a importância que teve, para o seu pensamento sobre a História, a leitura da obra de Antoine-Augustin Cournot (1801-1877), de quem herda inclusive a concepção de que em seu tempo se iniciava um novo período na vida da civilização europeia: a pós-história.[15]

Nessa linha de reflexão, para Oliveira Martins não havia dúvida, em 1878, de que a História era uma disciplina científica, como a Biologia ou a Química. Sucedia que, por ser uma ciência de categoria superior, o seu campo de trabalho recobria fenômenos que pertenciam a múltiplas e variadas “séries” de desenvolvimentos. Daí que a previsibilidade – que se apoia na distinção entre o que é acidental e o que é necessário ao longo de um determinado processo – fosse menor na ciência histórica do que nas ciências inferiores. Nas suas palavras: “...o fortuito (...) cresce em razão direta da categoria ou complexidade das ciências, e é por isso maior na história do que na biologia, na biologia do que na física.”[16]      

 

Logo a seguir, para exemplificar como a interferência das séries dificulta a previsão histórica, escreve, no mesmo texto:

 

O inverno excepcionalmente frio, que gelou o exército de Napoleão na Rússia, sem ser um milagre, é, porém, um caso fortuito que veio impor uma marcha diferente daquela que as previsões da ciência histórica e militar tinham o direito de prescrever. (...) Nem só o encontro inoportuno ou intempestivo de duas séries independentes se deve considerar fortuito, porque a espécie de influência que esse encontro exerce sobre a marcha normal das leis naturais não tem virtude para lhe alterar a natureza de incidente. Os acontecimentos fortuitos tanto podem embaraçar como auxiliar a história normal; e se o frio inverno de 1813, destruindo o exército de Napoleão é um caso fortuito, igualmente fortuito seria um inverno excepcionalmente temperado que o levasse a S. Petersburgo mais fácil e rapidamente do que fosse lícito esperar da marcha ordinária de tais empresas. (...) Os casos fortuitos são na história infinitamente mais numerosos do que em qualquer outra ciência, porque o número de séries que independentemente se desenvolvem dentro do seu domínio (e por isso seus encontros, cuja repetição é progressiva e não proporcional), além de conter o das que se dão dentro das ciências inferiores, contém o das que se dão próprias das raças, das sociedades e dos indivíduos como seres morais e naturais.

 

A expressão “história normal” decorre da postulação de que haja um vetor previsível de desenvolvimento da história, cuja direção, em linhas gerais, é possível determinar com base em considerações objetivas, tais como a determinação geográfica e rácica do grupo social, o estágio evolutivo de sua economia, seu poderio bélico etc.

Essa concepção parece ter acompanhado Oliveira Martins ao longo de toda a sua vida, e mesmo que em 1884, na Introdução às Tábuas de Cronologia, como têm sublinhado vários estudiosos, ele aparentemente negue essa visão da história, penso que a negação não é de substância, mas de aspecto e que deve ser entendida no contexto da época em que foi escrita. O que Martins recusa agora, se é que algum dia a aceitou, é a pretensão de que a história deva ter, como objetivo ou condição para definir-se enquanto conhecimento válido, todos os dados fatuais sistematizados, descritos e analisados, para a partir deles traçar as constantes de comportamento, as leis que regerão os casos gerais e os específicos. É isso, creio, o que ele nos diz naquele texto famoso:

 

Ciência e história são termos que se excluem: a história é narrativa, a ciência é preceptiva; uma conta, a outra sistematiza. Todas as ciências reais têm uma parte narrativa ou histórica; e o que chamamos comumente históriaseria, pois, a parte narrativa ou histórica da ciência que expusesse as leis do dinamismo das sociedades humanas consideradas no seu conjunto sistemático – ciência impossível de construir, dados os limites da nossa capacidade intelectual.

 

O que está em questão aqui, menos do que a possibilidade de consideração objetiva dos dados disponíveis para descobrir aquele vetor normal de desenvolvimento das sociedades, é a possibilidade de a história vir a ser uma ciência positiva, ou melhor, positivista, porque parece que é contra esse interlocutor que se ergue aqui a argumentação martiniana. 

De fato, na Advertência de 1891 a Os Filhos de D. João I, vemos claramente que se mantém a hierarquia das ciências humanas, segundo o grau de abrangência e complexidade – isto é, o número de séries envolvidas –, e que nessa hierarquia a história ocupa o lugar mais alto: “a história, se não é a forma culminante das manifestações intelectuais do homem, é sem dúvida a mais complexa e a mais compreensiva”.[17]    

Ao enfatizar o caráter narrativo e, portanto, o caráter interpretativo e intuicionista da história, Martins não está negando seu posicionamento anterior, mas situando-se claramente contra a aproximação positivista à história, então dominante. De fato, respondendo a críticas recebidas pela primeira edição da História, já teve Martins de responder seja à acusação de que “nem todos os fatos importantes ali têm a devida menção e o merecido comentário”, seja à de não possuir “uma sistematização geral dos fenômenos sociológicos”, nem “um critério positivo para os avaliar”.[18]    

 A essas questões respondia o historiador por duas formas. Por um lado, afirmava o caráter sintético e mesmo didático de sua Biblioteca das Ciências Sociais, onde se inscrevia a História de Portugal, que era, assim, um trabalho breve, restrito ao essencial. Por outro, ressaltava seu radical entendimento da história como reconstrução do passado, no sentido de incluir, junto com a consideração das determinações várias de ordem material e com os documentos oficiais de época, o que chama em certa passagem de “história íntima”. Mais adiante voltaremos a este ponto. Por ora, o que cumpria era situar o texto de 1884 no momento em que foi escrito, e ainda está por concluir a discussão do heroísmo em Oliveira Martins.

Já se escreveu o suficiente sobre o hegelianismo de Martins, bem como sobre o seu proudhonianismo. É certo que a sua postulação de um herói coletivo, que encarne e expresse a vontade coletiva, é de matriz hegeliana. Seu Júlio César, como observou A. J. Saraiva, é o de Hegel. No entanto, também se percebem claramente outras influências, já igualmente identificadas pela crítica, anteriores ao conhecimento do filósofo alemão, de que o pensamento de Spencer, de onde tomou a analogia organicista, é das mais notáveis. Falta estabelecer as diferenças, aquilo que parece específico ou central na estrutura do pensamento de Martins em relação aos autores cujo pensamento incorporou e transformou ao longo dos seus trabalhos. 

Um dos pontos fulcrais da obra martiniana, que lhe permite de alguma forma acomodar as várias e talvez inconciliáveis fontes teóricas que orientam seu discurso, é o seu particular conceito de heroísmo. Para ele, são insatisfatórias as duas concepções de herói correntes no tempo: não aceita nem a ideia de que esses indivíduos sejam “espontânea e natural emanação das condições da sua época, porque amiúde encontramos exemplos do contrário”; “nem tampouco (...) a teoria oposta que vê nos grandes homens individualidades inteiramente livres e independentes que atuam subjetivamente na sociedade.”

Na sua concepção, os heróis podem ser basicamente de dois tipos, conforme se coloquem a favor ou de algum modo contra a corrente do tempo. Os que se colocam a favor e resumem as tendências da época – os conquistadores e os grandes estadistas – ficam sendo emblemas do momento porque são intérpretes – conscientes ou não – da história. Os exemplos mais típicos dessa categoria seriam César e Felipe. Por outro lado, e aqui está o ponto, há personagens que têm outro estatuto: os inovadores e revolucionários, que são marcados pela predominância do “espírito subjetivo” e pela luta – nesse caso, haveria um choque entre a série em que esse tipo se envolve e a série que domina a sociedade naquele momento. O exemplo que nos fornece desse segundo tipo é o romano Graco. 

A individualidade de uma personagem do primeiro tipo, nos diz Martins, “é, sob o ponto de vista das leis da história, uma individualidade, se é lícito dizer assim, coletiva; porque a sua ação não altera nem desvia o caminho necessário da história, e a esfera do fortuito circunscreve-se à maior ou menor rapidez com que o movimento se efetua, e às condições especiais que o caracterizam e acompanham.” Esses heróis são “propriamente símbolos: e por isso tantas vezes a erudição tem descoberto o pequeno valor pessoal daqueles a quem as circunstâncias tornaram para o povo a encarnação do seu pensamento, e o instrumento inconsciente das leis históricas.” 

Já a individualidade do segundo tipo é sempre muito rica, tem “altos merecimentos individuais; e é natural que seja assim, uma vez que só uma energia excepcional de pensamento subjetivo é capaz de arrostar de frente contra o majestoso sistema do organismo social.”

Desse quadro em que se destacam, por um lado, a multiplicidade das séries implicadas no objeto da história e, por outro, a necessidade de entender a que tendências pessoais ou coletivas correspondem os heróis, resulta uma postulação de grande importância para o método de Oliveira Martins: a de que o herói é praticamente o princípio inteligível do desenvolvimento histórico, porque é do seu destino que se podem deduzir com segurança as forças reais em ação numa dada sociedade. 

Daí que ao historiador não bastem os procedimentos normais das ciências, a saber, e nas suas palavras, “a observação e o sistema classificador”. Do mesmo modo, à linguagem do historiador “não bastam a precisão e a clareza; é mister sentir e adivinhar, e pôr no estilo a vida e calor próprios das causas morais e animadas.” 

Mais do que um observador isento ou um narrador imparcial, portanto, o historiador é um escritor inspirado, que busca identificar os heróis e transmitir ao seu leitor uma interpretação em certa medida pessoal do seu objeto, pois se a valorização dos heróis triunfantes não oferece problemas, o herói fracassado é em grande medida “descoberto” ou valorizado em função de um julgamento da sua grandeza subjetiva – o que quer dizer moral.

Se há um traço constante e dominante ao longo de toda a obra de Martins, creio que é esse de apreciar os heróis como o princípio de inteligibilidade da história. E como os heróis não estão apenas sujeitos às tendências triunfantes ou derrotadas no percurso histórico, mas evoluem também e dramaticamente contra o pano de fundo do fortuito e do imponderável, é a reflexão sobre o seu destino que permite que o historiador não só afirme a necessidade do que foi, mas também especule, ou mesmo se lamente, sobre o que poderia ter sido. 

Dessa concepção decorre a maior parte dos juízos de valor que permeiam cada passo do discurso histórico de Martins, e é ela também que lhe permite apresentar ao leitor uma perspectiva dramática para a percepção do passado. Por outro lado, quando o historiador não descobre – ou se recusa a descobrir –, num dado período, um sistema de personalidades capaz de explicitar seja o triunfo de uma “série”, seja o fracasso de outra, sua narração perde a tensão dramática e o seu texto mergulha na descrição de um estado de anomia, em que a lógica das situações sociais desaparece, dando origem às narrações em tom fúnebre, habitadas pelas figuras sonambúlicas tão frequentes no tratamento da época dos Bragança.[19]

Retornemos agora à reflexão sobre a especificidade do texto martiniano. Neste ponto, já podemos identificar algumas das características mais marcantes de seu discurso. Uma delas é a apresentação dramática dos eventos históricos, simbolizando em personagens as várias forças em jogo num dado momento. Ressalte-se que não são apenas as forças políticas ou classistas que são assim representadas por personagens individuais. Toda a vida da nação é às vezes emblematizada ou alegorizada num episódio biográfico particular, e mesmo fenômenos naturais como o terremoto de 1755 encontram uma encarnação personificada. 

Quero dizer: utilizando amplamente os recursos da alegoria e do emblema, Oliveira Martins consegue ler, na trajetória da vida pública das suas personagens, um destino transcendente. Movem-se com elas muito mais do que os interesses de determinadas famílias, grupos ou classes sociais. Sobre a cabeça dos heróis paira uma espécie de fatalidade que os arrasta em direção a um determinado objetivo, e eles se movem muito frequentemente por uma espécie de transe que preside às suas decisões e atos mais relevantes. Daí que o leitor perceba, ao longo de toda a sua obra, um forte sentido complementar: o de que a justiça se cumpre ao longo do tempo. A história de Portugal adquire assim uma dimensão cósmica, como antes só a tínhamos visto em Camões e depois só a encontraremos na Mensagem de Fernando Pessoa.

António José Saraiva percebeu muito claramente essa dimensão da História de Portugal e em seu último trabalho sobre Martins atribuiu a esse livro “um caráter único que nós só podemos definir dizendo, paradoxalmente, que é uma obra de introspecção”. Para explicar o que fosse esse “retrato introspectivo de uma nação”, escreveu o ensaísta:

 

Ele entendeu que a realidade se processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que os historiadores comuns, julgando-se cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual na análise científica, mas afastando-se cada vez mais daquilo que pretendem explicar. (...) É por isso que, em comparação com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como sombras imperfeitas.[20]

 

A notar apenas que as características que Saraiva atribui neste passo ao livro citado devem ser estendidas a toda a obra histórica de Oliveira Martins, aí incluídas com destaque, evidentemente, as monografias finais.

Quanto ao método dessa história introspectiva, à forma como se constitui esse discurso, há algum sentido em associá-lo ao método de composição do romance realista. É o próprio Martins quem efetua a aproximação de sua atitude literária com o realismo no romance seu contemporâneo: “o realismo, vencedor no romance que estuda os homens e os costumes, deve inspirar também a história, – até agora vista de uma plateia, escrita para a cena, disposta entre os bastidores e bambolinas da ilusão sentimental”. 

É verdade que, nesse trecho, retirado da resposta aos críticos da primeira edição da História, Martins tem em mente a questão do pessimismo e do otimismo. Mas tanto a sua forma de trabalho quanto a sua maneira de incorporar no seu próprio discurso as fontes de que se servia revelam mais proximidade com o trabalho de um romancista do tempo do que com o de um historiador como Herculano. 

Como sabemos, e Martins mesmo declara em várias passagens, não se ocupava ele de desencavar dos arquivos documentos desconhecidos, nem julgava que era sua tarefa fazê-lo. Quando pretendia começar um novo trabalho, mandava à biblioteca uma carrocinha de mão que lhe trazia o material de que necessitaria, isto é, trabalhava basicamente sobre material édito e conhecido. 

No que diz respeito às fontes que privilegiava, poderemos ter uma boa ideia de sua discordância com a historiografia dominante no seu tempo e país se atentarmos para a já referida resposta aos críticos. Ali afirmava não ser possível em Portugal trabalhar sobre o material dos arquivos, ainda por processar, identificar e publicar, tanto que Alexandre Herculano, que tentara coligir o material arquivístico para compor uma história apoiada nos documentos originais, teve de abandonar o projeto. Por outro lado, escrevia que “sempre me pareceu que a história verdadeira se deve estudar nas confissões sinceras, e não nas composições oficiais ou propriamente literárias: Suetônio será sempre o melhor guia para a história dos Césares”. E mais adiante, respondendo a críticas por não ter incluído certos episódios da história nacional, retoma e explicita esse ponto de vista: 

 

Que falta, pois? Muitas das sensaborias, sem alcance de espécie alguma, que enchem os compêndios? Faltam; nem jamais lá entrarão. Sobra, porém, – e é esta a  meu ver a razão da benevolência publica, – a sinceridade, sobra o realismo; porque eu entendi que, usando da reserva conveniente sempre que os fatos essenciais da história eram desconhecidos, (...) para não cair em aventuras perigosas, devia por toda a parte construir a história íntima com os monumentos sinceros, confissões e memórias, sem o cunho da convenção banal das publicações oficiais ou propriamente literárias.

 

 Após citar fontes de caráter vário, conclui: “eis aí alguns dentre inúmeros livros, folhetos, impressos, pequenos documentos dispersos onde a realidade se descobre por uma forma procurada em vão nas soporíferas histórias fradescas”. 

No que concerne à forma de utilização e incorporação das fontes literárias por Oliveira Martins, o trabalho está ainda praticamente por fazer. Na sua Introdução à História, Isabel de Faria e Albuquerque nos dá um bom exemplo do que precisa ser feito antes que a crítica se possa estender sobre o estilo martiniano, ao cotejar largos trechos da Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes, e seu aproveitamento quase textual que algumas passagens tiveram na História de Portugal

Nesse caso particular, Martins pouco interferiu no texto de Lopes; quando o fez, trabalhou no sentido de conseguir dele um maior rendimento dramático e simbólico: num passo transformando em hábito o que o cronista relata como acontecimento único; noutro ampliando o espectro dos atores envolvidos num dado episódio; num terceiro, finalmente, atribuindo a personagens menores falas que o cronista não trazia, mas que aumentaram muito a vivacidade da cena descrita. 

Não creio que erremos demasiado se deduzirmos ser esse o procedimento básico de Martins com as suas fontes: livre aproveitamento por paráfrase ou por simples incorporação no seu próprio discurso, submetendo-as, naquilo que lhe pareceriam pormenores, a um princípio de ordem muito mais estética do que documental. Seu objetivo é sempre o de dar um quadro vívido, impressivo, que num episódio ou situação sintetize o que acredita ser a configuração dos ideais e das práticas do tempo.

Concentremo-nos agora na questão do “realismo” de Martins, no entendimento da história como ressurreição de uma época e à sua concepção de uma “história íntima”. Isto é, voltemos à questão do estatuto do seu discurso. 

É verdade que ele não foi, como Herculano, um escavador de fontes e um pesquisador de instituições e monumentos. Concedamos também que a sua história tenha hoje, como querem alguns, pequeno valor documental. Mesmo assim, temos ainda que reconhecer que nenhuma outra cumpriu tão bem o objetivo de agradar “tanto ao sábio como ao ignorante, deliciando e educando quem quer que tenha ouvidos para ouvir, olhos para ver e coração para sentir”. [21]

 Por outro lado, a grande qualidade da obra martiniana, como salientou António José Saraiva em seu último livro, é a abrangência de sua visão, a vida que emana de suas páginas, o fôlego largo de sua compreensão dos ritmos e dos acontecimentos da vida portuguesa. 

Ao seu próprio método compositivo chamou Martins “sintético ou artístico”. Com isso, queria significar uma escrita que, baseada num estudo erudito e minucioso dos fatos, procedesse à análise psicológica e ao exame biográfico dos agentes históricos. Dessa perspectiva, o erro dos modernos historiadores analíticos e cientificistas era duplo: por um lado, ao trazerem para o centro das atenções o documento, a fonte primária, acabavam tomando o acessório pelo essencial; ou seja, no afã da documentação, perdiam a medida das proporções; por outro, ao se concentrarem nas instituições e nas classes – nos elementos coletivamente sociais, definidos e tratados jurídica ou teoricamente –, acabavam por acreditar na verdade absoluta e por medir “todas as idades por um metro igual, não sentindo o palpitar vário dos tempos”. [22]

 Sentir o palpitar vário dos tempos – eis aí o ponto. O método de Martins é a ciência de tecer as várias vozes da história, tratando-as dramaticamente, reconhecendo o relativismo dos julgamentos e a possibilidade de sua contradição: “o que domina sobretudo a história são os motivos morais, e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos conforme as eras e os lugares”.

Lendo os trabalhos históricos de Martins, logo nos apercebemos da sua singularidade, do que significa esse método sintético ou artístico. Aqui, deparamo-nos com grande profusão de informações tópicas: são os preços de produtos comerciais e sua variação ao longo do tempo, a distribuição das terras produtivas, as alterações do número dos habitantes do reino. Ali, uma narrativa animada e colorida de uma revolta popular, um auto-de-fé, um naufrágio. A cada passo, pelo meio, irrompe a voz do narrador, que julga, aplaude, condena ou lamenta. Entre o dado documental, a arte literária e o discurso do moralista, uma outra característica marcante do texto martiniano se vai impondo gradativamente ao leitor: sua capacidade de reconstruir a visão de mundo do período que retrata. 

Embora tenha sido em seu próprio tempo acusado de anacronismo pelos positivistas, Martins consegue como poucos dar voz ao outro, incorporar no seu discurso, ao lado da sua própria voz judicativa, a voz das personagens que retrata. Talvez por isso mesmo, por ter um espaço onde a sua própria voz se faça ouvir tão claramente, o historiador possa dar lugar a que se ouçam também as vozes discordantes e múltiplas das suas personagens. É nesse sentido que entendo como muito pertinente esta observação de António José Saraiva, ao comparar Martins com Herculano e com António Sérgio: “A superioridade de Oliveira Martins é que assumiu globalmente e sem amputações todo o nosso passado.”

Foi essa assunção integral do passado que, como também notou Saraiva, fez de Oliveira Martins o primeiro historiador a reconhecer no Sebastianismo uma “tendência e motivação coletiva nacional”. 

O próprio Martins tinha uma visão muito clara do valor da “descoberta”, que a seus próprios olhos marcava a especificidade do seu trabalho sobre o Portugal restaurado: 

 

Um ponto em que a História de Portugal é fantasista na opinião do Sr. Lobo d'Ávila, do Sr. Dr. Rocha e de mais pessoas, é na importância dada ao Sebastianismo. E no meu fraco e humilde parecer, é essa a descoberta, – usemos desta expressão à-la-moda, – mais importante de todo o livro, e o segredo íntimo da história de três séculos. Todos os livros sinceros, desde o tempo do Padre Vieira, até ao tempo do Padre José-Agostinho, acusam a existência desse pólipo moral que nascera em 1580 no corpo da sociedade portuguesa; e entre as duas crises da Restauração e da Revolução, nas quais o Sebastianismo vem à luz do dia político (...) Os fatos históricos, – porque o são as confissões sinceras dos coevos, – corroboram o que eu disse.[23]

 

Foi ainda essa mesma assunção integral do passado que lhe permitiu ter do catolicismo, das conquistas e do absolutismo monárquico uma visão de certa forma mais complexa do que a de Antero de Quental. Como num bom romance, os fatos recebem em sua obra um enfoque muito diferenciado conforme a perspectiva de que são observados. Como bom romancista, Martins consegue deslocar a perspectiva, de modo a nos dar, de cada vez, uma ideia muito concreta das forças operantes num dado momento da ação narrada. Não é possível encetar aqui as análises que poderiam demonstrar esta asserção. Indico apenas, como exemplo dessa alternância dos pontos de vista, de modo a conseguir um quadro muito complexo e compreensivo do problema, as várias passagens, na própria História, em que Oliveira Martins trata da questão dos judeus em Portugal.

Finalmente, retornemos uma última vez à questão do heroísmo na obra de Martins. Ao longo destas páginas, deve ter ficado claro que a reflexão sobre o herói, e a consequente postulação de que os indivíduos heroicos são o meio de entendimento das forças em ação numa dada sociedade constituem um dos focos centrais do pensamento martiniano sobre a história. O que agora queria acrescentar é que dessa forma de ver a ação do indivíduo na história parecem decorrer também as posições políticas tomadas por Martins como pensador e como homem público: é a crença no papel decisivo do herói que origina, no publicista maduro, a adesão ao socialismo catedrático; e é a mesma crença o impele à ação política, mesmo com a consciência de que, na última tentativa, era muito provável a derrota. Quanto a este último ponto, devemos lembrar que, como vimos, a seus próprios olhos e aos dos amigos mais próximos, Oliveira Martins aparecia como um herói em potencial, capaz de colocar a sua inteligência e enorme capacidade de trabalho a serviço de Portugal. Se as circunstâncias fossem favoráveis, isto é, se a desagregação nacional se tivesse consumado e se uma nova nação estivesse pronta para começar a modelar-se, num daqueles ricorsi que estimava tanto reconhecer ao largo do tempo, quem sabe não se teria vindo a transformar em uma espécie de novo Marquês de Pombal?[24]

 Não sendo, o homem que se dedicou a vida toda à preparação de uma ação política capaz de regenerar a nação acabou por enquadrar-se não no campo dos triunfantes, dos Césares e dos Pombais, mas no dos heróis fracassados, como D. Pedro, que tão magnífica e sentidamente retratou em Os filhos de D. João I

Traído pelas circunstâncias, em 1886 com o ministério, e em 1887 pela mediocridade parlamentar, quando seu projeto de lei sobre o fomento rural sequer chegou a ser votado, declarou-se um “Vencido da Vida”, num grupo que sublinhava, contra os homens vazios que triunfavam no momento, o alto merecimento e valor psicológico dos seus integrantes. 

Em 92, depois do Ultimatum, numa última tentativa, tenta ainda reverter o caminho da decadência financeira e moral da nação. Vendo seu plano de saneamento econômico ser interrompido após as medidas mais duras, pelas quais teve sozinho de pagar o ônus político, Oliveira Martins retira-se, abatido, para a redação da biografia do Príncipe Perfeito, exemplo acabado do herói triunfante que ele mesmo poderia ter sido. 

Fracassada a tentativa de se tornar um dos agentes políticos da almejada metamorfose portuguesa, dedica o tempo que lhe resta à continuação do trabalho que iniciara com a História de Portugal: são as monografias dedicadas às grandes figuras da história pátria de que, antes de sua aventura política, já saíram Os filhos de D. João I (1891) e estava pronta A vida de Nun'Álvares

No prefácio a este último, em 1893, Oliveira Martins apresenta da seguinte maneira o plano das obras futuras que não chegou a realizar. Sua História de Portugal fora uma espécie de quadro mural onde “a tragédia portuguesa se desenrola”. Os filhos de D. João I e agora Nun'Álvares são obras de escopo diverso: são estudos críticos que pretendem dar conta pormenorizada dos assuntos escolhidos. Com esses dois, afirmava deixar estudados a fundação e os primeiros passos da história da dinastia de Avis. Era seu desejo, se tivesse saúde e tempo para tanto, concluir toda a história de Avis, até 1580. Como sempre, acredita ainda que as gerações “sucedem-se (...) trazendo cada uma delas o nome de um herói que as individualiza”, daí que pense que a melhor forma de dar conta da tarefa é centralizar o estudo na biografia de alguns homens. Assim, quanto à primeira geração: a vida de Nuno Álvares, o Messias da pátria portuguesa. Na segunda geração, a vida dos filhos do Mestre de Avis. Emblema da terceira geração era a “figura trágica de D. João II, em quem renasce o gênio do infante D. Henrique, e os pensamentos vagos de seu irmão, D. Pedro, se formulam de modo prático, ou político, para fundarem o imperialismo idealista”. 

Até aqui chegou Oliveira Martins, tendo redigido um capítulo do livro sobre D. João II e deixado um plano já adiantado para os demais. Ficaram apenas idealizados os volumes que dariam conta do final do período: um penúltimo, onde estariam compreendidos os reinados de D. Manuel I e D. João III, mas que seria dedicado a Afonso de Albuquerque e o Império da Ásia, –  “Alexandre ressuscitou. Alexandre chamou-se portuguesmente Albuquerque”, diz ele; e, final e logicamente, um trabalho dedicado a D. Sebastião, “em quem renasciam, anacronicamente, os ideais do misticismo heroico de outras eras: D. Sebastião, que foi um Nun'Álvares póstumo, encerra a galeria dos homens típicos e completa o quadro de estudos que tracei.”

Os filhos de D. João I e A vida de Nun'Álvares, onde o método de Oliveira Martins é elevado à perfeição, podem ser vistos – sem prejuízo do interesse historiográfico e em que pese o mau juízo que o historiador fazia do romance histórico – como longas e brilhantes novelas apoiadas em centenas de notas de erudição. De seu autor poderíamos dizer, com a mesma propriedade, o que disse Edmund Wilson de um dos seus mestres: 

 

O Michelet maduro é um fenômeno estranho. Sob muitos aspectos, é mais fácil compará-lo a um romancista como Balzac do que a um historiador comum. Tinha ele as preocupações sociais e a compreensão do caráter individual que caracterizam o romancista, a imaginação e a paixão do poeta”.[25]

 

 Assim também se passou com Martins. As monografias são o encerrar-se de um percurso que, lembremos, se abrira com uma obra romanesca posteriormente renegada: a novela histórica Febo Moniz, de 1867. Mais do que o recuo ao consolo da livre criação artística de um homem ferido pela realidade – como queriam alguns –, as biografias são o desenvolvimento último e natural de uma concepção do processo histórico e de uma inclinação artística que é congenial a toda a obra de Martins.

 

 

 



[1] A ideia está também em Antero de Quental. Comparece, por exemplo, na famosa conferência do Casino e no final da vida do poeta, quando, por ocasião do Ultimatum, publica um texto intitulado justamente “Expiação”.

 

[2] Camões – Os Lusíadas e a Renascença em Portugal. Lisboa, Guimarães & Cia. Editora, 1952, pp. 285-6.

[3] História de Portugal, ed. cit., p. 63 e 94, respectivamente.

[4] Camões..., cit., p. 303.

[5] Portugal nos Mares. Lisboa, Ulmeiro, 1984, p. 10.

[6] Camões..., cit., p. 302.

[7] Ib., p. 306.

[8] Ib., p. 127.

[9] Ib., p. 310-1.

[10] História da Civilização Ibérica. Lisboa, Guimarães Editores, 1994, pp. 211-2.

[11] Ib., p. 212-3.

[12] Cf. António Sérgio, “Oliveira Martins – impressões sobre o significado político de sua obra”. O estudo de Sérgio se constrói sobre o estabelecimento de cisões dicotômicas na obra de Martins, segundo o mesmo esquema com que o ensaísta abordara a de Antero. Também Martins teria uma “alma essencialmente mórbida e contraditória”. De um lado, republicana e antimonarquista; de outro, cesarista; no plano da escrita, uma face da moeda seria o artista e a outra, o historiador. A predominância do artista sobre o historiador faria com que, no quadro da História de Portugal, como nem sempre a personagem mais adequada ao estilo (isto é, a mais dramática) fosse a mais típica ou a mais importante de um dado período, a verdade fatual do texto histórico ficasse prejudicada.

[13] Hist. Civ. Ib., cit., p. 213.

 

[14] A frase de Herculano se encontra na carta a OM datada de 25 de dezembro de 1872, repr. in: Herculano, A. Cartas. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, tomo I, s/d. Na sequência do texto, Herculano discute exatamente o caso do inverno russo de 1812, que comparece na passagem adiante citada de Oliveira Martins. A propósito desta passagem, escreve Vitorino de Magalhães Godinho: “ele não via, como viu um Oliveira Martins, que o encontro de duas séries deterministas é que não é determinado, porque dependem de sistemas e referências diferentes.” (“Alexandre Herculano”. In: Ciclo de Conferências  , p. 75. Apud Paulo Archer de Carvalho. “Herculano: da história do poder ao poder da história”. Revista de História das Ideias, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, 1992, vol. 14, p. 508.)

[15] Quanto às ideias de Cournot, ver: Essai sur les fondements de nos conaissances et sur les caractères de la critique philosophique. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1975, pp. 33-45. Ver também o Traité de l'enchaînement des idées fondamentales dans les sciences et dans l'Histoire, ib., 1982. Há uma interessante introdução às ideias de Cournot e das suas implicações para a teoria da história in: Perry Anderson. O fim da história - de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, capítulo 2, pp. 28-48. Quanto à concepção martiniana de que se aproximava o fim da história, ver a “Advertência” de 1891 a Os Filhos de D. João I: “Não existe matéria de história, quando não há caracteres acentuados: assim sucede nos tempos obscuramente primitivos das civilizações, e também nas épocas não mais claramente coletivas dos nossos dias, em que tudo volta a ser anônimo, como no princípio. Há então apenas fatos e matéria própria para escritos didáticos, análogos aos referentes à natureza inorgânica ou animal (...)”. 

[16] A citação foi extraída da Introdução a O helenismo e a civilização cristã, 1878.

 

[17] Os Filhos de D. João I. Lisboa, Guimarães Editores, 1993, p.9.

 

[18] Cf. a resposta de Martins aos críticos, transcrita por António José Saraiva em A tertúlia ocidental. Lisboa, Gradiva, 1990. As críticas lhe foram feitas por: Teófilo Braga - a primeira frase transcrita, que está na 212; e Carlos Lobo d'Ávila - as demais, p. 208.

 

[19] O desaparecimento progressivo dos heróis entre o final da segunda dinastia e todo o período da terceira reflete-se em todos os aspectos da narrativa e é evidente na forma de intitular os capítulos, como mostra Isabel de Faria e Albuquerque na sua “Introdução” à edição crítica da História. Q.v.: História de Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988, p. 121.

 

[20] A. J. Saraiva. A tertúlia ocidental, cit, p. 111. Do mesmo ponto de vista escreveu, na p. 122: “Os três grandes livros sobre Portugal são Os Lusíadas de Luís de Camões, a História de Portugal de Oliveira Martins e Mensagem de Fernando Pessoa.”

 

[21] “Advertência”, cit., p. 8.

[22] “Advertência”, cit., p. 8.

[23] O trecho pertence à “Defesa da História de Portugal contra os seus críticos”, cit., pp. 211-212.

[24] Veja-se, a respeito, o que escreveu na resposta aos críticos da primeira edição da História: “Sucede isso com o retrato do Marquês de Pombal, que, segundo diz o Sr. Lobo d'Ávila, eu ‘não quis ver sob os seus aspectos realmente grandiosos.’ Para dizer todo o meu pensamento, afirmo que se tivesse ambições, a minha seria a de repetir hoje o terramoto do século passado, fazendo a isto, o que o grande Marquês fez àquilo. Quer o Sr. Lobo d'Ávila uma prova de admiração maior?” Vejam-se também as várias cartas de Eça de Queiroz a Oliveira Martins, nos momentos de intervenção política do historiador.

 

[25] In: Rumo à Estação Finlândia. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 19.